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Entrevista com Svetlana Cârstean

ENTREVISTAS

Entrevista com Svetlana Cârstean1

Hugo Pradelle: Seu livro A flor do torno foi recebido com muito entusiasmo na Romênia. Essa recepção positiva confirmaria uma aten ção especial dirigida para a poesia em seu país?

Svetlana Cârstean: O livro teve uma recepção crítica bem inesperada. A escrita desses textos começou há muito tempo - logo depois da Revolução - e me acompanhou até 2003. O livro passou por uma espécie de descanso e só foi publicado em 2008. Essa distância me permite perceber uma mudança de orientação da produção poética na Romênia, que passa por certa efervescência e obedece a dinâmicas de renovação. A cada ano, quatro ou cinco livros revelam novos poetas. A poesia encontrou um lugar na paisagem editorial.

H.P.: Então se lê poesia na Romênia... Na França, ela parece estar quase sempre confinada a uma forma de periferia, quase relegada, pouco lida, desconhecida.

S.C.: Também é uma batalha que precisamos ganhar. Mas acho que estamos no caminho certo. A poesia ocupa um lugar central, ela inventa a língua e sempre a recoloca no centro, ela a perturba e a faz circular. Ao mesmo tempo, ela reforça um sentimento de abertura e um movimento cosmopolita. Os poetas romenos viajam muito, fazem palestras por toda a Europa - da Suécia até a França ou a Alemanha. Eles interrogam a língua, eles a situam e, ao mesmo tempo, a deslocam. Deste modo, penso em autores há pouco consagrados como Simona Popescu ou Angela Marinescu, mas também em Radu Vancu, Dan Sociu, Sorin Ghergut, Dan Coman, Elena Vladareanu, Vasile Leac, Constantin Acosmei, Alice Popescu, Andrei Dosa. E também nos mais jovens como Val Chimic ou Anatol Grosu... A lista seria bem mais longa e, é claro, subjetiva.

H.P.: A literatura romena parece assombrada pela ruptura de 1989. As gerações posteriores tiveram que lidar com uma nova liberdade e, ao mesmo tempo, com uma agitação intelectual e artística que perturba a tradição.

S.C.: Depois de 1989, veio um período de desinteresse geral pela ficção. Ela foi relegada a segundo plano. Parecia que ela tinha sido tragada pela euforia da liberdade econômica, pela adrenalina política. Nessa época, tivemos que decidir muito rapidamente o que devia ser feito. Estávamos enredados em uma espécie de êxtase difícil de administrar. As pessoas liam memórias, diários de prisão, textos de dissidentes, um pouco como em todos os países que se desvencilhavam da tutela soviética e da censura. Minha geração foi a primeira a se apropriar de novos temas, a inventar outro estilo. Penso em Răzvan Rădulescu, escritor e roteirista romeno publicado na França pela editora Zulma (La Vie et les Agissements d'Ilie Cazane [A vida e as artimanhas de Ilie Cazane]). Desde então, a diferença era obrigatória. Para nós, estava claro que era preciso analisar, nos mínimos detalhes, nosso passado imediato. Tínhamos que interromper a relação sombria que mantínhamos com tudo o que nos antecedia. Era preciso fazer alguma coisa com as nossas infâncias, transcorridas durante os anos mais duros do comunismo, recuperar uma memória, travar uma luta com o passado. Assim, reescrevemos as relações com nossos próprios pais e suas escolhas. Era preciso destruir. A geração de hoje se depara com questões diferentes. Os poetas de hoje precisam fazer alguma coisa diante da mercantilização do imaginário do comunismo, que nós não tínhamos previsto, inventar outras relações, plurívocas, com o exterior. Estamos em um novo tempo de ruptura que faz com que se reinventem os temas, os estilos. Eles rejeitam um discurso de lamento ou uma nostalgia complexa, eles precisam se distanciar. Desde 1989, parece que passamos de uma homogeneidade, agora inexistente, para uma heterogeneidade de vozes múltiplas. De algum modo, a ideia de grupo se dissolveu para ser substituída por uma busca solitária de uma linguagem singular.

H.P.: Em A quinta impossibilidade, Norman Manea define a língua como "sentido de pertencimento", a literatura como o "último refúgio da conhecida recusa da resignação" e as palavras como sendo "armas", ferramentas de uma resistência obrigatória. Para você, a poesia constitui uma modalidade da sobrevivência?

S.C.: Às vezes, a poesia é o único modo de sobrevivência. Acho que quando esse sentido de pertencimento foi fortemente abalado, a possibilidade de saber que pertencemos à nossa própria língua, nossa língua materna, e, sobretudo, à própria linguagem, é algo essencial. O comum se une, assim, ao singular. Meu trabalho poético consiste em um combate para conseguir fazer o luto da minha infância, poder identificar, nomear suas rupturas. É preciso, sobretudo, levá-la em conta, assumi-la. Não se pode seguir sem se desviar, virar, mudar. Manea fala da sobrevivência durante o exílio propriamente dito, ele a inscreve em um deslocamento refundador. Eu falaria mais de um exílio em minha história pessoal, de uma solidão absoluta diante dos meus pais e em meu próprio país. Não se deve esquecer que nossas histórias carregam o destino de nossos ascendentes, esses pais que atravancam as coisas. Nós somos herdeiros, mas, ao mesmo tempo, inventamos algo novo. Foi por meio desse exílio interior que me acostumei, desde cedo, a morar no interior das palavras, com a leitura. Compreendi então, acho que bem rápido, como as palavras podem se tornar um refúgio no qual ficamos a postos, com as armas nas mãos: as armas que herdamos ou as que inventamos.

H.P.: Isso não obriga a uma conciliação entre o íntimo e os questionamentos coletivos urgentes?

S.C.:A flor do torno tem quatro partes - O livro do operário ou A flor do torno, O livro dos pais ou Tomo cuidado, prometo, O livro de Akihito ou O amor e O livro da solidão ou Do you yahoo? Ao escrever esses textos, nunca pensei que tratassem do comunismo. O livro não foi concebido como uma metáfora da ditadura. Ele traz em si essas questões, mas por um viés pessoal, que considera o que eu deveria fazer comigo mesma, o passado do qual eu deveria me livrar. Ele se organiza a partir de uma lembrança que me voltava com frequência. Eu revia os bancos e as bancadas de trabalho na oficina de serralharia em que trabalhava com meus colegas de escola. Eu usava um torno de mesa comum de metal verde escuro e produzia peças idênticas e sempre defeituosas. Reconstruindo essa lembrança, me desloco para o interior do torno e foi ali que escrevi o poema. Desse modo, ocorre uma troca de intimidade, um deslocamento. A flor do torno tinha surgido para colocar uma ordem no informe do íntimo. Mais tarde percebi que meu livro fala também de um luto coletivo e que o comunismo que afetou a todos nós durante tanto tempo projetava sua sombra sobre todos os elementos da minha vida, como de todas as vidas. Era preciso se desenredar desse eu complicado diante da complexidade do mundo. Os rastros não podem ser apagados por uma revolução ou pelo roteiro de uma revolução.

H.P.: Escrever poesia é, então, lutar - com a espessura da memória, a densidade dos corpos e do tempo, a presença das vozes?

S.C.: Acho que sim. É sobreviver, manter-se de pé no mundo. Escrever significa reinventar a memória, organizar as vozes, recuperar seu corpo.

Tradução do francês de Marília Garcia

(Doutora em Literatura Comparada/ UFF,

Pós-Doutorado em Literatura Francesa/ UFRJ)

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Abr 2014
  • Data do Fascículo
    Jun 2014
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