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De Jean-Paul a Giraudoux

TRADUÇÕES

De Jean-Paul a Giraudoux1 1 3 de fevereiro de 1944.

Maurice Blanchot

Apresentação

Entre abril de 1941 e agosto de 1944, Maurice Blanchot publicou 173 artigos de crítica literária no Journal des débats. Retirado em Clermont-Ferrand a partir 15 de junho de 1940 e desde então financiado por Vichy, o célebre diário, nascido em 1789, desapareceria em 18 de agosto de 1944, um dia depois do último artigo de Blanchot. Este parece ter conhecido ali uma liberdade de intervenção ao mesmo tempo restrita e sem igual.

Salvo por algumas exceções, esses artigos eram publicados no âmbito de uma "crônica da vida intelectual", em um ritmo semanal. Em dezembro de 1943, por iniciativa de Dionys Mascolo, a editora Gallimard publicou uma seleção deles sob o título Faux Pas; podiam-se ler 55 artigos do Journal des débats, a maioria em versão integral, corrigida por Blanchot. Faux Pas foi a primeira de uma série de coletâneas críticas, das quais se destacam La Part du feu (1949), L'Espace littéraire (1955), Le Livre à venir (1959), L'Entretien infini (1969) e L'Amitié (1971).

Em 2007, editei pela Gallimard os artigos de crítica literária publicados por Blanchot no Journal des débats entre 1941 e 1944 que não se achavam em Faux Pas: mais de uma centena, portanto. Tal publicação permite apreciar o que chamei aqui mesmo, na Alea, de trajeto "da crônica à teorização" (cf. "Maurice Blanchot: de la chronique à la théorisation". Alea, vol. 10, nº1, Rio de Janeiro, janeiro/julho 2008, p.13/28).

Para este número, propus a Marcelo Jacques de Moraes que traduzisse os artigos "De Jean-Paul à Giraudoux" e "L'expérience magique d'Henri Michaux". O primeiro data de 3 de fevereiro de 1944 e propõe uma confrontação - que pode hoje parecer curiosa - entre o escritor romântico alemão, grande referência da modernidade, e o escritor mais tradicional Jean Giraudoux, que gozava então de alta consideração junto a autores como Sartre ou a cineastas como Godard ou Chris Marker, que lhe dedicaria, aliás, um livro (Jean Giraudoux par lui-même). Esse texto não é nem o primeiro nem o último de Blanchot sobre Giraudoux. E nem o primeiro nem o último de Blanchot sobre um autor romântico alemão. Depois disso, é por Hölderlin que Blanchot se interessará com maior frequência.

Mas é todo o romantismo alemão que não cessará de reter sua atenção: a prova disso é o livro de Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, L'Absolu littéraire, no qual o lugar de Blanchot é decisivo. Nesse artigo, a passagem sobre a metáfora anuncia também os desenvolvimentos por vir de Lautréamont et Sade (1949).

O artigo sobre Michaux encerra a série de crônicas de Blanchot no Journal des débats, em 17 de agosto de 1944. É o segundo texto de Blanchot dedicado a Michaux. Apesar do desvio pela "experiência mágica", trata-se de falar da realidade e da morte que avança, no próprio momento da liberação da nação. A citação de Michaux que encerra o artigo, e encerra assim a crônica de Blanchot, a crônica de mais de três anos de Blanchot, significa, de um modo quase lírico, o fim de um mundo. Quando, em 1945, Blanchot retomar uma atividade crítica em L'Arche, não faltarão textos sobre o surrealismo. "Experiência mágica", de fato, esse texto se situa na confluência do fim de um mundo e do aparecimento de outro.

Christophe Bident

Seria, talvez, exagerado falar de uma influência particular de Jean-Paul sobre a literatura contemporânea, e, contudo, o grande romântico alemão não apenas seguiu os caminhos também tomados por certos escritores de nosso tempo: ele ainda se viu, por seu estilo metafórico, ao lado de um de nossos mais raros escritores, a ponto de aparecer como seu sósia exaltado, Jean Giraudoux. A que se ligam tais semelhanças? Elas continuam bastante misteriosas. Jean-Paul, pouco conhecido na França, aliás, pouco conhecido na Alemanha, foi revelado à nossa literatura por Madame de Staël; o "Discurso do Cristo morto", sonho angustiado diante do vazio do céu, teve grande repercussão, e Nerval exprimiu a mesma visão em seu "Cristo nas Oliveiras". Durante um século, foi praticamente só isso; a tradução de "Titã" por Philarète Chasles permanece sem leitores; na própria Alemanha, o escritor, tão ilustre quanto Goethe, cai no esquecimento, e é necessária a antologia de Stefan George para trazer à luz aquele que se torna desde então "o Jean-Paul das harmonias e dos sonhos". Na França, nos últimos vinte anos, não lhe faltaram amigos. Um dos mais fiéis, Edmond Jaloux, e um dos mais ativos, Albert Béguin, muito fizeram para nos revelar a verdadeira natureza do poeta. Béguin, que lhe dedicou um capítulo de seu livro L'Âme romantique et le rêve [A alma romântica e o sonho], traduziu Hesperus, O jubileu, e essa seleção de sonhos que é uma reunião infinitamente preciosa. Hoje, Velut prossegue nesse esforço com a publicação (pela editora Aubier) da edição completa de Quintus Fixlein.

Na aurora do romantismo, Jean-Paul representa certas tomadas de posição cujo valor não foi percebido pelos românticos franceses, mas que, depois deles ou para além deles, penetraram profundamente nosso tempo. A principal é o caráter de experiência que se reconhece na literatura; a literatura torna-se uma manifestação espiritual; ela introduz aquele que a busca em um novo modo de existência; é uma espécie de ascese que nos permite o acesso a uma vida mais autêntica: em uma palavra, ela tem para o escritor uma significação mística. (Mais tarde, um século mais tarde, um outro escritor alemão, Kafka, dirá: escrever é orar.) Ao passo que, para a maior parte dos românticos franceses, a arte é subjetiva porque revela os movimentos interiores, exprime a intimidade pessoal; para o romantismo ou o pré-romantismo dos Hölderlin, dos Jean-Paul, dos Novalis, assim como para um Nerval ou um Rimbaud, a arte é subjetiva porque põe em causa o que o artista tem de mais profundo, não mais apenas para exprimi-lo, mas para transformá-lo. Para nossos românticos, a arte conserva um valor psicológico, ela é expressão sincera, espelho fiel; para os românticos estrangeiros, a literatura tem um valor de engajamento: ela não exprime, ela abala; ela é a um só tempo meio de conhecimento e poder de metamorfose; viver, escrever, é um mesmo ato. A poesia é uma experiência mágica.

Jean-Paul descobriu tardiamente sua riqueza poética em circunstâncias notáveis: de família pobre (ao ponto de seu irmão caçula ter-se afogado para poupar aos seus a preocupação de alimentá-lo), tendo perdido, depois desse jovem irmão, os dois únicos amigos com quem pôde exprimir-se, arrasado pela miséria e pela tristeza, ele teve uma noite a revelação da própria morte, viu-se morto, tomou de fato a forma cadavérica: "Nessa noite [anotou ele em seguida] abri uma passagem até meu leito de morte, através de trinta anos, vi-me com a mão caída dos cadáveres, o rosto devastado dos doentes, o olho de mármore, e ouvi os discursos delirantes que farei no combate de minha última noite. [Com efeito, ele morreu no dia do aniversário de sua visão, trinta e cinco anos mais tarde.] Seguramente virás, sonho supremo, e já que é uma certeza... despeçome agora da terra e de seu céu." Essa revelação, intelectual e imaginativa, lança-o em uma extraordinária febre criativa; abandonando a seca literatura satírica a que até então se dedicava sem sucesso, ele rompe as aparências terra a terra da realidade e descobre sob as coisas amorfas um jorro de fonte, uma cintilação de imagens, uma vida infinita que sua arte, ávida, louca de comparações, lhe permite retomar. A partir daí, sua obra prossegue em duas direções. Ora, acima da vida banal, ele descreve os refúgios prodigiosos, aclarados pela luz dos sonhos, para os quais se voltam as belas almas, os "homens altos" que suportam impacientemente as mesquinharias da vida social. Ora, retornando à existência mais humilde, ele se interessa pelos corações simples, pastores, professores de escola, jovens alunos, e encontra nas doces manias destes, um pouco à maneira de Dickens, o reflexo da vida pura e ilimitada que seu desejo de transfiguração procura em toda parte na natureza. É a essa veia idílica e ingênua que pertence o Quintus Fixlein traduzido por Velut.

O caráter singular da arte de Jean-Paul vem do papel que nela desempenham as imagens. Não há escritor para quem escrever seja em mais alto grau o poder de metamorfosear as coisas por meio da invenção de metáforas. Para ele, as comparações não são apenas figuras que interessam superficialmente o estilo; elas são um caminho de descoberta, uma via que pouco a pouco nos faz passar do visível ao invisível, do conhecido ao desconhecido, do familiar à evidência do enigma. Esse é um traço da arte que se tornou em nossos dias inteiramente comum. Mas Jean-Paul foi um dos primeiros romancistas a sentir que a metáfora podia ser um instrumento extraordinário de transmutação, e sua prosa, tomada por um verdadeiro frenesi, troca tudo por tudo, reúne as harmonias mais estranhas, produz as coincidências mais quiméricas, recria o mundo e faz dele o lugar da semelhança universal. Tal poder de caminhar por digressão, tal atitude de exprimir o mesmo por meio do outro faz dele não apenas "o pai do impressionismo contemporâneo", como disse Stefan George, mas o antecessor de um escritor tão original e tão livre de influências quanto Giraudoux. Haveria um estudo interessante a empreender sobre esses dois escritores. Ambos estão em busca dessas "grandes semelhanças" que "ferem o mundo e marcam aqui e ali sua luz", sabendo que "delas pode nascer qualquer nostalgia, qualquer espírito, qualquer emoção". Ambos não apenas se apoderam das coisas e dos objetos para transformá-los em imagens, mas servem-se também de imagens literárias, de alusões a livros, à arte, ao mundo da cultura, para fazer delas outras imagens ou objetos verdadeiros: ambos se abandonam a uma proliferação de erudições que, no poeta alemão, desabrocha às vezes em um deplorável pedantismo. Enfim, ambos querem reencontrar no mundo o que ele tem de inocente, de autêntico, o que é sua graça e nos torna contemporâneos de sua pureza de origem, a verdade do primeiro gesto, dos primeiros passos, de tudo o que é nascimento e começo. Ao lado desses traços comuns, haveria, naturalmente, muitos traços a distinguir. O principal nos parece ligado ao movimento das imagens que em Jean-Paul se desenvolvem desordenadamente, em uma efusão de embriaguez e de poderosa incoerência, ao passo que Jean Giraudoux imanta-as umas às outras, associa-as segundo um progresso dialético, passando aos poucos do dia para a noite, e fazendo, enfim, brilhar no coração da sombra a lembrança do que foi a claridade mais viva. Mas vamos reler estas frases: "Agora, a cada estrela que desaparecia no alto do céu, uma flor e um pássaro despertavam cá embaixo na terra..." - "Ele havia aparecido na bruma, como a primavera ou um deus de Homero." - "O amigo de sua infância despareceu de sua vista como a infância." Tomadas de Hesperus e outrora citadas com felicidade por Béguin, elas fazem sentir que parentesco secreto pode unir dois escritores, que metáfora aproxima ao longo dos tempos os maiores impulsos poéticos.

Tradução de Marcelo Jacques de Moraes (UFRJ)

  • 1
    3 de fevereiro de 1944.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Out 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010
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