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TRADUÇÃO SEMIODISCURSIVA NO FILME PARANOID PARK: A TRILHA MUSICAL NÃO-ORIGINAL COMO ESTRATÉGIA DE PRODUÇÃO DE SENTIDO

RESUMO

O artigo examina a utilização da trilha sonora musical não-original no filme Paranoid Park , que é a adaptação de um romance infanto-juvenil homônimo, analisando a música como ferramenta discursiva e, no caso da não-originalidade, elemento bricolado que se relaciona ao filme a partir de diferentes características, entre elas a melodia e a letra. Adotando o ponto de vista semiodiscursivo, que combina narratividade, discursividade e tensividade, as obras musicais serão vistas principalmente a partir de dois teóricos: Pietroforte e Zilberberg. Deste, abordaremos a noção discursivo-tensiva da retórica do acontecimento , que será importante para entendermos o regime discursivo do romance e do filme, e a construção do espaço interior do personagem. Daquele, discutiremos a tipologia de regimes de sentido do discurso musical, que prevê a música relacionada ao texto verbal e aos sons do mundo natural. Observaremos como canções e músicas não-originais ao texto fílmico são utilizadas como elementos retóricos contendo cargas semânticas verbo-sonora-musicais que são simbólicas e fazem parte de crenças e saberes sociais compartilhados; e são motivadas pela narrativa na qual foram inseridas, partilhando elementos semânticos com a imagem, apoiando construções semissimbólicas e a tradução dos percursos temáticos e figurativos construídos no texto literário.

Trilha sonora de cinema; semiótica discursiva; semiótica tensiva; tradução semiodiscursiva; Paranoid Park

ABSTRACT

The article examines the use of the non-original musical soundtrack in the film Paranoid Park , which is an adaptation of a homonymous novel, analyzing music as a discursive tool and, in the case of non-originality, a bricolated element related to the film through genre, melody and lyrics. Based on semiodiscourse theory, which combines narrativity, discourse and tensivity, the musical texts will be discussed from the point of view of two theorists: Pietroforte and Zilberberg. From the former, we will discuss the typology of musical discourse regimes, which understands the musical text as more or less related to the verbal language and natural sounds. From the latter, we will approach the discursive notion of the rhetoric of the event , which will be important to understand the discursive strategy of the novel and the film, and the construction of the character’s inner space. Departing from three genres played in the movie, we will observe how non-original songs and music are used as rhetorical devices that are symbolic and part of shared beliefs and knowledges of social groups; and motivated by the narrative in which they are inserted, sharing their semantic elements with the image, and supporting semi-symbolic operations.

Film soundtrack; discourse semiotics; tensive semiotics; semiodiscoursive translation; Paranoid Park

Introdução 1 1 Esse artigo é um desdobramento das discussões sobre cinema, música e adaptação, elaborada na tese de doutorado defendida na Universidade de São Paulo em 2019, intitulada: A adaptação cinematográfica do romance Paranoid Park: uma visada semiodiscursiva.

Esse artigo discute partes da trilha sonora musical do filme Paranoid Park , dirigido por Gus Van Sant ( PARANOID..., 2007PARANOID Park. Produção: David Allen Cress, Neil Kopp. Paris: MK2 Productions; New York: IFC Films. 1 DVD (85 min), son., color, 2007. ), que é uma adaptação do romance homônimo de Nelson (2006)NELSON, B. Paranoid Park. [ s.l. ]: Speak, 2006. , e conta a história de um adolescente que, devido a um evento traumático profundo, passa por um momento de transformação e amadurecimento. Nossa abordagem da música será semiodiscursiva, e partirá do princípio que a linguagem natural (verbal) funciona como ferramenta metalinguística de tradução/adaptação 2 2 Em relação à tradução / traduzibilidade, a semiótica discursiva a considera uma das propriedades fundamentais dos sistemas semióticos e fundamento da abordagem semântica, existindo entre o juízo de existência do sentido e o dizer algo sobre ele (mesmo a sua falta). De modo geral, entre o perceber e o enunciar, opera-se a tradução. A partir do entendimento da tradução como princípio fundamental da semiose, pode-se concluir que essa operação engloba tanto os textos ditos “originais” (que não existiriam sem uma “atividade tradutória fundamental”), sejam eles verbais, não-verbais ou híbridos, assim como as traduções literárias e as adaptações fílmicas, que podem ser entendidas como alicerçadas em uma única e mesma operação. Segundo Octavio Paz (2009 , p. 13), que parece seguir a mesma linha de raciocínio, “cada tradução é, até certo ponto, uma invenção, e assim constitui um texto único”. Na discussão entre as relações entre tradução e a adaptação fílmica também seguimos, além de Greimas e a semiótica discursiva, Cattrysse (1992) , que se vale da semiótica cultural de Yuri Lotman e da teoria do Polissistema de Even-Zohar para afirmar que o estudo de textos literários traduzidos e de textos fílmicos adaptados podem ser caracterizados por procedimentos similares: abordagens orientadas para o texto fonte e (in) fidelidade em sua (re) construção / enunciação; expectativas em relação à adequação e normas de equivalência do texto adaptado ao original; escopo restrito a comparações de pares de textos individuais (fonte e alvo). Procurando um espaço teórico mais profundo e englobante sobre o tema, e compreendendo a tradução como base da significação humana, a semiótica discursiva entende que a operação tradutória pode ser decomposta em um fazer interpretativo do texto fonte, ou a quo, um fazer produtor do texto alvo, ou ad quem ( GREIMAS; COURTÉS 2011 [1979], p. 508; verbete: tradução) e um fazer persuasivo ( MANCINI, 2020 ) do enunciador. Assim, na tradução e na adaptação, que podem ser equiparadas, o texto fonte é sempre incorporado e recriado, em seus vários níveis de sentido, pelo texto alvo, a partir de uma enunciação textualizadora que opera um projeto enunciativo motivado sócio-historicamente, e com a intenção de persuadir / manipular o enunciatário. humana do mundo natural, no qual a música está inserida. Assim, debruçaremo-nos sobre a trilha musical do filme do ponto de vista narrativo-discursivo, apoiando-nos na teoria greimasiana e seus desdobramentos, como a semiótica tensiva, e entenderemos a música como um dos componentes de sentido do texto fílmico, que é sincrético, e combina conteúdos visuais e sonoros.

Compondo o repertório das linguagens humanas, música e cinema pertencem a crenças e saberes compartilhados socialmente, que existem dentro de orientações semânticas relacionadas a questões históricas, antropológicas, éticas e estéticas, que são de ordem discursiva, mitológica e simbólica. Como a cor, por exemplo, associada semissimbolicamente 3 3 O semissimbolismo ocorre através de uma conformidade entre os planos de expressão e do conteúdo de um texto / signo, da construção de uma relação entre significado e significante. Um som repetido em um poema, por exemplo, pode significar o ruído de bombas, de ondas no mar, ou de um trem; efeitos de luz e sombra em um quadro ou fotografia podem significar vida, morte, felicidade, tristeza etc. Essas construções semissimbólicas existem enquanto criações textuais e particulares de cada texto, que cria seus próprios semissímbolos. A questão da simbolização, no entanto, vai além do texto e invade o âmbito social, uma vez que a sociedade cria símbolos que são compartilhados: sabemos, por exemplo, que a pomba branca está relacionada à paz e ao espírito santo, o peixe e o pão ao cristianismo, a foice e o martelo ao comunismo etc. É nesse sentido que textos verbais e não-verbais, incluindo os gêneros musicais e melodias, podem construir símbolos e semissímbolos. a noções semânticas como morte, vida, prazer e dor - tais como o preto, o branco e o vermelho - a música será significada cognitivamente, pragmaticamente e ritmicamente por diferentes grupos sociais, construindo conotações relacionadas a ideologias praticadas ritualmente, ou à quebra delas.

A tipologia musical de Friederich Marpurg, por exemplo, elaborada no século 18, que relaciona a expressão musical (melodia) à emoção, revela como crenças e saberes sobre o sentido musical são socialmente compartilhados, definindo alguns estados de humor e emoções de acordo com ritmos específicos, progressões tonais e harmonias. Essa tipologia ainda é válida nos dias atuais e utilizada no cinema.

Quadro 1
Expressão acústica de estados emocionais de acordo com Friederich Marpurg (1718-1795)

Sonnenschein (2001)SONNENSCHEIN, D. Sound Design: the expressive power of music, voice, and sound effects in cinema. Studio City: Michael Wiese Productions, 2001. , que segue o mesmo caminho de classificação da música, lembra que a terapia musical soube utilizar os vários gêneros musicais para alterar a energia do ouvinte, e que mudanças físicas, mentais e emocionais podem também ser aplicadas aos elementos dramáticos do filme:

Quadro 2
Impacto físico, mental e emocional dos gêneros musicais

Os quadros acima nos mostram como a composição musical, suas melodias e gêneros, de um lado existem como uma espécie de saber popular difundido, independente de qualquer conhecimento mais aprofundado na área; de outro, como a expressão musical (segundo Marpurg), porta semas fundamentais tais como euforia / disforia, vida / morte, e natureza / cultura 5 5 Greimas e Courtés (2011) explicam que semas são unidades semânticas mínimas de sentido, comparáveis ao traço pertinente, ou distintivo, do plano fonológico da expressão, mas situados no plano do conteúdo. Euforia / disforia, por exemplo, seriam semas tímicos; vida / morte, semas relacionados ao universo individual; e natureza / cultura, ao universo coletivo. Como categorias mínimas de significação, o sema aponta para um universal semântico, ou seja, unidades mínimas de sentido presentes em todos os textos, em seu nível mais fundamental e abstrato, mas concretizadas no discurso de maneira diferenciada, a partir de sujeitos, espaços, tempos, temas e figuras (verbetes no Dicionário de semiótica: sema; universais). , e já demonstra conotações simbólicas. A simbolização musical parece estar ligada, no plano social, ao que Gorbman (1987)GORBMAN, C. Unheard Melodies: narrative film music. Bloomington: Indianapolis: Indiana University Press, 1987. denomina desprazer da incerteza da significação, pois a música pode apresentar valores conotativos intensamente codificados e motivados, gerando o mesmo efeito da legenda na fotografia, ou seja, complementando o texto visual, e auxiliando a interpretação da imagem, sugerindo leituras e prevenindo ambivalências no discurso; ou o oposto, criar ambivalências, contradições e duplos sentidos, oscilando entre o enunciado mais objetivo e mais subjetivo, o enunciado enunciado e a enunciação enunciada. A quebra da conotação simbólica compartilhada cria efeitos de descompasso e estranhamento entre imagem, som e a representação do mundo natural, interrompendo a “naturalidade” do sentido.

Mas se a utilização da música em filmes e seus efeitos retóricos já foram amplamente discutidos e parecem ser óbvios, e há décadas que filmes possuem trilhas sonoras musicais originais, a relação entre, de um lado a música não-original, e de outro, a adaptação, é menos discutida e estudada, e do ponto de vista semiótico, certamente esbarra em questões relacionadas à polissemia inerente ao signo, à bricolagem, e a uma espécie de “sincretismo implicativo ou motivado”, que permite que textos musicais estranhos à obra original, ao serem condensados a textos audiovisuais, emprestem à narrativa fílmica algumas de suas características narrativas semântico verbais e / ou musicais, que são de ordem simbólica e semissimbólica, para comporem uma ideia de sentido textual único veiculado pelo filme. Nesse sincretismo, que combina e condensa musicalidade e visualidade, e verte o sonoro em visual e o visual em sonoro, a música (original ou não) e a imagem, intercaladas e sobrepostas na duração linear do discurso fílmico, se retroalimentam semanticamente para gerarem sentidos: assim, um valor visual pode corresponder a um valor sonoro.

Em nossa análise, partiremos do pressuposto que, devido a essas dinâmicas intersemióticas de empréstimo de sentido, a adaptação / tradução audiovisual combinará três tipos de textos, a saber: o literário, o fílmico e o musical, buscando e motivando (ou quebrando) equivalências de sentido de percursos temáticos e figurativos 6 6 Segundo Fiorin (2011 , p. 96), os percursos temáticos e figurativos são um encadeamento, uma rede relacional de temas que são expressos em figuras, e figuras que suportam esses temas, que ocorre no texto. Um tema como liberdade, por exemplo, pode ser figurativizado de várias maneiras: pássaros voando, uma carta, um prisioneiro que olha para o vasto céu azul etc. Tais figuras serão encadeadas durante a narrativa. da obra original. Como tratamos de uma adaptação literária e de um filme que utiliza uma trilha não-original eclética, compondo uma mescla de gêneros musicais que se estende da música clássica ao punk rock , o que guiará a nossa análise, além da noção de gênero e de simbolismo musical, será a proposta de Pietroforte (2015)PIETROFORTE, A. V. S. A significação musical: um estudo semiótica da música instrumental erudita. São Paulo: Annablume, 2015. , que caracteriza o discurso musical em quatro regimes básicos de significação: o referencial, o oblíquo, o mitológico e o substancial, e relaciona-os ao mais ou menos musical, ou seja, além da música propriamente dita, ao texto verbal e a outras manifestações sonoras, incluindo a entonação e modulação da voz.

Como a trilha sonora de Paranoid Park é utilizada para adaptar um romance sobre um acidente traumático vivido e narrado por um adolescente que tenta, através da escrita e do relato, entender e minimizar o impacto do choque que sofre e suas consequências psicológicas, traremos para o bojo de nossa discussão a semiótica tensiva, e a noção de produção de sentido a partir de modos semióticos de eficiência, existência e junção. Tais modos estabelecem dois regimes básicos de significação, geradores de comportamentos discursivo-retóricos ligados à implicação e à concessão, e possibilitando o sujeito a estabelecer relações semiodiscursivas tensivas com o mundo. Como tais modos semióticos são relacionados a um sujeito que elabora o sentido como mais ou menos intenso, presente e compreensível, a semiótica tensiva, em nossa discussão, será especialmente importante para relacionar os gêneros musicais utilizados no filme à construção do espaço interior de um personagem que lembra, narra eventos traumáticos e aflições internas.

A partir dessas discussões sobre música, discurso e sentido, e antes da análise da trilha sonora propriamente dita, faremos um pequeno resumo do romance, discutiremos sua relação com a semiótica tensiva e a retórica do acontecimento , e apresentaremos a tipologia do discurso musical de Pietroforte, relacionando-a com algumas músicas e canções utilizadas no filme, e dinâmicas de tradução / adaptação de sentido.

1. Paranoid Park: resumo do romance

Paranoid Park é um romance do gênero infanto-juvenil ( teen novel ), cujo título pode ser traduzido livremente como Parque da Paranóia ou Parque Paranóico, e cuja narrativa mescla suspense psicológico e relato confessional, em uma história que pode ser vista como um rito de passagem, um momento de autoconhecimento e amadurecimento. Escrito na primeira pessoa do singular, o romance possui forma epistolar, sendo o relato de um jovem de dezesseis anos, Alex, a uma colega de escola, Macy, sobre um trágico evento no qual ele é diretamente relacionado: a morte de um homem, e as consequências desse evento em sua vida nos meses subsequentes. Alex, o narrador / protagonista, conta o seu infortúnio em sete cartas, a partir de um acidente fatal ocorrido em um pátio de trens localizado ao lado da pista de skate Paranoid Park , um local recém descoberto pelo adolescente, famoso por seus usuários e perigo: a pista fora construída ilegalmente pelos jovens carentes da comunidade norte-americana de Portland , em Oregon .

Alex explica que uma crise familiar, a separação dos pais, afasta-o de casa, de modo que ele conhece Jared, um estudante mais velho que o ensina a praticar skate pela cidade e o leva à Paranoid Park . Excitado com o espaço transgressor, Alex planeja voltar ao local com o amigo no final de semana, à noite, mas o amigo cancela o compromisso por causa de uma aventura sexual. Alex decide ir ao local sozinho e lá conhece Scratch, um jovem morador de rua, que o convida a invadir o pátio de trens. O protagonista segue o desconhecido, e a ingênua e excitante aventura transforma-se em tragédia: ao subirem no comboio que passa, os dois jovens são perseguidos por um segurança, que começa a agredi-los para expulsá-los do local. Alex, em um gesto de autodefesa e proteção do novo colega, atinge várias vezes o segurança com seu skate . Tentando se defender do ataque, o segurança perde o equilíbrio e cai nos trilhos da ferrovia, sendo atropelado e morto. Os jovens fogem do local, seguindo caminhos diferentes e não mais se encontrando. O protagonista, assustado, arremessa o seu skate , sujo de sangue, no rio, próximo ao local do acidente, e se esconde na casa de Jared, que naquele fim de semana estava vazia.

Alex relata que no dia seguinte volta para a casa e tenta retomar a sua rotina de estudante, guardando o segredo do evento, que aparentemente não tem testemunhas. No entanto, amedrontado com a possibilidade de ser descoberto e preso, ele tenta fingir normalidade e viver a sua rotina. Dividido entre o dilema de confessar e ser preso, ou continuar sua vida normalmente, Alex não consegue se abrir com ninguém ou afastar a angústia que o domina: ele mente à polícia (que acha o seu skate perto do local do crime), aos pais e amigos, tornando-se paranoico e arredio, um jovem integrado em uma vida que parece perdida. Macy, uma de suas colegas de escola e vizinha, percebe a mudança de comportamento do amigo, aconselhando-o a escrever o que o aflige.

Durante as férias escolares, e depois de perceber que o crime é arquivado pela polícia, que não resolve o caso, o adolescente, mais calmo, narra rapidamente os motivos de seu comportamento e preocupações à amiga, contando sobre o acidente e suas terríveis consequências. O choque do evento, ainda presente na memória, o medo de ser descoberto e preso, e a angústia causada pelo peso do terrível segredo, fazem o narrador abordar vários assuntos em suas cartas, tais como a família, os amigos, o amor, a vida, Deus, a escola, e o mundo dos adultos. No final da última carta, porém, mais tranquilo e aliviado, o jovem agradece à interlocutora pela amizade e preocupação, e confessa que a ama. Alex não envia as cartas a Macy, e depois de escrevê-las, diz que vai queimá-las.

2. Paranoid Park: a retórica do acontecimento e o espaço interior

Claude Zilberberg (2007)ZILBERBERG, C. Louvando o acontecimento. Revista Galáxia , São Paulo, n. 13, p. 13-28, jun. 2007. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/3996/399641239002.pdf . Acesso em: 05 nov 2021.
https://www.redalyc.org/pdf/3996/3996412...
, a partir de uma visão semiotensiva da produção de sentido, insere o sujeito sensível na produção de significação, e propõe o discurso orientado por duas grandes forças que traduzem, ou constroem, o que pode ser entendido como exercício , termo relacionado à continuidade e ao esperado, ou à rotina ; e o acontecimento, termo relacionado à fratura, ou ao inesperado . O acontecimento e exercício , o impacto do inesperado ou do surpreendente, e do já sabido, pressuposto, ou esperado, apesar de serem questões filosóficas e psicológicas, existem também cifrados em todos os níveis textuais, verbais e não verbais: nas entonações e pausas, nas conjunções conclusivas e adversativas, nas exclamações, interjeições e gestos inesperados, nas retóricas mais hiperbólicas e sinestésicas, nas cores e formas etc.

Segundo Zilberberg, a partir da ideia de precipitação de sentido e de inesperado, o acontecimento suscita modos de eficiência, existência e junção do sujeito discursivo sensível, que apontam para correlatos contrários e complementares na produção de sentido: o modo de eficiência, que designa a maneira pela qual uma grandeza se instala no campo de presença do sujeito, é caracterizado pela tensão entre o sobrevir e o conseguir ; o de existência, que designa como o sujeito existe em relação ao mundo do sentido, mais focalizado e ativo, ou apreendido e passivo, é caracterizado pela tensão entre focalização e apreensão ; e o modo de junção, que corresponde à “condição de coesão pela qual um dado, sistemático ou não, é afirmado” ( ZILBERBERG, 2007ZILBERBERG, C. Louvando o acontecimento. Revista Galáxia , São Paulo, n. 13, p. 13-28, jun. 2007. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/3996/399641239002.pdf . Acesso em: 05 nov 2021.
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, p. 23), é caracterizado pela tensão entre o acontecimento, construído no discurso concessivo, e a rotina, construída no discurso implicativo. Assim, do ponto de vista textual discursivo o conseguir , a focalização e a rotina são de natureza implicativa, enquanto o sobrevir , a apreensão , e o acontecimento de natureza concessiva.

Nos modos sobrevir, apreensão e acontecimento , a significação impõe-se subitamente, sendo da ordem da exceção, e produz o efeito do impacto, de modo que o sentido é menos esperado do que apreendido. Como o excesso de sentido do acontecimento produz o sobrevir , o sujeito enquanto apreende é apreendido, pois “apreender um acontecimento , um sobrevir é, antes de tudo, e talvez principalmente, ser apreendido pelo sobrevir” ( ZILBERBERG, 2007ZILBERBERG, C. Louvando o acontecimento. Revista Galáxia , São Paulo, n. 13, p. 13-28, jun. 2007. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/3996/399641239002.pdf . Acesso em: 05 nov 2021.
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, p. 23). Nesse sentido, a apreensão pode ser relacionada ao sofrer. Nos modos conseguir, focalização e rotina o sentido configura-se progressivamente e linearmente, correspondendo às expectativas do sujeito, suas intenções, crenças e saberes compartilhados, de modo que o sujeito, ao conseguir , precisa ser apto e capaz. Se no conseguir o sujeito é focado, ou exerce a focalização , pode-se concluir que no sobrevir ele é “desfocado”, sendo jogado em uma realidade “surpreendente”, um mundo epifânico que pode ser relacionado à contemplação do maravilhoso ou do terrível, e à perda momentânea da noção de subjetividade, espacialidade e temporalidade 7 7 Segundo Greimas (2002 , p.45), em seu livro Da Impefeição , que tenta dar conta do discurso sensível, “o irrompimento de um acontecimento extraordinário tem o poder de deixar o sujeito exposto e vulnerável aos encantos do objeto”. .

Cada modo apresentará sua morfossintaxe tensiva: uma sintaxe intensiva de aumentos e / ou de diminuições da tensão, para o modo de eficiência, fazendo emergir o sobrevir ou o conseguir , conforme a variação tensiva atualizada pelo andamento e pela tonicidade; uma sintaxe extensiva de triagens e / ou misturas de grandezas percebidas, para o modo de existência, convocando o sujeito, por meio da focalização ou da apreensão , segundo a variação tensiva atualizada pela espacialidade e pela temporalidade; e uma sintaxe juntiva de concessões ou implicações para o modo de junção, própria à lógica que determina a constituição do campo de presença, da interação perceptiva. Na sintaxe juntiva implicativa há uma causa e uma consequência (se a então b); na concessiva, mesmo sem elos implicativos e casuais causados pelo acontecimento , a concessão opera uma junção resistente (apesar de a, não b). De maneira geral, a semiótica tensiva acredita que esses modos semióticos básicos se relacionam de várias maneiras, podendo ser mais intensos ou extensos, tônicos ou átonos, triados ou mesclados, ameaçando a estabilidade ou desestabilidade do outro. Partindo da lógica tensiva, o acontecimento e a rotina podem ser eufóricos ou disfóricos, introduzindo o sujeito em diferentes tipos de realidade, que podem ir do acontecimento maravilhoso ao traumático, ou da rotina esperada e desejada à rotina monótona e frustrante. Assim:

Quadro 3
Modos e estilos tensivos

A partir da semiótica tensiva, entendemos Paranoid Park , um romance epistolar sobre o amadurecimento de um jovem relacionado à morte de um homem e ao relato de um trauma, como um discurso modalizado pela retórica do acontecimento , que constrói pelo discurso um sincretismo existencial articulado pelo modo de eficiência sobrevir , o modo de existência apreensão , e o modo de junção acontecimento , que descrevem a inserção do personagem em uma nova realidade, intensa, disfórica, traumática, organizando uma sintaxe concessiva, presente tanto no romance como no filme. Após o acidente fatal, o personagem torna-se introspectivo e monossilábico, perdido em pensamentos sobre a vida e a existência, tentando entender restrospectivamente o acontecimento , e perdendo momentaneamente o poder de focalização 9 9 Zilberberg (2007 , p. 22) entende que: “O caso da apreensão não deixa de se assemelhar ao da focalização, pois designa o estado do sujeito de estado ‘às voltas com’ o sobrevir , em ‘admiração’ cartesiana, em poucas palavras, o estado do sujeito inicialmente espantado, impressionado, depois, dali em diante, marcado pelo ‘que lhe aconteceu’, estado que corresponde à potencialização, à formação desse mistério: o sobrevir” . , que só se inicia quando o jovem começa a escrever. O acidente no pátio de trens faz Alex mergulhar em um mundo interior e secreto, de medos e ansiedades, e no qual crenças e saberes são incertos. Vivendo uma existência concessiva e uma sensação afetiva desconcertante, uma parada da rotina cotidiana, o jovem experimenta uma existência concessiva, entre estar morto e vivo, livre e preso, parte inocente e parte culpado, e apesar de ter participado diretamente na morte um homem, não é descoberto pela polícia. A palavra “paranoia”, que dá nome à pista de skate e ao romance, explicita o modo semiotensivo /+sobrevir/, /+apreensão/ e /+acontecimento/: significa turvamento da razão e loucura, sendo usada também como um termo psiquiátrico que engloba as formas crônicas de delírios de relação, ciúmes e perseguição, e a chamada esquizofrenia paranoide, relacionada a problemas psíquicos que se manifestam na forma de um delírio sistematizado 10 10 Disponível em: https://www.dicio.com.br/paranoia-2/ . Acesso em: 15 jul. 2022. .

Em Paranoid Park , a junção com a realidade, marcada pelo acontecimento, insere o sujeito em uma espécie de estupor, ou “sideração”, causando dúvidas sobre a objetividade do tempo e do espaço, e criando a sensação de transe. Angustiado, Alex tenta compreender o sobrevir que o assola; seu pânico é tão intenso, que ao ir para a casa do amigo, depois do incidente, tem alucinações, imaginando que está enlouquecendo. Escondido na casa de Jared, o adolescente reza e chora descontroladamente até adormecer, em meio a pesadelos. No dia seguinte ao incidente, o jovem descreve-se como um “zumbi”, incapaz de controlar o próprio corpo, e confessa que essa sensação perdura fortemente pelos dez primeiros dias após o evento trágico: o jovem tem a impressão de que tal sensação será eterna, ou seja, intensa e durativa. Em sua penúltima carta, a do dia 8 de janeiro, e após quase quatro meses após o evento, o protagonista descreve-se como “catatônico”. A palavra “zumbi”, além de seu significado mais popular, que é “morto-vivo”, possui, também, outros sentidos relacionados à morte, tais como “alma que vagueia a horas mortas, e fantasma de animal morto” 11 11 Disponível em: https://www.dicio.com.br/zumbi/ . Acesso em: 15 jul. 2022. . Da mesma maneira o termo “catatônico”, utilizado em psicopatologia, alude à forma de esquizofrenia que apresenta uma alternância entre períodos de passividade e de negativismo e períodos de súbita excitação 12 12 Disponível em: https://www.dicio.com.br/catatonia/ . Acesso em: 15 jul. 2022. . Alex explica que não se sente feliz, nem triste, apenas doente: é a eficiência do modo sobrevir que precisa ser minimizada e atonizada, e transformada em conseguir .

Conduzido passivamente pela rotina amortecida pelo choque do acontecimento , Alex é mergulhado em um mundo epifânico , que é marcado no texto: após a noite do incidente terrível, o jovem se sente em um sonho do qual não consegue acordar. Segundo Tatit (2010)TATIT, L. Semiótica à luz de Guimarães Rosa . São Paulo: Ateliê Editorial, 2010. , que usa o termo a partir da semiótica discursiva, a efemeridade dos sinais epifânicos deve-se à simultaneidade, no imaginário do sujeito, de dois percursos narrativos: o do cotidiano , que tende à superação dos limites impostos por forças antagônicas e, portanto, à evolução ininterrupta; e o do epifânico , que representa um intervalo, uma duração sem limites internos, sendo intenso e tendo alta densidade de presença para o sujeito. Preso entre um mundo cotidiano adolescente e sua dinâmica fragmentada e eufórica do dia a dia, e o mundo epifânico e sua dinâmica contínua e disfórica, o ator vive ambos, a duração do sobrevir gerado pelo acontecimento, e a urgência de sua finalização. Enquanto leva uma rotina secreta e apavorante, Alex tem constantes pesadelos, sofre com as notícias da morte do vigia na mídia, não consegue se relacionar com as pessoas, torna-se um aluno disperso e fraco, e pensa em fugir de casa e do país.

A partir dessa narrativa modalizada pelo modo-junção acontecimento , pelo modo-existência apreensão e pelo modo-eficiência sobrevir , veremos como a trilha sonora musical, que contém diferentes tipos de canções e músicas, é utilizada na figurativização de percursos narrativos e temáticos do protagonista, auxiliando a construção do espaço interior e do mundo epifânico de um personagem “siderado” que vive o sensível do sobrevir .

3. Paranoid Park e o discurso musical referencial e oblíquo 13 13 Boa parte da trilha sonora do filme pode ser ouvida na plataforma Y ouTube:https://www.youtube.com/watch?v=hiJ068QT6os&list=PLBkXWjf0sMS5FAkC1nkyBTm5Vl8myXvgd . Acesso em: 23 jun. 2022.

Segundo Pietroforte (2015)PIETROFORTE, A. V. S. A significação musical: um estudo semiótica da música instrumental erudita. São Paulo: Annablume, 2015. , o discurso musical pode ser classificado, semiodiscursivamente, em quatro tipos: o referencial, o oblíquo, o mítico e o substancial. Os que mais nos interessam para a discussão são os dois primeiros. O discurso referencial é relacionado, ou ancorado, ao discurso verbal, de pelo menos duas maneiras: o que se conhece por “letra”, que pode ser mais “falada” ou “cantada” (e a voz entra em consonância com o plano de expressão musical, composto de altura, andamento, duração e timbre), e os títulos verbais das composições e de seus trechos, que podem fazer referência aos vários aspectos do mundo natural. Desse modo, o título verbal assume uma função narrativa, propondo percursos temáticos e figurativos subordinados a esquemas narrativos. O discurso oblíquo, por sua vez, é relacionado ao mundo das coisas, criado pelo discurso referencial desestabilizado e estranho, a partir de uma problematização e de uma tensão entre a referência sonora e a linguagem musical, como ocorre na música concreta, ou nas composições instrumentais mescladas a sons do mundo natural. Desse modo, pode-se afirmar que a tematização referencial das coisas do mundo é negada pela tematização musical, que transforma os sons do mundo em música, gerando uma obliquidade na referencialização “que encaminha, além da percepção de sons referentes à coisa, a percepção musical” ( PIETROFORTE, 2015PIETROFORTE, A. V. S. A significação musical: um estudo semiótica da música instrumental erudita. São Paulo: Annablume, 2015. , p. 62) 14 14 No discurso musical mítico, qualquer tipo de referência ao mudo natural é abandonado, e a música fala apenas de si própria, volta-se a si mesma, torna-se pura, assumindo não mais uma função referencial, mas construtiva, ou autorreferencial: podemos pensar no jazz, por exemplo. No discurso musical substancial, aponta-se para a cena na qual se dá a enunciação musical pressuposta, a cena enunciativa, cujos coenunciadores são, grosso modo, os músicos e os ouvintes, e no qual o enunciado musical se manifesta em tempos e em espaços específicos, no rito de execução musical. . Tais regimes discursivos, a partir da semiótica tensiva, podem também ser entendidos como práticas semióticas articuladas dentro de eixos sintáticos de ascendências e descendências, triagens e misturas, concessões e implicações. É a partir do discurso referencial e do discurso oblíquo que analisamos partes da trilha musical de Paranoid Park , que possui uma compilação eclética de gêneros musicais, e observamos como elas contribuem para a tradução do sentido do texto literário modalizado pelo acontecimento concessivo.

A trilha sonora de Paranoid Park contêm músicas e canções não-originais de diversos gêneros, utilizados no texto fílmico para adaptar conteúdos do texto literário, relacionados principalmente aos estados emocionais e sensíveis do narrador-protagonista: a trilha musical instrumental de outros filmes (Nino Rota e os filmes de Fellini), o Blues (instrumental), o Indie Rock / Folk (canção), o rock experimental / progressivo / techno (canção), a música country (canção), o Hip-Hop (canção), a música instrumental eletrônica / eletroacústica (instrumental / paisagens sonoras), a música clássica e o Punk Rock (canção). Relacionando a tipologia musical de Pietroforte, classificaremos de discurso musical referencial todas as canções que têm letra, incluindo a sinfonia coral de Beethoven, cujo quarto movimento é intitulado “Ode à Alegria”, e também possui um texto verbal executado por um coro; e de discurso musical oblíquo todas as composições eletroacústicas com sons do mundo natural. Nesse caso, como se trata da estranheza da obliquidade, identifica-se uma oscilação entre o regime referencial e o mítico (construtivo, ou autorreferencial) 15 15 Dentro das composições eletroacústicas, pode-se deduzir também o discurso musical mitológico (construtivo), que seriam as composições sem os sons do mundo natural, e apenas executadas como uma coleção de timbres e alturas que pulsam. No entanto, como esse tipo de composição é longa, é possível que obras tenham sido editadas, ou mesmo superpostas. Assim, em nossa discussão, e apenas com acesso parcial às obras musicais, consideraremos todas as composições eletroacústicas como oblíquas, ou a obliquidade como seu traço mais importante. Da mesma maneira, supõe-se que em relação às músicas e canções executadas no filme e ouvidas pelo público espectador, todo filme, ao executar uma trilha sonora destinado a um enunciatário, existe em uma cena enunciativa que faz diferença na interpretação do sentido do texto. O discurso musical mitológico e o discurso musical substancial não são tratados nesse texto. que não discutiremos aqui. Em relação aos discursos referenciais, faremos uma tradução literal dos textos verbais de cada canção.

A1. O discurso musical referencial: as canções Angeles e The White Lady loves you more (Elliot Smith; gênero: indie rock / folk )

Essas duas canções serão tratadas conjuntamente por serem composições do mesmo artista e possuírem características similares: são extremamente melodiosas e melancólicas, e cantadas de maneira tímida e sussurrada, ao estilo do autor. Scaruffi (1999)SCARUFFI. P. Elliot Smith . 1999. Disponível em: https://www.scaruffi.com/vol5/smith.html . Acesso em: 16 maio 2021.
https://www.scaruffi.com/vol5/smith.html...
e Calvert (2010)CALVERT, J. Elliott Smith: an introduction to... The Quietus, 2010. Disponível em: http://thequietus.com/articles/05286-elliott-smith-an-introduction-to-review . Acesso em: 16 maio 2021.
http://thequietus.com/articles/05286-ell...
explicam que os personagens de Smith são desajustados consumidos por uma paixão que pode ser literal, álcool ou drogas, ou metafóricas, e cujas vidas parecem estar em estados degenerativos. Em Angeles , canção que pode ser interpretada como a representação de uma barganha faustiana aceita por músicos cooptados por grandes gravadoras, que trocam o seu talento por dinheiro ( YALCINKAIA, 2015YALCINKAIA, G. Celebrating Elliott Smith: his five most significant tracks . Crack, 2015. Disponível em: https://crackmagazine.net/article/lists/celebratingelliottsmith/ . Acesso em: 16 maio 2021.
https://crackmagazine.net/article/lists/...
), o que nos interessa é justamente, além da voz rouca, que expressa sofrimento e fraqueza e melancolia, o tema de um mundo disfórico e dominado pelo mal, no qual o homem luta pela sobrevivência e dinheiro, em uma vida sem promessas de redenção. A letra é a seguinte 16 16 A tradução de todas as letras é nossa. :

Angeles Someone’s always coming around here, trailing some new kill Says: “I’ve seen your picture on a hundred dollar bill” And what’s a game of chance to you, to him is one of real skill So glad to meet you, Angeles Picking up the ticket shows, there’s money to be made Go on and lose the gamble, that’s the history of the trade And you add up all the cards left to play to zero And sign up with evil, Angeles Don’t start me trying now ‘Cos I’m all over it, Angeles I can make you satisfied in everything you do All your secret wishes could right now be coming true And be forever with my poison arms around you No one’s gonna fool around with us No one’s gonna fool around with us So glad to meet you, Angeles Alguém está sempre aparecendo por aqui, rastreando uma nova presa Diz: “Vi seu rosto em uma nota de cem dólares” E o que é um jogo de azar para você, para ele é uma rara habilidade Tão feliz de te encontrar, Angeles Pagando os ingressos do show, Há dinheiro para ser feito Vá em frente e perca a aposta, esta é a história do negócio E você soma todas as cartas restantes para jogar a zero E faz um pacto com o diabo, Angeles Não comece a me julgar agora Pois superei isso, Angeles Eu posso te deixar satisfeito em tudo o que você faz Todos os seus desejos secretos poderiam tornar-se reais agora mesmo E estar sempre te abraçando como os meus braços envenenados Ninguém vai nos fazer de bobos Ninguém vai nos fazer de bobos Tão feliz de te encontrar, Angeles

A canção é utilizada nos momentos finais do filme, quando o jovem protagonista escreve a última carta e a queima na praia 17 17 Essa cena não existe no romance, no qual o jovem apenas diz que vai buscar fósforos. , acabando com o peso do segredo que o atormenta, e marca o início da volta à uma vida normal, ao exercício . De um lado, a canção delimita não apenas o final do sobrevir , mas também o amadurecimento do personagem, um novo entendimento sobre a vida, ou seja, a mudança de regime discursivo da apreensão para a focalização . Ao viver com a memória da imagem de um homem cortado ao meio, e de cuja morte entende como acidental, e mentir para todos para não se prejudicar e nem perder os prazeres da liberdade Alex, de certa maneira, justifica e minimiza o seu ato, e aprende o lado maligno e violento da sobrevivência. No romance, ele confessa o medo de perder sua vida de adolescente e os prazeres que sua classe social permite, e sabe a importância da liberdade para o futuro. Assim, mentindo e negando a sua culpa no ato, Alex protege o seu status quo , que é um forte destinador, e faz o jovem manter segredo sobre o seu envolvimento na morte do segurança.

Figura 1
A canção Angeles e final do sobrevir (volta à rotina desejada e focalização)

Na canção The While Lady loves you more , que pode ser descrita como uma balada romântica, há a figura central da Dama Branca, que apesar de ser originalmente relacionada à cocaína, à heroína ou outras drogas, é euforizada e personalizada, possuindo traços espirituais, maternos e eróticos 19 19 Camus (2013, t , tradução nossa) explica que “com uma melodia triste e melancólica e um título que mais uma vez faz referência ao vício e a uma figura sagrada, a música é solene e tem uma letra angustiada”. . The White Lady inicia-se após a entrevista com o detetive, que encontra um skate perto da cena do crime, e colhe o depoimento dos jovens skatistas da comunidade. O enunciador relaciona maior parte da canção a cenas de jovens na rua com seus skates , que mesclam ideias contraditórias de abandono e contravenção social. A tradução da canção é a seguinte:

The White Lady loves you more Keep your things in a place meant to hide But I know they’re there somewhere And I know that’s where you’ll go tonight I’ll be thrown over just like before The White Lady loves you more Need a metal man just to pick up your feet It’s a long time since you cared enough for me to even be discrete I know what this metal is for The White Lady loves you more I’m looking at a hand full of broken plans And I’m tired of playing it down You just want her to do anything for you There ain’t nothing she won’t allow You wake up in the middle of the night From a dream you won’t remember flashing on like a cop’s light You say “she’s waiting” and I know what for The White Lady loves you more Deixe as suas coisas em um esconderijo planejado Mas sei que estão lá, em algum lugar E eu sei que é para lá que você irá à noite Ficarei jogado como antes A Dama Branca te ama mais Precisa de um homem de ferro só para te erguer Há tempos você não se importa comigo, e nem mesmo finge Eu sei para o que é esse metal A Dama Branca te ama mais Estou olhando para uma mão cheia de sonhos estilhaçados E cansado de ignorar Você só quer que ela faça qualquer coisa por você Não há nada que ela não permita Você acorda no meio da noite De um sonho do qual não mais se lembra brilhando como a sirene da polícia Você diz “ela está me esperando” e eu sei para que A Dama Branca te ama mais

A canção é tocada inteiramente, e o filme parece trabalhar, intertextualmente, a linguagem do videoclipe ou do filme indie / amador . A letra da canção menciona um local secreto, um esconderijo e, portanto, um local de proteção e encontro com a Dama Branca que, relacionada aos jovens skatistas na rua, constrói traços semânticos de figura materna e protetora, e anjo protetor de uma juventude perdida em uma sociedade autoritária (algumas cenas mostram a polícia interpelando os adolescentes: um jovem negro segura o que parece ser uma multa, para a câmera); ao mesmo tempo, sendo uma canção calma e sussurrada e portando traços semânticos de cantiga de ninar, ela torna-se símbolo de paz e inocência.

Na sequência visual em que a música toca, as imagens dos jovens são desbotadas, granuladas e com enquadramento fluido, como se feitas por uma câmera segurada na mão (Super 8 ou vídeo). De um lado, o ator da enunciação Gus Van Sant estabelece uma ligação com um artista igualmente independente, um cantor não apenas jovem e com estilo próprio, mas morto na juventude; de outro, a relação entre a canção indie rock e a imagem indie (ou seja, com traços e estilos de filme independente) projeta semas como liberdade, independência e cultura fora de padrões impostos: assim, na relação música e imagem são construídos temas e figuras relacionados à proteção materna e à inocência, e igualmente à rebeldia e à vida alternativa em comunidade, temas abordados pelo personagem ou relacionados à sua existência:

Figura 2
Abandono, proteção e liberdade em The white lady loves you more

A2. O discurso musical referencial: Ode à Alegria (Ludwig Van Beethoven; gênero: música clássica).

O trecho do quarto movimento com coral é utilizado na cena que denominamos acontecimento , cujo impacto vai modificar o tipo de junção do personagem com o seu mundo, e colocado no filme no momento em que, depois de invadirem o pátio de manobras ao lado da pista de skate , Alex e o colega sobem em um trem que passa. A música, que começa baixa e ainda apenas instrumental, vai ter o seu volume gradualmente aumentado (do menos para o mais) até o momento em que o protagonista vê o corpo do segurança cortado ao meio, que é o clímax da sequência e do filme.

Apesar de não ser uma canção, a última sinfonia escrita por Beethoven possui um coral de vozes masculinas e femininas que canta uma poesia de Schiller, alterada levemente pelo compositor alemão. De maneira geral, a sinfonia é extremamente complexa tanto em sua expressão como conteúdo, e relaciona-se intertextualmente a outros gêneros. Segundo Buch (2001BUCH, E. Música e Política: a Nona de Beethoven. Tradução Maria Elena Ortiz Assumpção. Bauru, São Paulo: Edusc, 2001. , p. 9), nessa obra de Beethoven a expansão da forma sinfônica encontra-se aliada a uma verdadeira retórica dos gêneros musicais que evoca o universo militar e o religioso, dos quais emerge o hino, sagrado ou profano, “pelo qual os homens celebram o fato de estar juntos” ( BUCH, 2001BUCH, E. Música e Política: a Nona de Beethoven. Tradução Maria Elena Ortiz Assumpção. Bauru, São Paulo: Edusc, 2001. , p. 9). A partir de ideal tão grandioso e abstrato, relacionado à irmandade e à celebração da comunidade, Beethoven cria um texto musical sincrético que acolhe o canto, a poesia, o hino, a música folclórica, a marcha, a fanfarra, a música turca, o oratório etc, e que se torna “a mais convincente das imagens sonoras sobre a utopia” ( BUCH, 2001BUCH, E. Música e Política: a Nona de Beethoven. Tradução Maria Elena Ortiz Assumpção. Bauru, São Paulo: Edusc, 2001. , p.12).

Segundo Cook (1993)COOK, N. Beethoven: Symphony n 9. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. (Cambridge Music Handbooks). , essa sinfonia proclama as ideias de irmandade universal e alegria (compatíveis com os valores da época), mas ao mesmo tempo joga um véu de dúvida sobre elas, enviando mensagens incompatíveis e resistindo a uma interpretação definitiva. Em nosso caso, e apesar do tom celebratório e festivo do quarto movimento, é interessante observar que o enunciador do filme não utiliza o trecho mais conhecido da música coral, executado em outros filmes, mas a sua segunda parte, muito mais lenta e lúgubre e baseada em tons mais graves e escuros. Trata-se do gênero oratório, que traz a seguinte estrofe:

Ihr stürtzt nieder, Millionen? Ahnest du den Schöpfer, Welt? Such ihn übern Sternenzelt! Über Sternen muss er wohnen. Milhões, vocês estão ajoelhados diante d’Ele? Mundo, você percebe o criador? Procure-o mais acima do céu estrelado! Sobre as estrelas, onde ele mora. 20

Não é difícil imaginar como, a partir de uma música tão grandiosa, a Nona Sinfonia redimensiona o tempo e o espaço da narrativa, intensificando o impacto da cena, e emprestando à cena do acontecimento conotações míticas, religiosas e trágicas, sustentando a figuração do choque e a instalação do sobrevir , e conotando o espetacular e o surpreendente, mas também a presença divina, temas igualmente presentes no romance. Através dessa música romântica, o acontecimento ganha mais dimensão e profundidade, tornando-se palpável e concreto, infundindo nas imagens a ideia de medo e terror, paixões que Alex experimenta no romance ao ver o corpo do vigia cortado ao meio. No filme, a cena em que o segurança moribundo e o jovem entreolham-se, é acompanhada pela parte mais intensa e escura da sinfonia cantada.

A composição de Beethoven empresta à cena a própria grandiosidade do trágico e define, de um lado, a própria estesia do herói, a estesia da violação do tabu do assassinato, ligado ao acontecimento ; de outro, busca o efeito de catarse, através de um trecho musical marcado pela duração da intensidade. No ápice do quarto movimento, que corresponde ao momento em que Alex vê o corpo do homem morto, há uma série de estratégias narrativas (diegéticas) que acompanham a impetuosidade do texto musical, como a utilização de close-ups , um plano também relacionado à intensidade ( BORDWELL; THOMPSON, 2013BORDWELL, D.; THOMPSON, K. A arte no cinema: uma introdução. Trad. Roberta Gregoli. São Paulo: Ed. da Unicamp; Edusp, 2013. ), que mostram: o rosto e os sentimentos de choque do personagem tanto no passado da lembrança, como no presente da escrita, na praia; o rosto do segurança moribundo e indefeso; e o rosto do policial, que se torna uma figura paterna no romance.

Outra estratégia visual utilizada com a sinfonia, é um plano de conjunto do corpo do segurança cortado ao meio, que denominamos, a partir de Zilberberg (2011)ZILBERBERG, C. Elementos de semiótica tensiva . Trad. Ivã Carlos Lopes, Luiz Tatit e Waldir Beividas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2011.imagem-acontecimento , pois é relacionada ao choque extremo proposto pelo texto audiovisual, à imagem / cicatriz indelével descrita pelo jovem no romance, e também metáfora do herói, do desafio e do enfrentamento do mundo adulto, representado pelo segurança vencido e seu corpo brutalmente decepado:

Figura 3
O acontecimento relacionado ao momento intenso e lúgubre do quarto movimento com coral

B. O discurso musical oblíquo: Song One; Song Two; Song Three; La chambre blanche; Walk through resonant landscape 2, Dedan, Dehors (gênero: eletroacústico com paisagem sonora).

Além da canção e da música clássica, o filme reúne uma série de composições eletroacústicas mescladas a paisagens sonoras, que podem ser classificadas como oblíquas, uma vez que sons culturais diversos são inseridos nessas obras, tais como vozes humanas, sons de animais e da natureza. Uma rápida inspeção dos títulos das composições já revela o seu estatuto de /menos referencial/, pois eles fazem pouca referência ao mundo real e trazem pouca, ou nenhuma, aderência a qualquer sujeito, tempo ou espaço. Assim, relacionados a sons e a ressonâncias, ou indicações genéricas como canção “1, 2, e 3”, “o quarto branco” ou “dentro e fora”, os próprios títulos buscam uma identidade diferenciada que foge de referências convencionais e revela um estatuto igualmente mitológico e autorreferencial.

No cinema, as paisagens sonoras, sendo menos da ordem da música do que dos “efeitos sonoros”, geram conscientização do espaço sônico e criam profundidade na imagem, adicionando-lhe outras camadas de sentido e construindo polissemias. Em termos semiodiscursivos, esses tipos de composição, aproximadas à música concreta, oscilam entre o não musical e o musical, apoiando-se na negação e na neutralidade dos eixos natureza vs. cultura. Katharine Norman 21 21 NORMAN, K. Real-World Music as Composed Listening. Contemporary Music Review, Abingdon, v.15, n.1–2, p.1–27, 1996. refere-se a esse tipo de composição como “música do mundo real [...] forma que se baseia no equilíbrio entre o naturalismo dos ambientes gravados que compõem os blocos de composição e sua mediação através de tecnologias de gravação e transmissão eletroacústica” (NORMAN, 1996 apudJORDAN, 2012JORDAN, R. The Ecology of Listening while Looking in the Cinema: Reflective audioviewing in Gus Van Sant’s Elephant. Organised Sound, Cambridge, v.17, p. 248-256, 2012. , p. 249) 22 22 Todas as traduções de Jordan são nossas. .

Norman acredita que a estratégia de montagem da paisagem sonora se dá pelo desejo de mimetizar o trabalho da imaginação para que, através de uma escuta imaginativa do que é ‘imanente no real’, possa-se descobrir o que é imanente no sujeito. Dessa forma, o objetivo desse gênero seria o de redescobrir o mundo a partir da construção de um limite que separa a experiência interna do mundo externo. Ao trabalhar nessa fronteira, tais composições são capazes de reconstruir a subjetividade imersa no espaço e no tempo. Truax 23 23 TRUAX, B. Acoustic Communication. 2nd ed. Westport, CT: Alex Publishing, 2001. , por sua vez, entende que o gênero tem como premissa uma dialética entre o real e o imaginário, assim como entre o concreto e o abstrato (TRUAX, 2001 apudJORDAN, 2012JORDAN, R. The Ecology of Listening while Looking in the Cinema: Reflective audioviewing in Gus Van Sant’s Elephant. Organised Sound, Cambridge, v.17, p. 248-256, 2012. ).

Tais epítetos e observações apontam para a discussão de uma fenomenologia sonora que envolve um corpo receptor vibrátil, e questões de construção e desconstrução da natureza dos sons, que podem ser entendidas, pela semiótica, como operações discursivas mais ou menos figurativas / abstratas do mundo natural sonoro. As composições eletroacústicas, por sua vez, dentro das quais as paisagens sonoras são adicionadas, evadindo qualquer forma de representação referencial, contribuem com o sentido do texto de outra maneira: existindo como timbres, frequências e pulsações contínuas que constroem a impressão de uma duração temporal subjetiva.

Segundo Jordan (2007)JORDAN, R. The Work of Hildegard Westerkamp in the Films of Gus Van Sant: An Interview with the Soundscape Composer (and some added thoughts of my own). Offscreen, Quebec, v.11, n.8-9, p. 1-17, aug./sept. 2007. Disponível em: https://offscreen.com/view/jordan_westerkamp . Acesso em: 17 out. 2021.
https://offscreen.com/view/jordan_wester...
, Van Sant cria filmes baseados na desarticulação de relações convencionais entre som e imagem cinematográfica para explorar o ambiente cultural de uma juventude também desarticulada e que sofre todo o tipo de privação. Enquanto o som de um filme geralmente contextualiza os ambientes apresentados na tela, a trilha sonora eletroacústica de Paranoid Park inverte essa relação, “pois o que se ouve muitas vezes se torna uma superfície que frustra a compreensão coerente dos espaços apresentados na imagem” ( JORDAN, 2007JORDAN, R. The Work of Hildegard Westerkamp in the Films of Gus Van Sant: An Interview with the Soundscape Composer (and some added thoughts of my own). Offscreen, Quebec, v.11, n.8-9, p. 1-17, aug./sept. 2007. Disponível em: https://offscreen.com/view/jordan_westerkamp . Acesso em: 17 out. 2021.
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, p. 1), de modo que continuidades espaçotemporais são desfeitas, o que realça cada plano e suas audiovisualidades, transformadas em elementos abstratos, expressivos e consequentemente estésicos e sinestésicos. As sonoridades eletroacústicas produzem no filme uma tensão entre enunciação enunciada, e enunciado enunciado, propondo novos sentidos criados a partir de uma “escuta reflexiva e atenta”, uma vez que o mundo mostrado torna-se diferente do mundo ouvido.

Por se tratarem de obras que evadem o ritmo, a melodia, a harmonia e o tom, eliminando a ideia de ritmo e andamento, tais composições sugerem profundidade, interioridade e duração temporal subjetiva e introspectiva. Dessa maneira, adicionada a uma narrativa sobre a memória de um sujeito traumatizado, com medo e reservado, entendemos que a composição eletroacústica também conota o mundo interior, o espaço interno do personagem, funcionando como um envelope sônico e inconsútil pois, de um lado, faz parte da criação e constituição do personagem, emprestando-lhe uma individualidade sonora que o aliena dos outros ambientes (os outros ruídos e sons do mundo natural da ficção são apagados ou diminuídos); e de outro, tudo relaciona, servindo como superfície sonora de contato entre o personagem e o que o rodeia. Assim, operando como uma espécie de invólucro, de pele vibratória e porosa, tais composições servem tanto como contenção do protagonista, sugerindo o limite de uma interioridade fechada, solitária e vibrante, assim como sua conexão com espaços e sons que o cercam, operando como triagens do fora e do dentro. De modo geral, a utilização desse tipo de composição aumenta a sensação de estranhamento do mundo natural ficcional. É a música utilizada para a construção do mundo epifânico de Alex, modalizado pelo sobrevir, a apreensão e o acontecimento.

Um exemplo de utilização narrativa desse tipo de composição é a cena do banho, logo após Alex fugir da cena do acidente e esconder-se na casa do amigo. A sequência é longa e o enunciador audiovisual manipula a imagem de modo que categorias expressivas plásticas, cromáticas e eidéticas, relacionadas à nitidez das formas e cores são gradualmente e intensamente manipuladas. Nessa cena, a trilha sonora eletroacústica é composta de um som vibratório cujo volume aumenta à medida que se estende, mesclado com outros sons que podem ser parcialmente reconhecidos: passos em folhas secas e trinados de pássaros. As imagens e os sons intensificam a ideia do sobrevir e constroem as sensações de pânico e angústia do jovem:

Figura 4
O sobrevir e a música eletroacústica

Durante a cena, o texto fílmico alcança uma qualidade experimental e surreal, e enquanto sons de pássaros são ouvidos na trilha sonora, percebem-se desenhos de pássaros no azulejo do banheiro, ao lado esquerdo da cabeça do jovem:

Figura 5
O acontecimento e o discurso musical oblíquo concessivo

Buscando justamente o tom concessivo do acontecimento , a composição eletroacústica, nessa cena, unida ao som de pássaros e a uma iluminação instável, desnaturaliza um evento rotineiro, e aponta para espaços e tempos ambíguos, exteriores e interiores. Ao mesmo tempo, a mescla de sons e imagens tão diferenciados cria momentos poéticos e lúdicos, onde a leveza do trinar das aves é contraposta a um som eletrônico vibrante, ascendente e ubíquo, que imprime uma tensão e graduação sônicas que procuram um limite de altura que parece ser ilimitado, semissimbolizando o estranho e a confusão interior do adolescente, que cobre o rosto com as mãos enquanto chora, e desliza pela parede do banheiro até sair do quadro.

Conclusão

Em nossa discussão sobre adaptação e trilha musical procuramos, a partir da semiótica discursiva, discutir a utilização da música como elemento narrativo, observando algumas características básicas do discurso musical, tais como: o seu pertencimento a um gênero textual e a operações simbólicas sociais compartilhadas, que produzem um crer saber que vai além do discurso científico, programando sensações e sentimentos; sua textualização mais ou menos sustentada pela linguagem verbal, mais ou menos voltada para a referencialização do mundo natural aceito como “real”, e mais ou menos semissimbólica; e sua existência dentro de um regime tensivo básico e recursivo de sentido, que oscila entre modos semiotensivos discursivos entre o sujeito sensível e o mundo: o do acontecimento e o do exercício , que podem ser discriminados textualmente. Em nosso caso, destacamos que essas características discursivas foram pensadas dentro de um contexto discursivo de bricolagem de músicas e canções não-originais que, devido a operações sincréticas de significação, entrelaçam alguns de seus valores a valores do texto visual.

A noção de retórica do acontecimento foi importante para situarmos tensivamente o modo semiótico de narrativa proposta, que é adaptada e retextualizada pelo texto fílmico, e para observarmos como a trilha sonora é utilizada nessa modalidade de sentido. A partir dos modos semióticos e sintáticos do sobrevir / apreensão / acontecimento, relacionados ao discurso concessivo que produz uma narrativa relatada em primeira pessoa e em cartas pessoais e confessionais, examinamos a música como ferramenta retórica utilizada na reconstrução de vários temas tratados no texto literário, e relacionados à juventude e ao personagem, tais como o afeto, o amadurecimento, a marginalidade, o abandono, o mundo adulto, a figura materna etc, e principalmente à construção do espaço interior de um narrador / protagonista que ao experimentar o sobrevir lembra, relata e sofre, encontrando-se em estado de “sideração”, e preso em um mundo epifânico onde tempo, sujeito e espaço são reconfigurados.

À guisa de conclusão, e a partir do que foi discutido, apresentamos uma síntese da utilização das canções e músicas discutidas na adaptação fílmica de uma narrativa sobre um adolescente que passa por uma experiência traumática, um processo de amadurecimento, e uma recomposição de valores pessoais e sociais:

Quadro 4
– A trilha sonora não-original e efeitos de sentido

Do ponto de vista das duas canções indie / folk rock de Elliott, observamos melodias lentas e lânguidas que Marpurg, no século 18, relaciona ao sofrimento e a aflição (tabela 1), e do ponto de vista semiodiscursivo, são utilizadas para dar conta da figuração do adolescente, criando o seu mundo sensível e cognitivo. A expressão musical melancólica, e a voz fraca e quase sussurrada do cantor igualmente conotam a introjeção, o sofrimento, a fragilidade e o mundo interior. Temas como dinheiro, pacto com o diabo, e pureza maculada, na canção Angeles , e temas como o amor materno e o esconderijo, na canção The White Lady loves you more , que possui tons de canção de ninar , estão também presentes no romance.

Em relação à música clássica romântica, como o quarto movimento da Nona Sinfonia de Beethoven, Marpurg pode novamente ser citado com precisão, ao relacionar esse gênero ao calor e à emoção. Observamos em nossa análise, que essa sinfonia é utilizada na cena do acontecimento funcionando, de um lado, como uma construção hiperbólica que amplifica a potência da cena e da descrição do evento traumático; e de outro como descrição do choque e do desespero do jovem, e o início de uma existência semiótica modalizada pela apreensão e pelo sobrevir . Percebemos, também, um tipo diferente de exploração desse trecho musical tão famoso, que se concentra no trecho menos conhecido do quarto movimento, sendo relacionado menos à alegria do que à morte, composto em forma de oratório e acompanhado por um texto verbal que cita o poder de Deus.

Finalmente, observamos que as composições eletroacústicas com paisagens sonoras do mundo natural, e suas características contínuas, vibratórias, pulsantes e semirreferenciais, que podem ser parcialmente relacionadas ao estilo new age , que Sonnenschein liga à expansão do tempo e do espaço, contemplação e desconexão com o corpo (tabela 2), de um lado criam discursos concessivos, pois desconfiguram saberes e crenças do mundo natural sônico, estabelecendo relações entre som e imagem que são ambíguas ou absurdas. Assim, são igualmente utilizadas para caracterizar o espaço interior do personagem, separá-lo do mundo cotidiano do exercício , criando um espaço sonoro do dentro e do fora, que são mais ou menos triados e mesclados durante a narrativa fílmica, e figurativizando também o mundo epifânico contínuo, confuso e paradoxal em que o jovem está mergulhado.

REFERÊNCIAS

  • BORDWELL, D.; THOMPSON, K. A arte no cinema: uma introdução. Trad. Roberta Gregoli. São Paulo: Ed. da Unicamp; Edusp, 2013.
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    » https://crackmagazine.net/article/lists/celebratingelliottsmith/
  • 1
    Esse artigo é um desdobramento das discussões sobre cinema, música e adaptação, elaborada na tese de doutorado defendida na Universidade de São Paulo em 2019, intitulada: A adaptação cinematográfica do romance Paranoid Park: uma visada semiodiscursiva.
  • 2
    Em relação à tradução / traduzibilidade, a semiótica discursiva a considera uma das propriedades fundamentais dos sistemas semióticos e fundamento da abordagem semântica, existindo entre o juízo de existência do sentido e o dizer algo sobre ele (mesmo a sua falta). De modo geral, entre o perceber e o enunciar, opera-se a tradução. A partir do entendimento da tradução como princípio fundamental da semiose, pode-se concluir que essa operação engloba tanto os textos ditos “originais” (que não existiriam sem uma “atividade tradutória fundamental”), sejam eles verbais, não-verbais ou híbridos, assim como as traduções literárias e as adaptações fílmicas, que podem ser entendidas como alicerçadas em uma única e mesma operação. Segundo Octavio Paz (2009PAZ, O. Tradução: literatura e literalidade . Ed. Bilíngue. Tradução de Doralice Alves de Queiroz. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2009. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/padrao_cms/documentos/eventos/vivavoz/traducao2ed-site.pdf . Acesso em: 25 jun. 2022.
    http://www.letras.ufmg.br/padrao_cms/doc...
    , p. 13), que parece seguir a mesma linha de raciocínio, “cada tradução é, até certo ponto, uma invenção, e assim constitui um texto único”. Na discussão entre as relações entre tradução e a adaptação fílmica também seguimos, além de Greimas e a semiótica discursiva, Cattrysse (1992)CATTRYSSE, P. Film (Adaptation) As Translation: Some Methodological Proposals. Target , Amsterdam, v.4, n.1, p. 53-70, 1992. Disponível em: https://www.academia.edu/279966/1992_Film_Adaptation_As_Translation_Some_Methodological_Proposals_ . Acesso em: 25 jun. 2022.
    https://www.academia.edu/279966/1992_Fil...
    , que se vale da semiótica cultural de Yuri Lotman e da teoria do Polissistema de Even-Zohar para afirmar que o estudo de textos literários traduzidos e de textos fílmicos adaptados podem ser caracterizados por procedimentos similares: abordagens orientadas para o texto fonte e (in) fidelidade em sua (re) construção / enunciação; expectativas em relação à adequação e normas de equivalência do texto adaptado ao original; escopo restrito a comparações de pares de textos individuais (fonte e alvo). Procurando um espaço teórico mais profundo e englobante sobre o tema, e compreendendo a tradução como base da significação humana, a semiótica discursiva entende que a operação tradutória pode ser decomposta em um fazer interpretativo do texto fonte, ou a quo, um fazer produtor do texto alvo, ou ad quem ( GREIMAS; COURTÉS 2011GREIMAS, A.J.; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. São Paulo: Contexto, 2011. [1979], p. 508; verbete: tradução) e um fazer persuasivo ( MANCINI, 2020MANCINI, R. A tradução enquanto processo. Cadernos de Tradução , Florianópolis, v.40, n.3, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2020v40n3p14 . Acesso em: 25 jun. 2022.
    https://doi.org/10.5007/2175-7968.2020v4...
    ) do enunciador. Assim, na tradução e na adaptação, que podem ser equiparadas, o texto fonte é sempre incorporado e recriado, em seus vários níveis de sentido, pelo texto alvo, a partir de uma enunciação textualizadora que opera um projeto enunciativo motivado sócio-historicamente, e com a intenção de persuadir / manipular o enunciatário.
  • 3
    O semissimbolismo ocorre através de uma conformidade entre os planos de expressão e do conteúdo de um texto / signo, da construção de uma relação entre significado e significante. Um som repetido em um poema, por exemplo, pode significar o ruído de bombas, de ondas no mar, ou de um trem; efeitos de luz e sombra em um quadro ou fotografia podem significar vida, morte, felicidade, tristeza etc. Essas construções semissimbólicas existem enquanto criações textuais e particulares de cada texto, que cria seus próprios semissímbolos. A questão da simbolização, no entanto, vai além do texto e invade o âmbito social, uma vez que a sociedade cria símbolos que são compartilhados: sabemos, por exemplo, que a pomba branca está relacionada à paz e ao espírito santo, o peixe e o pão ao cristianismo, a foice e o martelo ao comunismo etc. É nesse sentido que textos verbais e não-verbais, incluindo os gêneros musicais e melodias, podem construir símbolos e semissímbolos.
  • 4
    As traduções de Sonnenschein são nossas.
  • 5
    Greimas e Courtés (2011)GREIMAS, A.J.; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. São Paulo: Contexto, 2011. explicam que semas são unidades semânticas mínimas de sentido, comparáveis ao traço pertinente, ou distintivo, do plano fonológico da expressão, mas situados no plano do conteúdo. Euforia / disforia, por exemplo, seriam semas tímicos; vida / morte, semas relacionados ao universo individual; e natureza / cultura, ao universo coletivo. Como categorias mínimas de significação, o sema aponta para um universal semântico, ou seja, unidades mínimas de sentido presentes em todos os textos, em seu nível mais fundamental e abstrato, mas concretizadas no discurso de maneira diferenciada, a partir de sujeitos, espaços, tempos, temas e figuras (verbetes no Dicionário de semiótica: sema; universais).
  • 6
    Segundo Fiorin (2011FIORIN J.L. Elementos de análise do discurso . São Paulo: Contexto, 2011. , p. 96), os percursos temáticos e figurativos são um encadeamento, uma rede relacional de temas que são expressos em figuras, e figuras que suportam esses temas, que ocorre no texto. Um tema como liberdade, por exemplo, pode ser figurativizado de várias maneiras: pássaros voando, uma carta, um prisioneiro que olha para o vasto céu azul etc. Tais figuras serão encadeadas durante a narrativa.
  • 7
    Segundo Greimas (2002GREIMAS, A.J. Da imperfeição . pref. e trad. Ana Claudia de Oliveira; apres. de Paolo Fabbri, Raúl Dorra e Erik Landowski. São Paulo: Hacker Editoras, 2002. , p.45), em seu livro Da Impefeição , que tenta dar conta do discurso sensível, “o irrompimento de um acontecimento extraordinário tem o poder de deixar o sujeito exposto e vulnerável aos encantos do objeto”.
  • 8
    A lógica da concessão permite que as fronteiras do mais e do menos possam ser sempre aumentadas ( mais mais ), de modo que se possa recrudescer o recrudescimento; ou diminuídas, de modo que se possa minimizar uma minimização ( menos menos ). As combinações, ou cifras semântico-tensivas menos...mais e mais...menos podem dar origem a formas hiperbólicas e aceleradas de adição e de subtração; pode-se triar uma triagem e se misturar uma mistura . A relação entre acontecimento (intensidade = sobrevir, apreensão e concessão ) e exercício (extensão = conseguir, focalização e implicação ) pode ser conversa (quanto mais intensidade mais extensidade, e vice-versa) ou inversa (quanto mais intensidade menos extensidade, ou vice-versa). Zilberberg (2007)ZILBERBERG, C. Louvando o acontecimento. Revista Galáxia , São Paulo, n. 13, p. 13-28, jun. 2007. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/3996/399641239002.pdf . Acesso em: 05 nov 2021.
    https://www.redalyc.org/pdf/3996/3996412...
    explica que no caso da concessão, o direito e o fato estão em discordância um com o outro, e a esfera da concessão, segundo os gramáticos, é a da causalidade inoperante, tendo como emblema a dupla formada pelo embora e o entretanto .
  • 9
    Zilberberg (2007ZILBERBERG, C. Louvando o acontecimento. Revista Galáxia , São Paulo, n. 13, p. 13-28, jun. 2007. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/3996/399641239002.pdf . Acesso em: 05 nov 2021.
    https://www.redalyc.org/pdf/3996/3996412...
    , p. 22) entende que: “O caso da apreensão não deixa de se assemelhar ao da focalização, pois designa o estado do sujeito de estado ‘às voltas com’ o sobrevir , em ‘admiração’ cartesiana, em poucas palavras, o estado do sujeito inicialmente espantado, impressionado, depois, dali em diante, marcado pelo ‘que lhe aconteceu’, estado que corresponde à potencialização, à formação desse mistério: o sobrevir” .
  • 10
    Disponível em: https://www.dicio.com.br/paranoia-2/ . Acesso em: 15 jul. 2022.
  • 11
    Disponível em: https://www.dicio.com.br/zumbi/ . Acesso em: 15 jul. 2022.
  • 12
    Disponível em: https://www.dicio.com.br/catatonia/ . Acesso em: 15 jul. 2022.
  • 13
    Boa parte da trilha sonora do filme pode ser ouvida na plataforma Y ouTube:https://www.youtube.com/watch?v=hiJ068QT6os&list=PLBkXWjf0sMS5FAkC1nkyBTm5Vl8myXvgd . Acesso em: 23 jun. 2022.
  • 14
    No discurso musical mítico, qualquer tipo de referência ao mudo natural é abandonado, e a música fala apenas de si própria, volta-se a si mesma, torna-se pura, assumindo não mais uma função referencial, mas construtiva, ou autorreferencial: podemos pensar no jazz, por exemplo. No discurso musical substancial, aponta-se para a cena na qual se dá a enunciação musical pressuposta, a cena enunciativa, cujos coenunciadores são, grosso modo, os músicos e os ouvintes, e no qual o enunciado musical se manifesta em tempos e em espaços específicos, no rito de execução musical.
  • 15
    Dentro das composições eletroacústicas, pode-se deduzir também o discurso musical mitológico (construtivo), que seriam as composições sem os sons do mundo natural, e apenas executadas como uma coleção de timbres e alturas que pulsam. No entanto, como esse tipo de composição é longa, é possível que obras tenham sido editadas, ou mesmo superpostas. Assim, em nossa discussão, e apenas com acesso parcial às obras musicais, consideraremos todas as composições eletroacústicas como oblíquas, ou a obliquidade como seu traço mais importante. Da mesma maneira, supõe-se que em relação às músicas e canções executadas no filme e ouvidas pelo público espectador, todo filme, ao executar uma trilha sonora destinado a um enunciatário, existe em uma cena enunciativa que faz diferença na interpretação do sentido do texto. O discurso musical mitológico e o discurso musical substancial não são tratados nesse texto.
  • 16
    A tradução de todas as letras é nossa.
  • 17
    Essa cena não existe no romance, no qual o jovem apenas diz que vai buscar fósforos.
  • 18
    Todas as imagens são do filme Paranoid Park (2007).
  • 19
    Camus (2013, tCAMUS, A. Elliot Smith reviews reposted. Rock NYC , New York, 2013. Disponível em: https://rocknyc.live/elliott-smiths-roman-candle-elliott-smith-eitheror-xo-and-figure-8.html . Acesso em: 25 jun. 2022.
    https://rocknyc.live/elliott-smiths-roma...
    , tradução nossa) explica que “com uma melodia triste e melancólica e um título que mais uma vez faz referência ao vício e a uma figura sagrada, a música é solene e tem uma letra angustiada”.
  • 20
    Tradução disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Sinfonia_n.º_9_ (Beethoven)#Ode_an_die_Freude_/_Hino_à_Alegria. Acesso em 04 nov 2021.
  • 21
    NORMAN, K. Real-World Music as Composed Listening. Contemporary Music Review, Abingdon, v.15, n.1–2, p.1–27, 1996.
  • 22
    Todas as traduções de Jordan são nossas.
  • 23
    TRUAX, B. Acoustic Communication. 2nd ed. Westport, CT: Alex Publishing, 2001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    11 Jun 2021
  • Aceito
    12 Out 2021
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