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Poesia espacial

TRADUÇÕES

Poesia espacial1 1 Originalmente publicado em Eduardo Kac, Hodibis Potax, Édition Action Poétique, Ivry-sur-Seine (France) and Kibla, Maribor (Slovenia), 2007, pp. 123-125.

Eduardo Kac

A poesia espacial é a poesia concebida, feita para e vivida em um contexto de microgravidade ou de gravidade nula. Em outras palavras, a poesia espacial é aquela que exige e explora a ausência de peso como meio de escrita.

Isso significa, essencialmente, que o poema só se realiza plenamente em um ambiente gravitacional diferente daquele a que estamos expostos na terra. Atualmente, tais trabalhos podem explorar dois caminhos: na atmosfera terrestre, a ausência de peso pode ser reproduzida temporariamente em vôos parabólicos. Nesse caso, a experiência da ausência de peso dura em torno de 25 segundos para cada parábola. Fora da terra, esteja-se em órbita ou no espaço interestelar, a ausência de peso é permanente.

Ainda que seja possível produzi-la e vivê-la por outras maneiras, como a queda livre, a questão da Poesia Espacial não depende apenas da hipogravidade (campo gravitacional inferior a um grama). O ponto importante é que uma nova cultura espacial global emerge, no século XXI, na exploração e nos esforços colaborativos das nações que participam da conquista espacial.

Mais precisamente, o importante é que o acesso ao espaço não é mais domínio exclusivo dos governos, pois começa a interessar ao setor privado. Para pôr em evidência as implicações extremas desse processo, basta comparar os primeiros computadores, que então ocupavam um cômodo e eram controlados pelos governos, aos notebooks atuais que as crianças têm nas mãos. Se essa analogia é válida, ela significa que o acesso ao espaço logo será tão comum quanto as viagens de avião, e que teremos portos espaciais em toda parte. É o que confirma a indústria emergente do turismo espacial, que já enviou vários cidadãos ao espaço sem outra razão que não a de proporcionar a experiência da ausência de peso e de contemplação da Terra desde o espaço.

Levados ao extremo, esses fatos sugerem que as estações espaciais ou as bases lunares serão hotéis ou residências permanentes nos quais a atividade humana irá muito além da subsistência e da observação ambiental. Será a mesma coisa para as colônias espaciais em Marte e mais além. Nesse novo ambiente cultural, a arte e a poesia, como as outras formas de expressão humanas, produzirão obras.

Claramente, é possível escrever e desenhar a bordo de uma estação espacial, mas isso não representa nada de estimulante para a criação de uma linguagem poética particular a esse ambiente. É precisamente a nova realidade material de um acesso corriqueiro à ausência de peso e ao espaço que produz o contexto cultural necessário à emergência de uma Poesia Espacial autêntica.

Eu chamo de "gravimorfismo" e de "gravitropismo" o processo segundo o qual o peso condiciona todas as formas de comportamentos terrestres, inclusive a arte e a poesia. Talvez seja uma banalidade dizer que a gravidade tem um efeito fundamental sobre nossa sensibilidade, assim como sobre o mundo físico, e que ela condiciona também a arte e a poesia.

No entanto, não é inútil se perguntar que novas formas, que experiências artísticas e poéticas podem aparecer se, simultaneamente, os criadores e os participantes/expectadores forem liberados dessa obrigação. Os comportamentos dos organismos materiais e vivos diferem quanto à ausência de peso. Por exemplo, é possível criar uma letra "O" como uma esfera por meio da liberação de água no espaço, e, em seu centro, uma outra letra "O" pode ser criada como uma bolha. Emprego as palavras "gravimorfismo" e "gravitropismo" na arte e na poesia para sublinhar o fato de que a gravidade desempenha um papel fundamental nas formas e nos acontecimentos que criamos na Terra, e que as formas e os acontecimentos criados sob gravidade nula para experimentação nesse contexto podem ser radicalmente diferentes. Em 1986, propus enviar um holopoema (intitulado "Ágora") na direção da galáxia Andrômeda, como uma primeira tentativa de poesia espacial. Sob a forma de holopoesia, tenho articulado, desde 1983, algumas possibilidades de poesia livre dos efeitos da gravidade, na medida em que os poemas holográficos são compostos de luz e não possuem, portanto, nenhum peso. O holopoema "Ágora" é concebido, ao mesmo tempo, como uma extensão da holopoesia e como um gesto de comunicação, um sondephoton simbólico dirigido aos habitantes imaginários dessa galáxia vizinha. Em 1987, comecei a escrever sobre as formas e os acontecimentos gravimórficos/ gravitrópicos, articulando a teoria da holopoesia com seus acontecimentos lingüísticos cambiantes, flutuando e mudando no espaço, livres das coerções materiais e gravitacionais.

Em meu primeiro texto, eu dizia: "experimentando volumes óticos sem massa - vibrações luminosas focalizadas suspensas no ar - o 'gravitropismo' (forma condicionada pela gravidade) abre caminho para o 'antigravitropismo' (criação de formas novas não condicionadas pela gravidade), liberando o espírito dos clichês do mundo físico e provocando a imaginação". Forjei então o termo "antigravitropismo" para designar a qualidade positiva de negar ou neutralizar a gravidade.

A poesia espacial é baseada no tempo, no sentido de que cada poema contém sua própria lógica temporal. Ela é performativa, pois o corpo do leitor é sem peso e está, portanto, engajado em uma experiência de leitura de uma sinestesia particular. Os poemas espaciais estão naturalmente ligados às artes visuais e a outras disciplinas porque eles não podem existir em um livro, e sim na ausência de gravidade. Eles só utilizam poucas palavras (cuja semântica revela suas potencialidades na exploração do comportamento dos materiais na ausência de peso) e implicam freqüentemente uma participação direta do leitor. De maneira significativa, os poemas espaciais produzem novas sintaxes antigravimórficas.

Em suma, a poesia espacial constitui uma nova linguagem poética que participa da criação de uma nova cultura espacial através da exploração das potencialidades criativas da hipogravidade e da ausência de peso.

Tradução de Liana Carreira Martins (UFRJ)

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    Originalmente publicado em Eduardo Kac, Hodibis Potax, Édition Action Poétique, Ivry-sur-Seine (France) and Kibla, Maribor (Slovenia), 2007, pp. 123-125.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Fev 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2008
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