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Território em rede: cartografia vivida e razão de Estado no Século das Luzes

DOSSIÊ

Território em rede: cartografia vivida e razão de Estado no Século das Luzes

Iris KantorI; Beatriz Piccolotto Siqueira BuenoII; Vera Lúcia Amaral FerliniIII

IDocente do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, curadora-científica da exposição Cartografia de uma história - São Paulo colonial: mapas e relatos. E-mail: <ikantor@usp.br>

IIDocente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, curadora-científica da exposição Cartografia de uma história - São Paulo colonial: mapas e relatos. E-mail: <beatrizbueno@terra.com.br>

IIIDocente do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, coordenadora-geral da exposição Cartografia de uma história - São Paulo colonial: mapas e relatos. E-mail: <veferlin@usp.br>

Introdução

Este dossiê coroa um trabalho de parceria interdisciplinar e interinstitucional1 1 . Exitosa parceria entre professores, pesquisadores e estagiários do Museu Paulista, do Departamento de História da FFLCH, da Cátedra Jaime Cortesão e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, que teve início por ocasião do preparo da exposição Cartografia de uma História. São Paulo: mapas e relatos, realizada no Museu Paulista entre março de 2005 e junho de 2006. , envolvendo o tema da cartografia histórica. Dá continuidade à edição anterior dos Anais do Museu Paulista - Cartografia de uma história: exercícios cartomuseográficos e releituras cosmográficas - séculos XVI e XVII -, enfocando, agora, o papel da cartografia no processo de produção do território luso-americano no Século das Luzes.

Os ensaios e reflexões compartilham de uma perspectiva teórico-metodológica comum, que compreende a documentação cartográfica como fonte para o conhecimento histórico.

Suportes e vetores do processo de formação dos Estados Dinásticos, mapas cumpriram papel estratégico, mediando, projetando e legitimando o exercício da soberania, no reino e nas conquistas ultramarinas. Expressão dos processos de territorialização dos Estados Modernos, eles mereceram investimento permanente proveniente das Coroas européias, tanto para o aperfeiçoamento das técnicas de representação como para a formação de quadros profissionais especializados na sua feitura.

Neste dossiê, procuramos articular três dimensões relacionadas à cartografia sul-americana. A primeira delas diz respeito aos usos políticos dos mapas em negociações internacionais, faceta eminentemente projetiva e nem sempre coetânea aos movimentos de ocupação e povoamento. A segunda dimensão refere-se ao processo de coleta, sistematização e elaboração de mapas, do campo ao gabinete. Por fim, uma terceira dimensão ilumina as formas de constituição e sedimentação das redes oficiais que se sobrepuseram aos espaços vividos, mapeados e previamente já ocupados.

Cada uma dessas dimensões alicerça um módulo temático. O primeiro módulo - Geopolítica e retórica nos mapas - abrange os ensaios de João Carlos Garcia e Carla Lois, de Iris Kantor, de Jorge Cintra, e de André Ferrand de Almeida. O segundo módulo - Cartografia vivenciada e produção do território -, com foco em séries cartográficas regionais, reúne os artigos de Glória Kok, Beatriz Bueno, Júnia Furtado, Maria de Fátima Costa e novamente de André Ferrand de Almeida. Explora o papel dinâmico da cartografia na lenta produção e apropriação de territórios e elucida como os mapas foram instrumentos estratégicos, enfatizando as tensões entre a razão de Estado e as realidades locais, que muitas vezes reorientaram o processo de acumulação de saberes sobre o território. O terceiro módulo -Tessitura das redes na Capitania de São Paulo: de fronteira a território2 2 . A inspiração do título deste módulo advém do ensaio de Vera Ferlini (2004). - apresenta o artigo de Vera Ferlini e outro de Beatriz Bueno, tratando do lento processo de enraizamento das redes administrativas, sua sobreposição e hierarquização. Através de exercícios de reconstituição de dados provenientes de mapas antigos, realizados em parceria com o Inpe, explora o processo de dilatação dos confins da Capitania de São Paulo.

Termo hoje polissêmico, território é um conceito de invenção recente, raro no século XVII e generalizado no Século das Luzes, concomitante ao processo de consolidação e definição das fronteiras dos Estados europeus. Em suas origens, o neologismo referia-se a um elemento constitutivo do Estado, expressão jurídica das Coroas em processo de espacialização de suas burocracias.

Partindo do princípio de que território3 3 . P. Alliès (1980). e espaço não são noções equivalentes, busca-se, no presente dossiê, desnaturalizar a idéia recorrente de território como algo espontâneo ou dado na natureza, e, ao contrário, sublinhar sua dimensão de artefato social.

Da vivência dos espaços à sua transformação em território, por intermédio do estudo da cartografia, os diversos artigos propiciam a visualização de um processo lento, envolvendo inúmeros atores e temporalidades distintas. A cartografia evidencia estratos de vivência e territorialidades sociais4 4 . B. Lepetit (2001). anteriores à presença dos colonizadores europeus. A produção e apropriação de territórios pela rede de atores coletivos e individuais, oficiais e extraoficiais, envolveu etapas sucessivas de acúmulo e/ou dispersão de informação, que aparecem registradas nas cartas e descrições geográficas como camadas arqueológicas de vivências. Nesse sentido, a cartografia setecentista propicia ao pesquisador múltiplas linhas de investigação, desde a experiência cotidiana de devassamento dos sertões aos avatares da razão de Estado.

Se o território não é um dado da natureza, mas precisa ser construído socialmente, em mundos novos isso significou complexas formas de interação entre os saberes indígenas e os europeus. Um fenômeno singular de apropriação cultural5 5 . M. Certeau (1994). de territorialidades nativas6 6 . S. B. de Holanda (1966; 1994). , de conhecimento e tradução de um saber em outro, de afinação de repertórios para construção de um denominador comum. Diversos documentos representam esse lento processo de intercurso cultural7 7 . F. Novais (1997). , de fertilização mútua. Por intermédio da documentação cartográfica, desenha-se uma ponte entre o saber local e os desígnios da razão de Estado, interesses nem sempre harmônicos e, na maioria das vezes, tensos. Síntese dessa conjugação de linguagens e territorialidades sociais, os mapas vertebram o conhecimento sobre o espaço, dando corporeidade ao território. Decantam, selecionam, recortam, nomeiam uma natureza descontínua e ilimitada, apropriando-se dela e dando-lhe tangibilidade. O estudo dos topônimos exemplifica uma dimensão deste peculiar intercurso cultural supracitado. A toponímia é indígena, mas dada pelo dominador, representando as interações entre um e outro. Há na língua indígena um atributo geográfico que expressa o caráter do lugar, mas é através dos mapas do colonizador que se faz inteligível e estrategicamente eficaz para orientar a interiorização e consolidação das fronteiras de territórios coloniais em construção.

Nesse quadro, a cartografia ibérica, majoritariamente manuscrita, presta-se de maneira modelar a uma leitura processual, transversal, diassincrônica do espaço. Diferentemente da cartografia impressa, que cristaliza momentos para divulgá-los em larga escala, a tradição ibérica, sigilosa e manuscrita, levou à não estabilização da informação, espécie de trabalho constantemente em andamento (work in progress). O caráter manuscrito da cartografia ibero-americana propicia o deslocamento das tópicas espaciais, comumente mais cristalizadas em mapas impressos.

A serialização dos mapas revela o processo de devassamento e construção de contiguidades geográficas, onde o caráter "de arquipélago" da colonização é superado por uma visão de conjunto. Só na cartografia a América portuguesa se torna apreensível como realidade geográfica e jurídica. Mapas têm, portanto, papel fundamental na produção de uma territorialidade única, contínua e homogênea. Como pesquisadores, temos, hoje, posição privilegiada para observar e desconstruir essas memórias espaciais herdadas.

  • ALLIÈS, P. L´invention du territoire Grenoble: Presses Universitaires de Grenoble, 1980.
  • CERTEAU, M. Invenção do cotidiano 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1994.
  • FERLINI, V. São Paulo, de fronteira a território: uma capitania dos novos tempos. In: ANTUNES, Ermelinda (cur.). Laboratório do mundo Idéias e saberes do século XVIII. Catálogo. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2004. p. 18-23.
  • HOLANDA, S. B. de. Movimentos de população em São Paulo no século XVIII. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 1, p. 55-111, 1966.
  • ______. Caminhos e fronteiras 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
  • LEPETIT, B. Por uma nova história urbana [Seleção de textos, revisão crítica e apresentação de Heliana Angotti Salgueiro]. São Paulo: Edusp, 2001.
  • NOVAIS, F. Condições de privacidade na Colônia. In: SOUZA, L. de M. (Org.). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa, v.1. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
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    . Exitosa parceria entre professores, pesquisadores e estagiários do Museu Paulista, do Departamento de História da FFLCH, da Cátedra Jaime Cortesão e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, que teve início por ocasião do preparo da exposição
    Cartografia de uma História. São Paulo: mapas e relatos, realizada no Museu Paulista entre março de 2005 e junho de 2006.
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    . A inspiração do título deste módulo advém do ensaio de Vera Ferlini (2004).
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    . P. Alliès (1980).
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    . B. Lepetit (2001).
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    . M. Certeau (1994).
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    . S. B. de Holanda (1966; 1994).
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    . F. Novais (1997).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Fev 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2009
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