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Apocalipse Baudelaire

Resumos

Num movimento que se encontra difratado em alguns poemas das Flores do Mal e dos Poemas em prosa, em seus Diários íntimos, ao pensar o fim do mundo sob a forma da visão de um capitalismo global plutólatra, Baudelaire ("moi qui sens quelquefois en moi le ridicule d’un prophète", diz ele, provocadoramente, em Fusées), posa de profeta inspirado e esboça uma desconstrução da figura do poeta-profeta tão cara aos românticos.

Baudelaire; apocalipse; desconstrução


By a movement wich is diffracted in some poems of Les Fleurs du Mal and the Poèmes en prose, in his Journaux intimes, when he thinks about the end of the world in the forms of the vision of a plutolatre global capitalism, Baudelaire ("moi qui sens quelquefois en moi le ridicule d’un prophète", he says, provokingly, in Fusées), poses as an inspired prophet and suggests a deconstruction of the figure of the poet-prophet so cherished by the Romantics.

Baudelaire; revelation; deconstruction


Dans un mouvement qui se trouve diffracté dans quelques poèmes des Fleurs du Mal et des Poèmes en prose, dans ses Journaux intimes, pensant la fin du monde sous la forme de la vision d’un capitalisme mondial plutolatre, Baudelaire ("moi qui sens quelquefois en moi le ridicule d’un prophète", dit-il, provocamment, dans Fusées), pose de prophète inspiré et ébauche une déconstruction de la figure du poète-prophète si chère aux romantiques.

Baudelaire; apocalypse; déconstruction


Apocalipse Baudelaire

Paula Glenadel* * Professora na Universidade Federal Fluminense, pesquisadora do CNPq, tradutora e poeta. Organizou as coletâneas de ensaios: O francês e a diferença (com Eurídice Figueiredo). RJ: 7 Letras, 2006; Viver com Barthes (com Vera Casa Nova). RJ: 7 Letras, 2005; Estéticas da crueldade (com Ângela Dias). RJ: Atlântica, 2004; Em torno de Jacques Derrida (com Evando Nascimento). RJ: 7 Letras, 2000. Publicou, além de textos críticos em livros e periódicos especializados, os livros de poesia A vida espiralada. RJ: Caetés, 1999; Quase uma arte. SP; RJ: Cosac Naify; 7 Letras, 2005.

RESUMO

Num movimento que se encontra difratado em alguns poemas das Flores do Mal e dos Poemas em prosa, em seus Diários íntimos, ao pensar o fim do mundo sob a forma da visão de um capitalismo global plutólatra, Baudelaire ("moi qui sens quelquefois en moi le ridicule d’un prophète", diz ele, provocadoramente, em Fusées), posa de profeta inspirado e esboça uma desconstrução da figura do poeta-profeta tão cara aos românticos.

Palavras-chave: Baudelaire; apocalipse; desconstrução.

ABSTRACT

By a movement wich is diffracted in some poems of Les Fleurs du Mal and the Poèmes en prose, in his Journaux intimes, when he thinks about the end of the world in the forms of the vision of a plutolatre global capitalism, Baudelaire ("moi qui sens quelquefois en moi le ridicule d’un prophète", he says, provokingly, in Fusées), poses as an inspired prophet and suggests a deconstruction of the figure of the poet-prophet so cherished by the Romantics.

Key words: Baudelaire; revelation; deconstruction.

RÉSUMÉ

Dans un mouvement qui se trouve diffracté dans quelques poèmes des Fleurs du Mal et des Poèmes en prose, dans ses Journaux intimes, pensant la fin du monde sous la forme de la vision d’un capitalisme mondial plutolatre, Baudelaire ("moi qui sens quelquefois en moi le ridicule d’un prophète", dit-il, provocamment, dans Fusées), pose de prophète inspiré et ébauche une déconstruction de la figure du poète-prophète si chère aux romantiques.

Mots-clés: Baudelaire; apocalypse; déconstruction.

Le monde va finir

Se "‘Apocalipse’ é um termo técnico pelo qual se designa um gênero literário", como aponta Anke Bosse,*1 *1 (BOSSE, Anke. "De la mort de Dieu à la catastrophe nucléaire: adaptations et transformations de l’Apocalypse de Saint-Jean dans des textes littéraires du XVIIIe au XXe siècle". Colloquium helveticum. Cahiers suisses de littérature générale et comparée no. 30. Poetik & Rhetorik. Bern: Peter Lang, 1999: 187) compreendendo textos que se assemelham ao Apocalipse de São João, de linguagem carregada de simbologias e que utilizam a repetição como principal modo retórico para sensibilizar os destinatários em relação a uma crise social cujo desenlace é figurado como uma catástrofe, então não se pode falar propriamente de Apocalipse em Baudelaire. Afinal, ele apenas insinua no fragmento XV de Fusées uma visão de fim de mundo, propondo que "Le monde va finir",1 1 A tradução dos textos de Baudelaire é de minha responsabilidade, despreocupada de rima e métrica, feita com o intuito de explorar certas expressões do original. *2 *2 ["o mundo vai acabar"] (BAUDELAIRE, C. Journaux intimes. Fusées. Mon coeur mis à nu. Carnet. Paris: José Corti, 1949: 34) numa progressão que se intensifica até a evocação de um tempo ("Alors")*3 *3 ["Então"] em que "tout ce qui ne sera pas l’ardeur vers Plutus sera réputé un immense ridicule".*4 *4 ["tudo o que não for o ardor em direção a Plutus será sepultado de um imenso ridículo"] (Idem: 36.) E, sobre o caráter digressivo dessas poucas páginas, ele comenta: "Je crois que j’ai dérivé dans ce que les gens du métier appellent un hors-d’oeuvre. Cependant je laisserai ces pages – parce que je veux dater ma tristesse. [colère]".*5 *5 ["Creio que derivei naquilo que as pessoas do mêtie chamam de hors-d’oeuvres. Entretanto, deixarei essas páginas – porque quero datar minha tristeza.[raiva]."] (Idem: 37.)

Fora da obra, aperitivo, "deriva", como aponta Baudelaire, esse fragmento nem por isso deixa de abrir (ou por isso mesmo abre) direções de leitura de algo que encontramos em outros textos, os poemas das Flores do Mal ou os Poemas em prosa: algo como a exploração ou desconstrução daquilo que poderíamos chamar de "um tom apocalíptico adotado outrora em poesia".

Embora em algum momento Baudelaire possa recitar o credo romântico (como em "O sol",*6 *6 ["Le soleil"] (BAUDELAIRE, C. Les Fleurs du mal. Paris: Librairie Générale Française, 1972 a: 13-14) poema bastante hugoliano, poderíamos dizer, no qual, aliás, a figura do pai-sol que nutre é invocada), em outros muitos momentos ele faz do profeta uma figura caricata: "moi qui sens quelquefois en moi le ridicule d’un prophète".*7 *7 ["eu que sinto em mim às vezes o ridículo de um profeta"] (BAUDELAIRE, C. Journaux intimes. Fusées. Mon coeur mis à nu. Carnet. Op. cit.: 37.) Ridículo, neste fragmento, é o epíteto de tudo o que não é o ardor pelo dinheiro, ridículo também é o profeta que denuncia as iniqüidades do mundo. Inclusive porque, como ele completa em seguida, "je sais que je n’y trouverai jamais la charité d’un médecin".*8 *8 ["sei que jamais encontrarei em mim a caridade de um médico".] (Ibidem.) À denúncia, sucede-se um estado "oublieux – autant que possible – du passé, content du présent et résigné à l’avenir",*9 *9 ["esquecido – tanto quanto possível – do passado, contente com o presente e resignado com o futuro"] (Ibidem.) ao tom profético sucede-se o tom "de son sang-froid et de son dandysme".*10 *10 ["de seu sangue-frio e de seu dandismo"] (Ibidem.)

O fragmento apresenta um simulacro, no gesto de retomar a figura do profeta como máscara. O profeta da plutolatria futura que dá o alarme para depois se atolar na alienação nossa de cada dia pode soar tão falso como a falsa moeda que fornece o argumento de outro poema em prosa baudelairiano... Caberia, talvez, ver na performance desse profeta poseur o indício mais claro de que o fim do mundo já teve lugar. O mundo por vir aparece, de fato, como co-presente ao atual: "Ces temps sont peut-être bien proches; qui sait même s’ils ne sont pas venus, et si l’épaississement de notre nature n’est pas le seul obstacle qui nous empêche d’apprécier le milieu dans lequel nous respirons!"*11 *11 ["Esses tempos talvez estejam bem próximos; quem sabe até se eles não chegaram, e se o espessamento de nossa natureza não é o único obstáculo que nos impede de apreciar o meio em que respiramos!"] (Idem: 36-37.)

O apocalipse entrevisto no fragmento XV de Fusées corresponderia, então, não a uma revelação por desvelamento apotéotico final, porém, mais propriamente, a uma revelação por desvelamento da catástrofe do cotidiano. Caso concordemos com António Guerreiro, que afirma:

Walter Benjamin faz apelo a uma verdade escatológica como critério de conhecimento histórico, isto é, num sentido imanente que inscreve a apocalíptica no seio da história – numa espécie de apocalipse profano – precisamente para reconquistar o que, nesta, se perdeu com as concepções naturalistas do tempo histórico – aquelas que estão na base do historicismo e do seu correlato conceito de progresso.*12 *12 (GUERREIRO, António. "História e apocalipse". O acento agudo do presente. Lisboa: Cotovia, 2000: 110.)

podemos ver em Baudelaire não exatamente o conhecido "profeta da modernidade", mas um pensador da modernidade já instalada, que se vale da figura do profeta como dispositivo poético-crítico bastante eficaz, porque extremamente lastrado de memória cultural. Caberia, talvez, então, repontuar essa doxa acerca de um Baudelaire profético, em função da complexidade da figura do profeta tal como ela aparece em seus escritos, interrogando os diversos valores atribuídos a essa figura, a esse ethos da enunciação muito freqüente na época romântica, cujas contradições ele explora ao máximo.

Ao refletir sobre os seus contemporâneos, em texto dedicado a Victor Hugo, Baudelaire relaciona o poeta ao tradutor, ao decifrador da universal analogia:*13 *13 (BAUDELAIRE, C. Écrits sur la littérature. Paris: Librairie Générale Française, 2005: 321.) o poeta, como o profeta, traduz a palavra divina para os homens, operação que a devoração do livro metaforiza. Baudelaire emite aí o seguinte julgamento sobre Hugo:

Je vois dans la Bible un prophète à qui Dieu ordonne de manger un livre. J'ignore dans quel monde Victor Hugo a mangé préalablement le dictionnaire de la langue qu’il était appelé à parler; mais je vois que le lexique français, en sortant de sa bouche, est devenu un monde, un univers coloré, mélodieux et mouvant.*14 *14 [Vejo na Bíblia um profeta a quem Deus ordena comer um livro. Ignoro em que mundo Victor Hugo previamente comeu o dicionário da língua que ele era chamado a falar; mas vejo que o léxico francês, saindo de sua boca, se tornou um mundo, um universo colorido, melodioso e movente.] (Ibidem.)

Neste texto, que procura situar com justiça a poética hugoliana no contexto da sua novidade em relação àquilo que a precedeu, Baudelaire se interroga também sobre a obra por vir de Hugo, pede uma outra prova, ainda inédita, do seu gênio – que poderia ser compreendido como a capacidade de responder ao "chamado" que lhe corresponde. Estaria a continuação dessa obra do lado da "bufonaria", da "alegria imortal", da "jocosidade", do "sobrenatural", do "feérico" e do "maravilhoso"?*15 *15 (Idem: 331.) É uma interrogação ligeiramente perversa, já que em Hugo a "sabedoria" unanimemente reconhecida é correlata, justamente, à seriedade com que ele encara seu papel de profeta... De volta ao fragmento XV: ali, Baudelaire menciona Hugo-Prometeu queimando o peito com as moxas da vaidade, "Hugo-Sacerdócio" atento apenas a seu umbigo.*16 *16 (BAUDELAIRE, C. Journaux intimes. Fusées. Mon coeur mis à nu. Carnet. Op. cit.: 34)

Jamais plus

Nunca mais: no poema de Poe, traduzido por Baudelaire com bastante proximidade, o corvo é chamado de "profeta". O inquietante oráculo que sai de seu bico negro é a expressão "nunca mais". O sentido dessa profecia necessitaria ser buscado na direção de uma negatividade exacerbada que, de certo modo, nega até a própria idéia de fim, ao mantê-la congelada numa repetição infinita, numa recusa de dizer outra coisa senão o anúncio do fim: espécie de eterno retorno infernal, ou não-seletivo, da profecia, onde a iminência jamais se resolvesse em acontecimento.

Se a profecia aparece aqui como um "nunca mais", portadora de uma negatividade que interdita o futuro e barra o passado como inacessível, não estaria ela fechada num monocórdio refrão que equivale a um ruído? Estaríamos então diante do paradoxo de um ruído que é sentido como silêncio, ou melhor, como o silenciamento de uma palavra portadora de sentido ético, isto é, poético. Esse paradoxo encontra uma tradução na contemporaneidade, por exemplo, com Marcos Siscar, em cuja obra o roubo do silêncio é uma operação complexa, em que os termos da equação se invertem a ponto de abalar a lógica habitual: "O silêncio é o sofrimento da palavra, quando a poesia do silêncio lhe é roubada. A vingança dos desapropriados é o barulho da prosa do mundo".*17 *17 (SISCAR, Marcos. O roubo do silêncio. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006: 19.)

Em um poema em prosa de Baudelaire, um dos tentadores que aparecem ao narrador é Plutus, divindade satânica cuja pele é ilustrada com uma multidão de pequenas figuras que se movem, representando as numerosas formas da miséria universal, os endividados, os mendigos, os famintos, emitindo ao bater em seu ventre uma mistura do som metálico das moedas com um vago gemido de vozes humanas: o ruído de Plutus amortece a linguagem dos homens. Mallarmé, ao escolher a imagem do "numerário fácil e representativo"*18 *18 (MALLARMÉ, Stéphane. Œuvres complètes. Paris: Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 1945: 857.) para caracterizar a necessidade da autonomia da linguagem poética, e Nietzsche, ao falar das verdades como moedas cuja impressão gasta promete doravante um valor apenas metálico,*19 *19 (cf. NIETZSCHE, Friedrich. Le livre du philosophe/ das Philosophenbuch. Paris: Aubier-Flammarion, 1969: 183.) revelam afinidades com essa visão de Baudelaire.

Serge Margel propõe uma leitura instigante do silêncio dos profetas da qual, contudo, apenas esboçarei aqui alguns traços que podem contribuir para avaliar a complexidade da relação de Baudelaire com a figura do profeta. Ele interroga o desaparecimento da palavra dos profetas, dessa "voix tierce et dissidente, entre le théologique et le politique",*20 *20 ["voz terceira e dissidente, entre o teológico e o político"] (MARGEL, Serge. Le silence des prophètes. La falsification des Écritures et le destin de la modernité. Paris: Galilée, 2006: 12) anunciadora de crises, sopro do deserto. Isso é lido pelo filósofo na apropriação simbólica realizada pelas traduções e comentários, indicando uma falsificação das escrituras sagradas através da redistribuição das figuras da palavra divina, que culmina na construção de "une révélation sans médiateur angélique, donc d’une certaine manière sans parole prophétique".*21 *21 ["uma revelação sem mediador angélico, portanto, de certo modo, sem palavra profética"] (Idem: 28.) Manejada criticamente por Spinoza e Freud, a falsa moeda das Escrituras revela o recalque da crise como fundamento de qualquer instituição. Interessante é notar que, no que tange à modernidade, "ce qu’elle produit même par sa critique ou sa déconstruction des Écritures, c’est un certain ‘retour du refoulé’, une certaine résurgence de la crise, de l’exil et du désert".*22 *22 ["o que ela produz até por sua crítica ou sua desconstrução das Escrituras é um certo ‘retorno do recalcado’, uma certa ressurgência da crise, do exílio e do deserto."] (Idem: 31.)

O que mais interessa dessa hipótese, a meu ver, é a caracterização da voz profética na proximidade da voz poética, não no modo pleno da comunicação privilegiada enfatizada pelos românticos, porém no vazio de uma interlocução incerta, como deixa entender, entre outras coisas, a nota onde Margel cita Blanchot, falando sobre a relação da palavra profética com o deserto, a crise: "cette parole où s’exprimerait, avec une force désolée, le rapport nu avec le Dehors".*23 *23 ["essa palavra onde se expressaria, com uma força desolada, a relação nua com o Fora".] (Idem: 79.) Os atributos dessa palavra são comuns aos atributos de uma poesia mais próxima de nossa problemática, do retorno do recalcado que de certo modo coincide com a modernidade. Margel propõe ainda que "il [le prophète] rappelle qu’il n’y a pas de promesse de terre sans menace d’exil, donc qu’il n’y a pas de promesse sans menace ni de terre sans exil."*24 *24 ["ele [o profeta] lembre que não há promessa de terra sem ameaça de exílio, portanto, que não há promessa sem ameaça nem terra sem exílio."] (Idem: 47.)

Em Baudelaire, é possível encontrar o entrelaçamento dos temas proféticos do deserto, da terra e do exílio, da errância, da tentação e da recusa. Assim como nas tentações de Plutus recusadas pelo narrador – "Et celui-là me dit: ‘Je puis te donner ce qui obtient tout, ce qui vaut tout, ce qui remplace tout!’ Et il tapa sur son ventre monstrueux, dont l’écho sonore fit le commentaire de sa grossière parole." –,*25 *25 ["E este me diz: ‘posso te dar o que consegue tudo, o que vale tudo, o que substitui tudo!’ E bateu no seu ventre monstruoso, cujo eco sonoro fez o comentário da sua grosseira fala."] (BAUDELAIRE, C. Poèmes en prose. Paris: Librairie Générale Française, 1972 b: 87.) também no poema "A voz" se encena um diálogo em que a terra é oferecida ao poeta, que, contudo, declara dizer "sim" à voz do exílio, a voz das margens:

Deux voix me parlaient. L’une, insidieuse et ferme,

Disait: "La Terre est un gâteau plein de douceur;

Je puis (et ton plaisir serait alors sans terme!)

Te faire un appétit d’une égale grosseur."

Et l’autre: "Viens! oh! viens voyager dans les rêves,

Au delà du possible, au delà du connu!"

Et celle-là chantait comme le vent des grèves,

Fantôme vagissant, on ne sait d’où venu,

Qui caresse l’oreille et cependant l’effraie.

Je te répondis: "Oui! douce voix!" C’est d’alors

Que date ce qu’on peut, hélas! nommer ma plaie

Et ma fatalité. (...)

Et c’est depuis ce temps que, pareil aux prophètes,

J’aime si tendrement le désert et la mer;*26 *26 ["Duas vozes me falavam. Uma, insidiosa e firme, / Dizia: "A Terra é um bolo cheio de doçura; / Eu posso (e seu prazer então seria sem fim!) / Te dar um apetite de um tamanho igual." / E a outra: "Venha! Ó! venha viajar nos sonhos, / Além do possível, além do conhecido!" / E esta cantava como o vento nas dunas, / Fantasma gemente, não se sabe de onde vindo, / Que acaricia o ouvido e contudo o assusta. / Eu te respondi: "Sim! Doce voz!" É de então / Que data o que se pode, hélas, chamar minha ferida / E minha fatalidade. (...) / E é desde então que, semelhante aos profetas, / Amo tão ternamente o deserto e o mar;] (BAUDELAIRE, C. Les Fleurs du mal. Op. cit.: 248-249.)

Chamado a escolher entre a fatalidade de uma promessa ameaçadora ou a ameaça de uma promessa insidiosa, o poeta posa, se torna "semelhante" ao profeta (e Michel Deguy vem sublinhando a relevância da comparação como o meio do pensamento em geral, expressa no "como" ou no "pareil à", que não se confunde com o "ser à imagem de"2 2 Ver, por exemplo, L'énergie du désespoir. Pour une poétique continuée par tous les moyens. Paris: P.U.F., 1998. ): em lugar da certeza de alguma terra prometida, o desamparo de um salto no vazio.

O chamado que se encontra em "A voz" aparece também modulado no poema em prosa "As vocações". No quarto menino, aquele que deseja partir com os homens vistos na feira, que vivem como ele gostaria de viver, cuja caracterização remete aos ciganos ("grands, presque noirs et très fiers, quoique en guenilles, avec l’air de n’avoir besoin de personne. Leurs grands yeux sombres sont devenus tout à fait brillants pendant qu’ils faisaient de la musique."),*27 *27 ["altos, quase negros e muito orgulhosos embora esfarrapados, com ar de não precisarem de ninguém. Seus grandes olhos (sombrios) tornaram-se completamente brilhantes enquanto eles tocavam música."] ( BAUDELAIRE, C. Poèmes en prose. Op. cit.:129.) o narrador vê "ce je ne sais quoi de précocement fatal qui éloigne généralement la sympathie, et qui, je ne sais pourquoi, excitait la mienne, au point que j’eus un instant l’idée bizarre que je pouvais avoir un frère à moi-même inconnu".*28 *28 ["esse não sei quê de precocemente fatal que em geral afasta a simpatia e que, não sei por que, excitava a minha, a tal ponto que tive por um instante a idéia bizarra que eu podia ter um irmão desconhecido de mim mesmo."] (Idem: 131.)

Em que pese o resíduo de um topos romântico ou mais propriamente hugoliano,3 3 Ver, por exemplo, o poema "Oui, je suis le rêveur..." ( Les Contemplations), onde o sonhador poeta, em relação à natureza, "é de casa", e se comunica com tudo o que a compõe. legível ainda no poema sob a forma da natureza amigável e receptiva, os ciganos ("La tribu prophétique aux prunelles ardentes"*29 *29 ["a tribo profética de pupilas ardentes"] (BAUDELAIRE, C. Les Fleurs du mal. Op. cit.: 27) de "Bohémiens en Voyage", "Ciganos em viagem") oferecem em sua errância a figura de uma certa soberania que Bataille pôde localizar em Baudelaire na economia da despesa improdutiva.4 4 Ver BATAILLE, Georges. "La littérature et le mal". Œuvres complètes. T. IX. Paris: Gallimard, 1979. Eles funcionam como uma variante do bastante explorado tema baudelairiano da viagem, uma imagem alternativa da abertura para o novo.

A esse tema, eles acrescentam uma dimensão marginal e principalmente anacrônica que tem implicações críticas importantes. Pois se para esses viajantes está aberto "L’empire familier des ténèbres futures",*30 *30 ["O império familiar das trevas futuras"] (Idem: 28.) formulação oximórica de um futuro tornado rotineiro que lembra o corvo profeta da repetição, as trevas futuras também são contemporâneas, como quando Baudelaire propõe que "Pascal avait son gouffre, avec lui se mouvant".*31 *31 ["Pascal tinha seu abismo, com ele se movendo"] (Idem: 261.)

Ainda no poema "A voz", descreve-se um processo de abismamento que pode, anacronicamente, nos fornecer a ocasião de uma visão crítica dos cenários da globalização em que nos movemos, através do jogo entre o "imenso" (portanto, o sem medida, sem ritmo, sem pausa e sem silêncio) e os "mundos singulares", simultaneamente bizarros e únicos, descontínuos, habitados de interrupções, numa palavra, abertos:

(...)

Derrière les décors

De l’existence immense, au plus noir de l’abîme,

Je vois distinctement des mondes singuliers,

(...)*32 *32 [(...) / "Atrás dos cenários / Da existência imensa, (ao) no mais negro do abismo / Vejo distintamente mundos singulares, / (...)"] (Idem: 249.)

Assim, de certo modo, essa espécie de apocalipse portátil experimentado pelo sujeito que se torna "semelhante a um profeta" funciona como tradução profana do Apocalipse, para os tempos de hoje. Na recusa de "encarar" o comum destino mortal, isto é, na impossibilidade de dotar de sentido ambas as coisas, tanto nossa condição mortal quanto nossa "como-unidade" frente a ela, é gerada a uniformização das linguagens calcada sobre um modelo mundial, configurando o que Deguy chama de cultural. Esse seria o panorama da ameaça contemporânea para o pensamento poético, para a experiência do humano. E a necessidade da poesia, sua razão de ser, sua disposição e seu ritmo: "Como o mundo vai acabar, perguntava-se Baudelaire. O ‘pensamento poético’ encara (prosopopéia) isso, fazendo face ao ameaçador para tomar suas medidas (ritmo)".*33 *33 (DEGUY, M. L’Impair. Tours: Farrago, 2000: 25.)

Na singular tradução que Baudelaire realiza da figura do profeta, ela própria aparentada à do tradutor, como vimos, a impostura da pose revela-se, então, como promessa de uma eficaz profanação possível da profecia: a promessa de fazê-la falar ainda do mundo dentro do mundo.

Recebido em: 19/05/2007

Aprovado em: 30/06/2007

  • *1 (BOSSE, Anke. "De la mort de Dieu à la catastrophe nucléaire: adaptations et transformations de lApocalypse de Saint-Jean dans des textes littéraires du XVIIIe au XXe siècle". Colloquium helveticum. Cahiers suisses de littérature générale et comparée no. 30. Poetik & Rhetorik. Bern: Peter Lang, 1999: 187)
  • *2 ["o mundo vai acabar"] (BAUDELAIRE, C. Journaux intimes. Fusées. Mon coeur mis à nu. Carnet. Paris: José Corti, 1949: 34)
  • *6 ["Le soleil"] (BAUDELAIRE, C. Les Fleurs du mal. Paris: Librairie Générale Française, 1972 a: 13-14)
  • *7 ["eu que sinto em mim às vezes o ridículo de um profeta"] (BAUDELAIRE, C. Journaux intimes. Fusées. Mon coeur mis à nu. Carnet. Op. cit.: 37.)
  • *12 (GUERREIRO, António. "História e apocalipse". O acento agudo do presente. Lisboa: Cotovia, 2000: 110.)
  • *13 (BAUDELAIRE, C. Écrits sur la littérature. Paris: Librairie Générale Française, 2005: 321.)
  • *16 (BAUDELAIRE, C. Journaux intimes. Fusées. Mon coeur mis à nu. Carnet. Op. cit.: 34)
  • *17 (SISCAR, Marcos. O roubo do silêncio. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006: 19.)
  • *18 (MALLARMÉ, Stéphane. uvres complètes. Paris: Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 1945: 857.)
  • *19 (cf. NIETZSCHE, Friedrich. Le livre du philosophe/ das Philosophenbuch. Paris: Aubier-Flammarion, 1969: 183.)
  • *20 ["voz terceira e dissidente, entre o teológico e o político"] (MARGEL, Serge. Le silence des prophètes. La falsification des Écritures et le destin de la modernité. Paris: Galilée, 2006: 12)
  • *25 ["E este me diz: posso te dar o que consegue tudo, o que vale tudo, o que substitui tudo! E bateu no seu ventre monstruoso, cujo eco sonoro fez o comentário da sua grosseira fala."] (BAUDELAIRE, C. Poèmes en prose. Paris: Librairie Générale Française, 1972 b: 87.)
  • *26 ["Duas vozes me falavam. Uma, insidiosa e firme, / Dizia: "A Terra é um bolo cheio de doçura; / Eu posso (e seu prazer então seria sem fim!) / Te dar um apetite de um tamanho igual." / E a outra: "Venha! Ó! venha viajar nos sonhos, / Além do possível, além do conhecido!" / E esta cantava como o vento nas dunas, / Fantasma gemente, não se sabe de onde vindo, / Que acaricia o ouvido e contudo o assusta. / Eu te respondi: "Sim! Doce voz!" É de então / Que data o que se pode, hélas, chamar minha ferida / E minha fatalidade. (...) / E é desde então que, semelhante aos profetas, / Amo tão ternamente o deserto e o mar;] (BAUDELAIRE, C. Les Fleurs du mal. Op. cit.: 248-249.)
  • *27 ["altos, quase negros e muito orgulhosos embora esfarrapados, com ar de não precisarem de ninguém. Seus grandes olhos (sombrios) tornaram-se completamente brilhantes enquanto eles tocavam música."] ( BAUDELAIRE, C. Poèmes en prose. Op. cit.:129.)
  • *29 ["a tribo profética de pupilas ardentes"] (BAUDELAIRE, C. Les Fleurs du mal. Op. cit.: 27)
  • *33 (DEGUY, M. LImpair. Tours: Farrago, 2000: 25.)
  • 2 Ver, por exemplo, L'énergie du désespoir. Pour une poétique continuée par tous les moyens Paris: P.U.F., 1998.
  • 4 Ver BATAILLE, Georges. "La littérature et le mal". uvres complètes. T. IX. Paris: Gallimard, 1979.
  • *
    Professora na Universidade Federal Fluminense, pesquisadora do CNPq, tradutora e poeta. Organizou as coletâneas de ensaios:
    O francês e a diferença (com Eurídice Figueiredo). RJ: 7 Letras, 2006;
    Viver com Barthes (com Vera Casa Nova). RJ: 7 Letras, 2005;
    Estéticas da crueldade (com Ângela Dias). RJ: Atlântica, 2004;
    Em torno de Jacques Derrida (com Evando Nascimento). RJ: 7 Letras, 2000. Publicou, além de textos críticos em livros e periódicos especializados, os livros de poesia
    A vida espiralada. RJ: Caetés, 1999;
    Quase uma arte. SP; RJ: Cosac Naify; 7 Letras, 2005.
  • *1
    (BOSSE, Anke. "De la mort de Dieu à la catastrophe nucléaire: adaptations et transformations de l’Apocalypse de Saint-Jean dans des textes littéraires du XVIIIe au XXe siècle".
    Colloquium helveticum. Cahiers suisses de littérature générale et comparée no. 30. Poetik & Rhetorik. Bern: Peter Lang, 1999: 187)
  • *2
    ["o mundo vai acabar"] (BAUDELAIRE, C.
    Journaux intimes. Fusées. Mon coeur mis à nu. Carnet. Paris: José Corti, 1949: 34)
  • *3
    ["Então"]
  • *4
    ["tudo o que não for o ardor em direção a Plutus será sepultado de um imenso ridículo"] (Idem: 36.)
  • *5
    ["Creio que derivei naquilo que as pessoas do mêtie chamam de
    hors-d’oeuvres. Entretanto, deixarei essas páginas – porque quero datar minha tristeza.[raiva]."] (Idem: 37.)
  • *6
    ["Le soleil"] (BAUDELAIRE, C.
    Les Fleurs du mal. Paris: Librairie Générale Française, 1972 a: 13-14)
  • *7
    ["eu que sinto em mim às vezes o ridículo de um profeta"] (BAUDELAIRE, C.
    Journaux intimes. Fusées. Mon coeur mis à nu. Carnet. Op. cit.: 37.)
  • *8
    ["sei que jamais encontrarei em mim a caridade de um médico".] (Ibidem.)
  • *9
    ["esquecido – tanto quanto possível – do passado, contente com o presente e resignado com o futuro"] (Ibidem.)
  • *10
    ["de seu sangue-frio e de seu dandismo"] (Ibidem.)
  • *11
    ["Esses tempos talvez estejam bem próximos; quem sabe até se eles não chegaram, e se o espessamento de nossa natureza não é o único obstáculo que nos impede de apreciar o meio em que respiramos!"] (Idem: 36-37.)
  • *12
    (GUERREIRO, António. "História e apocalipse".
    O acento agudo do presente. Lisboa: Cotovia, 2000: 110.)
  • *13
    (BAUDELAIRE, C.
    Écrits sur la littérature. Paris: Librairie Générale Française, 2005: 321.)
  • *14
    [Vejo na Bíblia um profeta a quem Deus ordena comer um livro. Ignoro em que mundo Victor Hugo previamente comeu o dicionário da língua que ele era chamado a falar; mas vejo que o léxico francês, saindo de sua boca, se tornou um mundo, um universo colorido, melodioso e movente.] (Ibidem.)
  • *15
    (Idem: 331.)
  • *16
    (BAUDELAIRE, C.
    Journaux intimes. Fusées. Mon coeur mis à nu. Carnet. Op. cit.: 34)
  • *17
    (SISCAR, Marcos.
    O roubo do silêncio. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006: 19.)
  • *18
    (MALLARMÉ, Stéphane.
    Œuvres complètes. Paris: Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 1945: 857.)
  • *19
    (cf. NIETZSCHE, Friedrich.
    Le livre du philosophe/ das Philosophenbuch. Paris: Aubier-Flammarion, 1969: 183.)
  • *20
    ["voz terceira e dissidente, entre o teológico e o político"] (MARGEL, Serge.
    Le silence des prophètes. La falsification des Écritures et le destin de la modernité. Paris: Galilée, 2006: 12)
  • *21
    ["uma revelação sem mediador angélico, portanto, de certo modo, sem palavra profética"] (Idem: 28.)
  • *22
    ["o que ela
    produz até por sua crítica ou sua desconstrução das Escrituras é um certo ‘retorno do recalcado’, uma certa ressurgência da crise, do exílio e do deserto."] (Idem: 31.)
  • *23
    ["essa palavra onde se expressaria, com uma força desolada, a relação nua com o Fora".] (Idem: 79.)
  • *24
    ["ele [o profeta] lembre que não há promessa de terra sem ameaça de exílio, portanto, que não há promessa sem ameaça nem terra sem exílio."] (Idem: 47.)
  • *25
    ["E este me diz: ‘posso te dar o que consegue tudo, o que vale tudo, o que substitui tudo!’ E bateu no seu ventre monstruoso, cujo eco sonoro fez o comentário da sua grosseira fala."] (BAUDELAIRE, C.
    Poèmes en prose. Paris: Librairie Générale Française, 1972 b: 87.)
  • *26
    ["Duas vozes me falavam. Uma, insidiosa e firme, / Dizia: "A Terra é um bolo cheio de doçura; / Eu posso (e seu prazer então seria sem fim!) / Te dar um apetite de um tamanho igual." / E a outra: "Venha! Ó! venha viajar nos sonhos, / Além do possível, além do conhecido!" / E esta cantava como o vento nas dunas, / Fantasma gemente, não se sabe de onde vindo, / Que acaricia o ouvido e contudo o assusta. / Eu te respondi: "Sim! Doce voz!" É de então / Que data o que se pode, hélas, chamar minha ferida / E minha fatalidade. (...) / E é desde então que, semelhante aos profetas, / Amo tão ternamente o deserto e o mar;] (BAUDELAIRE, C.
    Les Fleurs du mal. Op. cit.: 248-249.)
  • *27
    ["altos, quase negros e muito orgulhosos embora esfarrapados, com ar de não precisarem de ninguém. Seus grandes olhos (sombrios) tornaram-se completamente brilhantes enquanto eles tocavam música."] ( BAUDELAIRE, C.
    Poèmes en prose. Op. cit.:129.)
  • *28
    ["esse não sei quê de precocemente fatal que em geral afasta a simpatia e que, não sei por que, excitava a minha, a tal ponto que tive por um instante a idéia bizarra que eu podia ter um irmão desconhecido de mim mesmo."] (Idem: 131.)
  • *29
    ["a tribo profética de pupilas ardentes"] (BAUDELAIRE, C.
    Les Fleurs du mal. Op. cit.: 27)
  • *30
    ["O império familiar das trevas futuras"] (Idem: 28.)
  • *31
    ["Pascal tinha seu abismo, com ele se movendo"] (Idem: 261.)
  • *32
    [(...) / "Atrás dos cenários / Da existência imensa, (ao) no mais negro do abismo / Vejo distintamente mundos singulares, / (...)"] (Idem: 249.)
  • *33
    (DEGUY, M.
    L’Impair. Tours: Farrago, 2000: 25.)
  • 1
    A tradução dos textos de Baudelaire é de minha responsabilidade, despreocupada de rima e métrica, feita com o intuito de explorar certas expressões do original.
  • 2
    Ver, por exemplo,
    L'énergie du désespoir. Pour une poétique continuée par tous les moyens. Paris: P.U.F., 1998.
  • 3
    Ver, por exemplo, o poema "Oui, je suis le rêveur..." (
    Les Contemplations), onde o sonhador poeta, em relação à natureza, "é de casa", e se comunica com tudo o que a compõe.
  • 4
    Ver BATAILLE, Georges. "La littérature et le mal".
    Œuvres complètes. T. IX. Paris: Gallimard, 1979.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Fev 2008
    • Data do Fascículo
      Dez 2007

    Histórico

    • Recebido
      19 Maio 2007
    • Aceito
      30 Jun 2007
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