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Ludere-illusio ou a autonomia contingente

Ludere-illusio or the Contingent Autonomy

Resumo

Nosso trabalho se propõe a uma retomada e crítica do conceito de pós-autonomia, de Josefina Ludmer, como operador de leitura para a produção poética brasileira contemporânea. Num primeiro momento, o objetivo será ressituar as polêmicas a respeito da pós-autonomia a partir de uma dialética benjaminiana entre a ilusão e o jogo. Em seguida, nos focaremos em uma deriva do ultrapassamento da autonomia por meio de sua reformulação enquanto uma autonomia contingente.

Palavras-chave
Pós-autonomia; poesia contemporânea brasileira; jogo e semblante

Abstract

The main aim of this article is to reframe Josefina Ludmer’s concept of post-autonomy as a privileged benchmark for reading Brazilian contemporary poetry. In the first instance, this research will reconsider the controversy about post-autonomy through a recovery of Walter Benjamin’s dialectic of semblance and play. Finally, this paper will focus on a derivative aesthetic autonomy, through its reformulation as a contingent autonomy.

Keywords
post-autonomy; Brazilian contemporary poetry; semblance and play

Resumen

Nuestro trabajo retoma y critica el concepto de posautonomía de Josefina Ludmer, entendiéndolo como un operador de lectura para la producción poética brasileña contemporánea. En un primer momento, el objetivo será resituar las polémicas sobre la posautonomía a partir de la dialéctica benjaminiana entre ilusión y juego. Posteriormente, nos centraremos en una suerte de superación de la autonomía, a través de una reformulación de una autonomía contingente.

Palabras-clave
Posautonomía; poesía contemporánea brasileña; juego y semblante

Tomemos, como ponto de partida, uma anedota clássica: a disputa entre os dois grandes pintores da Grécia Antiga, Zêuxis e Parrásio. Narrada na Historia Naturalis de Plínio, o velho, a base do episódio é uma competição que gira em torno dos efeitos de dois trompe-l’oeil: Zêuxis, o primeiro a apresentar seu quadro, pinta uvas com tal maestria que engana e atrai os pássaros. Em seguida, pede a Parrásio que revele sua pintura, oculta por uma cortina, ao que este responde que a cortina é, na verdade, a sua pintura. Zêuxis se vê obrigado, então, a admitir sua derrota, já que ele havia enganado as aves, mas Parrásio conseguira iludir um artista.

A anedota tem em Lacan sua leitura mais célebre. Em seu seminário sobre o olhar (1988LACAN, Jacques. O seminário livro 11 - Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1988., p. 79-112), ela serve ao teórico para propor o trompe-l’oeil como uma espécie de paradigma íntimo da pintura: todo quadro seria uma “armadilha de olhar” (IbidemLACAN, Jacques. O seminário livro 11 - Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1988., p. 88) ou uma relação de logro com “algo mais além do qual ele [Zêuxis] quer ver” (IbidemLACAN, Jacques. O seminário livro 11 - Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1988., p. 109). Esse mesmo ponto é ainda retomado, mais recentemente, por Hal Foster: “mais significativo aqui é que o animal é seduzido em relação à superfície, ao passo que o humano é iludido em relação ao que está por detrás” (2014FOSTER, Hal. O retorno do real. São Paulo: Cosac Naify, 2014. p. 137), isto é, uma projeção ilusória de uma realidade para além da representação. Evidentemente, dentro de uma linha de pensamento lacaniano, trata-se de um real irrepresentável - “porque o real não pode ser representado; de fato, ele é definido desse modo” (Idem) - ou, ainda, de um real que se coloca apenas enquanto ilusão do real; enquanto jogo de iminência e diferimento de uma revelação impossível.

Gostaríamos de ressaltar dois pontos dessa discussão. Primeiro: a disputa entre Zêuxis e Parrásio (conforme Lacan e Foster chamam a atenção) não se resolve nos termos de um realismo mais bem acabado ou de uma maior verossimilhança. As duas pinturas iludem ou não apenas conforme se eleja um “leitor” específico, seu “efeito de real” apenas se dá em relação a um movimento específico de leitura. Zêuxis engana muito bem os pássaros, por exemplo. Em segundo lugar, Parrásio é especialmente estratégico: ele apenas triunfa porque seu efeito não é tomado como um elemento interno à obra, não faz parte de um sistema bidimensional inscrito em uma tela, mas se inscreve, precisamente, no limiar dela. Em outras palavras, Parrásio vence por situar seu trompe l’oeil exatamente no limite que definiria um “interno” vs. um “externo” à obra, ou, finalmente, Parrásio joga com a ilusão do real no limiar que circunscreveria sua tela como um objeto autônomo oposto a uma realidade externa.

O percurso teórico-crítico que esboçaremos a partir daqui desenha um horizonte possível para ler algumas estratégias recorrentes na produção literária brasileira contemporânea1 1 Não nos deteremos aqui em um recorte específico dessa produção, porém, no percurso de nossa reflexão não será difícil reconhecer tópicos familiares às produções (e à recepção crítica) de alguns poetas contemporâneos como Adelaide Ivánova, Alberto Pucheu, Angélica Freitas, Bruno Brum, Carlito Azevedo, Leonardo Gandolfi, Marília Garcia, Marcelo Montenegro, Roy David Frankel ou Verônica Stigger. que ecoam a tática de Parrásio e que têm sido lidas junto ao conceito de “literaturas pós-autônomas” de Josefina Ludmer. Nosso objetivo é tentar situar essas estratégias desde um jogo com o limite que marcaria a oposição entre obra e realidade externa, ou ainda, para usarmos os termos que serão centrais para nossa investigação, na medida em que seu semblante “pós-autônomo” se coloca como efeito de um jogo de ilusões.

Se a anedota grega, porém, se resolve com a descoberta do efeito ilusório e com a reinscrição de um novo limite para a obra, o que nos interessará será uma dificuldade de reestabelecer com segurança esse limite autonomista. Tudo se passa como se a ilusão de uma realidade “por detrás” pudesse se reatualizar indefinidamente, oferecendo a cada movimento de leitura diferentes limiares possíveis, mas nunca um limite inequívoco. É esse investimento na indecidibilidade, uma demora no instante em que a cortina é e não é pintura, que nos levará, finalmente, a situar a autonomia junto à categoria da contingência.

Sair de Ludmer com Ludmer

No primeiro parágrafo de seu prólogo para o volume Intervenções críticas (LUDMER, 2014LUDMER, Josefina. Intervenções críticas.Rio de Janeiro: Azougue , 2014.), compilação de textos críticos de Josefina Ludmer, Ariadne Costa ressalta que é a partir da circulação de “Literaturas pós-autônomas”, em 2006, que Ludmer “adquire um status de figura pop no eixo Brasil-Argentina da crítica literária” (COSTA, 2014COSTA, Ariadne. “Prólogo” In. LUDMER, Josefina Intervenções críticas Rio de Janeiro: Azougue, 2014., p. 7). Ainda segundo Ariadne, “a popularidade do texto se justifica por seu caráter provocativo e aberto, por seu tom afirmativo, de ruptura, quase de manifesto, e sua defesa de uma transformação radical nos procedimentos da crítica literária” (Ibidem).

A proposta de Ludmer2 2 Nos voltamos para o texto de Ludmer, mas o que nos interessa é lê-lo como uma espécie de centro orbital teórico a partir do qual diversos outros tópicos da crítica contemporânea poderiam ser aproximados (como a “inespecificidade” algumas das implicações do “não original” ou o “autoficional”, para tomarmos alguns exemplos). é, de fato, especialmente provocativa: segundo a autora, a literatura contemporânea não admitiria mais “leituras literárias; isso quer dizer que não se sabe ou não importa se são ou não literatura” (LUDMER, 2014LUDMER, Josefina. Intervenções críticas.Rio de Janeiro: Azougue , 2014., p. 148), estariam situadas “no fim do ciclo da autonomia literária” (Idem), de onde deveriam ser lidas como literaturas “pós-autônomas”. Falaríamos, portanto, de textos que dizem de uma “realidadeficção” da imaginação pública na qual se instalariam “para ‘fabricar presente’” (Idem).

Algo, porém, na proposição de Ludmer parece se projetar para além de um limiar excessivamente polêmico, exigindo, para retomarmos Jorge Wolff, um certo cuidado ao submergir na “‘massa pantanosa’ da ‘pós-autonomia’” (2016WOLFF, Jorge. Josefina e Flora: Pós-autonomia e crítica ficcional. Revista Letras, Curitiba, n. 93, p. 33-51, 2016., p. 42). Nos catorze anos transcorridos desde a primeira publicação de “Literaturas pós-autônomas”, os diferentes termos e conceitos dos quais Ludmer lança mão encontram-se reconsiderados, postos sob suspeita ou confrontadas por diversos críticos latino-americanos. A recepção da proposta da pós-autonomia parece se situar, nesse sentido, em diferentes matizes de relativizações e ressalvas: seja pela flexibilização de sua radicalidade, o adiamento da constatação de sua efetivação ou mesmo a proposição da retomada de uma autonomia reconfigurada, uma “an-autonomia”3 3 Pensamos aqui, além de Jorge Wolff, em nomes como Martín Kohan (KOHAN, 2012), Florencia Garramuño (GARRAMUÑO, 2012), Raúl Antelo (ANTELO, 2013) e Ariadne Costa (COSTA, 2014). Um marco dessa “controvérsia pós-autônoma” pode ser lido ainda no vocábulo “Pós-autonomia”, presente no recente Indicionário do contemporâneo (PEDROSA; KLINGER; WOLFF; CÁMARA, 2018), volume assinado por catorze pesquisadores latino-americanos, diversos deles, figuras centrais sobre o debate a respeito de diferentes modulações da pós-autonomia. . Todas estas, alternativas que parecem tentar preservar a potência da proposta de Ludmer, mas apontam para uma resistência ao fechamento definitivo do “ciclo” autonômico, seja por marcarem um limite metodológico para lidar com o efetivamente “não autônomo”, seja por alertarem para os problemáticos desdobramentos políticos que daí decorreriam.

Para além das contraposições diretas, as principais tentativas de “sair de Ludmer com Ludmer” parecem desinvestir o que em sua proposição é um ultrapassamento e apontar para uma liminaridade contemporânea - isto é, coextensiva ao movimento de leitura, cujo exemplo mais marcante é, provavelmente, a sugestão de Ariadne Costa de um “regime de leitura” pós-autônomo (2014COSTA, Ariadne. “Prólogo” In. LUDMER, Josefina Intervenções críticas Rio de Janeiro: Azougue, 2014.. p. 166) - como o paradigma de uma pós-autonomia possível. Dessa maneira, trata-se mais de uma potência crítica de “des-autonomizar” a literatura - mesmo em sua tradição autonomista - do que de um efetivo “fechamento de ciclo” na forma de uma superação, com o evidente sabor hegeliano que o termo implica.

Que a questão da pós-autonomia seja reformulada de maneira a manter sua efetivação em suspenso, em um diferimento contemporâneo sempre reatualizado, de fato contornamos parte do problema. O ultrapassamento da autonomia não seria da ordem do “realizado” porque estaria sempre por realizar, de tal maneira que a crítica seria, no limite, essencialmente pós-autonômica na medida em que é uma desautorização constante dos limites pretensamente autonômicos da literatura. Tal alternativa não diz muito, porém, do estatuto residual da autonomia. De fato, tal alternativa parece falar desde um deliberado recalcamento dessa contraface inalienável do pós-autônomo: os resíduos resistentes, mas ainda autonomistas. Falamos de “obras”, “autores” e “poemas” mesmo quando falamos de obra aberta, pós-autoral ou dos deslimites entre poema e prosa. Nossa hipótese se colocaria, frente a esse panorama, como uma tentativa de flagrar o movimento “pós-autônomo” junto à irredutibilidade do “ainda” ou “novamente” autônomo. Não apenas tomar a pós-autonomia como um efeito de leitura, mas também flagrar pós-autonomia e autonomia como efeitos dialéticos codependentes.

Ludere-illusio

A sugestão vem de dois críticos argentinos leitores de Ludmer: Florencia Garramuño, que formula a questão da pós-autonomia como uma tendência a desauratizar o literário (2012GARRAMUÑO, Florencia. A experiência opaca: literatura e desencanto. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012., p. 21) e Raúl Antelo, que nos diz que a decadência da aura “obtura toda ilusão da autonomia” (2013ANTELO, Raúl. Autonomia, pós-autonomia, an-autonomia. Qorpus, Florianópolis, n. 10, 2013. Disponível em: <Disponível em: http://qorpus.paginas.ufsc.br/como-e/edicao-n-010/autonomia-pos-autonomia-an-autonomia-raul-antelo/ > Acesso em: 18 de julho de 2018.
http://qorpus.paginas.ufsc.br/como-e/edi...
). Tanto Antelo quanto Garramuño apontam para um vínculo entre a discussão a respeito da pós-autonomia e os diagnósticos benjaminianos da década de trinta, em seu célebre “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. Mais ainda, ao situar a autonomia como uma ilusão de autonomia, Antelo não apenas se aproxima como praticamente traduz diretamente a única aparição do termo “autonomia” no célebre ensaio de Benjamin. Trata-se de um trecho no primeiro parágrafo do nono fragmento do ensaio, onde lemos “der Schein ihrer Autonomie”, a ilusão de sua autonomia.

Que a autonomia apareça no ensaio de Benjamin nos termos de uma ilusão, semblante ou aparência4 4 Os dois termos nos quais nos deteremos, Schein e Spiel, nos conduzem a um intrincado problema de tradução. “Schein”, em alemão, possui as acepções de “aparência”, “ilusão” e “semblante”, ou ainda, quando flexionado em “scheinem”, “aparecer” ou “brilhar”. Spiel, por sua vez, abrange acepções não menos vastas, indo da noção de “jogo” até “encenação” ou “performance”. A tradução de Gabriel Valladão Silva, de 2013, da qual nos valeremos em nossas citações, opta por traduzir Schein por “aparência”, o que nos afastaria tanto da “der Schein ihrer Autonomie” como “ilusão da autonomia”, quanto da tradição de tradução dos textos de Benjamin (e também de Adorno) em inglês, nos quais Schein aparece como “semblance”. No que toca ao Spiel, Valadão Silva opta por “jogo”, mas quanto ao conceito composto “Spiel-Raum”, este aparece como “campo de ação”, o que não nos permite manter a proximidade com a noção de jogo, preservada nas sugestões de tradução de Miriam Hansen, por exemplo, como “room-for-play” ou “scope-for-play”. De nossa parte, oscilaremos entre diferentes alternativas de tradução conforme faça mais sentido em um ou outro contexto (inclusive em pequenas alterações quando retomarmos a tradução de Valadão Silva), mas sinalizando para o termo original em alemão entre parênteses, para que nos mantenhamos na mesma constelação conceitual que guia nossa investigação. (Schein) de autonomia é algo especialmente interessante se levarmos em conta a relação estabelecida pelo filósofo alemão entre a ilusão (Schein) e o jogo (Spiel) nos trechos que foram suprimidos na versão tradicional de seu ensaio5 5 Remetemos aqui às notas que apenas aparecem na versão convencionalmente referida como a “segunda versão”, revisada e acrescida de diversas notas após a primeira publicação em 1936 na tradução de Pierre Klossovski. Trata-se de uma versão que se manteve inédita mesmo em alemão até a década de oitenta, aparecendo traduzida para o inglês em 2008 e para o português apenas em 2013, na referida tradução de Gabriel Silva Valadão. . Esses trechos - nomeadamente: a versão estendida do fragmento VI e a nota ao final do fragmento XI - nos oferecem, conforme já foi ressaltado por Mirian Hansen, uma verdadeira “trajetória conceitual distinta” (2004HANSEN, Miriam Bratu. Room-for-play: Benjamin’s Gamble with cinema. October, v. 109, p. 3-45, 2004., p. 6) para a decadência da aura, e é precisamente aí que encontraremos a relação dialética que buscamos.

Benjamin postula duas linhagens tecnológicas: a primeira estaria relacionada a operações definitivas e teria seu arquétipo nos ritos religiosos sacrificiais, e a segunda, que se relacionaria com uma “infindável variedade de procedimentos de testes” (2017BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Porto Alegre, RS: L&PM, 2017. [1938], p. 65) de caráter provisório, teria seu paradigma nos jogos de encenação e na mímica. O filósofo nos diz que essas duas linhagens estariam inextrincavelmente presentes em todas as obras de arte na forma de uma polaridade entre o semblante/ilusão (Schein) e o jogo (Spiel): “o semblante, por um lado, é o esquema mais distante, mas com isso também o mais consistente, de todos os modos de ação mágicos da primeira [linhagem tecnológica], o jogo, por outro lado, é o reservatório inesgotável de todos os modos de ação experimentais da segunda técnica” (IbidemBENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Porto Alegre, RS: L&PM, 2017., p. 78, tradução modificada).

Em seguida Benjamin reformula a questão central de seu ensaio - a queda da aura - a partir desses dois conceitos, de maneira que a era de reprodutibilidade técnica representa menos a superação de um paradigma estético do que uma reconfiguração de Schein e Spiel: “a atrofia do semblante, a decadência da aura nas obras de arte é um enorme ganho em termos de espaço de jogo [Spiel-Raum]” (Idem). O recuo do semblante autonomista não seria, portanto, o ultrapassamento de um paradigma histórico, mas sim uma re-disposição de uma mesma dialética entre dois termos complementares: o investimento em um (jogo) é compensado pelo retraimento do outro (ilusão).

É desde um recuo do semblante (Schein) autonomista e espaçamento do jogo (Spiel) que cremos que caberia situar alguns mecanismos e procedimentos da poesia contemporânea brasileira afins ao “pós-autônomo”. Tomemos espaço para alguns exemplos que nos parecem mais recorrentes (não na forma de uma lista exaustiva, mas sim como uma tentativa de ancorarmos nosso percurso teórico em alguns desdobramentos críticos mais palpáveis).

Se pensarmos, por exemplo, nas diversas modalidades de deslimite entre vida e obra - tópico que nos levaria a críticos como Florencia Garramuño, Luciene AzevedoAZEVEDO, Luciene. Autofição e literatura contemporânea. Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, p. 31-49, 2008., Diana KlingerKLINGER, Diana. Escrita de si como performance. Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 12, p. 11-30, 2008. ou Jorge Wolff -, tanto as irrupções que chamam a atenção para uma conexão direta com a experiência biográfica quanto a visibilização de um caráter de performance (tradução possível para o Spiel) de qualquer biografia se traduziriam em um ganho em termos de “espaço pra jogo” com o biográfico. Quando Garramuño, por exemplo, descredita a biografia como elemento presente a si e propõe um conceito de experiência afastado de toda certeza (2012GARRAMUÑO, Florencia. A experiência opaca: literatura e desencanto. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012., p. 37), poderíamos reformular a questão nos termos de uma revelação do caráter ilusório do semblante biográfico a partir de sua montagem e desmontagem enquanto jogo.

Lermos esses deslimites entre arte e vida desde um ganho em Spiel-Raum ainda nos permite associá-los a uma série de outros tópicos familiares à poesia contemporânea. A presença ostensiva da noção de teste, experimento ou perfectibilidade inacabada; ou ainda, a investida em procedimentos composicionais muito específicos - não apenas, mas especialmente o não-original - parecem se colocar, de maneira semelhante, como formas de trazer para o primeiro plano esse ganho em Spiel-Raum. Mais do que ser “experimento” ou “não-original”, a questão apontaria, portanto, para um poder dar-se a ler enquanto tal, ou seja, revelar-se enquanto jogo como forma de desarmar algumas das instâncias tradicionais que sustentam o semblante autonomista.

Retomemos, porém, o núcleo mais teórico de nossa discussão. Dois pontos da dialética jogo/semblante reverberam diretamente nas controvérsias sobre a pós-autonomia. O primeiro é a complementariedade entre os dois termos. Benjamin chega a flexionar o Spiel para o verbo spielen, fazendo com que a relação entre os dois termos seja a de verbo e objeto - algo como dizer que alguém “joga a ilusão”. O jogo não é, nesse sentido, uma negação da ilusão, mas a forma mesma de sua produção, e o ganho em Spiel-Raum se dá ainda enquanto produção de semblantes. O que, traduzido para os termos da discussão da qual partimos, significa dizer que as frestas que apontam para o pós-autônomo - para uma subversão do semblante - perfazem também um novo limiar autonomista, ou, ainda, que o mesmo movimento de leitura que desmonta a autonomia a reestabelece em algum lugar.

Se viemos até aqui nos debatendo com a ausência de uma palavra que dê conta da pluralidade de sentidos de cada um dos termos alemães isoladamente, Spiel e Schein - motivo de lançarmos mão de um vário e impreciso vocabulário -, curiosamente, há um radical latino que dá conta, precisamente, dessa complementariedade entre os dois termos. Se “jogo” traduz o “ludo-ere” latino, cujas acepções incluem as noções de jogar, brincar, imitar, enganar e iludir, é a partir das formações com a preposição e prevérbio “in-”, gerando illudere - que mantém a mesma abrangência de sentidos possíveis, mas cujo uso mais recorrente é o de “enganar ou ludibriar” - que chegamos ao illusio, de onde deriva nossa “ilusão”, como tradução possível para o semblante6 6 Trata-se de um ponto levantado, mas não aprofundado, por Johann Huizinga, a quem nos voltaremos em seguida. Huizinga nos diz que a etimologia de ludere reside na noção de “não-seriedade, e particularmente na da ‘ilusão’ e da ‘simulação’. [...] Parece estar no primeiro plano a ideia de ‘simular’ ou de ‘tomar o aspecto de’. Os compostos alludo, colludo, iludo apontam todos na direção do irreal, do ilusório” (2018, p. 41). . Ludere-illusio parecem reproduzir, assim, a estrutura da dialética proposta por Benjamin: uma face mais dinâmica e verbal, ligada ao provisório (ludere); outra estável e substantiva (illusio).

Na medida em que, seguindo Benjamin, a autonomia é illusio de autonomia, e a pós-autonomia um ganho em “espaço para jogo”, a dialética ludere-illusio se coloca precisamente como imagem que buscávamos para o vínculo entre autonomia e pós-autonomia, isto é, que esta precise sempre reinventar aquela em alguma instância para fazer qualquer sentido. Mesmo quando postulado um horizonte de indistinção entre literário e não literário, o movimento crítico, ao promover um recorte de leitura, o faz sempre desde alguma instância de autonomização.

E aqui chegamos ao segundo ponto que reverbera na questão da pós-autonomia (em verdade, um desdobramento do primeiro): se a complementariedade ludere-illusio nos diz de uma autonomia que se reinventa na própria operação de leitura pós-autonômica, a autonomia não é uma condição ultrapassada ou mesmo ultrapassável (o que explica as ressalvas críticas que passamos). Como diria Adorno, o semblante não é uma característica formal, mas sim material da arte (2002ADORNO, Theodor. Aesthetic Theory. London/New York: Continuum, 2002. [1970], p. 107), mesmo quando recuado ou situado desde o movimento de leitura. O que não é, de maneira alguma, retrocedermos a uma teoria autonomista da arte, mas sim, um indício de que o risco que a autonomia corre não parece ser o da sua rasura ou da superação de seu ciclo. Mas deixemos esse ponto em suspenso e mudemos um pouco o cenário teórico.

O estraga-prazeres e a vida real

Não parece fortuito que dois teóricos que se debruçaram, em meados do séc. XX, sobre uma teoria dos jogos tenham dado especial importância para a questão da autonomia. Para Johan Huizinga, a autonomia - uma “evasão da vida ‘real’ para uma esfera temporária de atividade com orientação própria” (2018HUIZINGA, Johann. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2018. [1938], p. 11) - se coloca como característica essencial para a própria definição da categoria “jogo”. Roger Caillois, por sua vez, nos diz que o jogo seria uma atividade “sem consequências pra vida real” (2017 CAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2017.[1958]) na medida em que estabelece um “sistema de regras que definem o que é ou o que não é do jogo” (IbidemCAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2017., p. 19)7 7 Caberia observar ainda o quanto a autonomia está no centro da célebre citação de Freud em “Escritores criativos e devaneios” segundo a qual “o oposto do jogo (Spiel) não é o sério, mas o que é real” (1991 [1907] p. 421). Seguirmos, porém, os desdobramentos de uma teoria dos jogos desde Freud, assim como desde Benjamin, nos conduziria a cenários muito heterogêneos de análise e nos desviaria da linha que buscamos pautar aqui. .

Entretanto, a autonomia nos jogos não é absoluta ou inabalável, e a ameaça ao “muro rigoroso” que separa as regras dos jogos da “existência cotidiana” (IbidemCAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2017., p. 87) não apenas existe como é um tópico central para a investigação de Caillois8 8 Cumpre observar que, além de a “perversão dos jogos” perpassar a maior parte de Os jogos e os homens, ela ainda foi o centro do artigo em duas partes, publicado por Caillois um ano antes do volume, na revista Anhembi. , sempre caracterizados como um risco especialmente dramático. Tomemos como exemplo a quebra da autonomia nos jogos de representação; Caillois nos diz que o “contágio pela realidade” promoveria uma desdiferenciação entre jogo e real e apontaria para a vertigem de uma “metamorfose indizível das condições de vida” (IbidemCAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2017., p. 129) conforme perdemos qualquer lastro de identificação de uma “realidade” oposta ao simulacro. Mais do que uma característica, a autonomia dos jogos se coloca, portanto, como uma condição para seu funcionamento saudável, ou pelo menos, “não catastrófico”.

Há, porém, uma figura que parece negociar com essa zona limítrofe do “dentro vs. fora” do jogo de maneira especialmente inofensiva: o “detrator” ou “estraga prazeres”. Trata-se de uma figura muito familiar às brincadeiras infantis: quem acaba com a ilusão porque denuncia a convencionalidade, a arbitrariedade e a gratuidade do jogo (Cf. HUIZINGA, 2018HUIZINGA, Johann. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2018., p. 14-15; CAILLOIS, 2017CAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2017., p. 38-39). O estraga-prazeres é aquele que acaba com o jogo porque revela que ele é apenas um jogo e sua própria existência se baseia em uma convencionalidade consensual.

Se o grande risco da perversão dos jogos de representação é que a ilusão seja reconhecida como realidade, o estraga-prazeres parece ser a figura-chave do caminho inverso: quem revela o real por trás do caráter ilusório. Trata-se de uma figura especialmente estratégica, que “põe fim ao jogo” e assegura o limite entre ludere-illusio e a realidade externa. Evidentemente, trata-se de alguém que só é inofensivo porque sua denúncia da arbitrariedade do jogo se inscreve em uma “realidade” que não está em disputa.

Algo semelhante ainda aconteceria no “campo estético”. Segundo Caillois, as transgressões das convenções históricas da arte seguiriam um esquema típico dos jogos, uma maneira de “não jogar mais o jogo e contribuir para destruí-lo” (IbidemCAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2017., p. 23) ao mesmo tempo em que pautariam os critérios futuros da sua renovação constante. Novamente, a transgressão das regras do jogo apenas é admitida de maneira pacífica na medida em que é ainda circunscrita dentro de um subsistema, agora chamado “arte”, de uma realidade externa, estável e autoevidente.

É claro o ponto no qual buscamos chegar. Basta retomarmos os tópicos que viemos trabalhando - a complementariedade entre ludere-illusio e a irredutibilidade de reinvenção de alguma instância autonomista no movimento de leitura - e acertamos os termos para nos reencontrarmos no centro nevrálgico da polêmica que partimos. Na medida em que demanda sempre a re-invenção de um lastro autonômico, a pós-autonomia se estruturaria de maneira semelhante ao estraga-prazeres: se inscreveria contra a autonomia, mas dentro dela, reatualizando sempre os limites desta na medida em que nela se reinscreve como um subsistema.

O que não parece totalmente errado, mas de certa forma incompleto, já que todos os termos dessa equação ainda circunscrevem os limites “inócuos” da questão. Mantermo-nos nesses limites significa subscrever a aceitação pacífica da autoevidência do “real” (ou “vida cotidiana” ou “heteronomia”), ponto comum em diversas teorias autonomistas da arte (e também “antiautonomistas”9 9 Pautemos esses dois caminhos de maneira esquemática (e, evidentemente, simplificadora). O primeiro passaria por nomes como Clement Greenberg ou Theodor Adorno e flagraria a arte moderna como um movimento produtivo de autonomização, isto é, uma resistência contra a indistinguibilidade entre arte e vida, que seria uma premissa da indústria cultural (ou do kitsch, ou do espetáculo, se quisermos incluir Debord nesse panorama). Uma segunda linha de força, cujo argumento mais sólido se encontraria, provavelmente, em Peter Bürger, seria a que flagra a autonomia como uma convencionalidade que despotencializa a arte moderna. Subverter essa autonomia seria, segundo Bürger, a grande potência política da vanguarda (no seu caso, Marcel Duchamp). ) que nos parece especialmente problemático. Hal Foster, ao chamar a atenção para esse ponto, ressalta o quanto “a simples oposição entre ambas [arte e vida] já tende a ceder à arte a autonomia que está em questão (...) a vida é concebida aqui de modo paradoxal - remota e ao mesmo tempo imediata, como se ela simplesmente estivesse ali” (FOSTER, 2014FOSTER, Hal. O retorno do real. São Paulo: Cosac Naify, 2014., p. 34). Foster parece nos direcionar, portanto, para a possibilidade de ler uma complementariedade entre a ilusão autonomista e a vida cotidiana, isto é, que estas duas instâncias apenas são delimitáveis relativamente uma à outra.

Trata-se, ainda, de um ponto que nos leva a Boris Groys. Segundo Groys, a “indistinguibilidade entre arte e vida” (o argumento pós-autonômico por excelência, de Baudelaire a Duchamp) não se vincularia a uma “condição originária fatídica da instituição arte ou da instituição literatura” (2012GROYS, Boris. Under suspicion: a phenomenology of media. New York: Columbia University Press, 2012., p. 138) - e nem se colocaria como seu epígono pós-histórico, acrescentaríamos -, mas seria sempre um efeito produzido. O modelo, aqui, é o da revelação do submedial - algo como o núcleo da fenomenologia da medialidade proposta por Groys em Under suspicious -, a produção de uma semitransparência na camada sígnica que permitiria entrever, “através” da opacidade do signo, um real situado “mais além”. Na medida em que esse “mais além” se coloca em signos que projetam um novo espaço para o submedial, trata-se de um mecanismo que só revela o que coloca novamente em fuga (parece desnecessário aqui marcar a proximidade com a teoria lacaniana).

Para o que nos interessa especificamente: a “vida cotidiana” (o “lado de fora” da obra) não existiria como coisa imediata, mas apenas como uma revelação do submedial, um “efeito de sinceridade” (expressão de Groys) que reatualiza sempre a suspeita de um real “mais além”. O que significa dizer que, ainda que se construa coextensivamente à autonomia, a pós-autonomia não se coloca como negociação com uma heteronomia externa presente a si. Ou ainda, o deslizamento pós-autônomo é tanto produto quanto produtor dos “efeitos de realidade” (ou ilusões de real).

A proposta de Groys (assim como a provocação de Foster) nos permite, portanto, reconsiderar a questão do ludere-illusio colocando o estraga-prazeres no centro da questão. Semelhante ao que acontece na revelação do espaço submedial, o estraga-prazeres é um sintoma do copertencimento fenomenológico entre o dentro e fora do jogo. No limite, é o seu “efeito de sinceridade” que permite situar vida em oposição a jogo (ou heteronomia vs. autonomia), não como opostos polares e presentes a si, mas sim como efeitos de sua própria delimitação. O que é dizer, finalmente, que o estraga-prazeres não representa tanto o “fim da ilusão” quanto a sua própria possibilidade na medida em que estabelece o seu contraste com um “lado de fora”.

A autonomia contingente

Se empreendêssemos agora uma inversão do caminho que seguimos, relendo nosso ponto de partida a partir dos termos aos quais chegamos, cremos que o problema se redesenharia da seguinte maneira. A polêmica em torno da pós-autonomia parece ser a de uma hipóstase do ludere (ou do Spiel-Raum) na forma do recalcamento da sua complementariedade dialética, a reinvenção da ilusio. Quanto ao mecanismo de montagem e desmontagem do semblante autonomista, este parece se colocar em uma estrutura muito próxima do estraga-prazeres: marca sempre um fim da illusio a partir da revelação da arbitrariedade convencional da autonomia conforme a ressitua, mesmo que implicitamente, em alguma outra instância.

Na medida em que é apenas em uma revelação do submedial que jogo e real se negociam mutuamente, a subversão do superinvestimento histórico na “autonomia estética” parece nos direcionar não para uma superação da autonomia pela hipostasia pós-autonômica, mas sim para a potencialização de uma indecidibilidade nessa “fenomenologia do estraga-prazeres”. Trata-se de ler Ludmer mais pela ambivalência do “são e não são literatura ao mesmo tempo” (2014LUDMER, Josefina. Intervenções críticas.Rio de Janeiro: Azougue , 2014., p. 148) do que no “pós-” da pós-autonomia; ou, ainda, de priorizarmos a renovação da suspeita groysiana em cada “efeito de sinceridade”, acelerando seu giro de tal maneira que (como odiaria Caillois) perdemos a referência: tudo é e não é jogo ao mesmo tempo, ou tudo é jogo potencialmente, ou, finalmente, quando o limite que opõe o jogo e o real é contingente.

Voltamo-nos assim para um desses “estados de complexificação da verdade” ao qual teóricos como Giorgio Agamben, Raúl Antelo e Quentin Meillassoux se voltaram no cenário recente. O centro do problema da contingência, conforme Agamben ressalta, tanto em seu clássico estudo sobre Bartleby (AGAMBEN, 2007AGAMBEN, Giorgio. Bartleby, escrito da potência. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007. [1993]) quanto na sua conferência de 1987, “Potência do pensamento”, é um copertencimento, retomado de Aristóteles, entre potência e impotência (ou potência de não). Em poucas palavras: se o que pode vir a ser, a potência, é a marca de uma presença do que falta ao ato (AGAMBEN, 2015AGAMBEN, Giorgio. A potência do pensamento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. [1987], p. 245-247), toda potência seria sempre uma impotência, isto é, uma “potência de não” (passar ao ato). Essa ambivalência é o centro da questão, tanto na conferência de 1987 quanto no estudo sobre Bartleby: um estado irredutível aos estatutos de verdade na medida em que nos diz do que “é não mais do que não é”.

É precisamente a restituição da potência de não que interessa a Raúl Antelo, no recente Visão e potência de não (2018ANTELO, Raúl. Visão e potência de não. Rio de Janeiro: Zazie edições, 2018.), como um verdadeiro motor da arte moderna. Antelo nos diz que “a ideia de que a grandeza de uma potência ou possibilidade mede-se pelo abismo de sua impotência é, justamente, um achado das vanguardas” (IbidemANTELO, Raúl. Visão e potência de não. Rio de Janeiro: Zazie edições, 2018., p. 70), nos jogando (na medida em que retoma Duchamp) de volta para o mesmo cenário de análise que líamos em Groys e Foster.

Pensarmos uma autonomia contingente se coloca, portanto, como uma maneira de nos mantermos na demora de uma indecidibilidade entre autonomia/heteronomia, isto é, num registro em que, a cada vez, a autonomia tanto possa ser quanto possa não ser. O que passa a nos interessar, nesse girar constante do ludere-illusio ou na redisposição de “autonomia-após-autonomia”, é não apenas o que pode vir a ser, mas sim que o que nesse vir a ser é reatualização também de sua potência de não. Em outras palavras, é tomar todo “efeito de sinceridade” ou todo “fim da ilusão” desde a reinauguração de uma nova suspeita.

Caberia ainda retomarmos as investigações sobre a contingência de Quentin Meillassoux em After finitude (2008MEILLASSOUX, Quentin. After Finitude - an essay on necessity of contingency. New York: Continuum Books, 2006. [2006]), transpondo para a discussão sobre a autonomia estética alguns dos seus pontos propostos para o campo da epistemologia - sua proposição de que a única necessidade possível seja a do necessariamente contingente. Teríamos, assim, uma potência de não que precisa se projetar para além da correlatividade ao previamente conhecido (IbidemMEILLASSOUX, Quentin. After Finitude - an essay on necessity of contingency. New York: Continuum Books, 2006., p. 94) - o que é interessante para uma discussão sobre a história da arte10 10 A autonomia contingente diria, nesse contexto, de uma abertura da historicidade mantida em um tensionamento de suas ambiguidades, escapando tanto da conversão das transgressões das convencionalidades da illusio em uma nova “regra do jogo” quanto da constatação da impossibilidade do histórico em uma abertura des-hierarquizada do ludere (leitura recorrente na taxação que simplifica qualquer brecha na teoria autonomista como uma espécie “vale-tudo”). - ou, em outras palavras, uma autonomia contingente irredutível a quaisquer disposições já conhecidas do ludere-illusio.

Não deixa de ser curioso que Meillassoux ilustre esse ponto, já quase ao final de seu livro, através da imagem do jogo de dados. Na medida em que os jogos de azar utilizam uma ilusão da previsibilidade do risco, para dar conta da amplitude pretendida pelo seu conceito de contingência, o filósofo precisa apontar para além desse mapeamento precário, ou seja, precisa se situar no instante por excelência do estraga-prazeres, o fim do jogo:

O contingente é, em suma, algo que finalmente acontece, algo de diferente que, escapando de todos os possíveis já repertoriados, põe um fim à vaidade de um jogo no qual tudo, inclusive o improvável, é previsível. Quando algo acontece conosco, quando a novidade nos pega pela garganta, é o fim do cálculo e é também o fim do jogo - então finalmente as coisas sérias começam. (Meillasoux, 2008MEILLASSOUX, Quentin. After Finitude - an essay on necessity of contingency. New York: Continuum Books, 2006. [2006], p. 17811 11 Nos amparamos aqui, para a tradução, na tradução feita por Antelo do mesmo trecho (ANTELO, 2018, p. 97 - nota de rodapé). )

As coisas sérias

Benjamin faz uma ressalva na nota ao final do fragmento IX: a dialética Schein/Spiel apenas interessa na medida em que possui um papel histórico. O papel histórico de sua investigação é evidente e está bem marcado no primeiro fragmento de seu ensaio: trata-se da proposição de conceitos “úteis para a formulação da reivindicação revolucionária na política da arte” (BENJAMIN, 2017BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Porto Alegre, RS: L&PM, 2017. [1938], p. 54). A constituição do semblante é, para Adorno, o cerne da potência política da arte e a marca de sua oposição à indústria cultural. A ressalva de Raúl Antelo à pós-autonomia retoma o receio de David Damrosch (em diálogo com Gayatri Spivak) quanto a uma cumplicidade ideológica dos estudos comparatistas com as “piores tendências do capitalismo global”. Quentin Meillassoux, já ao final do seu livro sobre a contingência, toma-a como um acontecer que, na interrupção do jogo, revela as coisas sérias.

Propormos uma autonomia contingente demanda ainda uma palavra final com relação a tensões políticas aí implicadas. Se a questão for mal formulada, isto é, se a contingência for tomada como tabula rasa desdiferenciadora a partir da qual todo semblante é igualmente potente, acabamos por despolitizar de maneira a-histórica uma série de disputas discursivas que estão longe de serem pacíficas. Formulemos, portanto, da maneira que nos interessa: o que se busca é dar a ler o fato de que os argumentos de legitimação de um ou outro semblante para a “autonomia literária” não têm por base uma necessidade. A autonomia estética (mas não menos a literaridade) se coloca como um território ainda em disputa não porque tudo é, indiferenciadamente, pós-autônomo, mas sim porque o que define o que pode ou não ser autonomia é da ordem do contingente.

Toda leitura é, nesse sentido, uma ética e uma política de leitura na medida em que assume como pressuposto uma ilusão de autonomia específica e contingente como dado a priori: um ponto no qual o “jogo” começa ou termina. Insistir em uma autonomia contingente é, nesse contexto, não uma tentativa de suspender todos ou qualquer desses pressupostos. O que interessa não é tanto a superação de um ou outro sistema de valores, mas sim a problematização da política de seus usos.

Referências

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  • WOLFF, Jorge. Josefina e Flora: Pós-autonomia e crítica ficcional. Revista Letras, Curitiba, n. 93, p. 33-51, 2016.
  • 1
    Não nos deteremos aqui em um recorte específico dessa produção, porém, no percurso de nossa reflexão não será difícil reconhecer tópicos familiares às produções (e à recepção crítica) de alguns poetas contemporâneos como Adelaide Ivánova, Alberto Pucheu, Angélica Freitas, Bruno Brum, Carlito Azevedo, Leonardo Gandolfi, Marília Garcia, Marcelo Montenegro, Roy David Frankel ou Verônica Stigger.
  • 2
    Nos voltamos para o texto de Ludmer, mas o que nos interessa é lê-lo como uma espécie de centro orbital teórico a partir do qual diversos outros tópicos da crítica contemporânea poderiam ser aproximados (como a “inespecificidade” algumas das implicações do “não original” ou o “autoficional”, para tomarmos alguns exemplos).
  • 3
    Pensamos aqui, além de Jorge Wolff, em nomes como Martín Kohan (KOHAN, 2012KOHAN, Martín. “Sobre la postautonomía”. In: CAPELA, Carlos Eduardo Schmidt; REALES, Liliana (Org.). Arquivos de passagens, paisagens. Florianópolis: EdUFSC, 2012.), Florencia Garramuño (GARRAMUÑO, 2012GARRAMUÑO, Florencia. A experiência opaca: literatura e desencanto. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012.), Raúl Antelo (ANTELO, 2013ANTELO, Raúl. Autonomia, pós-autonomia, an-autonomia. Qorpus, Florianópolis, n. 10, 2013. Disponível em: <Disponível em: http://qorpus.paginas.ufsc.br/como-e/edicao-n-010/autonomia-pos-autonomia-an-autonomia-raul-antelo/ > Acesso em: 18 de julho de 2018.
    http://qorpus.paginas.ufsc.br/como-e/edi...
    ) e Ariadne Costa (COSTA, 2014COSTA, Ariadne. “Prólogo” In. LUDMER, Josefina Intervenções críticas Rio de Janeiro: Azougue, 2014.). Um marco dessa “controvérsia pós-autônoma” pode ser lido ainda no vocábulo “Pós-autonomia”, presente no recente Indicionário do contemporâneo (PEDROSA; KLINGER; WOLFF; CÁMARA, 2018PEDROSA, Celia; KLINGER, Diana; WOLFF, Jorge; CÁMARA, Mario (orgs.) Indicionário do contemporâneo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018.), volume assinado por catorze pesquisadores latino-americanos, diversos deles, figuras centrais sobre o debate a respeito de diferentes modulações da pós-autonomia.
  • 4
    Os dois termos nos quais nos deteremos, Schein e Spiel, nos conduzem a um intrincado problema de tradução. “Schein”, em alemão, possui as acepções de “aparência”, “ilusão” e “semblante”, ou ainda, quando flexionado em “scheinem”, “aparecer” ou “brilhar”. Spiel, por sua vez, abrange acepções não menos vastas, indo da noção de “jogo” até “encenação” ou “performance”. A tradução de Gabriel Valladão Silva, de 2013, da qual nos valeremos em nossas citações, opta por traduzir Schein por “aparência”, o que nos afastaria tanto da “der Schein ihrer Autonomie” como “ilusão da autonomia”, quanto da tradição de tradução dos textos de Benjamin (e também de Adorno) em inglês, nos quais Schein aparece como “semblance”. No que toca ao Spiel, Valadão Silva opta por “jogo”, mas quanto ao conceito composto “Spiel-Raum”, este aparece como “campo de ação”, o que não nos permite manter a proximidade com a noção de jogo, preservada nas sugestões de tradução de Miriam Hansen, por exemplo, como “room-for-play” ou “scope-for-play”. De nossa parte, oscilaremos entre diferentes alternativas de tradução conforme faça mais sentido em um ou outro contexto (inclusive em pequenas alterações quando retomarmos a tradução de Valadão Silva), mas sinalizando para o termo original em alemão entre parênteses, para que nos mantenhamos na mesma constelação conceitual que guia nossa investigação.
  • 5
    Remetemos aqui às notas que apenas aparecem na versão convencionalmente referida como a “segunda versão”, revisada e acrescida de diversas notas após a primeira publicação em 1936 na tradução de Pierre Klossovski. Trata-se de uma versão que se manteve inédita mesmo em alemão até a década de oitenta, aparecendo traduzida para o inglês em 2008BENJAMIN, Walter. “The work of art in the Age of Its Technological Reproducibility”. In: The work of art in the Age of Its Technological Reproducibility and other writings on media. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2008. e para o português apenas em 2013, na referida tradução de Gabriel Silva Valadão.
  • 6
    Trata-se de um ponto levantado, mas não aprofundado, por Johann Huizinga, a quem nos voltaremos em seguida. Huizinga nos diz que a etimologia de ludere reside na noção de “não-seriedade, e particularmente na da ‘ilusão’ e da ‘simulação’. [...] Parece estar no primeiro plano a ideia de ‘simular’ ou de ‘tomar o aspecto de’. Os compostos alludo, colludo, iludo apontam todos na direção do irreal, do ilusório” (2018HUIZINGA, Johann. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2018., p. 41).
  • 7
    Caberia observar ainda o quanto a autonomia está no centro da célebre citação de Freud em “Escritores criativos e devaneios” segundo a qual “o oposto do jogo (Spiel) não é o sério, mas o que é real” (1991FREUD, Sigmund. “Creative Writers and day-dreamming” In: KAPLAN, Charles (ed.). Criticism: the major statements. New York: St. Martin’s Press, 1991, p. 419-428. [1907] p. 421). Seguirmos, porém, os desdobramentos de uma teoria dos jogos desde Freud, assim como desde Benjamin, nos conduziria a cenários muito heterogêneos de análise e nos desviaria da linha que buscamos pautar aqui.
  • 8
    Cumpre observar que, além de a “perversão dos jogos” perpassar a maior parte de Os jogos e os homens, ela ainda foi o centro do artigo em duas partes, publicado por Caillois um ano antes do volume, na revista Anhembi.
  • 9
    Pautemos esses dois caminhos de maneira esquemática (e, evidentemente, simplificadora). O primeiro passaria por nomes como Clement Greenberg ou Theodor Adorno e flagraria a arte moderna como um movimento produtivo de autonomização, isto é, uma resistência contra a indistinguibilidade entre arte e vida, que seria uma premissa da indústria cultural (ou do kitsch, ou do espetáculo, se quisermos incluir Debord nesse panorama). Uma segunda linha de força, cujo argumento mais sólido se encontraria, provavelmente, em Peter Bürger, seria a que flagra a autonomia como uma convencionalidade que despotencializa a arte moderna. Subverter essa autonomia seria, segundo Bürger, a grande potência política da vanguarda (no seu caso, Marcel Duchamp).
  • 10
    A autonomia contingente diria, nesse contexto, de uma abertura da historicidade mantida em um tensionamento de suas ambiguidades, escapando tanto da conversão das transgressões das convencionalidades da illusio em uma nova “regra do jogo” quanto da constatação da impossibilidade do histórico em uma abertura des-hierarquizada do ludere (leitura recorrente na taxação que simplifica qualquer brecha na teoria autonomista como uma espécie “vale-tudo”).
  • 11
    Nos amparamos aqui, para a tradução, na tradução feita por Antelo do mesmo trecho (ANTELO, 2018ANTELO, Raúl. Visão e potência de não. Rio de Janeiro: Zazie edições, 2018., p. 97 - nota de rodapé).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2020
  • Aceito
    15 Nov 2020
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