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Citação, destacabilidade e aforização no texto imagético: possibilidades?

Quotation, detachment and aphorization in pictorial texts: possibilities?

Resumos

Neste texto, realizamos uma discussão de fundo epistemológico, procurando compreender como a mídia dá a ler determinados acontecimentos históricos da política brasileira por meio de textos imagéticos. Como corpora, elegemos fotografias de atores políticos que circularam no jornal Folha de S. Paulo, durante o segundo turno das eleições presidenciais brasileiras de 2010. Nossa discussão está fortemente assentada nos trabalhos de Dominique Maingueneau acerca de citação, destacabilidade e aforização. Nesses trabalhos, o teórico propõe uma densa discussão sobre a circulação dos textos verbais em nossa sociedade, isto é, sua reflexão busca saber como certos textos circulam - inteiros, em fragmentos, adaptados - e por que, de um texto integral, frequentemente circulam apenas partes - finais, começos, pequenas frases. Dessa discussão empreendida, tentamos tirar algumas consequências teóricas a partir da análise de textos que mobilizam em sua constituição não apenas recursos verbais, mas, principalmente, recursos de natureza imagética. Nossa questão de fundo é pensar, por um lado, como se dá o processo de citação, destacabilidade e aforização do texto imagético na mídia impressa e digital e, por outro, em que medida esse trabalho de recorte do imagético interfere na interpretação do acontecimento histórico, fornecendo ao leitor uma espécie de percurso deôntico de interpretação.

Discurso; Texto imagético; Citação; Destacabilidade; Aforização


In this article, we will undertake a discussion with an epistemological background and try to comprehend how the media offers to read certain historical events in Brazilian politics through pictorial texts. As corpora we elected political actors' photographs that circulated in the newspaper Folha de S. Paulo during the second round of the 2010 Brazilian presidential elections. Our discussion is firmly based on Dominique Maingueneau's work (2006, 2008 and 2010) about quotation, detachment and aphorization. In these papers, the French theorist proposes a rich and refined discussion about the circulation of verbal texts in our society, that is, a discussion about how certain texts circulate - as a whole, in fragments, adapted, etc. - and why, from an integral text, often circulates only parts of it - endings, beginnings, small phrases, etc. From this discussion, we'll try to take some analytical-theoretical consequences for the analysis of texts that mobilize in their constitution not only verbal resources, but mainly resources of pictorial nature. Our background question is to think, on the one hand, on how the process of citation, detachment and aphorization works in pictorial texts in printed and digital media, and, on the other hand, on how these fragments of pictorial texts interfere with the interpretation of the historical event, which means how they are put into narrative, providing the reader a kind deontic journey of interpretation.

Discourse; Pictorial text; Quotation; Detachment; Aphorization


Citação, destacabilidade e aforização no texto imagético: possibilidades?

Quotation, detachment and aphorization in pictorial texts: possibilities?

Roberto Leiser BaronasI; Samuel PonsoniII

IUFSCar – Universidade Federal de São Carlos. Centro de Educação e Ciências Humanas. São Carlos – SP – Brasil. 13565-905 - baronas@ufscar.br

IIBolsista Fapesp. Doutorando em Línguística. UFSCar – Universidade Federal de São Carlos - Pós-Graduação em Linguística. São Carlos – SP – Brasil.13565-905 – sponsoni@yahoo.com

RESUMO

Neste texto, realizamos uma discussão de fundo epistemológico, procurando compreender como a mídia dá a ler determinados acontecimentos históricos da política brasileira por meio de textos imagéticos. Como corpora, elegemos fotografias de atores políticos que circularam no jornal Folha de S. Paulo, durante o segundo turno das eleições presidenciais brasileiras de 2010. Nossa discussão está fortemente assentada nos trabalhos de Dominique Maingueneau acerca de citação, destacabilidade e aforização. Nesses trabalhos, o teórico propõe uma densa discussão sobre a circulação dos textos verbais em nossa sociedade, isto é, sua reflexão busca saber como certos textos circulam – inteiros, em fragmentos, adaptados – e por que, de um texto integral, frequentemente circulam apenas partes – finais, começos, pequenas frases. Dessa discussão empreendida, tentamos tirar algumas consequências teóricas a partir da análise de textos que mobilizam em sua constituição não apenas recursos verbais, mas, principalmente, recursos de natureza imagética. Nossa questão de fundo é pensar, por um lado, como se dá o processo de citação, destacabilidade e aforização do texto imagético na mídia impressa e digital e, por outro, em que medida esse trabalho de recorte do imagético interfere na interpretação do acontecimento histórico, fornecendo ao leitor uma espécie de percurso deôntico de interpretação.

Palavras-chave: Discurso. Texto imagético. Citação. Destacabilidade. Aforização.

ABSTRACT

In this article, we will undertake a discussion with an epistemological background and try to comprehend how the media offers to read certain historical events in Brazilian politics through pictorial texts. As corpora we elected political actors' photographs that circulated in the newspaper Folha de S. Paulo during the second round of the 2010 Brazilian presidential elections. Our discussion is firmly based on Dominique Maingueneau's work (2006, 2008 and 2010) about quotation, detachment and aphorization. In these papers, the French theorist proposes a rich and refined discussion about the circulation of verbal texts in our society, that is, a discussion about how certain texts circulate – as a whole, in fragments, adapted, etc. – and why, from an integral text, often circulates only parts of it – endings, beginnings, small phrases, etc. From this discussion, we'll try to take some analytical-theoretical consequences for the analysis of texts that mobilize in their constitution not only verbal resources, but mainly resources of pictorial nature. Our background question is to think, on the one hand, on how the process of citation, detachment and aphorization works in pictorial texts in printed and digital media, and, on the other hand, on how these fragments of pictorial texts interfere with the interpretation of the historical event, which means how they are put into narrative, providing the reader a kind deontic journey of interpretation.

Keywords: Discourse. Pictorial text. Quotation. Detachment. Aphorization.

Que pode a câmara fotográfica? Não pode nada. Conta só o que viu. Não pode mudar o que viu. Não tem responsabilidade no que viu. A câmara, entretanto, Ajuda a ver e rever, a multi-ver O real nu, cru, triste, sujo. Desvenda, espalha, universaliza. A imagem que ela captou e distribui. Obriga a sentir. A, criticamente, julgar. A querer bem ou a protestar. A desejar mudança.

Carlos Drummond de Andrade (2012)

Primeiras palavras

A Análise de Discurso de orientação francesa tem se notabilizado ao longo de suas mais de quatro décadas de existência, principalmente no interior da ciência das humanidades, como um poderoso dispositivo de leitura fundado sobre uma teoria do discurso1 1 Uma das características mais marcantes da Análise do Discurso é a de que seus pressupostos teóricos, bem como seus procedimentos de análise, estão o tempo todo sendo revistos. . Na sua fase de constituição, na geografia francesa do final dos anos sessenta do século passado2 2 A Análise do Discurso irrompe na geografia francesa em 1969, com a publicação do livro Analyse Automatique du Discours – AAD-69. Esse livro, segundo Niels Helsloot e Tony Hak (2000, p.15), "[...] s'appuie sur une critique des formes traditionnelles d'analyse de contenu et d'analyse de texte. Ces analyses présupposent un sujet (l'analyste ou les « codeurs ») apte à « lire » le sens d'un texte. Pêcheux veut justement éviter de s'en remettre au sujet lecteur puisqu'il en résulte inévitablement une lecture idéologique. On doit cependant reconnaître que les analystes de contenu se préoccupaient eux aussi du rôle de l'intuition dans l'analyse." , privilegiou o discurso político. Depois, no final dos anos setenta e início dos anos oitenta, reconhecendo que não se pode compreender o discurso sem se levar em consideração os traços do interdiscurso, em que a presença/ausência e a irrupção do Outro discursivo são marcadamente constitutivas da fundamentação dos discursos e que os instam a dizer, passou a tomar como objeto de leitura distintas materialidades discursivas. Atualmente, por conta mesmo de uma mudança no regime das materialidades dos discursos3 3 No entendimento de Jean-Jacques Courtine (1999, p.12), "[...] não se faz a mesma Análise do Discurso político, quando a comunicação política consiste em comícios reunindo uma multidão em torno de um orador e quando toma a forma de talk-shows televisivos aos quais cada um assiste em casa. Também não se faz a mesma Análise do Discurso independentemente dos preconceitos, das compartimentalizações sociais e ideológicas, das polêmicas antigas ou recentes; tudo isso exerce suas restrições sobre o discurso das ciências humanas, na escolha de seus temas, na definição dos objetivos, na produção de recortes formais [e na (re)criação de categorias conceituais]." , a Análise de Discurso passou a privilegiar também a leitura de objetos multissemióticos. É justamente a leitura discursiva de objetos multissemióticos que realizamos neste texto. Cumpre dizer que essa leitura está fortemente ancorada nas proposições de Dominique Maingueneau (2006a, 2006b, 2010, 2012b) acerca da citação, da destacabilidade e da aforização.

É preciso considerar também que o autor supramencionado, ao elaborar tais categorias conceituais, não o fez a partir da análise de corpora multissemióticos. Suas reflexões irromperam a partir da análise de objetos eminentemente verbais, tais como slogans, provérbios, máximas, adágios jurídicos, fórmulas, títulos de artigos da imprensa, intertítulos, etc. Em outros termos, nos apoiaremos nas propostas de Dominique Maingueneau para tratar discursivamente de fotografias de atores políticos que circularam no jornal Folha de S. Paulo, durante o segundo turno das eleições presidenciais brasileiras de 2010. Todavia, para a empresa deste texto, existe a necessidade de um deslocamento por conta do próprio objeto pretenso à análise. Portanto, nosso propósito é tentar deslocar epistemologicamente as categorias de citação, de destacabilidade e de aforização para dar conta de objetos distintos àqueles que Maingueneau frequentou. Esse movimento, como dissemos em linhas anteriores, é algo que se coaduna com o próprio espírito teórico da Análise do Discurso.

Tratamento de corpus multissemiótico no arcabouço teórico-metodológico de Dominique Maingueneau

Tratar discursivamente de objetos multissemióticos e/ou estritamente imagéticos não se constitui como algo necessariamente estranho ao arcabouço teórico proposto por Dominique Maingueneau. Em Gênese dos Discursos (2005), uma de suas primeiras incursões epistemológicas de fôlego no domínio do discurso, o autor francês, com base na análise dos discursos religiosos das doutrinas jansenista e humanistas devotos, postula, de um lado, a existência de uma semântica global que rege os múltiplos planos do discurso e, de outro lado, entende que esses planos discursivos devem ser tratados enquanto práticas discursivas, visto que, independentemente do domínio semiótico no qual se inscrevem, não estão livres da circunscrição, coerção de uma determinada Formação Discursiva (adiante, algumas vezes, FD). Para tracejar sua hipótese, o linguista francês realiza uma vigorosa análise dos quadros Peregrinos de Emaús e Ceia de Emaús, dos pintores Ticiano e Philippe de Champaigne, respectivamente. Ambas as obras derivam sua representação da mesma passagem bíblica, qual seja, a passagem de Jesus Cristo em Emaús.



O primeiro quadro de autoria do pintor italiano renascentista Ticiano, datado provavelmente de 1535, é compreendido por Maingueneau como pertencente ao universo semântico dos humanistas devotos. O segundo, por seu turno, pintado, a partir do primeiro, por Philippe de Champaigne, provavelmente em 1636, portanto mais de um século depois, pertence, no entendimento do teórico francês, ao universo semântico jansenista. Para formular tais hipóteses de pertencimento discursivo, Maingueneau, com base na compreensão de que tais quadros sofrem, por meio das FDs que os circunscrevem, as mesmas restrições de sentido que outras produções verbais, descreve/interpreta/compreende minuciosamente o funcionamento discursivo dos elementos icônicos-discursivos presentes nas duas telas. Nesse sentido, o linguista procurou, primeiramente, definir a estrutura do sistema semântico de composição de ambas as obras.

Ele conclui, então, ainda sob essa base de reflexão, que a obra jansenista teria um intuito pedagógico e estritamente instrutivo para os homens, retratando, assim, as passagens dos textos bíblicos tal como elas foram efetivamente engendradas. Em contrapartida, nas pinturas do humanismo devoto, existem elementos composicionais alinhavados à mistura entre o divino e o mundano – diferindo em grande medida das descrições bíblica –, com diversos planos e paisagens, embora respeitando hierarquias, tanto social quanto religiosa. Com efeito, a análise empreendida por Maingueneau busca satisfazer a dois objetivos: determinar se os espaços discursivos criados para enunciados estritamente verbais podem e/ou são pertinentes também para outros textos4 4 Maingueneau, em Gênese do Discurso, entende texto em um sentido mais amplo, tal como "[...] aos diversos tipos de produções semióticas que pertencem a uma prática discursiva." (MAINGUENEAU, 2005, p.146). E enunciado quando se trata de produções estritamente linguísticas. , num sentido mais amplo que Maingueneau descreve, como, por exemplo, as pinturas em questão, e se as obras são convergentes e conexas com as regras de interincompreensão, mobilizadas como a "mecânica" discursiva operacional pelas quais as restrições e/ou manifestações interdiscursivas decantam no dizível dos discursos, em suas FDs específicas. Ou seja, as restrições semânticas dos jansenistas teriam "traduzido" na representação pictórica, sob suas próprias categorias interpretativas, as identidades não aceitáveis que recobrem os sentidos do discurso Outro, no caso o Outro de sua FD, qual seja, o discurso humanista devoto. Então, a existência de elementos mundanos, a presença de não cristãos, a reluzente luminosidade contribuindo para ressaltar tanto a verticalidade quanto a horizontalidade do quadro, a colocação de símbolos no espaço arquitetônico, os diversos objetos sobre a mesa, os animais, enfim, toda identificação semântica ligada a certo traço semântico de /mistura/ faz existir uma incompatibilidade entre as obras do humanismo devoto e as do jansenismo, tanto nos enunciados estritamente verbais como em outros textos, materializados em outros suportes semióticos, tais como as pinturas, as músicas, as ilustrações et cetera, que podem ser de ordem verbo-visual ou visual. Portanto, a Formação Discursiva do jansenismo não permitiria retratar elementos fora do alcance dos enunciados bíblicos, sobretudo em se tratando de retirar o foco da imagem de Cristo manuseando a hóstia – algo da ordem semântica da /concentração/ em torno do Messias – ou, ainda, que fosse possível misturar elementos e concorrer com Cristo no mesmo acontecimento, deixando subentendidas outras interpretações e refrações de sentido fora da figura messiânica. Ao existir essa imposição da centralidade em torno do divino, regulada, por exemplo, em marcas circulares presente no quadro jansenista, cria-se um caminho de orientação de sentido a seguir, excluindo, em grande parte, para o fiel à doutrina, outras possibilidades de olhares significantes. No quadro de Ticiano, entretanto, tributado à prática discursiva do humanismo devoto, embora existam certas hierarquias e concentrações nas ações de Cristo, é possível fazer outras abordagens de interpretação, até pela mistura e presença de muitos elementos passíveis de análise fora do eixo temático acerca do protagonismo do messias.

Desse modo, para Maingueneau um dos principais traços semânticos do quadro humanista devoto é o da /mistura/, em que:

♦ misturam-se mundano e divino;

♦ mesmo que os olhares estejam dispersos, eles convergem para o Cristo, este a figura em posição central (mas "não concentrada"), mantendo, assim, coesas as hierarquias social e espiritual, i.e.: serviçais em pé versus hóspedes sentados; cristãos versus não cristãos;

♦ a pintura está dividida em planos: o inferior com os animais, o de cima com os homens, o de fundo com o mundo celeste; além disso, a pintura projeta-se tanto nas linhas horizontais quanto nas verticais, estando reluzente todo o quadro, ou seja, trata-se de um quadro colorido e iluminado como um todo;

♦ somente Cristo e o discípulo que faz a oração estão com as cabeças no plano do quadro em que aparece o céu, mas, sobretudo, o Messias, que, além de estar com a cabeça no plano celeste, também é visto próximo à base da coluna, sendo esta a marca de ligação céu-terra e condutora do plano terreno ao plano celeste;

♦ existem vários objetos sobre a mesa, além da presença de personagens e animais que a passagem bíblica não menciona.

Já para a pintura dos jansenistas um dos principais traços semânticos é o da /concentração/, em que:

♦ a disposição centralizadora da temática não permite que haja a dispersão dos olhares para fora da figura da hóstia ou do ato da consagração feita por Cristo. Além disso, as cores claras e escuras tornam apenas o Messias iluminado, em outras palavras, apenas o divino, e parcialmente o cristão que comunga, nada mais, para não se retirar a concentração do centro messiânico, bem como para se atribuir ao gesto do Cristo status de grande importância;

♦ a mesa em forma circular – a circularidade é uma forma-chave de acabamento, de concentração –, a luz que circunda a cabeça de Cristo e a hóstia fundem-se numa única imagem devido ao contraste escuro-claro do plano de fundo da pintura. Dessa forma, qualquer elemento fora dessa circularidade verdadeira torna-se secundário, apagado, não presente na luz divina, assim como é possível aludir, nesse gesto interpretativo, à tríade crucial da base cristã;

♦ sentados, estão apenas os cristãos, ficando a não crist㠖 no caso, a serviçal – na penumbra. Nota-se também a não presença de animais, além de poucos objetos sobre a mesa;

♦ não há outros planos em destaque, somente o plano divino bastante enaltecido pela centralidade da luz sobre a cabeça de Cristo e pela brancura da mesa, que é redonda.

Sendo assim, na análise intersemiótica, é preciso levar em consideração as restrições discursivas dentro de cada FD, o que irá propiciar a apreensão da semântica global regente e gestora dos textos, em qualquer suporte semiótico, bem como aquilo que pode e deve ser dito e correspondido entre tais manifestações textuais. Portanto, a partir da obra de Ticiano, Maingueneau nos faz perceber a dimensão dialógica da discursividade presente na obra de Philippe de Champaigne e o funcionamento do espaço discursivo jansenista por meio da interincompreensão, filtrando, em simulacros, o discurso do humanismo devoto. Dito de outro modo, existe a transposição de significados entre distintas Formações Discursivas, mas não de qualquer maneira, isto é, ela será marcada pelas restrições que identificam este ou aquele discurso dentro das práticas discursivas, empreendidas em toda sua economia de expressão.

Dessa discussão, precipita-nos um questionamento: é possível expandir a análise intersemiótica para o tratamento de corpora distintos àqueles que Maingueneau trabalhou? Para tentar responder a essa questão, mobilizamos duas fotografias que foram publicadas recentemente em diversos jornais do exterior, reproduzidas por jornais brasileiros e que se referem ao acontecimento histórico: a invasão americana ao esconderijo de Osama Bin Laden no Paquistão.



A primeira fotografia foi publicada inicialmente no site do jornal americano The Atlantic, em 9 de maio de 2011. Já a segunda, (re)produção da primeira, foi publicada em 10 de maio de 2011, no jornal impresso israelense Der Tzitung (O tempo). Este último jornal apagou da fotografia, inicialmente publicada no The Atlantic, tanto Hillary Clinton quanto Audrey Tomasen, as únicas mulheres presentes na Sala de Guerra da Casa Branca, quando da invasão ao esconderijo de Bin Laden. Para os analistas norte-americanos, tal apagamento deveu-se ao fato de que, no contexto israelense, a presença de mulheres em posição de destaque pode ser sexualmente sugestiva. Numa leitura preliminar dessas duas fotografias, poderíamos dizer que a proposta de Maingueneau acerca da análise intersemiótica dá conta de compreender o funcionamento discursivo de tais objetos, pois as restrições semânticas dos israelitas "traduzem", sob suas próprias categorias interpretativas, as identidades não aceitáveis que recobrem os sentidos do discurso Outro, no caso seu Outro, qual seja, o discurso liberal e democrático, amplamente alardeado pelos americanos, de igualdade entre os sexos. Assim, a presença de mulheres em posição de destaque, além de toda identificação semântica ligada à igualdade entre sexos, faz existir uma incompatibilidade entre as fotografias do site americano e do jornal israelense, o que justificaria o apagamento das duas únicas mulheres presentes na primeira fotografia. A Formação Discursiva na qual o jornal israelense está inscrito não permitiria retratar elementos fora do alcance dos enunciados socialmente válidos para os próprios israelitas. No entanto, é preciso considerar que, no caso em questão, não se trata apenas da "tradução" do discurso do Outro (americano) pelas categorias do discurso. Mesmo (israelita), com sua relação com esse Outro se dando sempre sob a forma do simulacro que dele é construído, a produzir, portanto, uma interincompreensão regrada entre discursos. Nesse acontecimento, trata-se, na verdade, de um caso exemplar de aforização, uma vez que o suporte midiático israelense fez um destaque/apagamento da presença feminina na (re)produção da fotografia que deu a circular. Em outros termos, trata-se não de um caso de interincompreensão, como na tradução regrada por filtros do simulacro que Champaigne faz de Ticiano, mas de um caso de compreensão regrada em que a (re)produção da fotografia pelo jornal israelense apaga/silencia o que se apresenta como incompatível à sua Formação Discursiva. Em sintetizando esse exercício teórico-analítico, diríamos que análise intersemiótica parece muito produtiva para tratar de objetos imagéticos ou multimodais em que o diálogo interdiscursivo se dá sob a forma de simulacro. Todavia, quando esse diálogo se apresenta como aforização, como executar teórica e metodologicamente a análise?

Citação, destacabilidade e aforização no arcabouço teórico-metodológico de Dominique Maingueneau

Em Maingueneau (2006a, 2006b, 2010, 2012b), a problemática da citação é tratada de forma bastante diferente tanto da visada bakhtiniana5 5 Muito resumidamente e sem fazer a justiça teórica que ambos os autores merecem, diríamos que a problemática do filósofo da linguagem Mikhail Bakthin se inscreve na questão da aproximação e alteridade de vozes outras na constituição dos discursos dos sujeitos ou, ainda, o papel desse outro e seus discursos na inter-relação entre os sujeitos por meio da linguagem. De forma semelhante, a abordagem discursiva de Jacqueline Authier-Revuz, em muito tributária a Bakhtin e a Lacan, trata da compreensão do Outro sócio-histórico corporificado num complexo interdiscursivo, que emerge ou se apaga nos fios discursivos, contribuindo também para as identificações e constituições dos sujeitos. quanto de Authier-Revuz, pois tratar de citação, na teoria de Maingueneau, implica notar também a questão da destacabilidade de enunciados. Isto é, o "destacamento" dos enunciados não se dá somente a partir das sequências "destacadas", mas sim a partir de certas condições necessárias e suficientes que permitem que enunciados sejam "destacáveis".

Ainda no entendimento de Dominique Maingueneau (2010), poucas pessoas atualmente contestariam a ideia de que o texto constitui em uma das principais realidades empíricas em que se debruça o linguista: unidades como a frase ou a palavra são muitas vezes retiradas de textos. O texto é, com efeito, no entendimento do pesquisador francês, a contraparte do gênero do discurso, que é o quadro de toda a comunicação pensável. Maingueneau mobiliza o termo "gênero do discurso" para atividades sociolinguageiras como registro de nascimento, debate televisivo, sermões, entre outros.

Todavia, alguns problemas se põem quando é preciso tratar de enunciados curtos que se apresentam fora do texto, geralmente constituídos de uma única frase. Dominique Maingueneau chama essas pequenas frases de "enunciados destacados", sendo eles de tipos muito diversos: slogans, máximas, provérbios, títulos de artigos da imprensa, intertítulos, citações célebres etc. Para o estudioso francês, devem-se distinguir duas classes bem diferentes de "destacamentos": a) os constitutivos: trata-se do caso em particular das fórmulas (provérbios, slogans, divisas) que, por sua própria natureza, são independentes de um texto particular; b) os que resultam da extração de um fragmento de texto: neste caso, são os que se encontram em uma lógica de citação.

Essa extração não se exerce de maneira indiferenciada sobre todos os constituintes de um texto, pois, frequentemente, o enunciador sobreassevera alguns de seus fragmentos e os apresenta como destacáveis. A sobreasseveração é uma modulação de enunciação que habilita formalmente um fragmento como candidato a uma destextualização. Trata-se de uma operação de colocação em relevo por relação ao desenvolvimento textual que se efetua com a ajuda de marcadores diversos, por exemplo: de ordem aspectual (genericidade), tipográfica (posição saliente em uma unidade textual), prosódica (insistência), sintática (construção de uma forma pregnante), semântica (recurso aos tropos), lexical (utilização de conectores de reformulação) etc.

Com isso, as divergências entre o enunciado fonte e o enunciado destacado são reveladoras de um estatuto pragmático específico para os enunciados destacados. Estes últimos revelam, com efeito, um regime de enunciação que Maingueneau propõe chamar "enunciação aforizante". Entre uma "aforização" e um texto não existe uma diferença de tamanho, de forma, de sistematicidade linguística, mas uma diferença de ordem enunciativa. O esquema a seguir exemplifica as duas ordens discursivas propostas pelo autor:


6 Maingueneau (2010, p.13)

Para Maingueneau, a enunciação se organiza em duas ordens do enunciável: a enunciação textualizante e a enunciação aforizante. Esta última, por sua vez, se organiza em enunciação aforizante destacada por natureza e enunciação aforizante destacada de um texto. No seu entendimento, por meio da aforização, o locutor se coloca além dos limites específicos de um determinado gênero do discurso:

O « aforizador » assume o ethos do locutor que está no alto, do indivíduo autorizado, em contato com uma Fonte transcendente. Ele é considerado como aquele que enuncia a sua verdade, que prescinde da negociação, que exprime uma totalidade vivida: seja uma doutrina ou uma concepção vaga da existência. Se a aforização implica um locutor que se situa como Sujeito de pleno direito, reciprocamente um Sujeito se manifesta como tal por sua capacidade de aforizar. Trata-se fundamentalmente de fazer coincidir sujeito da enunciação e Sujeito no sentido jurídico e moral: alguém que se coloca como responsável, afirmando valores e princípios perante o mundo, dirige-se a uma comunidade que está além dos locutores empíricos que são seus destinatários. (MAINGUENEAU, 2010, p.14-15, grifo do autor).

Sendo assim, para Maingueneau (2010), este é o ponto central do problema "o aforizador não é um locutor, o suporte da enunciação, mas uma consequência do destacamento", isto é, não se trata apenas de outra instância enunciativa, distinta tanto à do locutor/ alocutário quanto à do enunciador/enunciatário.7 7 A argumentação de Maingueneau, no que tange a esses termos, parece dialogar com as teorizações elaboradas por Oswald Ducrot acerca das instâncias da enunciação. Bastante resumido, o que se torna injusto com a teoria, este teórico propôs uma distinção entre locutor L, locutor lambda para analisar a tríada sujeito falante/locutor/enunciador e seus respectivos correspondentes no processo de comunicação, quais sejam, sujeito ouvinte/alocutário/enunciatário. Com isso, Ducrot buscou analisar os traços (alguns diriam vozes) que se distinguem nos enunciados que compõem a enunciação de um discurso. Obviamente, Maingueneau propõe o deslocamento desses conceitos ducrotianos para pensar na problemática da enunciação aforizante que, para este teórico, ultrapassaria tais instâncias. 8 Esta imagem foi retirada da reportagem exibida pelo Jornal Nacional. A reportagem completa, aos interessados, encontra-se disponível em: < http://www.youtube.com/watch?v=yxXQi2GjIKc>. Acesso em: 29 nov. 2011. Desse modo, quando se extrai um fragmento de texto para fazer uma aforização, um título de uma matéria na imprensa, por exemplo, converte-se ipso facto seu locutor original em aforizador.

No intuito de deixar um pouco menos abstratos os postulados acerca da citação, da destacabilidade e da aforização, tomemos como exemplo a recente polêmica acerca do livro didático Por uma vida melhor, de autoria de Heloisa Ramos (2009), destinado a alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA), no que se referia ao conteúdo de Língua Portuguesa. Aqui, vamos nos deter ao trabalho de destaque realizado pela mídia sobre fragmentos do livro didático, mais especificamente o que foi realizado pelo Jornal Nacional da Rede Globo de Televisão em reportagem exibida em maio de 2011. A propósito, fizemos tal opção pelo fato de o JN ter se constituído numa espécie de representação metonímica do que circulou na grande mídia brasileira acerca desse acontecimento.


Nota-se que o enunciador jornalista faz o trabalho de destaque em seis enunciados que, retirados de seu contexto e contexto mais amplo, além de terem sido modificados em relação ao livro, são postos a circular em outro lugar, em outro tempo, para outros interlocutores. Vejamos:

1: Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado. (Igual ao livro - p.14)

2: Na variedade popular, basta que (os) esse primeiro termo esteja no plural para indicar mais de um referente. (Diferente do livro - p.15)

3: A língua portuguesa admite essa construção (Criado pela reportagem)

4: Mas eu posso falar "os livro?" (Igual ao livro - p.15)

5: Claro que pode. (Igual ao livro - p.15)

6: "Dependendo da situação, você (a pessoa) corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico (Diferente do livro - p.15).

Esses enunciados figuraram, em primeiro plano, em um livro virtual criado computacionalmente, em que o restante do texto é apagado, permanecendo apenas os elementos destacados. Dessa forma, constitui-se um trabalho de aforização, pois nem todos os leitores do JN terão ou tiveram acesso prévio ao conteúdo total do livro. Mais ainda, o que está destacado nos itens 2, 3 e 6, respectivamente, não existe ou não está integralmente no material didático Por uma vida melhor tal como citado. Os enunciados não estão lá, como comprova uma busca simples pelo texto do livro. Ademais, em 6, o pronome pessoal "você" é substituído por "a pessoa"; neste caso, retira-se qualquer marca dêitica que aproxime do trabalho textual completo, algo a parecer estritamente referido a um dado termo anterior, apresentando-se como uma retomada ou substituição de um termo já existente. Com efeito, esse movimento de trajeto interpretativo parece inferir que o livro generaliza o uso de uma suposta "forma errada do português", autorizando essa competência específica não mais um determinado contexto, mas a todas as pessoas que recebem tal texto, em indistintos tempos e contextos. Em 3, não há em nenhum lugar do capítulo do livro em si a afirmação de que a língua portuguesa admite tal construção, o que marca ainda mais o ato de aforização na edição jornalística.

Assim, esse trajeto interpretativo demonstra que não há apenas o trabalho de citação, como no caso dos outros exemplos, em que os enunciados citados são colocados a circular em outros espaços e podem ganhar alguma marca de distanciamento, como, por exemplo, aspas, uma oração intercalada introduzida por um verbo dicendi mais "que". Há, sim, nesse caso do livro Por uma vida melhor, o trabalho de aforização que corrobora o percurso deôntico interpretativo numa dada direção de sentido, qual seja, jogar as asseverações do posicionamento do editorial jornalístico para a responsabilidade da autoria do livro e de quem o mantém em seus auspícios, no caso as prática discursivas que sustentam uma pedagogia de ensino de língua mais ampla, mais plural, capaz de abarcar um espectro maior de alunos e lhes mostrar que as variantes de língua que utilizam não são merecedoras de preconceito, mas sim de respeito, valorização e afirmação.

Isso pode ser dito também em outros casos de citação, quando o enunciador marca seu distanciamento de alguma maneira, entretanto, no caso da aforização, existe o apagamento de elementos para a compreensão "real" do acontecimento. Por seu turno, o enunciador jornalista se constitui num aforizador que se sobrepõe tanto ao seu leitor quanto ao outro cuja fala recorta, mostrando uma imagem de si, do jornal, bem como um posicionamento a ser preenchido. Algo da ordem de um sujeito autorizado a realizar o trabalho de destaque da fala da outro. Trabalho este que é realizado sob a validação da instituição midiática, no caso o JN, que estabelece valores para além das interações e das argumentações. Trata-se de um trabalho de direcionamento de sentidos, de constituição de subjetividades em que, sem que se dê conta, o leitor é levado a aderir à interpretação do enunciador jornalista e, por extensão, ao posicionamento do veículo midiático no qual esse jornalista está inscrito, qual seja, os que se prendem a valores mais conservadores, que destoam de práticas de ensino voltadas para as heterogeneidades subjetivas e para fenômenos mais sociais e reais na vida dos sujeitos estudantes – por exemplo, as variantes dentro línguas – que, sem dúvida, estão presentes nas inter-relações sociais dadas por meio da linguagem verbal humana.

Citação, destacabilidade e aforização no texto imagético?

A análise do exemplo anteriormente arrolado deixa claro que a proposta de Dominique Maingueneau é bastante pertinente para se pensar o trabalho de destaque de pequenos enunciados verbais, sobretudo os destaques realizados pelos mais diversos suportes midiáticos. Todavia, seria possível expandir epistemologicamente tal proposta com o objetivo de dar conta de objetos multimodais? Tomemos como exemplo duas fotografias publicadas pelo jornal Folha de S. Paulo, em 12 de outubro de 2010. As duas fotografias referem-se ao mesmo acontecimento histórico: visita à Basílica de Aparecida, em Aparecida do Norte, no estado de São Paulo, da então candidata à presidência da República, Dilma Rousseff, no dia 12 de outubro de 2010, feriado religioso em que se comemora o dia da Padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida.


A primeira fotografia foi publicada como manchete de capa da edição do dia 12 de outubro de 2010 do jornal Folha de S. Paulo. Logo abaixo da fotografia está escrito: "'Sem comunhão' Dilma assiste a (sic) missa em Aparecida (SP) ao lado de Gabriel Chalita (PSB atualmente PMDB); ela não comungou e deu a entender que a doença a reaproximou de Deus". Já a segunda foi publicada no mesmo dia na página A 34. Ambas focalizam a então candidata à presidência da República pelo Partido dos Trabalhadores – PT – Dilma Rousseff. Essa focalização, no entanto, é realizada em dois momentos distintos. Num primeiro momento (a primeira fotografia da esquerda para direita), aparecem as pessoas que estão ao lado de Dilma persignando-se, e esta não repetindo o mesmo gesto dos outros. No segundo momento (a segunda fotografia da esquerda para direita), mostra-se justamente o contrário, ou seja, Dilma benzendo-se e as pessoas que estão ao seu lado não repetindo tal gesto. Esse descompasso, no tocante ao ato de persignar-se pela então candidata, evidencia certo descompasso implícito, no que tange à inscrição no catolicismo da postulante ao cargo de presidente da república, e deixa explícito que ela supostamente não conhece a liturgia da missa. Ou, mais discursivamente falando, traz à tona uma memória discursiva que foi sendo gestada ao longo da campanha presidencial de 2010, que significa(ou) Dilma como adepta do ateísmo. Tal memória começou a ser gestada quando da manifestação da petista acerca da questão do aborto. À época, disse Dilma em entrevista: "Um governo não tem de ser contra ou a favor do aborto; ele tem de ser a favor de uma política pública". A maneira como esse enunciado foi dado a ler pela mídia gerou a constituição de uma memória sobre o ateísmo de Dilma, o qual é reiterado no destaque feito pelo enunciador jornalista ao flagrar a então candidata "errando" ao benzer-se na missa em homenagem a Nossa Senhora Aparecida. Essa memória é atualizada a partir do próprio passado da atual presidente que, durante a Ditadura Militar deflagrada a partir de 1964, militou em grupos de esquerda, vinculados aos postulados comunistas. Historicamente, existe uma não união entre os ideais comunistas – calcados no materialismo histórico, portanto no real dos processos históricos das relações sociais – e as doutrinas e ideais religiosos. Dessa forma, surge desse "descompasso" certa desconfiança em relação às práticas políticas a serem adotadas, caso a candidata à época fosse eleita, principalmente no que tangenciava as questões religiosas imbricadas no trato político, como, por exemplo, a legalização do aborto. Ademais, como afirmam Kress e Van Leeuwen (2006, p.365-366):

[...] il y a une différence fondamentale entre les images dont les participants représentés regardent directement les yeux de celui qui regarde, et les images où ce n'est pas le cas. Quand les participants representes regardent le spectateur, des vecteurs, formés par les trajectoires du regard des participants mettent ces participants en relation avec lui. Le contact est établi, même si ce n'est que sur un plan imaginaire (...) Le regard des participants (et leurs gestes, s'il y en a) exige quelque chose du spectateur, exige que le spectateur entre dans une sorte de relation imaginaire avec lui ou elle.

Tais fotografias, embora produzidas em momentos diferentes e, apesar de o autor representado não focalizar diretamente os leitores, deixam evidente o trabalho de aforização do enunciador jornalista, posto que ele flagra/destaca/apreende por meio de suas lentes inscritas na Formação Discursiva do jornal – que, nessa matéria, (pre)tendia a dissimular um suposto descompasso na liturgia religiosa – e por meio da aforização das fotografias o próprio momento em que elementos já-ditos, significados em outro tempo-espaço, independentemente, encaixando-se nos discursos sobre o ateísmo de Dilma e inscrevendo-os no intradiscurso cristão. Esse alhures do ateísmo de Dilma Rousseff é reiterado no enunciado verbal logo abaixo da fotografia: "'Sem comunhão' Dilma assiste a (sic) missa em Aparecida (SP) ao lado de Gabriel Chalita (PSB); ela não comungou e deu a entender que a doença a reaproximou de Deus". No enunciado em questão, a ênfase a ser recuperada de elementos pré-construídos, abrigados no espaço interdiscursivo dessas práticas discursivas, é dada, primeiro, pelo destaque conferido ao sintagma "Sem comunhão", grafado em caixa alta, em cor azul, portanto distinto, em cor e em diagramação, ao restante do enunciado e, segundo, pela escolha lexical da locução verbal "deu a entender" e pelo vocábulo "reaproximou". Assim, conforme assevera Maingueneau (2012a, p.38):

[...] comme l'aphorisation, la photo du visage est le produit d'un détachement, qui élimine tels ou tels éléments du contexte (vêtement, lieu, moment...) que montrerait une photo de l'ensemble de la personne. Ces deux détachements – celui de l'aphorisation et celui de la photo du visage – se renforcent l'un l'autre : le visage est celui du Subjectum, qui reste stable à travers la variation, tandis que l'aphorisation, en ce qu'elle exprime ce Subjectum, dit ce qui est valide au-delà de telle ou telle circonstance.

Além do mais, esse destaque, que amalgama texto verbal e visual, tem seus efeitos potencializados, visto que mostra o ateísmo de uma candidata à presidência de uma República, majoritariamente católica, no santuário e dia destinado à sua padroeira. Da mesma forma que a (re)produção da fotografia do jornal israelense, O tempo, em que Hilary Clinton e Audrey Tomasen são retiradas da história, nas fotografias da Folha de S. Paulo não temos um caso de interincompreensão regrada, isto é, um discurso segundo construído a partir do simulacro do discurso primeiro. Temos, sim, em ambos os casos, uma compreensão regrada pelas restrições semânticas de uma Formação Discursiva(FD). A diferença entre esses dois casos reside no fato de que, enquanto na (re)produção da fotografia do jornal israelense temos, em relação ao texto-fonte (fotografia do site do jornal americano The Atlantic), discursos produzidos a partir de saberes bastante distintos, recuperados das FDs em discrepância no interdiscurso – o que, por seu turno, implica a construção de acontecimentos discursivos também distintos –, no caso das fotografias da Folha de S. Paulo temos o mesmo elemento de saber sustentando as diferentes fotografias, o que implica a reiteração de um mesmo acontecimento discursivo.

(In)conclusões preliminares

Nosso objetivo neste texto foi o de tentar deslocar epistemologicamente as categorias de citação, destacabilidade e aforização propostas por Dominique Maingueneau (2006a, 2006b, 2010, 2012b), para dar conta de pequenos enunciados verbais, com o intuito de, com isso, tratar discursivamente de objetos multissemióticos, sobretudo os de natureza imagética. Entendemos que as análises empreendidas, embora pouco numerosas, autorizam tal deslocamento teórico, visto que, assim como o trabalho de aforização realizado pelo enunciador jornalista do JN, mostrado no caso da análise do livro didático de Língua Portuguesa Por uma vida Melhor, que (re)construiu um percurso interpretativo dominante para os telespectadores, a saber, que "o livro didático ensina a falar errado a língua portuguesa, corroborando uma língua não padrão, portanto uma língua errada", o destaque do descompasso de Dilma Rousseff ao persignar-se também (re)construiu um percurso de leitura para os leitores do jornal, qual seja, que "Dilma Rousseff é adepta ao ateísmo, portanto trabalhará a favor de políticas que não coadunam com a moral e com os princípios cristãos".

Portanto, cremos que, nos dois casos, as aforizações realizadas pelos jornalistas, a partir das restrições semânticas das Formações Discursivas nas quais estão inscritos – no material analisado, quais sejam, dissimular os acontecimentos em favor de um ponto de vista conservador em relação ao livro e de um ponto de vista tendencioso em relação a então candidata Dilma – constituem-se num percurso interpretativo deôntico. Ou seja, no momento em que o JN destaca seis enunciados do livro didático, silenciando todo o restante do texto e, também, no momento em que a Folha de S. Paulo destaca o suposto descompasso de Dilma Rousseff em relação à realização do sinal da cruz, silenciando todos os outros gestos realizados pela então candidata durante a missa na Basílica de Aparecida, o leitor é interpelado ideologicamente a um posicionamento de atribuir a esses gestos interpretativos um sentido que extrapola o seu sentido primeiro e a aderir a esse outro e único percurso em alguma medida. Ao dizer de Maingueneau (2010, p.15), a interpretação assume a equação: "[...] 'dizendo X, o locutor implica Y', onde Y é um enunciado genérico de valor deôntico." Sendo assim, reiterando, esse enunciado genérico de valor deôntico, no caso da primeira aforização, assume-se que "[...] se trata de um livro didático que ensina a falar errado o português." e, no caso da segunda, assume-se que "[...] se trata de uma candidata adepta ao ateísmo."

Poderiam nos objetar dizendo que há fotos que têm uma ampla circulação nos mais variados suportes midiáticos, que "todos" levam em conta e interpretam de maneira diferente, mas, a partir dessa constatação, afirmar que são aforizações, é como dizer que "bom dia" é um chiste, porque, afinal, é breve. Contra essa objeção nos posicionamos dizendo que, assim como o critério para classificar determinado enunciado como um chiste não se resume à sua brevidade, uma vez que provérbios, por exemplo, também são breves, mas nem por isso são chistes, a questão das fotografias em análise são aforizações, não somente pelo fato de circularem, mas pelo fato mesmo de interdiscursivamente entrarem em contato com uma verdade gestada alhures, apresentando-se como inquestionável, qual seja, a de que Dilma "é adepta do ateísmo".

As possíveis interpretações produzidas pelos leitores não são da mesma ordem e profundidade das que acompanham os textos literários, filosóficos ou religiosos, por exemplo. No entanto, trata-se de uma verdadeira "atitude hermenêutica", em que a exegese atual faz com que os leitores percorram um conjunto de trilhas interpretativas dadas previamente pelo enunciador jornalista. Ou seja, os leitores são mobilizados a interpretar o destaque, procurando (re)construir o percurso interpretativo desenhado pelo jornalista/jornal.

Recebido em outubro de 2011

Aprovado em novembro de 2012

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  • 1
    Uma das características mais marcantes da Análise do Discurso é a de que seus pressupostos teóricos, bem como seus procedimentos de análise, estão o tempo todo sendo revistos.
  • 2
    A Análise do Discurso irrompe na geografia francesa em 1969, com a publicação do livro
    Analyse Automatique du Discours – AAD-69. Esse livro, segundo Niels Helsloot e Tony Hak (2000, p.15),
    "[...] s'appuie sur une critique des formes traditionnelles d'analyse de contenu et d'analyse de texte. Ces analyses présupposent un sujet (l'analyste ou les « codeurs ») apte à « lire » le sens d'un texte. Pêcheux veut justement éviter de s'en remettre au sujet lecteur puisqu'il en résulte inévitablement une lecture idéologique. On doit cependant reconnaître que les analystes de contenu se préoccupaient eux aussi du rôle de l'intuition dans l'analyse."
  • 3
    No entendimento de Jean-Jacques Courtine (1999, p.12), "[...] não se faz a mesma Análise do Discurso político, quando a comunicação política consiste em comícios reunindo uma multidão em torno de um orador e quando toma a forma de
    talk-shows televisivos aos quais cada um assiste em casa. Também não se faz a mesma Análise do Discurso independentemente dos preconceitos, das compartimentalizações sociais e ideológicas, das polêmicas antigas ou recentes; tudo isso exerce suas restrições sobre o discurso das ciências humanas, na escolha de seus temas, na definição dos objetivos, na produção de recortes formais [e na (re)criação de categorias conceituais]."
  • 4
    Maingueneau, em
    Gênese do Discurso, entende texto em um sentido mais amplo, tal como "[...] aos diversos tipos de produções semióticas que pertencem a uma prática discursiva." (MAINGUENEAU, 2005, p.146). E enunciado quando se trata de produções estritamente linguísticas.
  • 5
    Muito resumidamente e sem fazer a justiça teórica que ambos os autores merecem, diríamos que a problemática do filósofo da linguagem Mikhail Bakthin se inscreve na questão da aproximação e alteridade de vozes outras na constituição dos discursos dos sujeitos ou, ainda, o papel desse outro e seus discursos na inter-relação entre os sujeitos por meio da linguagem. De forma semelhante, a abordagem discursiva de Jacqueline Authier-Revuz, em muito tributária a Bakhtin e a Lacan, trata da compreensão do Outro sócio-histórico corporificado num complexo interdiscursivo, que emerge ou se apaga nos fios discursivos, contribuindo também para as identificações e constituições dos sujeitos.
  • 6
    Maingueneau (2010, p.13)
  • 7
    A argumentação de Maingueneau, no que tange a esses termos, parece dialogar com as teorizações elaboradas por Oswald Ducrot acerca das instâncias da enunciação. Bastante resumido, o que se torna injusto com a teoria, este teórico propôs uma distinção entre locutor L, locutor lambda para analisar a tríada sujeito falante/locutor/enunciador e seus respectivos correspondentes no processo de comunicação, quais sejam, sujeito ouvinte/alocutário/enunciatário. Com isso, Ducrot buscou analisar os traços (alguns diriam vozes) que se distinguem nos enunciados que compõem a enunciação de um discurso. Obviamente, Maingueneau propõe o deslocamento desses conceitos ducrotianos para pensar na problemática da enunciação aforizante que, para este teórico, ultrapassaria tais instâncias.
    8 Esta imagem foi retirada da reportagem exibida pelo Jornal Nacional. A reportagem completa, aos interessados, encontra-se disponível em: <
    http://www.youtube.com/watch?v=yxXQi2GjIKc>. Acesso em: 29 nov. 2011.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Set 2013
    • Data do Fascículo
      2013

    Histórico

    • Recebido
      Out 2011
    • Aceito
      Nov 2012
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