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O Museu Paulista está fechado para obras: revisões críticas e colaborativas da pintura Independência ou Morte, de Pedro Américo

Museu Paulista is closed for works: critical and collaborative reviews of the painting Independência ou Morte, by Pedro Américo

RESUMO

Este artigo discute o conjunto de experiências colaborativas realizadas desde 2014 com pintores da Praça da República e do parque Trianon-Masp em reação ao fechamento temporário do Museu Paulista e à indisponibilidade da materialidade da pintura Independência ou morte, de Pedro Américo, durante a reforma dessa instituição. A partir de conceitos relacionados ao campo da pintura histórica do século XIX, aos processos de construção de memórias via símbolos oficiais do Estado, à prática de apropriação artística, incluindo também considerações dos próprios pintores participantes, este estudo evidencia como a arte contemporânea pode se aliar a outras subáreas das artes plásticas na produção de revisões críticas de obras históricas.

PALAVRAS-CHAVE:
Independência ou Morte; Pedro Américo; Museu Paulista; Trabalho colaborativo; Revisões críticas

ABSTRACT

This article discusses the set of collaborative experiences carried out since 2014 with painters from Praça da República and Parque Trianon-Masp as a reaction to the temporary closure of the Museu Paulista and the unavailability of the materiality of the painting Independência ou Morte, by Pedro Américo, during the renovation of that institution. From concepts related to the field of historical painting in the 19th century, to the processes of building memories via official State symbols, to the practice of artistic appropriation and including considerations by the participating painters themselves, this study shows how contemporary art can be combined with other subareas of fine arts to produce critical reviews of historical art works.

KEYWORDS:
Independência ou Morte; Pedro Américo; Paulista Museum; Collaborative work; Critical reviews

UM MUSEU EM REFORMA COMO CAMPO DE PROPOSIÇÕES

Esta investigação começa no Parque da Independência, uma área de 161.300 m2 no bairro do Ipiranga, em São Paulo, SP, onde se localiza o edifício conhecido popularmente por Museu do Ipiranga, mas de nome oficial Museu Paulista. Até 2018, o aviso “O Museu está fechado para obras” aparecia nas faixas de proteção que circundam o local e no seu endereço eletrônico. Aqui essa frase possui duplo sentido.

Evidentemente, um é factual. De 2013 à 2022, o Museu Paulista esteve fechado para a realização de diversas adequações. De acordo com a direção, o fechamento foi emergencial, por haver risco aos visitantes caso o prédio permanecesse aberto.2 2 No endereço eletrônico Museu Paulista em Obras | Museu Paulista (usp.br) foi possível acompanhar o andamento das obras, assim como os eventos e as parcerias ocorridas nesse processo. Em fevereiro de 2020, por exemplo, equipes restauravam as fachadas do prédio e as esquadrias de madeira de seu interior, enquanto outras higienizavam e cadastravam os achados arqueológicos da coleção. No entanto, “fechado para obras” pode ter outro sentido, que diz respeito não ao período em que a instituição ficou fechada ao público, mas que operou como metáfora de uma possibilidade, mais potente: a de que, diante da situação atípica, a instituição possa ser pensada como objeto a ser problematizado com mais vigor, uma espécie de campo de proposições para reflexões teóricas e ações artísticas capazes de repensar o papel desse museu na sociedade em que está inserido. Sob esse ponto de vista, ante a riqueza de possibilidades que o fechamento proporcionou, este artigo almeja demonstrar que, caso uma postura ativa diante do fechamento seja colocada em prática, o Museu, na verdade, nunca esteve tão potencialmente aberto.3 3 Todos os processos de mediação desenvolvidos no Museu Paulista aqui relatados fez parte de uma pesquisa de doutorado realizada no [trecho anonimizado] pelo autor deste artigo, com tese premiada pelo Prêmio Capes de Teses em 2020 e que buscou entender 29 museus na América Latina e Europa para além de suas narrativas oficiais. Um museu é também o ruído dos passos de seus visitantes, os objetos colocados em seus guarda-volumes, as selfies em seus banheiros, as sonecas roubadas, entre tantos outros acontecimentos que compõem um tipo de acervo que é, sem dúvida, informal, mas não menos valioso. Além do Museu Paulista, os museus experimentados foram: Ateneum, Kiasma, Galeria Nacional da Finlândia e Museu de História Natural da Finlândia, Helsinque, Finlândia; Hermitage, São Petersburgo, Rússia; Museu Arktikum e Museu Korundi, Rovaniemi, Lapônia; Museu Nacional de Arte da Romênia, Bucareste, Romênia; Museu do Prado e Museu Reina Sofia, Madri, Espanha; Museu Nacional da Catalunha e Museu Picasso, Barcelona, Espanha; Museu Nacional de Varsóvia e Museu do Exército Polonês, Varsóvia, Polônia; Museu Nacional da Letônia, Riga, Letônia; Hagia Sophia, Museu de Arte Moderna e Palácio Topkapı, Istambul, Turquia; Museu Nacional da Dinamarca e Galeria Nacional de Dinamarca, Copenhague, Dinamarca; Museu da Acrópole e Museu Arqueológico Nacional, Atenas, Grécia; Museu Arqueológico, Salonica, Grécia; Museu de Akrotiri, Santorini, Grécia; Museu Nacional da Colômbia, Museo de Arte del Banco de la Republica e Museo de la Independencia Casa del Florero, Bogotá, Colômbia; e Van Abbemuseum, Eindhoven, Holanda.

Figura 1
Fachada do Museu Paulista e sua faixa de proteção, 2016.

A constatação da possibilidade de um museu fechado para reforma se apresentar como campo ativo já se evidenciava em seu entorno. Visitas ao Parque da Independência realizadas entre 2016 e 2018 mostraram um museu cercado por grades de proteção que impedem a entrada no edifício projetado por Tommaso Bezzi, mas nem por isso totalmente esquecido. Turistas ainda aparecem na frente do prédio, alguns sabendo com antecedência que o acesso a ele não é permitido - selfies com a fachada do Museu ao fundo parecem ser suficientes. A partir de entrevistas realizadas com alguns desses visitantes, é possível afirmar que parte das relações afetivas com o entorno relaciona-se com experiências infantis de visita ao Parque, o que demonstra o papel de um lugar como esse na constituição de memórias culturais, coletivas e individuais, como aponta Assmann.4 4 Assmann (2011). Memórias, no plural, pois tal processo é dinâmico, sempre atualizado a partir do que é dado no presente - o passado sempre é novo, aponta Svevo.5 5 Svevo (2006).

Essas atualizações condicionadas a partir do contexto aqui considerado (o Museu fechado) podem ser notadas não só nos turistas dali, mas também em outros sujeitos e práticas. O fotógrafo Raimundo Alberto Pereira ainda hoje utiliza o entorno do edifício, em especial a escadaria que liga o Museu ao jardim, como cenário para as fotografias de casais.6 6 Em conversa com autor do artigo realizada em 10 de outubro de 2018. A diferença é que agora um dos enquadramentos é evitado - aquele que coloca os casais em uma diagonal tendo como fundo a entrada do Museu, seus pilares e, quando possível, o céu azul. Hoje, esse ângulo revela o edifício em reforma.

Figura 2
Recém-casados posam para fotografia em frente do Museu Paulista, ainda que fechado. São Paulo.

Essas práticas (a das selfies e a do fotógrafo profissional) orientadas a partir da área externa do Museu confirmam a eficácia dos termos “monumento-museu” e “museu-monumento”, utilizados por pesquisadoras como Mattos7 7 Oliveira e Mattos (1999). e Salles Oliveira8 8 Oliveira (1997). para caracterizar este edifício desde a sua construção (incluindo seu período aberto), assim como a ideia de “monumento” de Alois Riegel9 9 Em texto que é introdução do projeto de lei “Projet de législation des monuments historiques”, publicado em 1903, sem o nome do autor, pelas edições da Comissão Central de monumentos históricos austríacos. para artefatos que perpetuam a memória coletiva. Agora, com o Museu fechado, esses títulos mostram-se ainda mais pertinentes.

Do exterior do Museu, seguimos ao interior do prédio, numa tentativa de expandir a ideia de que o fechamento do Museu não é uma situação de total inação. No hall de entrada, agora com as duas estátuas de bandeirantes tampadas, somente a equipe interna, trabalhadores contratados e, esporadicamente, pessoas autorizadas pela direção (como alguns especialistas e jornalistas) podem entrar ali. Antes de passarem para espaços internos mais significativos, elas submetem-se a um procedimento de segurança. Todos devem colocar capacetes de proteção, numa espécie de ritual de significados diversos. Com o acessório na cabeça, as pessoas não são visitantes; são indivíduos identificados por nome, sobrenome, profissão e documento, autorizados a entrar não mais em um espaço expositivo, mas em um canteiro de obras. Além disso, a entrada de engenheiros, conservadores, mestres de obras, operários de construção, autoridades políticas e grandes empresários (que usam o espaço como cenário de assinaturas de parcerias diversas) mostra que ações estão acontecendo diariamente por ali, criando uma rede pouco conhecida fora daquele espaço, mas muito dinâmica e com objetivo desafiador: entregar o Museu reformado em 2022.

Figuras 3 e 4
Estátuas dos bandeirantes cobertas por tecido, durante a reforma do Museu Paulista, São Paulo.

Para além das áreas internas e externas ainda operantes, há uma circunstância específica que constitui o ponto central deste artigo. Diferentemente da maioria dos cerca de 125 mil objetos e documentos que constituem seu acervo, uma obra específica não foi transferida para abrigos temporários durante a restauração do edifício. Ela permanece onde está desde 1895.

Em grande parte por sua considerável escala (415 cm de altura por 760 cm de largura), a obra Independência ou Morte, uma pintura a óleo de 1888 realizada por Pedro Américo, só poderia ser retirada do museu se literalmente parte do prédio fosse demolida. Como o Museu Paulista é uma construção tombada nas esferas municipal (Conpresp), estadual (Condephaat) e federal (Iphan),10 10 Tombamento federal, processo 1348-T95, de 26/06/1998; tombamento estadual 08486/69, de 02/04/1975; e tombamento municipal realizado pela Resolução 05/91 de 05/04/1991. danificar a estrutura do prédio para a retirada da obra seria uma tarefa repleta de burocracias e impedimentos.11 11 De acordo com a direção do Museu, até mesmo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no auge da popularidade do seu segundo mandato, tentou e não conseguiu fazer com que a obra fosse retirada do Museu para exibição em Brasília durante as comemorações de 7 de setembro.

Figura 5
Sem título (a pintura de Pedro Américo em seu contexto expositivo).

Mais do que uma obra de grandes dimensões e de fundamental importância para a coleção do Museu Paulista, a pintura é também uma das mais conhecidas do Brasil - imagem que, como veremos, se espalha e se transforma nos mais diversos contextos e maneiras, sem necessariamente depender da materialidade da obra. A inacessibilidade ao Museu criada pela reforma propicia oportunidade única para estudos sobre a fruição dessa obra de arte específica. As experiências aqui discutidas e contextualizadas a partir dessa situação ajudam a entender melhor o complexo sistema que forma um museu e sua obra principal, em especial a compreensão de que uma obra de arte e uma instituição cultural nunca são apenas o objeto material (ou ação artística legitimada) ali exposto e o edifício construído. Esta pesquisa se orienta a partir de diversos estudos que sinalizam o museu como sistema de múltiplas camadas, entre eles os de Valéry12 12 Valéry (2008). e de Adorno13 13 Adorno (1998). que, como aponta Arantes,14 14 Arantes (1991). indicam que o museu é, sim, um reduto de visões mortas (Valéry) e de nossa realidade catastrófica (Adorno), mas também carrega a potência dessa morte que pode ser utilizada para a arte presente. Essa discussão, aliás, perpassa a teoria e influencia a prática de diversos artistas, muito bem sintetizada na exposição e catálogo “The Museum as Muse”, ocorrida no MoMA, com curadoria de McShine.15 15 McShine (2002). Entre os nomes e projetos dessa mostra estão Claes Oldenburg (Mouse Museum, 1965-77) e Fred Wilson (Art in Our Time, 1998).

Figura 6
Fotografia em altíssima resolução da pintura Independência ou Morte, na escala 1:1 e utilizando a mesma tecnologia aplicada pelo Google Art Project. Imagem doada ao Museu Paulista, São Paulo.

O estímulo inicial para ações discutidas neste artigo e que foram pensadas para complexificar o Museu e sua obra principal foi um conjunto de questionamentos: quais são as mudanças ocorridas quando a materialidade de um pintura histórica tão poderosa se torna indisponível ao público por um período tão longo? Quais camadas discursivas da pintura e do museu continuam atuando enquanto ele permanece fechado? Como os arquivos diversos e as memórias dos visitantes que estiveram no Museu devem ser analisados diante da situação de suposta inação? Essas perguntas orientam em especial as ações discutidas na parte dois deste artigo, que apresenta uma espécie de inventário dinâmico de algumas apropriações da pintura de Américo antes e depois do fechamento do Museu.

Já nas partes seguintes, as ações são de ordem mais incisivas e constituem aqui o cerne da pesquisa: como se aproveitar da lacuna existente (o vazio deixado pela ausência da fisicalidade da pintura em questão) para estimular investigações acadêmicas e experiências artísticas que não só discorram sobre a situação, mas também contaminem o imaginário em relação à obra com outras possíveis versões?

INDEPENDÊNCIA OU MORTE PARA ALÉM DO MUSEU PAULISTA

No Museu Paulista, a obra está em uma moldura chumbada na parede, e a retirada do quadro certamente a danificaria - mais um motivo para permanecer no edifício durante a reforma. Entretanto, embora, enquanto objeto, a pintura esteja esticada, fixada e exibida no mesmo local desde 1895, isso não significa que a imagem representada por ela esteja estática.

Nem mesmo a concepção dessa imagem foi fruto exclusivo de uma criação autônoma e livre de influências anteriores - aliás, será que alguma obra de arte verdadeiramente se encaixa nessa condição independente? Tratar a pintura de Pedro Américo como matriz de todas as suas reproduções, apropriações e releituras é cometer a ingenuidade de acreditar que ela é consequência de um ato isolado de um artista retirado de seu contexto, assim como ignorar que a obra permanece em transformação após a ação de seu criador.

De acordo com Oliveira,16 16 Oliveira e Mattos, op. cit. diversos artistas procuraram retratar a proclamação da independência do Brasil por meio de pinturas e gravuras. No Museu Imperial de Petrópolis está exposto o quadro A Proclamação da Independência, pintado por François-René Moreaux em 1844, que já ensaia o que seria representado com mais dramaticidade na tela de Américo. Em Nova Iorque, no acervo do Metropolitan Museum of Art, há outra pintura também considerada como possível influência à obra: 1807, Friedland, do pintor francês Jean-Louis Ernest Meissonier. Datada de 1875, a tela retrata a vitória de Napoleão Bonaparte em uma batalha na Rússia e possui disposição de cavaleiros e vegetação rasteira em primeiro plano análogas à criação pictórica de Américo.

Em artigo escrito à revista Veja, Gaspari17 17 Gaspari (1982). afirma, em tom de exclusividade e escândalo, que Américo copiou Meissonier. Ora, afirmar isso é desconhecer tanto como se dava o processo de criação de pinturas históricas quanto o fato de que a noção atual de originalidade pouco tem a ver com o significado atribuído a esse conceito à época em que elas foram pintadas. Nem Independência ou Morte, nem qualquer das outras pinturas citadas foram fundadoras, pois, desse sistema artístico, a ideia de originalidade é vaga e problemática.18 18 Na verdade, a ideia de originalidade parece não funcionar também para obras contemporâneas: uma obra de arte sempre opera a partir da releitura (de forma implícita ou explícita) de outras práticas do passado e alimenta com novas camadas um sistema complexo de valores, em um fluxo correspondente ao registro da comunicação, como tão bem discorre Cauquelin (2005).

Além disso, o surgimento de novas versões da imagem Independência ou Morte iniciou-se bem antes do fechamento do edifício. Há, por exemplo, na coleção do Museu de Miniaturas de Passa Quatro uma maquete que recria em três dimensões a cena do quadro. Outros exemplos poderiam ser dados, mas, mais do que seu caráter anedótico, interessa-nos entender como, antes da instituição fechar, a obra de Américo já atuava intensamente para além de seu espaço expositivo. Analisar de que formas isso se dava é uma importante etapa para qualquer investigação que pretende intensificar essa atuação para além do Museu, agora em contexto ainda mais ideal.

Figura 7
Maquete da pintura de Américo, 1999. À frente, uma reprodução bidimensional da obra.

A indisponibilidade da materialidade da pintura de Pedro Américo, portanto, não inaugura a disseminação de outros discursos relacionados à obra, mas sim uma fase nova em sua história: enquanto permanece inacessível ao público, as camadas da imagem para além da pintura física parecem tornar-se mais evidentes e relevantes. Até a reabertura do museu, as memórias e seus documentos, além das diversas apropriações da imagem na cultura visual, passam a ser mais do que prolongamentos das possíveis discussões sobre a tela de Américo. É um momento fascinante em que esses materiais variados, muitos deles livres das amarras de uma autoria específica, tornam-se ainda mais autônomos. Autonomia, aliás, que já existia antes mesmo da pintura em questão chegar ao Brasil. Como aponta Lima Jr., Schwarcz e Stumpf,19 19 Lima Jr., Schwarcz e Stumpf (2022). na ocasião da primeira exposição da pintura em Florença, Américo realizou reproduções da obra que foram enviadas ao Brasil como uma espécie de preparação para a chegada da pintura oficial em território brasileiro.

Mas de que tipo de materiais tratamos aqui? Parte considerável deles constitui-se de imagens criadas a partir da pintura de Américo que proliferam na internet a partir dos chamados memes (discursos visuais que se espalham no contexto virtual). Material que é consequência da relação tensa entre obra de arte e fotografia “que surgiu entre ambas quando as obras começaram a ser fotografadas” e que hoje, no digital, opera em uma lógica sem mais conter “o original originário” descrito por Benjamin,20 20 Benjamin (1987). espalhando-se de modo essencialmente dispersivo, fraturado e com temporalidades flexíveis, como aponta Steyerl.21 21 Steyerl (2009).

Esses memes já se alteraram significativamente ao longo dos quatro anos desta investigação, mas, de forma geral, mantêm a inserção de um balão e uma frase que substitui o grito da independência vindo da representação de D. Pedro I. Até 2016, a maioria das imagens relacionava-se a times de futebol e a músicas populares; uma das mais conhecida faz o imperador cantar trechos do funk Passinho do Volante - “Ah! Lelek Lek Lek” -, de MC Federado, com mais de trinta milhões de visualizações no YouTube. Também é recorrente encontrar nas pesquisas do Google uma apropriação da década de 1970 feita para o jornal Pasquim, em que D. Pedro grita “Eu quero Mocotó!!!”, imagem esta que não foi bem recebida pelo governo militar da época e que culminou na prisão da redação do jornal por dois meses. Assim como em outros períodos históricos anteriores, em 2016, o contexto político brasileiro produziu releituras politizadas da imagem. Após o golpe institucional que derrubou a presidente eleita democraticamente Dilma Rousseff, internautas criaram versões do meme em que D. Pedro I grita “Foi Golpe” e “Fora Temer”. Imagens assim circularam com frequência no feriado de independência dos três anos seguintes à mudança de governo, especialmente nas redes sociais.22 22 Nos memes, quem fala não é o imperador, mas o imaginário popular a partir de um material visual que é conhecido por parte considerável dos brasileiros. Nessas imagens, pela boca do imperador, fala na verdade um brasileiro indignado e, quase sempre, piadista.

Figura 8
Jaguar. Sem título, novembro de 1970.

Figura 9
Autor desconhecido. Sem título, data desconhecida.

Nos resultados de imagens do Google, as reproduções sem intervenções da pintura nem sempre são fidedignas. Duas imagens são as mais clicadas: a primeira segue o tom ocre da obra agora indisponível; a outra deixa a cena em tons mais azulados, após um evidente tratamento em um programa de edição de imagem.

Figuras 10 e 11
As duas imagens mais clicadas no Google relacionadas à busca “independência ou morte pintura”, datas desconhecidas. Autores desconhecidos.

A partir da continuidade do levantamento iniciado pelo serviço educativo do Museu Paulista de livros didáticos brasileiros para a exposição Imagens Recriam História, exibida no Museu Paulista em 2007,23 23 A continuidade dessa pesquisa nos livros didático só foi possível graças ao apoio do próprio Museu Paulista que ofereceu uma bolsa de graduação em 2016 para a estudante de História Beatriz Bau atualizar parcialmente esse material. Guilherme Callegari, assistente do autor deste artigo na época, finalizou o restante da lista de livros. foi possível também realizar pesquisa do uso da imagem da obra no contexto educacional. Ao se analisar como a cena aparece em livros didáticos até 1990, todos provenientes do acervo da Biblioteca do Livro Didático da USP, ficou evidente que as mudanças da imagem não são privilégio de manipulações na internet, pois também acontecem nas páginas dessas publicações.

A variedade de transformações é grande. Algumas são específicas do exemplar pesquisado quando, por exemplo, a reprodução da imagem recebe algum tipo de intervenção amadora, como riscos de caneta ou danificações no papel suporte. Outras mudam completamente os tons da pintura, reconstroem o quadro a partir de desenhos feitos por outros autores ou cortam grandes áreas da composição pictórica. Além disso, quando as imagens são analisadas nos contextos em que aparecem nos livros, surgem mais mudanças de sentido. Há alguns casos em que a imagem aparece totalmente descontextualizada, sem nenhum tipo de legenda. Em outros, mais radicais, o texto descritivo da imagem deixa de informar que se trata da reprodução de uma obra, transformando a imagem em uma espécie de fotografia jornalística, prova documental.

Essas imagens da internet e de livros didáticos compõem uma pequena fração do levantamento produzido ao longo de quatro anos para esta investigação. Também estão nesse arquivo: imagens de ensaios de moda realizados no salão onde está a pintura (com partes dela ao fundo); guardanapos, cardápios e fachadas de estabelecimentos comerciais do bairro do Ipiranga que se apropriam de elementos da obra; canecas, camisetas, almofadas e cobertores à venda em lojas etc. Mais do que a análise detalhada desse material, importa aqui como a circunstância do fechamento do Museu pode ser pretexto para atuar direta e conscientemente neste arquivo de reproduções e apropriações. Isso indica que a imagem de Independência ou Morte não é só de Américo. Ela pode ser de qualquer indivíduo que deseje repensá-la, inclusive com atualizações críticas.

Dois conceitos foram importantes para trilhar ações que se aproveitaram dessa maximização da possibilidade de revisão dada pelo contexto de fechamanto temporário do Museu. O primeiro é o de “libertação do passado” defendida pelo historiador Chesneaux,24 24 Chesneaux (1962). que define instituições museológicas como sistemas em constante transformação e atuação sobre o público visitante - um processo dinâmico de convencimentos nunca totalmente finalizados e passíveis de alteração. As narrativas oficiais e as muitas estratégias do Museu Paulista não são estanques. Se temos a impressão da validade de um senso comum que afirma que “museu é local de coisas mortas” é porque seus discursos são permanentemente reafirmados - mas a ideia de permanência não deve ser confundida com imutabilidade.25 25 Esta percepção é importante não só face a museus, mas também para a busca de novas formas de reação a um mundo capitalista que constantemente vende a ideia de que suas práticas consolidadas são os únicos modos possíveis de existir nas sociedades contemporâneas, quando na verdade são construções coletivamente reiteradas - como as ideias de família e de propriedade privada. Essa questão é intensamente discutida por autores de influência marxista. A ideia de “imagem distanciada” de Bertolt Brecht que, dentre outras coisas, discute o fato de que nem tudo que parece natural é imutável, é um exemplo. Outra referência para isso é o tratado materialista histórico de Friedrich Engels lançado em 1884, A Origem da família, da propri. edade privada e do Estado, que discute como são intrincadas as relações entre formas de produção e estruturas de organização familiar, incluindo a naturalização da posse da mulher pelo homem.

Figuras 12 e 13
Livros didáticos transformam a pintura, respectivamente, a partir de interferências de seus leitores e a partir da ausência de uma legenda que explica se tratar de uma representação.

Chesneaux defende que os povos pertencentes ao que chama de “terceiro mundo” precisam se desvincular do “passado”, definido por ele como uma narrativa construída para legitimar a dominação dessas nações por parte de suas elites. Herdeiras do processo colonizatório, às classes dominantes interessa apenas a passividade geral da população, única forma de evitar a emergência de conflitos sociais que poderiam romper com a ordem estabelecida. Não se trata de rejeitar o passado oficial, mas, a partir de possíveis brechas, apropriar-se dele: “Se o passado tem importância para as massas sociais é num outro aspecto da vida social, quando se insere diretamente nas suas lutas”.26 26 Chesneaux, op. cit., p. 33. Essa libertação/apropriação contribui para que este estudo vá além da crítica superficial a museus como espaços problemáticos e autoritários, contribuindo para a adoção de atitudes propositivas para que as experiências nesses locais possam se dar de outras formas.

Já Rancière27 27 Rancière (2012). complementa essa ideia de libertação ativa a partir de seu conceito de “espectador emancipado”. Ele constrói suas ideias ao transpor um conceito da esfera educacional (a “emancipação intelectual”, formulada pelo filósofo da educação Joseph Jacotot no século XIX) para a esfera artística. É bem verdade que Rancière se mostra especificamente interessado no público do teatro e da performance, não no de outros campos artísticos, como as artes visuais. Mas a própria frequentação do texto de Rancière aponta para a possibilidade (e mais: a necessidade) de continuar a ampliação, iniciada pelo autor, do conceito de emancipação intelectual. Se inicialmente ele foi transposto do campo da educação para o do teatro, agora propõe-se sua aplicação ao campo mais amplo de quem se coloca como público diante de uma manifestação artística em forma de pintura histórica.

PARCEIROS

Mas como realizar essas revisões críticas? E por quem? Em uma visita dominical à Praça da República, em São Paulo, foi confirmada uma suspeita: nessa que é uma das mais antigas feiras de pintura da cidade e que ocorre todos os sábados e domingos, Américo é considerado um grande pintor, figura histórica lembrada por quase todos os artistas dali, assim como ocorre com Victor Meirelles. Mesmo assim, muitos desconheciam que o Museu Paulista estava fechado para reforma. E os que foram informados disso (ou os que já sabiam) mostraram-se incomodados com a indisponibilidade da pintura do artista que tanto respeitavam. Deu-se um contexto ideal - “é preciso fazer algo em relação a isso” foi uma das reações ouvidas.

Figura 14
Praça da República, São Paulo, e sua feira de pintura, 2018.

Uma ideia foi proposta a alguns dos pintores dessa praça e àqueles que ficam no Parque Trianon-Masp, na avenida Paulista, também em São Paulo. Tratava-se de realizar uma pintura que não fosse necessariamente uma cópia exata do quadro Independência ou Morte, mas que incluísse todos os elementos pictóricos presentes em sua composição. Alguns artistas aceitaram o desafio: Reginaldo Frazão (que também dá aulas de pinturas nos CEUs da capital paulista); José Almeida (conhecido na Praça por ser um habilidoso pintor fisionomista); Carla Soares (que vende quadros de flores e frutas); Helena Trindade (a pintora mais nova da Praça, com 37 anos); Silvio Jr. (especialista em pinturas sacras); Antônio Castro (que ocupa uma das maiores áreas da Praça); Moisés dos Santos (que declama poemas enquanto pinta); Carlos Silvério (que há quinze anos pinta paisagens impressionistas sem a presença humana com um rigor conceitual de sempre utilizar a mesma medida de 20 x 30 cm); Marco Andrade Jr. (crítico ferrenho da arte contemporânea); e Vanderlei Marinho (pintor especializado em cavalos que se mostrou muito feliz com o convite, já que a pintura de Américo é repleta de equinos). Dez pintores com diferentes personalidades e estilos, mas todos de acordo com algumas regras básicas combinadas para esse trabalho.28 28 Todo trabalho realizado por eles seria remunerado seguindo o preço padrão cobrado por suas obras encomendadas. Eles também sempre seriam creditados nas informações técnicas das pinturas, assim como, em eventuais vendas, o valor seria dividido por todos integrantes do projeto.

Na primeira das experiências, tendo como referência a fotografia da tela oficial realizada em parceria com o fotógrafo Berndt já citada na parte 1, a nova pintura não foi separada em áreas distintas para cada um deles. Os pintores foram responsáveis por toda a superfície pictórica e, muitas vezes, precisaram lidar com o fato de ter suas pinceladas modificadas por outros do grupo. A situação estimulou um intenso e rico diálogo sobre como equilibrar as diversas camadas autorais daquela imagem em formação. O processo ressaltava que um trabalho como aquele não era apenas uma ingênua colaboração com ganhos coletivos, mas também consistia em sucessivas perdas individuais, situação ilustrativa do conceito de “morte do sujeito” na pós-modernidade desenvolvido por Jameson.29 29 Jameson (1985). Essas subtrações não atingiam somente os pintores, mas também o autor deste projeto que, ao coordenar o processo, muitas vezes não conseguia convencê-los e era voto vencido. Além do mais, foi interessante notar que, em muitos momentos, esse trabalho de coordenação era também de assistência ao processo da pintura, incluindo a preparação de tintas e limpeza de pincéis. Condição não rara (mas pouco discutida) para muitos artistas contemporâneos que atuam em funções mais relacionadas à coordenação do que à fatura, em processos de redes colaborativas, como as investigadas por Becker,30 30 Becker (2008). muito mais complexas que o binômio artista/obra.

Foram quatro meses de trabalho coletivo para finalizar o primeiro dos resultados: uma pintura de 185 cm de altura por 380 cm de largura. Mais do que apenas uma obra em si, os artistas a entenderam como o primeiro passo de um processo de entendimento aprofundado da pintura de Américo e seus diversos elementos. Enquanto grupo, aprenderam juntos a ler aquela pintura, criando uma base comum de entendimentos possíveis para, em seguida, desestruturá-la ainda mais intensamente - uma práxis que remete à ideia de Benjamin31 31 Benjamin (2012). de que a reprodução liberta o objeto de arte do domínio da tradição ao colocá-lo em um processo de constante atualização.

Apesar da dimensão reduzida e da autoria compartilhada, poucas são as mudanças dessa primeira versão em relação à de Américo. Ali estão D. Pedro I em posição altiva capaz de ditar os novos (ou não tão novos) rumos do Brasil e a mesma composição de cavaleiros reforçando o efeito de autoridade do imperador e o conceito de “momento fecundo” de Lessing,32 32 Lessing (1984). crucial para que a obra de arte tenha um efeito máximo no espectador.

Os elementos mais discordantes em relação à pintura oficial são as áreas pintadas não tão realisticamente, fruto de pinceladas de diferentes autores, e as que propositadamente não receberam uma grande quantidade de tinta - revelando, assim, algumas camadas preparatórias feitas a lápis. Essas peculiaridades sugerem que se trata de uma versão não oficial da imagem, um trabalho artístico indeciso, dúbio, que ora opera na lógica de replicação do discurso realizado por Américo, ora ensaia uma crítica e um descompromisso com a História oficial do Brasil.

Figura 15
Independência ou Morte - Primeira experiência, 2014. Óleo sobre tecido, São Paulo.

Nos quatro meses de pintura, era bastante comum no fim do dia os pintores realizarem uma conversa entre eles sobre o processo coletivo. Alguns dos diálogos com os pintores foram registrados e foram aqui transcritos. Analisá-los é entender o descompasso existente entre a arte contemporânea e a arte do tipo mais realista “acadêmica” e o quão complexo é o fim da distinção entre cultura de massas e erudita discutida por Jameson,33 33 Jameson, op. cit. novamente pertinente para esta experiência. Parte considerável dessas conversas revelam certo incômodo desses artistas por estarem “copiando um Américo” (expressão ouvida mais de uma vez), mas tão logo uma certa consciência de emancipação, ainda que preliminar. Em relação a isso, o pintor Castro relata, três anos após essa primeira pintura:

Percebi aos poucos que utilizar a pintura de Pedro Américo para criarmos nossa obra não era necessariamente algo ruim, errado. Isso porque, durante o processo, deixamos claro que temos o trabalho do pintor como ponto inicial, referência principal. Na verdade, penso agora que se tivéssemos feito uma cópia mais semelhante ao quadro de Américo, bom… aí, sim, seria um problema: a tentativa de realizar uma falsificação. E isso, no meu modo de ver as coisas, não é certo.34 34 Em conversa gravada no dia 12 de novembro de 2017.

Outra inquietação entre eles não dizia respeito ao pintor paraibano nem a uma reverência a seu legado. Era uma preocupação mais individualista, relacionada ao que o futuro público da pintura poderia pensar sobre as habilidades técnicas dos pintores: Talvez seria interessante não terminar toda a pintura, mostrar um pouco o processo… Que tal? (Autor deste artigo); Você tem certeza? (Marco Andrade Jr.); Qual é o problema? (Autor deste artigo); É que vão achar que pinto mal (Marco Andrade Jr).35 35 Em conversa gravada no dia 22 de março de 2014.

Já outras conversas mostram certo desrespeito e ironia com a arte contemporânea, frequentemente tratada pelos pintores participantes como uma prática preguiçosa, realizada por alguém esperto, mas não necessariamente talentoso ou esforçado: Pode ligar para minha mulher. Diz que virei artista contemporâneo. Não volto tão cedo para casa, vou fazer qualquer coisa na tela, terminar e deitar na rede (Antônio Castro).36 36 Em conversa gravada no dia 23 de março de 2014.

Um quarto e último conjunto dessas conversas indica a dificuldade que eles encontraram para constituir uma prática artística mais livre da rigidez acadêmica, consequência do fato de serem artistas que realizam encomendas e, por isso, precisam seguir indicações, muitas vezes precisas, de seus clientes: Você acha que esse cavalo precisa ser mais escuro? (Carla Soares); Fique à vontade para escolher… O que prefere? (Autor deste artigo); Não sei. Estou acostumada a pintar o que pedem para eu pintar… (Carla Soares); Dessa vez não vai ser assim (Autor deste artigo); Então vou ter que criar? (Carla Soares); Vai ter que escolher o jeito que você achar melhor… (Autor deste artigo); Vale tudo? (Carla Soares); Praticamente (Autor deste artigo); Ixi, então vou ter que criar (Carla Soares).37 37 Em conversa gravada no dia 25 de fevereiro de 2014.

Transcrever os diálogos e analisá-los aqui, mesmo que brevemente, demonstra algo importante ao processo de pintura. Ouvir os dez pintores e construir uma relação que não necessariamente só os orientava, mas os estimulava a pensar sobre o que estavam fazendo, é considerado aqui muito mais valioso e pertinente do que a pintura feita. A experiência mostra a real possibilidade de realizar projetos capazes de reunir artistas do campo da arte contemporânea e artistas do campo mais tradicional e acadêmico, em modos muito mais complexos do que o procedimento simples que envolve a encomenda à distância e a creditação do resultado exclusivo ao artista contemporâneo.

Indica também que a junção de artistas de diferentes espectros das artes visuais pode criar obras híbridas, pertinentes não só para o sistema da arte contemporânea e sua tão recorrente prática de apropriação, mas também importantes para democratizar o acesso à discussão sobre obras de arte de outros períodos. Afinal, o que de fato aconteceu nesses quatro meses aqui relatados não foi apenas o processo de desenvolvimento de uma versão de uma pintura famosa, mas a constituição de um grupo de estudos que analisou criticamente os discursos visuais presentes em Independência ou Morte e comuns ao campo da pintura histórica do século XIX. Isso muniu esses pintores de certa autonomia e empoderamento que culminaram em experiências mais autônomas, radicais e políticas discutidas a seguir.

INDEPENDÊNCIA OU MORTE: O POVO

Nessa primeira experiência, não ter contato direto com a materialidade da pintura foi um ganho ao projeto, pois, desse modo, evitou-se o risco de excessiva dependência em relação à obra física de Américo. Isso permitiu a libertação, mesmo que parcial, desse grupo de pintores da lógica da contemplação criticada por Debord, para quem “quanto mais ele [o espectador] contempla, menos vive”,38 38 Debord (1997, p. 24). em um contexto no qual o espetáculo “não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediadas por imagens”.39 39 Ibid., p. 14.

Sem a tela de 1889, as referências disponíveis eram dispersas, contraditórias e insuficientes para que de fato se produzisse uma versão fidedigna da pintura. A situação imprecisa causou algumas inquietações já discutidas, mas também a construção de um processo de independência em relação à pintura de Américo, estimulando processos emancipatórios dos pintores. Já perto da finalização da primeira versão, era nítida a conquista de certo distanciamento em relação ao peso histórico da tela oficial.

Ao longo de 2014, uma prática se tornou corriqueira entre o autor deste artigo e seis desses pintores (Silvio Jr., Antônio Castro, Moisés dos Santos, Carlos Silvério, Marco Andrade Jr. e Vanderlei Marinho): realizar ao menos uma reunião quinzenal para discutir como foi a experiência, o que fazer em seguida e ter conversas mais gerais sobre pintura e artes plásticas. Nesse processo, foi discutido com frequência como a imagem construída por Américo ressaltava a figura oficial de D. Pedro I e sua tropa, marginalizando figuras do povo ao representá-las nos cantos do quadro. Trata-se, especificamente, das seguintes representações: a de um boiadeiro que guia um carro de boi no canto esquerdo; a de um homem de perfil montado em um cavalo, próximo de outro personagem que guia um burro de carga, mais ao fundo; a de um vulto na janela da Casa do Grito (à direita do quadro) representado com poucas pinceladas e, portanto, sem clareza de seu gênero e expressão; e a de duas crianças representadas de forma diminuta ao lado da Casa do Grito, apoiadas em uma cerca.

O incômodo com o fato de Américo ter dado tão pouco destaque a essas figuras humanas acentuou-se quando, em um desses encontros, o grupo leu o texto O Brado do Ipiranga, escrito em 1888 pelo artista como uma espécie de justificativa de suas escolhas formais para a realização do quadro. Em um pequeno trecho, quase no fim do documento, Américo trata rapidamente desses elementos humanos e os considera um tanto quanto inapropriados para a cena histórica produzida:

Pessoas conspícuas sugeriram-me a ideia de pintar no fundo do painel algumas das tropas de asnos características do sertão de São Paulo. Julguei ousadia fazê-lo em pintura de tão alto assunto; e apenas represento um carro de bois, ainda mais característico do lugar, para lembrar a placidez habitual daquelas paragens, inesperado teatro da extraordinária cena.40 40 Américo (1888) apud Oliveira e Mattos, op. cit., p. 26. No mesmo livro, Claudia Valladão de Mattos destaca que não se trata apenas de exclusão social, mas também racial: “É interessante notar ainda a total ausência de negros nesta reprodução da independência […] Vale lembrar que o quadro foi pintado depois da abolição da escravatura” (p. 97).

E continua, chamando-os de “meros acessórios”:

[…] as figuras situadas à esquerda do espectador são meros acessórios, que procurei estudar no próprio cenário da proclamação da Independência, tanto para acentuar a fisionomia deste, quanto para completar a harmonia linear da composição, atendendo às exigências da euritmia.41 41 Ibid., p. 26.

Incomodados com o fato de que “o povo foi praticamente esquecido” (conforme formulado por Castro), os pintores propuseram reagir à escolha formal de Américo realizando pinturas menores, mas que individualizassem as figuras populares (por sugestão de Marinho). Mais do que a pintura maior, dúbia em relação a sua postura crítica, as obras menores produzidas nos meses seguintes trataram mais diretamente da recusa perante o que o Museu do Ipiranga protegia em uma de suas principais salas. Aquele não foi apenas um processo constante de parceria e trocas, mas também uma ação que, aos poucos, mostrou-se efetiva para a contaminação do discurso oficial defendido por Américo e para a contribuição com os estudos que encaram essas e outras pinturas não apenas como obras importantes de nosso patrimônio material, mas como documentos do processo histórico de exclusão e violência que tanto marca a História do Brasil. Ao autor deste artigo, restou a sugestão de nomear a série de pinturas menores como Independência ou Morte - O Povo, o que foi aceito pelos pintores participantes.

Figura 16
Independência ou Morte - O Povo 1, 2014. Óleo sobre tecido, 150 cm x 100 cm.

Figuras 17 e 18
Independência ou Morte - O Povo 2, 2014. Óleo sobre tecido, 30 cm x 26,5 cm, São Paulo. Independência ou Morte - O Povo 3, 2014. Óleo sobre tecido, 108 cm x 124 cm, São Paulo.

Figuras 19 e 20
Independência ou Morte - O Povo 4, 2015. Óleo sobre tecido, 20 cm x 30 cm, São Paulo. Independência ou Morte - O Povo 5, 2015. Óleo sobre tecido, 20 cm x 30 cm, São Paulo.

A PINTURA PERFORMATIVA COMO ESTRATÉGIA CONCEITUAL

Um segundo momento de ações coletivas com esses pintores ocorreu dois anos após a primeira experiência e maximizou a prática de individualização das figuras populares na pintura de Américo. A situação se deu na exposição coletiva “Campos de Preposições”, com curadoria de O Grupo Inteiro, no Sesc Ipiranga. O convite não só ofereceu oportunidades para novas pinturas como para um novo contexto: o deck no jardim dessa unidade do Sesc, conhecido pelos frequentadores como “praia” por ser utilizado para banhos de sol.

Foi ocupado um painel de 4 metros de altura por 24 metros de largura frequentemente usado para a instalação de faixas educativas. De comum acordo, foi decidido não só individualizar o povo representado na imagem de Américo, mas também os próprios pintores, com seus estilos artísticos muito diferentes entre si, ao separar áreas específicas do painel para cada um deles. O campo de problematização também foi ampliado ao incluir na obra representações da flora e do riacho do Ipiranga. Esses dois elementos também recebem tratamento pejorativo no já citado texto do pintor.

Além da proposta de individualizar os trabalhos dos pintores, uma última decisão conceitual foi sugerida por Andrade, justamente o que antes se mostrava o mais crítico à arte contemporânea: não instalar nenhuma proteção na pintura ali realizada, a céu aberto, deixando-a vulnerável a intempéries e às possíveis manipulações dos frequentadores do Sesc Ipiranga. Destaca-se aqui o fato dessa sugestão ter sido feita por Andrade, pois indica como, nessa segunda experiência, o grupo de artistas (assim como o autor deste artigo) saíra transformado pela vivência anterior, encarando a arte como campo menos rígido e mais aberto a experimentações.

A pintura iniciou-se em 7 de setembro de 2016, dia em que se celebra a independência do Brasil, e só terminou em 15 de novembro, quando se comemora a Proclamação da República. Durante esse período, todas as terças e quintas-feiras, os pintores e o autor deste artigo trabalhavam no local. Não foi só o guia de programação do Sesc que tratou a ação como uma performance. O deck do jardim do Sesc Ipiranga é um espaço com alta densidade de pessoas; nele, moradoras jovens do bairro em seus biquínis e muitos idosos em seus maiôs e calções de banho deitavam-se em suas cangas, besuntados de protetor solar e bronzeador, assistindo durante horas à constituição das pinturas como uma espécie de espetáculo. Parte considerável deles, aliás, assumia a postura de um público ativo e sugeria melhorias nas telas.

Figura 21
Independência ou Morte - Riacho do Ipiranga, 2016. Óleo sobre tecido, parte do painel de 4 m x 24 m, São Paulo.

Figura 22
Independência ou Morte - O Povo 6, 2016. Óleo sobre tecido, parte do painel de 4 m x 24 m, São Paulo.

Figura 23
Independência ou Morte - O Povo 7, 2016. Óleo sobre tecido, parte do painel de 4 m x 24 m, São Paulo.

Figura 24
Independência ou Morte - O Povo 8, 2016. Óleo sobre tecido, parte do painel de 4 m x 24 m, São Paulo.

Figuras 25 e 26
Independência ou Morte - O Povo 9 e Independência ou Morte - O Povo 10, 2016. Óleo sobre tecido, parte do painel de 4 m x 24 m, São Paulo.

Figura 27
Independência ou Morte - Vegetação. Óleo sobre tecido, parte do painel de 4 m x 24 m, São Paulo.

Reação recorrente por parte do público foi a dificuldade em entender que estávamos interessados não nas partes principais da pintura de Américo, mas nos “meros acessórios”, como o artista caracterizou o povo no texto já discutido. Isso foi percebido nas muitas vezes em que os visitantes viam oficialidade onde não havia. A cada novo rosto pintado, alguém perguntava se aquele era o do “imperador”, “rei”, “presidente”, “Pedro Álvares Cabral”, dentre outras variações - nomes que, em essência, significavam a mesma coisa: a fisionomia do Estado. Na última semana, uma frequentadora chamada Elizabete Sampaio compartilhou um comentário representativo: “Está errado, pessoal. Se é pintura religiosa, tem que ter Jesus e santos. Se é histórica, tem que ter imperador ou, ao menos, uma rainha”.42 42 Declaração dada em 10 de novembro de 2016.

Figuras 28, 29 e 30
Registros do processo de pintura com a presença de frequentadores do Sesc Ipiranga, 2016, São Paulo.

Figuras 25 e 26
Independência ou Morte - O Povo 9 e Independência ou Morte - O Povo 10, 2016. Óleo sobre tecido, parte do painel de 4 m x 24 m, São Paulo.

Este comentário sugere como a composição artística não é um processo exclusivo do artista e de seu processo criativo, mas também altamente influenciada por pressões externas. Isso parece ainda mais acentuado em qualquer projeto que se relaciona com obras de arte históricas. Não por acaso, o tom do texto de Américo é de justificativa. Antes mesmo de finalizada, uma pintura histórica já carrega consigo a obrigação de seguir determinados códigos preestabelecidos pelo sistema da arte, além de esperados pelo público.

A segunda experiência de problematização com a imagem de Independência ou Morte apresenta-se como pertinente para a compreensão da pintura e seus usos. Foi através da pintura e seus códigos facilmente reconhecíveis que o projeto conseguiu convidar pessoas de diferentes tipos para pensar sobre questões que não necessariamente diziam respeito à ação pictórica ali realizada, mas a modos de problematizar os símbolos oficiais do Estado, à marginalização do povo na política oficial e ao fato de uma obra de arte nunca ter apenas uma constituição material. Esse é um exemplo da grande capacidade comunicativa da pintura figurativa, e compreender isso com profundidade é também entender a existência de uma estratégia eficaz para se produzir uma arte conceitual mais inclusiva e democrática. Sobre o uso da pintura como estratégia, o artista Francis Alÿs escreve no catálogo de sua individual no MoMA algo que corrobora o argumento aqui apresentado:

Pinturas figurativas são acessíveis a um público amplo e podem ser utilizadas como um meio de limitar (e quem sabe às vezes criar uma ponte sobre) o abismo atualmente existente entre o público geral e a cena, mais elitista, da arte contemporânea, sem negar ou diminuir a eventual contemporaneidade do conteúdo. Eu espero.43 43 Alÿs (2010) apud Biesenbach e Strake (2010, p. 38).

O período de realização dessa pintura coincidiu com momento de forte instabilidade política no Brasil, marcado pela destituição em andamento de Dilma Rousseff e pela realização das eleições municipais. Por isso, o projeto artístico também serviu de pretexto para dois momentos de manifestações nesse sentido. No feriado da independência do Brasil, 7 de setembro, a ação começou com uma visita ao Museu Paulista a convite da então diretora da instituição, Solange Lima. Ali, os pintores puderam ver a pintura de Américo pela primeira vez desde o fechamento do local e pensar nas possibilidades artísticas que poderiam colocar em prática no painel do jardim do Sesc Ipiranga. Nesse dia, o autor deste artigo aproveitou o momento e a presença de todos para explicar sua visão pessoal sobre o projeto e destacar sua relação com o contexto político da ocasião - que de certo modo também revelava uma subrepresentação popular, já que ia de contrário ao resultado das eleições presidenciais de dois anos antes.

Figura 32
7 de setembro, manhã, antes do início da pintura do painel no Sesc Ipiranga. Pintores sendo recebidos pela diretora do Museu Paulista, Solange Lima, para verem a pintura de Américo, São Paulo, 2016.

Destaca-se aqui a entrada no Museu em pleno 7 de setembro e a fala que deu início ao projeto pois essas ações parecem ter dado o tom que marcou toda a experiência. Inúmeras vezes, os pintores comentaram entre si que o fato de que foram recebidos pela diretora do Museu e entraram no local onde está a obra os valorizava profissionalmente. E o discurso inicial de tom mais politizado contribuiu para que eles se vissem não apenas como pintores com aprimoradas técnicas artísticas, mas também como autores de uma obra de alto teor contestatório.

No encerramento da mostra, em uma conversa pública realizada no feriado da proclamação da República, o efeito da combinação da valorização profissional e do reconhecimento institucional dos pintores por parte do Museu Paulista, assim como a demarcação daquele território de ação não só como artístico, mas também como político, teve pertinente consequência para o conceito já apresentado de emancipação. Havia semanas, o pintor Silvério estava preocupado com a vitória de João Dória para a prefeitura de São Paulo, após alguns boatos de que ele poderia proibir a presença de artistas na avenida Paulista - o que, felizmente, não se confirmou. No evento, ele se sentiu confortável para usar o microfone e pedir ao público ali presente que ficasse atento ao prefeito recém-eleito, em especial à maneira com que ele trataria os artistas de rua. Em seguida, discursou sobre a importância da arte popular. Silvério era o mais tímido do grupo de pintores.

INSERÇÃO NO MUSEU PAULISTA E AÇÕES EM OUTROS MUSEUS E COLEÇÕES

Em 2018, um movimento por parte do Museu Paulista contribuiu para potencializar o projeto Independência ou Morte - O Povo, em especial seu interesse por criar novos prolongamentos visuais da imagem de Américo: uma das pinturas da série, a que individualiza o boiadeiro, realizada na primeira das experiências (Figura 17), foi adquirida pela instituição e, agora, faz parte de sua coleção.

A aquisição da obra a coloca no mesmo sistema que legitima a pintura de Américo. Agora, ela pode ser um objeto artístico a ser exibido no Museu Paulista quando reaberto, dividindo o mesmo espaço físico com a obra que revisa criticamente, disputando narrativas. Mas, para além da questão expositiva, há uma camada arquivística que não depende da reinauguração do local e que já foi oficializada. Uma pesquisa na coleção do Museu sobre “Independência ou Morte” inclui, agora, além do conjunto de resultados que se relaciona apenas com a grande pintura a óleo de Américo e que contribui para construir a visão oficial da independência do Brasil, uma imagem que reforça algo que a pintura maior justamente tenta minimizar: a presença do povo brasileiro. Trata-se de um caso em que, de fato, uma obra de arte conceitual conseguiu contaminar um sistema oficial com significados e discursos.44 44 Como combinado, o valor oferecido pelo Museu foi dividido com os pintores que, hoje, mostram-se felizes por possuir uma obra de arte em uma importante coleção brasileira e possuem claro entendimento da operação discutida aqui.

A entrada da obra na coleção do Museu Paulista fez com que o autor deste artigo se reunisse com os pintores no final de 2018. O que era para ser um encontro de comemoração logo se transformou em uma oportunidade para decidir o que seria feito dali em diante. O projeto Independência ou Morte - O Povo não deixou de existir depois que o longo painel do Sesc Ipiranga foi retirado e armazenado. As novas versões da pintura de Américo até hoje dão continuidade à individualização das áreas que mostram o povo na imagem. Ainda assim, aquela reunião mostrou uma vontade maior por parte dos pintores. Juntos, notou-se que, mais do que uma revisão crítica consistente de uma pintura conhecida, criou-se também algo além da problematização de Independência ou Morte. Trata-se de uma espécie de metodologia própria de problematização de pinturas históricas, até então só aplicada à imagem de Américo, mas de fácil replicação em outros discursos visuais oficiais. Essa metodologia se baseia na estratégia de utilização dos próprios discursos visuais da oficialidade da História para desconstruí-la e destacar suas ausências e limitações, em ações inspiradas na noção de que as narrativas oficiais a partir de imagens não só perpertuam visões legitimadas, mas suprimem vários outros modos de compreeensões, como discorrem Trouillot45 45 Trouillot (2015). e Azoulay.46 46 Azoulay (2012).

É uma etapa ainda em processo, mas já com alguns resultados. A primeira experiência de extensão da pesquisa se deu com Proclamação da República (1889), uma pintura de Oscar Pereira da Silva que integra a coleção do Museu Casa de Benjamin Constant, Rio de Janeiro, RJ. Chama a atenção nessa composição pictórica como o movimento de proclamação da república ocorre de forma totalmente afastada do público que a assiste. As figuras populares nessa obra não só estão separadas do acontecimento histórico por uma simples disposição geográfica, mas também por um cordão de militares que isola tudo o que ocorre como fato histórico e, como se não bastasse, dá as costas para o povo que não pode se aproximar. Em uma nova cena que é ilustrativa para estudos sobre o autoritarismo brasileiro, entre eles o de Schwarcz,47 47 Schwarcz (2019). na nova versão, foi pintado uma faixa horizontal somente com esses militares, numa tentativa de destacar que os processos históricos brasileiros invariavelmente são produzidos a partir do uso intenso da força do Estado.

Figura 33
Proclamação da República, 1889. Óleo sobre tela, 80 cm x 124 cm, Museu Casa de Benjamin Constant, Rio de Janeiro.

Figura 34
Proclamação da República - A Força do Estado, 2018. Óleo sobre tecido, 33 cm x 124 cm, São Paulo.

Outra pintura foi realizada como uma resposta crítica a uma obra não brasileira e aponta para possíveis próximas etapas desta investigação, com problematizações em outras instituições museológicas, também no exterior. O pintor Eero Nelimarkka foi um conhecido artista finlandês do século XIX, autor de paisagens da região nórdica e de retratos de nomes importantes da elite da Finlândia de sua época.48 48 O autor deste artigo tomou conhecimento de sua importância quando estudou o museu Ateneum, em Helsinque, para pesquisa de doutorado que também incluiu parte das discussões deste artigo. Entre suas obras, há uma que se encaixa parcialmente nesse conjunto de problematizações de pinturas que marginalizam a representação popular. Diferente das imagens de Américo e de Pereira da Silva, ela é uma composição de cunho mais intimista. Trata-se de uma pintura em que Nelimarkka representa quem limpava seu ateliê. O artista nomeia essa mulher no título da obra, Miss Kekäläinen (1916), o que poderia ser um ato de valorização e gratidão para com a profissional, não fosse o fato de que ele a representa de costas, sem mostrar seu rosto.

Durante quatro meses, e com ajuda do Museu Nelimarkka, uma fundação que preserva a história e algumas obras do artista, localizada na cidade finlandesa de Alajärv, buscou-se algum tipo de documento que pudesse oferecer informações sobre o rosto de Kekäläinen, mas quase nada foi encontrado. Ainda assim, Andrade, Silvério e Castro produziram uma nova versão dessa pintura, nas mesmas dimensões da de Nelimarkka, em que Miss Kekäläinen aparece ao menos com o rosto virado para o público que vê a tela. Um leve esfumaçado foi colocado na área do rosto. A obra foi doada ao museu do artista com a condição de que, caso informações sobre seu rosto fossem encontradas, a obra voltaria a São Paulo para ser retocada pelos três pintores da Praça da República.

Figuras 35 e 36
Respectivamente: Eero Nelimarkka. Miss Kekäläinen, 1916. Óleo sobre tela, 65,5 x 46,5 cm. Finnish National Gallery / Ateneum Art Museum, Helsinque. Marco Andrade Jr, Carlos Silvério e Antônio Castro. Miss Kekäläinen - In search of your face, 2018. Óleo sobre tela, 65,5 x 46,5 cm.

Uma pintura de Pereira da Silva, outra de Nelimarkka são alguns exemplos que mostram como a experiência com os pintores da Praça da República e do Parque Trianon-Masp não apenas problematizaram lacunas de uma obra inacessível ao público do Museu Paulista, mas criaram um método de contaminação das narrativas oficiais de obras e instituições históricas a partir da lógica do trabalho colaborativo e da atualização crítica, estabelecento uma reação propositiva em relação ao passado de acordo com a defesa de Canclini,49 49 Canclini (2013, p. 203). que propõe a democratização do passado, alargando seus sujeitos, marcadamente especialistas, para “profissionais ocupados em construir o presente, aos indígenas, camponeses, imigrantes e todos os setores cuja identidade costuma ser afetada pelos usos modernos da cultura”.

Muitos outros capítulos devem ocorrer nos próximos anos, frutos de uma parceria coletiva que prova que os diferentes subsistemas da arte (no caso o contemporâneo e o acadêmico/tradicional) podem se aliar para a construção de novos modos visuais em brechas possíveis de museus e suas coleções.

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    » https://doi.org/10.1590/S1678-53202008000200003
  • 2
    No endereço eletrônico Museu Paulista em Obras | Museu Paulista (usp.br) foi possível acompanhar o andamento das obras, assim como os eventos e as parcerias ocorridas nesse processo. Em fevereiro de 2020, por exemplo, equipes restauravam as fachadas do prédio e as esquadrias de madeira de seu interior, enquanto outras higienizavam e cadastravam os achados arqueológicos da coleção.
  • 3
    Todos os processos de mediação desenvolvidos no Museu Paulista aqui relatados fez parte de uma pesquisa de doutorado realizada no [trecho anonimizado] pelo autor deste artigo, com tese premiada pelo Prêmio Capes de Teses em 2020 e que buscou entender 29 museus na América Latina e Europa para além de suas narrativas oficiais. Um museu é também o ruído dos passos de seus visitantes, os objetos colocados em seus guarda-volumes, as selfies em seus banheiros, as sonecas roubadas, entre tantos outros acontecimentos que compõem um tipo de acervo que é, sem dúvida, informal, mas não menos valioso. Além do Museu Paulista, os museus experimentados foram: Ateneum, Kiasma, Galeria Nacional da Finlândia e Museu de História Natural da Finlândia, Helsinque, Finlândia; Hermitage, São Petersburgo, Rússia; Museu Arktikum e Museu Korundi, Rovaniemi, Lapônia; Museu Nacional de Arte da Romênia, Bucareste, Romênia; Museu do Prado e Museu Reina Sofia, Madri, Espanha; Museu Nacional da Catalunha e Museu Picasso, Barcelona, Espanha; Museu Nacional de Varsóvia e Museu do Exército Polonês, Varsóvia, Polônia; Museu Nacional da Letônia, Riga, Letônia; Hagia Sophia, Museu de Arte Moderna e Palácio Topkapı, Istambul, Turquia; Museu Nacional da Dinamarca e Galeria Nacional de Dinamarca, Copenhague, Dinamarca; Museu da Acrópole e Museu Arqueológico Nacional, Atenas, Grécia; Museu Arqueológico, Salonica, Grécia; Museu de Akrotiri, Santorini, Grécia; Museu Nacional da Colômbia, Museo de Arte del Banco de la Republica e Museo de la Independencia Casa del Florero, Bogotá, Colômbia; e Van Abbemuseum, Eindhoven, Holanda.
  • 4
    Assmann (2011ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação. Campinas: Editora da Unicamp, 2011.).
  • 5
    Svevo (2006SVEVO, Ítalo. Consciência de Zeno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.).
  • 6
    Em conversa com autor do artigo realizada em 10 de outubro de 2018.
  • 7
    Oliveira e Mattos (1999OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles; MATTOS, Claudia Valladão de (org.). O Brado do Ipiranga. São Paulo: Edusp , 1999.).
  • 8
    Oliveira (1997OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles. Indepêndencia e práticas liberais: questões para debate. São Paulo: IEAUSP, 1997.).
  • 9
    Em texto que é introdução do projeto de lei “Projet de législation des monuments historiques”, publicado em 1903, sem o nome do autor, pelas edições da Comissão Central de monumentos históricos austríacos.
  • 10
    Tombamento federal, processo 1348-T95, de 26/06/1998; tombamento estadual 08486/69, de 02/04/1975; e tombamento municipal realizado pela Resolução 05/91 de 05/04/1991.
  • 11
    De acordo com a direção do Museu, até mesmo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no auge da popularidade do seu segundo mandato, tentou e não conseguiu fazer com que a obra fosse retirada do Museu para exibição em Brasília durante as comemorações de 7 de setembro.
  • 12
    Valéry (2008VALÉRY, Paul. O problema dos museus. ARS, São Paulo, v. 6, n. 12, p. 31-33, 2008. DOI: 10.1590/S1678-53202008000200003.
    https://doi.org/10.1590/S1678-5320200800...
    ).
  • 13
    Adorno (1998ADORNO, Theodor W. Museu Valéry Proust. In: Prismas: crítica cultural e sociedade. São Paulo: Ática, 1998. p. 173-185.).
  • 14
    Arantes (1991ARANTES, Otília Beatriz Fiori. Os novos museus. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 31, p. 161-169, 1991.).
  • 15
    McShine (2002MCSHINE, Kynaston. The Museum as Muse: Artists Reflect. New York: The Museum of Modern Art , 2002.).
  • 16
    Oliveira e Mattos, op. cit.
  • 17
    Gaspari (1982GASPARI, Elio. [Sem título]. Veja, São Paulo, 15 nov. 1982.).
  • 18
    Na verdade, a ideia de originalidade parece não funcionar também para obras contemporâneas: uma obra de arte sempre opera a partir da releitura (de forma implícita ou explícita) de outras práticas do passado e alimenta com novas camadas um sistema complexo de valores, em um fluxo correspondente ao registro da comunicação, como tão bem discorre Cauquelin (2005CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005.).
  • 19
    Lima Jr., Schwarcz e Stumpf (2022LIMA Jr., Carlos; SCHWARCZ, Lilia Moritz; STUMPF, Lúcia Klück. O sequestro da independência: uma história da construção do mito do Sete de Setembro. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.).
  • 20
    Benjamin (1987BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense , 1987. p. 91-107. (Obras escolhidas, v. 1).).
  • 21
    Steyerl (2009STEYERL, Hito. In Defense of the Poor Image. E-flux Journal, New York, n. 10, p. 1-9, 2009.).
  • 22
    Nos memes, quem fala não é o imperador, mas o imaginário popular a partir de um material visual que é conhecido por parte considerável dos brasileiros. Nessas imagens, pela boca do imperador, fala na verdade um brasileiro indignado e, quase sempre, piadista.
  • 23
    A continuidade dessa pesquisa nos livros didático só foi possível graças ao apoio do próprio Museu Paulista que ofereceu uma bolsa de graduação em 2016 para a estudante de História Beatriz Bau atualizar parcialmente esse material. Guilherme Callegari, assistente do autor deste artigo na época, finalizou o restante da lista de livros.
  • 24
    Chesneaux (1962CHESNEAUX, Jean. Le mouvement ouvrier chinois de 1919 à 1927. Paris: Mouton, 1962.).
  • 25
    Esta percepção é importante não só face a museus, mas também para a busca de novas formas de reação a um mundo capitalista que constantemente vende a ideia de que suas práticas consolidadas são os únicos modos possíveis de existir nas sociedades contemporâneas, quando na verdade são construções coletivamente reiteradas - como as ideias de família e de propriedade privada. Essa questão é intensamente discutida por autores de influência marxista. A ideia de “imagem distanciada” de Bertolt Brecht que, dentre outras coisas, discute o fato de que nem tudo que parece natural é imutável, é um exemplo. Outra referência para isso é o tratado materialista histórico de Friedrich Engels lançado em 1884, A Origem da família, da propri. edade privada e do Estado, que discute como são intrincadas as relações entre formas de produção e estruturas de organização familiar, incluindo a naturalização da posse da mulher pelo homem.
  • 26
    Chesneaux, op. cit., p. 33.
  • 27
    Rancière (2012RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.).
  • 28
    Todo trabalho realizado por eles seria remunerado seguindo o preço padrão cobrado por suas obras encomendadas. Eles também sempre seriam creditados nas informações técnicas das pinturas, assim como, em eventuais vendas, o valor seria dividido por todos integrantes do projeto.
  • 29
    Jameson (1985JAMESON, Fredric. Pós-modernidade e sociedade do consumo. Novos Estudos CEBRAP , São Paulo, nº 12, p. 16-26, 1985.).
  • 30
    Becker (2008BECKER, Howard S. Art Worlds. California: University of California Press, 2008.).
  • 31
    Benjamin (2012BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012. (Obras escolhidas, v. 1).).
  • 32
    Lessing (1984LESSING, Gotthold Ephraim. Laocoon: An Essay on the Limits of Painting and Poetry. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1984.).
  • 33
    Jameson, op. cit.
  • 34
    Em conversa gravada no dia 12 de novembro de 2017.
  • 35
    Em conversa gravada no dia 22 de março de 2014.
  • 36
    Em conversa gravada no dia 23 de março de 2014.
  • 37
    Em conversa gravada no dia 25 de fevereiro de 2014.
  • 38
    Debord (1997DEBORD, Guy. A Sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. , p. 24).
  • 39
    Ibid., p. 14.
  • 40
    Américo (1888) apud Oliveira e Mattos, op. cit., p. 26. No mesmo livro, Claudia Valladão de Mattos destaca que não se trata apenas de exclusão social, mas também racial: “É interessante notar ainda a total ausência de negros nesta reprodução da independência […] Vale lembrar que o quadro foi pintado depois da abolição da escravatura” (p. 97).
  • 41
    Ibid., p. 26.
  • 42
    Declaração dada em 10 de novembro de 2016.
  • 43
    Alÿs (2010) apud Biesenbach e Strake (2010BIESENBACH, Klaus; STRAKE, Cara (comp.). Francis Alÿs: A to Z. In: GODFREY, Mark; BIESENBACH, Klaus; GREENBERG, Kerryn (ed.). Francis Alÿs: A Story of Deception. New York: The Museum of Modern Art, 2010. p. 35-43., p. 38).
  • 44
    Como combinado, o valor oferecido pelo Museu foi dividido com os pintores que, hoje, mostram-se felizes por possuir uma obra de arte em uma importante coleção brasileira e possuem claro entendimento da operação discutida aqui.
  • 45
    Trouillot (2015TROUILLOT, Michel-Rolph. Silencing the Past: Power and the Production of History. Boston: Beacon, 2015.).
  • 46
    Azoulay (2012AZOULAY, Ariella. The Civil Contract of Photography. New York: Zone, 2012.).
  • 47
    Schwarcz (2019SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras , 2019.).
  • 48
    O autor deste artigo tomou conhecimento de sua importância quando estudou o museu Ateneum, em Helsinque, para pesquisa de doutorado que também incluiu parte das discussões deste artigo.
  • 49
    Canclini (2013CANCLINI, Nestor. Culturas híbridas: estrategias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 2013., p. 203).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    22 Jun 2022
  • Aceito
    26 Jan 2023
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