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Cartogramas: ficção angolana e o reforço de espaços e paisagens culturais

Resumos

O artigo propõe a forma de projeção gráfica do cartograma para por ela pensar a ficção angolana produzida nos anos 1990 e no início do século XXI. Considerando ser o cartograma uma forma de, por imagens ou traços, reforçar um tipo de fenômeno geográfico, a leitura se vale dessa imagem para privilegiar as representações das paisagens e espaços culturais angolanos, vendo-os como um processo de investimento dos ficcionistas em suas histórias locais, para, por tal investimento, reforçar a própria diferença cultural.

Ficção angolana contemporânea; Memória e representação; Cartografias identitárias; Novas negociações de sentido


Enfocando la proyección gráfica de cartogramas postales, este artículo propone reflexionar sobre la producción ficcional de Angola a partir de los años 90 del siglo XX hasta los primeros años del XXI. Por ser el cartograma una forma de reforzar, sea con la imágen, sea con el diseño, un tipo de fenómeno geográfico, su lectura se sostiene sobre esta imagen para privilegiar representaciones de paisajes y espacios culturales angolanos, recurso éste reiterado por ficcionistas para registrar sus historias locales y para reforzar su propia diferencia cultural.

Ficción angolana contemporánea; Memoria y representación; Cartografías identitarias; Nuevas negociaciones de sentido


This article elaborates on the graphic form of projection of the cartogram in order to think, through it, Angolan fiction of the 90s and the beginnings of the XXI century. Considering the cartogram as a way of highlighting by means of images or sketches a given geographical phenomenon, the reading herein proposed makes use of this image to call attention to the representation of Angolan landscapes and cultural spaces, viewing them as a process of investment on the part of fiction writers in their local histories in order to thereby emphasize their own cultural difference.

Contemporary Angolan fiction; memory and representation; identity cartographies; new negotiations of meaning


Cartogramas: ficção angolana e o reforço de espaços e paisagens culturais

Laura Padilha* * Professora de Literaturas de Língua Portuguesa da UFF e pesquisadora do CNPq. Autora de Entre a voz e a letra: o lugar da ancestralidade na ficção angolana do século XX (Niterói: Eduff, 1995) e de Novos pactos, oiutras ficções: ensaios sobre literaturas afro-luso-brasileiras (Porto Alegre: Edipucrs, 2002).

RESUMO

O artigo propõe a forma de projeção gráfica do cartograma para por ela pensar a ficção angolana produzida nos anos 1990 e no início do século XXI. Considerando ser o cartograma uma forma de, por imagens ou traços, reforçar um tipo de fenômeno geográfico, a leitura se vale dessa imagem para privilegiar as representações das paisagens e espaços culturais angolanos, vendo-os como um processo de investimento dos ficcionistas em suas histórias locais, para, por tal investimento, reforçar a própria diferença cultural.

Palavras-chave: Ficção angolana contemporânea, Memória e representação, Cartografias identitárias, Novas negociações de sentido

ABSTRACT

This article elaborates on the graphic form of projection of the cartogram in order to think, through it, Angolan fiction of the 90s and the beginnings of the XXI century. Considering the cartogram as a way of highlighting by means of images or sketches a given geographical phenomenon, the reading herein proposed makes use of this image to call attention to the representation of Angolan landscapes and cultural spaces, viewing them as a process of investment on the part of fiction writers in their local histories in order to thereby emphasize their own cultural difference.

Key words: Contemporary Angolan fiction, memory and representation, identity cartographies, new negotiations of meaning

RESUMEN

Enfocando la proyección gráfica de cartogramas postales, este artículo propone reflexionar sobre la producción ficcional de Angola a partir de los años 90 del siglo XX hasta los primeros años del XXI. Por ser el cartograma una forma de reforzar, sea con la imágen, sea con el diseño, un tipo de fenómeno geográfico, su lectura se sostiene sobre esta imagen para privilegiar representaciones de paisajes y espacios culturales angolanos, recurso éste reiterado por ficcionistas para registrar sus historias locales y para reforzar su propia diferencia cultural.

Palabras-clave: Ficción angolana contemporánea, Memoria y representación, Cartografías identitarias, Nuevas negociaciones de sentido

Embora as configurações territoriais fossem complementares às línguas e aos mapas lingüísticos (coloniais e nacionais) como bases das geografias literárias e das paisagens culturais, neste momento a história exige 'uma outra língua' e 'um outro pensamento' fundado na diferença colonial e não nos territórios nacionais e imperiais.

Walter Mignolo

Pensar os espaços, tal como se representam nas malhas ficcionais, sempre se constituiu uma espécie de recorrência obsidiante de meu imaginário leitor. Surgiram, assim, O espaço do desejo (1989), sobre a Ilustre casa de Ramires, de Eça de Queiroz, e mesmo Entre voz e letra (1985), sobre a ficção angolana e sua relação fundante com a ancestralidade, fonte simbólica em que a alteridade ia/vai buscar a "água" de sua diferença, para poder ter forças e resistir.*1 *1 (Padilha, Laura. O espaço do desejo: uma leitura de A ilustre casa de Ramires de Eça de Queiroz. Niterói / Brasília: Editora da Universidade Federal Fluminense / Editora da Universidade de Brasília, 1989; Entre voz e letra: o lugar da ancestralidade na ficção angolana do século XX. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 1995).

O debruçar-me sobre os espaços ficcionais me levou, quase como uma conseqüência natural, aos mapas, às cartografias, enfim, aos elementos da ordem da representação geográfica em que tais espaços se projetam e a ficção de algum modo se inspira, para encontrar, ela própria, formas de se cartografar pela linguagem*2 *2 (Cf. Padilha, Laura. Novos pactos, outras ficções: ensaios sobre literaturas afro-luso-brasileiras. Porto Alegre / Lisboa: Editora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul / Imbondeiro, 2002). .

Já agora, vou deixando os mapas e suas rígidas escalas e quero propor uma outra forma de representação, a dos cartogramas, para pensar, por meio dela, a ficção angolana moderna e, principalmente, a produzida nos anos 1990 e neste início de século. Como as antigas aulas de geografia um dia me ensinaram, os cartogramas são um tipo de representação cartográfica temática em que figuras e/ou traços e/ou cores intensificam pontos, para, por intermédio dessa intensificação, representar a própria intensidade de um fenômeno (vegetação, população, utilização do solo etc).

A ficção angolana, desde os imemoriais missossos, por exemplo, passando por Assis Júnior, Soromenho, a geração de 50 etc., sempre se fez cartogramática, reforçando, por figuras, traços e cores imagísticas, a intensidade de sua diferença ou de suas "paisagens culturais", a que alude a epígrafe de Mignolo, em que busquei parte do subtítulo deste texto. O mesmo Mignolo analisa como tais paisagens foram desqualificadas no processo de "expansão colonial e ocidental"*3 *3 (Mignolo, Walter D. Histórias locais/Projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora da Universidade Federal de Minas Gerais, 2003, p. 307). , e como hoje, a partir da exigência de uma "outra língua" e de 'um outro pensamento' fundado na diferença colonial"*4 *4 (Ibid., p. 339). , há uma espécie de revisão daquele apagamento primeiro, o que leva o sujeito do conhecimento a investir em suas histórias locais. Estas respondem à pressão exercida pela colonialidade do poder e do saber e, neste sentido, abre-se a possibilidade mesma de se adotar "uma outra visão de literatura, examinando-a da perspectiva do conhecimento teórico que ela gera"*5 *5 (: 305). .

Penso que os estudos africanos dos últimos vinte anos vêm cada vez mais consolidando essa "visão de literatura" referida por Mignolo e reforçando o espaço da crítica pós-colonial. Tais estudos, firmados, de modo cada vez mais organizado e coerente, pelos próprios sujeitos africanos em várias línguas, vão na contracorrente da colonialidade do poder e do saber, assim como tentam "subverter a subalternidade", tal como discute Boaventura de Sousa Santos, ao retomar Gayatri Spivak*6 *6 (Santos, Boaventura de Sousa. "Entre Próspero e Caliban: colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade". Em: Ramalho, Maria Irene & Ribeiro, António Sousa (org.). Entre ser e estar: raízes, percursos e discursos da identidade. Porto: Afrontamento, 2002: 32). .

Os cartogramas agora propostos querem seguir na direção desse novo mapeamento do saber, pensando a ficção angolana e o seu debruçar-se sobre a sua própria espacialidade física e cultural, ou suas paisagens. Com isso, ela insiste em não deixar desaparecer um jogo milenar de "escrita" que tentava ser um reforço da sabedoria ancestral e se expressava em traços, riscos, gestos e mesmo voz. Tal modo de perceber a "escrita" ia muito além do letramento trazido pelo colonizador, em suas naus onde os marinheiros que não sabiam escrever dominavam numericamente os que o sabiam, como a história sempre nos mostrou.

Quero, partindo daí, pensar/ler algumas imagens espacio-ficcionais que sustentam as paisagens culturais angolanas, no plano da representação, dando-lhes vida, como tão bem recorta Milton Santos, ao insistir que "paisagem e espaço não são sinônimos". Como explicita: "A paisagem é o conjunto de formas que, num dado momento, exprimem as heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre homem e natureza. O espaço são essas formas mais a vida que as anima"*7 *7 (Santos, Milton. A natureza do espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção. São Paulo: Edusp,2004: 103). .

O que move este texto é surpreender, no tecido ficcional angolano moderno, sobretudo no tempo recortado, essa "vida que [...] anima" as paisagens, principalmente depois que o "sol" da independência de certo modo perdeu a intensidade de seu brilho. Apetece-me indagar como as gerações literárias se superpuseram nesse nosso tempo. Apetece-me, já agora e igualmente, voltar a Milton Santos e à clareza e profundidade de suas tão sábias reflexões: "paisagem e espaço são sempre uma espécie de palimpsesto onde, mediante acumulações e substituições, a ação das diferentes gerações se superpõe. O espaço constitui a matriz sobre a qual as novas ações substituem as ações passadas. É ele, portanto, presente, porque passado e futuro"*8 *8 (Ibid.: 104). .

Esse "palimpsesto", na bela imagem de Santos, é o que o leitor da ficção angolana encontra em seu percurso por ela. Deixo outras vias possíveis, na rota temporal dessa ficção, tal como insisto em percorrer desde os anos 1980, rota que passa por Alfredo Troni, Assis Júnior, Castro Soromenho, por exemplo, e elejo a segunda metade do século XX como o ponto inaugural de minha travessia, que, por agora, não adentrará os caminhos ou não se fará um cartograma, pois a via interpretativa apenas se vai iniciando no que se refere aos anos de 1990 e ao início dos anos 2000.

Como sabemos, a diferença identitária – quando o desejo da liberdade começa, sem peias que o domem, a ganhar voz e vulto na segunda metade do século XX – tem nas imagens espaciais uma de suas mais fortes recorrências efabulativas. Uma dessas imagens em que o nosso imaginário leitor não tem como deixar de ancorar é fornecida pela cartografia-síntese da cidade de Luanda, tão bem lida pela ensaísta brasileira Tania Macedo*9 *9 (Macedo, Tania. "A presença de Luanda na literatura contemporânea em português". Em: Angola e Brasil: estudos comparados. São Paulo: Arte & Ciência, 2002, p. 67-94). . A cidade comparece, no cartograma ficcional de vários autores, com seus musseques*10 *10 (Cf. os contos de Rocha, Jofre (Almeida, Roberto de). Estórias do musseque. São Paulo: Ática, 1980) ; suas ruas ensolaradas pelas quais deambula, por exemplo, o personagem-narrador de Nós, os do Makulusu, ao ir ao encontro do corpo morto daquele que "tinha a mania dos heróis, pensava era capitão-mor", isto é, Maninho*11 *11 (Vieira, Luandino. Nós, os do Makulusu. Lisboa: Sá da Costa, 1975: 3) ; suas cubatas em que a estética da privação se consolida, principalmente nas figuras de velho(a)s como Xixi*12 *12 (Vieira, Luandino. Luuanda: estórias. São Paulo: Ática, 1982). ou Tutúri*13 *13 (Rocha, Jofre. Estórias do musseque. Ob. cit.). etc.; seus descampados onde os meninos descalços jogavam a bola e/ou faziam seus metafóricos desafios*14 *14 Cf. os contos de Cardoso, Boaventura em O fogo da fala (Lisboa: Edições 70, 1980) e Dizanga dia muenhu (São Paulo: Ática, 1982). ; sua lagoa "enluarada", morada da antiga Kianda, aterrada para dar lugar ao largo do Kinaxixe, que tem em Arnaldo Santos um excelente cartógrafo*15 *15 (Santos, Arnaldo. Kinaxixe e outras prosas. São Paulo: Ática, 1981). , e iríamos por aí. São espaços que à privação respondem com a euforia, a fé e a esperança. E o imaginário dos ficcionistas por eles com fervor viaja, "cartogramando-os" por palavras, quase eu ia dizendo, "de ordem". Lendo tais textos, podemos lembrar a reflexão feita por Cornejo Polar sobre o conjunto da obra de José Maria Arguedas em que, para o crítico peruano, "existe tanto uma fidelidade sem fissuras relativamente aos valores da cultura nativa como uma imbatível fé em seu triunfo histórico, embora com freqüência – para isto – o autor tenha de deslocar-se na direção da utopia e do mito"*16 *16 (Polar, Antonio Cornejo. O condor voa: literatura e cultura latino-americanas. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2000: 127). .

É essa utopia que se afirma no mito luminoso de Luanda, daí porque da reflexão de Polar se pode fazer uma espécie de epígrafe balizadora da produção ficcional de 1950 em diante, e de nossa leitura sobre ela. Vale lembrar que tal ficção se represou a partir do eclodir da guerra (1961), e foi publicada depois de 1975, principalmente, aparecendo com força nos primeiros anos da década de 1980.

Quando os sonhos da liberdade sem peias ou adiamentos começam a ruir, depois da Independência, de novo se convocam os espaços para disso se fazerem símbolo. Está-se já quase na segunda metade dos anos 1980, aproximadamente e sem escalas temporais rígidas, quando, então, o jogo do nós e dos outros já não se dá entre o dominado e o dominador, percebido como o estrangeiro, mas entre o próprio e o seu igual, só que em lados excludentes na arena política da dominação. É ela que acaba por abrir o espaço da guerra civil em que irmão luta contra irmão, como a ficção dos anos 1990 mostrará com recorrência*17 *17 (cf., por exemplo, Pepetela (Pestana, Arthur). Parábola do cágado velho. Lisboa: Dom Quixote, 1996; Cardoso, Boaventura. Maio, mês de Maria. Porto: Campo das Letras, 1997). .

Parodiando Roberto Bolaño, escritor chileno, em debate com Ricardo Piglia, escritor argentino, feito por e-mail e publicado, primeiro em El País e recentemente traduzido no suplemento "Mais!", da Folha de S. Paulo, em 12 de setembro de 2004, o assumir-se como "nacional" (nesse caso, angolano e, quanto aos dois debatedores, latino-americanos, genericamente), ou o reforçar-se como tal, talvez "obedeça às mesmas leis que o regiam no tempo das guerras de independência". É o que encenam, por exemplo, Manuel Rui Monteiro em Quem me dera ser onda e/ou Pepetela em O cão e os calús.*18 *18 (Monteiro, Manuel Rui. Quem me dera ser onda. Luanda: Instituto Nacional do Livro e do Disco, 1984; Pepetela. O cão e as calús. Porto: Asa, 1988).

Adentrando a ficção dos anos 1990, já convocada atrás, vemos que a representação de ordem espacial que, no corpus da literatura angolana, acaba por se tornar a síntese mais perfeita do ruir dos sonhos, é-nos oferecida pela "síndroma de Luanda". Ou seja, pelo ruir silencioso dos prédios do Kinaxixe em O desejo de Kianda, de Pepetela, com a imagem espacial suplementar do prédio inacabado, tomado pelos despossuídos e onde a menina Cassandra ouve o canto da Kianda e o partilha com o mais velho Kalumbo, como se ambos revivessem um rito de iniciação, onde este, no caso, introduz a sua mais nova nos mistérios da Kianda.*19 *19 (Pepetela. O desejo de Kianda. Lisboa: Dom Quixote, 1995: 98-9). É interessante notar como o Kinaxixe continua a ser o palco quase mítico das ações, daí a convocação feita a Luandino Vieira e a Arnaldo Santos na cena assim narrada:

Ali perto devia ser o sítio onde há trinta e tal anos derrubaram a mafumeira de Kianda, quando construíram a praça. Toda aquela zona fora uma lagoa e havia uma mafumeira que foi cortada e chorou sangue pelo cepo durante uma semana. Ouviu a história um dia [...] quando se sentou com o maior respeito onde se encontravam dois escritores, Luandino Vieira e Arnaldo Santos, grandes sabedores das coisas de Luanda".*20 *20 (Ibid.: 46-7).

Eis o palimpsesto a que se refere Milton Santos, com a ruína dos prédios desventrados na silenciosa queda e o "musseque" vertical sem a beleza mítica antiga a esconderem os traços do sonho, da euforia, da alegria, enfim, do outro tempo que igualmente formara um cartograma. A "gigantesca onda" que inunda "toda a Avenida", na cena final de recomposição imagística da ordem antiga, traz "em cima dela [...] as fitas de todas as cores [...] agora que a Ilha de Luanda voltava a ser ilha e Kianda ganhava o alto mar, finalmente livre"*21 *21 (: 119). .

O espaço reconquistado, a paisagem recuperada, eis a cena que ainda permite pensar que, africanamente, a esperança não se pode deixar morrer.

A pergunta que não tenho como calar, já agora, é se esse "ruir", de certo modo minimizado pela libertação do espaço aprisionado em O desejo de Kianda, continua ou não a reforçar os traços no cartograma ficcional angolano desse fim/início de século e se tais traços, ecoando Homi Bhabha, transformam "retalhos e restos da vida cotidiana nos signos de uma cultura nacional coerente"*22 *22 (Bhabha, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998: 202). .

Será a fé cega, pergunto-me, nesse momento histórico, mais forte que a faca amolada que as novas correlações de força, a globalização e/ou a colonialidade do poder entre elas, assim como as soluções políticas neoliberalizantes parecem impor a sociedades como a angolana – e não menos à do Brasil, de onde falo –, ditas subalternas ou periféricas, em que os sujeitos históricos não conseguem escrever a sua própria "biografia" identitária, localmente articulada, para, dela partindo, proporem novas representações cartográficas? Como já deixei claro, não me parece que a faca amolada possa vencer a fé cega, a não ser que se pense na faca amolada que a própria ficção insiste em ser.

Não por acaso reforçam-se as paisagens culturais para tornar o gume dessa faca ainda mais afiado. Os produtores nos propõem uma espécie de travessia do olhar por tais paisagens, tal como se dá em Mãe, materno mar, de Boaventura Cardoso, que, não por acaso, assim se abre, estabelecendo o sentido do pacto espacial romanesco:

Corriam verdejantes velozes, os floridos campos, montanhas, vales, as miúdas ermas campinas, as plantas terras, o tempo era aquele minuto átimo, a flecha zunante, o olhar se distendendo naquele espaço corrido, correndo, o tempo se afirmando e se negando, ele, pensativo, a mãe..., o espaço e o tempo, os ares, tudo a correr, célere.*23 *23 (Cardoso, Boaventura. Mãe, materno mar. Porto: Campo das Letras, 2001: 35).

O tempo e o espaço, a se recuperarem, na velocidade do comboio pelo qual o sujeito – "ele, pensativo" –, que saberemos depois se chamar Manecas, fará sua própria iniciação na diferença de sua terra durante a viagem que durará 15 anos de Malange a Luanda. Nesse trem, desfila, como se em uma roda de "contação" se estivesse, o microcosmo social de Angola, como tão bem analisado por Carmen Lúcia Tindó Secco, no prefácio da obra. A ensaísta adverte: "Mãe, Materno mar, em sua polifônica urdidura romanesca, se organiza como um grande missosso, cujas diversas camadas narrativas, formadas pelos fios cruzados e entrecruzados de várias estórias, se encaixam ao eixo principal condutor do enredo: o da viagem de um comboio que sai de Malange, com destino a Luanda"*24 *24 (Ibid.: p. 15) .

Novamente, o palimpsesto, a esconder velhos cartogramas, no caso, os missossos, uma forma de narrar da oralidade em que os espaços da alteridade se tingiam de cores identitárias fortes: quimbos, senzalas, rios, monstros como os diquixi de várias cabeças, sereias, gemelaridades, boas e más mortes, e mais, muito mais. Recuperando esse modo ancestral de contar, o produtor ficcional reforça a sua cultura, mostrando-a como diferença. Em conferência recente, no Rio de Janeiro, Boaventura Cardoso a explicitou, referindo-se à "fonte" de onde emana o contar letrado angolano e, nele, o seu, em especial: "Fiéis à cultura banto, na forma de conceber o texto oral e de o narrar, assumimo-nos como o contador africano, na sua exuberante expressividade dramatizadora, na sua preferência pela linguagem-espetáculo, tornando-a uma polifonia de linguagens idiomáticas, gestuais, de imitação de sotaques dos personagens, dos seus estados de espírito"*25 *25 (Cardoso, Boaventura. Conferência proferida no Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ em 8 de outubro de 2004. ) .

Aí estão, explicitados, os traços e as cores do cartograma, com a intensificação de pontos que recuperam a intensidade do próprio processo ficcional angolano, na busca do que nele, repito, é diferença. O mesmo se dá, se o objeto de nosso olhar crítico for Rioseco, de Manuel Rui Monteiro, que igualmente se abre, fixando os espaços, ancorando-os na letra que toma de assalto a brancura do papel:

Naquela hora em que os pescadores atravessavam o canal com seus apetrechos tão resumidos para virem fazer a aguada, o mar abria boca-réstia de sono ainda em maré baixa a espreguiçar-se, sonolentamente, sob o sol sem nuvem.*26 *26 (Monteiro, Manuel Rui. Rioseco. Lisboa: Cotovia, 1997, p. 9).

Antes que os personagens tomem acento na cena, personagens cujos nomes conheceremos depois – Zacaria, "O homem [...] de pé" e Noíto, "a mulher sentada sobre a trouxa grande"*27 *27 (Ibid.: 9-10). , ou seja, o casal, como no princípio dos tempos –, o encenador das ações faz o enquadramento espacial e nos introduz nas malhas de sua paisagem cultural. Depois é que a história se inicia, com o primeiro plano quase absoluto de Noíto, mulher do rio e do mato, que se faz da ilha e do mar. No plano do contado, ela se revela uma espécie de maga (Kianda transplantada?), a traduzir o conhecimento antigo para a "língua" do conhecimento novo. Com isso, agrega espaços, encontra, pelo gesto de tradução, o outro nome das coisas, integra-se ao outro território, assumindo como suas as novas paisagens. Corpo de velha em coração de menina, seu riso e sua dança cortam a ilha ao meio, antes que o rio o faça, "brotando" ali ao final do romance.

Dividida entre seus dois amores (Zacaria, companheiro antigo dos tempos de mato e rio, e Mateus, novo deslumbramento, já em forma de ilha e mar), Noíto amarra a chuva; descobre o seu cágado, sempre o outro da sabedoria; fala com os pássaros*28 *28 (Cf. a cena dos flamingos: 492-3). e, principalmente, é recebida pela Kianda que dela faz uma espécie de lugar-tenente na ilha – cf. o que diz Kakuarta: "É a tia Kambuta que nós recebemos com ela muito da sereia"*29 *29 (: 277). , ao que Noíto adiante ecoará: "Quando aquela gente toda bateu palmas e eu levantei, era mesmo a Kambuta. Com a ajuda da Kianda. Agora [...] sou outra vez Noíto"*30 *30 (: 283). .

Retorna, pela voz artística de Manuel Rui, como se dera com a de Boaventura Cardoso – obras aqui tomadas como um paradigma possível das representações cartogramáticas – o modo de contar ancestral. Esse jogo palimpséstico confere uma outra dimensão ao texto ficcional, descobrindo-lhe as superposições, as camadas, as genealogias. Assim, reforça-se sua força espacial pela presença viva da vida. Cito, uma vez mais, Milton Santos: "Só a vida é passível desse processo infinito que vai do passado ao futuro, só ela tem o poder de tudo transformar amplamente. Tudo o que não retira sua significação desse comércio com o homem, é incapaz de um movimento próprio, não pode participar de nenhum movimento contraditório, de nenhuma dialética"*31 *31 (Santos, Milton. A natureza do espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção. Ob. cit.: 109). .

Penso que é por tal jogo dialético e por aceitar as normas do movimento contraditório que o texto ficcional angolano moderno, sem negar ou elidir o global, gesto impensável na argamassa político-cultural de nosso presente, consegue reforçar o local de onde fala, investindo nos traços densamente coloridos de seu cartograma de palavras. Encontra, assim, voltando à epígrafe de Mignolo por onde comecei, "uma outra língua", fundada em uma outra lógica, ou em "um outro pensamento", pelos quais emerge a diferença, pelo ensaísta chamada colonial.

Reergue-se, assim, simbolicamente, A casa velha das margens, tal como Arnaldo Santos concebe e nos propõe com a realização de seu romance. Ela, a casa velha, uma outra maneira metafórica de dizer Angola, constrói-se com o cimento do presente, do passado e do futuro, implantando-se no terreno de nosso imaginário leitor de forma sólida e definitiva. Atam-se os laços com o passado e, assim, abre-se a possibilidade do futuro, pois, como ensina o fecho do romance, "os espíritos dos [...] antepassados" – metonimicamente, no caso, não enterrados pela "mãe" (que seria a Kissama, duplo da terra, como sabemos) – "pairavam algures pelas Margens, mas outros lhes tinham herdado"*32 *32 (Santos, Arnaldo. A casa velha das margens. Porto: Campo das Letras, 1999: 354). .

É essa herança que significa e acaba por antecipar o futuro, pois jamais se esquece o que se herda. Esse não-esquecimento guarda a certeza de que a memória nunca se deixará lacrar, fazendo-se um cofre sempre aberto no presente e o lugar onde, ao mesmo tempo, mora o sentido do passado e, nele, superposto ou ao lado, a garantia do futuro.

Recebido em 17/10/2004

Aprovado em 12/01/2005

  • *1 (Padilha, Laura. O espaço do desejo: uma leitura de A ilustre casa de Ramires de Eça de Queiroz. Niterói / Brasília: Editora da Universidade Federal Fluminense / Editora da Universidade de Brasília, 1989;
  • Entre voz e letra: o lugar da ancestralidade na ficção angolana do século XX. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 1995).
  • *2 (Cf. Padilha, Laura. Novos pactos, outras ficções: ensaios sobre literaturas afro-luso-brasileiras. Porto Alegre / Lisboa: Editora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul / Imbondeiro, 2002).
  • *3 (Mignolo, Walter D. Histórias locais/Projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora da Universidade Federal de Minas Gerais, 2003, p. 307).
  • *6 (Santos, Boaventura de Sousa. "Entre Próspero e Caliban: colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade". Em: Ramalho, Maria Irene & Ribeiro, António Sousa (org.). Entre ser e estar: raízes, percursos e discursos da identidade. Porto: Afrontamento, 2002: 32).
  • *7 (Santos, Milton. A natureza do espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção. São Paulo: Edusp,2004: 103).
  • *9 (Macedo, Tania. "A presença de Luanda na literatura contemporânea em português". Em: Angola e Brasil: estudos comparados. São Paulo: Arte & Ciência, 2002, p. 67-94).
  • *10 (Cf. os contos de Rocha, Jofre (Almeida, Roberto de). Estórias do musseque. São Paulo: Ática, 1980)
  • *11 (Vieira, Luandino. Nós, os do Makulusu. Lisboa: Sá da Costa, 1975: 3)
  • *12 (Vieira, Luandino. Luuanda: estórias. São Paulo: Ática, 1982).
  • *14 Cf. os contos de Cardoso, Boaventura em O fogo da fala (Lisboa: Edições 70, 1980)
  • e Dizanga dia muenhu (São Paulo: Ática, 1982).
  • *15 (Santos, Arnaldo. Kinaxixe e outras prosas. São Paulo: Ática, 1981).
  • *16 (Polar, Antonio Cornejo. O condor voa: literatura e cultura latino-americanas. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2000: 127).
  • *17 (cf., por exemplo, Pepetela (Pestana, Arthur). Parábola do cágado velho. Lisboa: Dom Quixote, 1996;
  • Cardoso, Boaventura. Maio, mês de Maria Porto: Campo das Letras, 1997).
  • *18 (Monteiro, Manuel Rui. Quem me dera ser onda. Luanda: Instituto Nacional do Livro e do Disco, 1984;
  • Pepetela. O cão e as calús Porto: Asa, 1988).
  • *19 (Pepetela. O desejo de Kianda. Lisboa: Dom Quixote, 1995: 98-9).
  • *22 (Bhabha, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998: 202).
  • *23 (Cardoso, Boaventura. Mãe, materno mar. Porto: Campo das Letras, 2001: 35).
  • *25 (Cardoso, Boaventura. Conferência proferida no Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ em 8 de outubro de 2004.
  • *26 (Monteiro, Manuel Rui. Rioseco. Lisboa: Cotovia, 1997, p. 9).
  • *32 (Santos, Arnaldo. A casa velha das margens. Porto: Campo das Letras, 1999: 354).
  • *
    Professora de Literaturas de Língua Portuguesa da UFF e pesquisadora do CNPq. Autora de
    Entre a voz e a letra: o lugar da ancestralidade na ficção angolana do século XX (Niterói: Eduff, 1995) e de
    Novos pactos, oiutras ficções: ensaios sobre literaturas afro-luso-brasileiras (Porto Alegre: Edipucrs, 2002).
  • *1
    (Padilha, Laura.
    O espaço do desejo: uma leitura de A ilustre casa de Ramires de Eça de Queiroz. Niterói / Brasília: Editora da Universidade Federal Fluminense / Editora da Universidade de Brasília, 1989;
    Entre voz e letra: o lugar da ancestralidade na ficção angolana do século XX. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 1995).
  • *2
    (Cf. Padilha, Laura.
    Novos pactos, outras ficções: ensaios sobre literaturas afro-luso-brasileiras. Porto Alegre / Lisboa: Editora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul / Imbondeiro, 2002).
  • *3
    (Mignolo, Walter D.
    Histórias locais/Projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora da Universidade Federal de Minas Gerais, 2003, p. 307).
  • *4
    (Ibid., p. 339).
  • *5
    (: 305).
  • *6
    (Santos, Boaventura de Sousa. "Entre Próspero e Caliban: colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade". Em: Ramalho, Maria Irene & Ribeiro, António Sousa (org.).
    Entre ser e estar: raízes, percursos e discursos da identidade. Porto: Afrontamento, 2002: 32).
  • *7
    (Santos, Milton.
    A natureza do espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção. São Paulo: Edusp,2004: 103).
  • *8
    (Ibid.: 104).
  • *9
    (Macedo, Tania. "A presença de Luanda na literatura contemporânea em português". Em:
    Angola e Brasil: estudos comparados. São Paulo: Arte & Ciência, 2002, p. 67-94).
  • *10
    (Cf. os contos de Rocha, Jofre (Almeida, Roberto de).
    Estórias do musseque. São Paulo: Ática, 1980)
  • *11
    (Vieira, Luandino.
    Nós, os do Makulusu. Lisboa: Sá da Costa, 1975: 3)
  • *12
    (Vieira, Luandino.
    Luuanda: estórias. São Paulo: Ática, 1982).
  • *13
    (Rocha, Jofre.
    Estórias do musseque. Ob. cit.).
  • *14
    Cf. os contos de Cardoso, Boaventura em
    O fogo da fala (Lisboa: Edições 70, 1980) e
    Dizanga dia muenhu (São Paulo: Ática, 1982).
  • *15
    (Santos, Arnaldo.
    Kinaxixe e outras prosas. São Paulo: Ática, 1981).
  • *16
    (Polar, Antonio Cornejo.
    O condor voa: literatura e cultura latino-americanas. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2000: 127).
  • *17
    (cf., por exemplo, Pepetela (Pestana, Arthur).
    Parábola do cágado velho. Lisboa: Dom Quixote, 1996; Cardoso, Boaventura.
    Maio, mês de Maria. Porto: Campo das Letras, 1997).
  • *18
    (Monteiro, Manuel Rui.
    Quem me dera ser onda. Luanda: Instituto Nacional do Livro e do Disco, 1984; Pepetela.
    O cão e as calús. Porto: Asa, 1988).
  • *19
    (Pepetela.
    O desejo de Kianda. Lisboa: Dom Quixote, 1995: 98-9).
  • *20
    (Ibid.: 46-7).
  • *21
    (: 119).
  • *22
    (Bhabha, Homi K.
    O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998: 202).
  • *23
    (Cardoso, Boaventura.
    Mãe, materno mar. Porto: Campo das Letras, 2001: 35).
  • *24
    (Ibid.: p. 15)
  • *25
    (Cardoso, Boaventura. Conferência proferida no Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ em 8 de outubro de 2004. )
  • *26
    (Monteiro, Manuel Rui.
    Rioseco. Lisboa: Cotovia, 1997, p. 9).
  • *27
    (Ibid.: 9-10).
  • *28
    (Cf. a cena dos flamingos: 492-3).
  • *29
    (: 277).
  • *30
    (: 283).
  • *31
    (Santos, Milton.
    A natureza do espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção. Ob. cit.: 109).
  • *32
    (Santos, Arnaldo.
    A casa velha das margens. Porto: Campo das Letras, 1999: 354).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Out 2005
    • Data do Fascículo
      Jun 2005

    Histórico

    • Aceito
      12 Jan 2005
    • Recebido
      17 Out 2004
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