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Doença cerebrovascular: aquisição de linguagem em pré-escolares

Cerebrovascular disease: language acquisition in preschool children

Resumos

São descritos 10 casos de crianças com idade cronológica entre 5 anos e 1 mês e 5 anos e 11 meses, divididas em grupo de doença cerebrovascular, (G-DCV) e grupo controle (Gc). As crianças do G-DCV apresentaram DCV confirmada na fase aguda através de exame neurológico clínico e de imagem na UNICAMP. Nas avaliações utilizou-se triagem audiológica, protocolo de avaliação da linguagem infantil, teste de vocabulário por imagens Peabody, com o objetivo de avaliar os diversos subsistemas lingüísticos e as noções perceptivo-cognitivas. Na análise qualitativa do G-DCV, do ponto de vista fonoaudiológico e neurológico, quando comparado ao Gc, mostrou recuperação completa do distúrbio adquirido de linguagem (DAL) em 2 crianças e alterações de linguagem em 3. O estudo dos casos revelou que os diversos aspectos que constituem a linguagem em desenvolvimento na criança pré-escolar devem ser analisados de forma individual, quantitativa e qualitativamente para achados conclusivos.

linguagem; criança; doença cerebrovascular


We describe ten children, aging 5 years and 1 month until 5 years and 11 months, when the phonoaudiological assessment was conducted. They are divided according to cerebrovascular disease, in CVD group (CVD-G) and control group (cG). Children were seen and CVD was confirmed in the acute phase at UNICAMP hospital. Audiologic assessment, protocol for Infant language assessment, and Peabody picture vocabulary test were used in the evaluations. The qualitative analysis of the subjects from a phonoaudiological and neurological point of view has shown the recovery of acquired language desorder (ALD) with no influence whatsoever in the development of 2 subjects and subtle language and/or learning process alterations for 3 subjects. The cases study has revealed that all aspects of language development in preschool children should be analyzed in an individual, quantitative, and qualitative basis to lead to conclusive findings.

language; child; cerebrovascular disease


Doença cerebrovascular: aquisição de linguagem em pré-escolares

Cerebrovascular disease: language acquisition in preschool children

Karina Tamarozzi de OliveiraI; Maria Valeriana L. de Moura- RibeiroII; Sylvia Maria CiascaIII

Grupo de Pesquisa CNPq: Neurodesenvolvimento, Aprendizagem e Escolaridade, DISAPRE / Laboratório de Pesquisa em Distúrbio de Aprendizagem e Déficit de Atenção, Disciplina de Neurologia Infantil, Faculdade de Ciências Médicas (FCM), Universidade Estadual de Campinas, Campinas SP, Brasil (UNICAMP)

IFonoaudióloga, Mestre e Doutoranda em Ciências Médicas, FCM-UNICAMP

IIProfessora Titular, Disciplina de Neurologia Infantil, FCM-UNICAMP

IIIProfessora Doutora, Disciplina de Neurologia Infantil, FCM-UNICAMP

RESUMO

São descritos 10 casos de crianças com idade cronológica entre 5 anos e 1 mês e 5 anos e 11 meses, divididas em grupo de doença cerebrovascular, (G-DCV) e grupo controle (Gc). As crianças do G-DCV apresentaram DCV confirmada na fase aguda através de exame neurológico clínico e de imagem na UNICAMP. Nas avaliações utilizou-se triagem audiológica, protocolo de avaliação da linguagem infantil, teste de vocabulário por imagens Peabody, com o objetivo de avaliar os diversos subsistemas lingüísticos e as noções perceptivo-cognitivas. Na análise qualitativa do G-DCV, do ponto de vista fonoaudiológico e neurológico, quando comparado ao Gc, mostrou recuperação completa do distúrbio adquirido de linguagem (DAL) em 2 crianças e alterações de linguagem em 3. O estudo dos casos revelou que os diversos aspectos que constituem a linguagem em desenvolvimento na criança pré-escolar devem ser analisados de forma individual, quantitativa e qualitativamente para achados conclusivos.

Palavras-chave: linguagem, criança, doença cerebrovascular.

ABSTRACT

We describe ten children, aging 5 years and 1 month until 5 years and 11 months, when the phonoaudiological assessment was conducted. They are divided according to cerebrovascular disease, in CVD group (CVD-G) and control group (cG). Children were seen and CVD was confirmed in the acute phase at UNICAMP hospital. Audiologic assessment, protocol for Infant language assessment, and Peabody picture vocabulary test were used in the evaluations. The qualitative analysis of the subjects from a phonoaudiological and neurological point of view has shown the recovery of acquired language desorder (ALD) with no influence whatsoever in the development of 2 subjects and subtle language and/or learning process alterations for 3 subjects. The cases study has revealed that all aspects of language development in preschool children should be analyzed in an individual, quantitative, and qualitative basis to lead to conclusive findings.

Key words: language, child, cerebrovascular disease.

O primeiro estudo realizado no Brasil sobre afasia adquirida na infância, na década de 50, foi feito por Antonio B. Lefèvre1. Afasia adquirida na criança é considerada algo excepcional e pode ser constatada pós-lesões traumáticas, infecciosas, tumorais, associadas a doenças involutivas, entre outras. Apresenta características como: redução da expressão verbal oral, sobretudo, escrita; freqüência maior dos distúrbios da expressão da linguagem e em menor grau da compreensão. Crianças que apresentam anormalidades vasculares como a doença cerebrovascular (DCV) na infância podem caracterizar quadro de distúrbio adquirido de linguagem (DAL), manifestando dificuldades em desenvolver suas habilidades lingüísticas. A DAL consiste um estado de regressão; a lesão do sistema nervoso central (SNC) ocasiona perda das atitudes verbais e a criança fica prejudicada em relação a si mesma, ou seja, apresenta dificuldades de linguagem2. A literatura tradicional sobre DAL mostra que muitos fatores podem colaborar para o prognóstico. Alguns estudos concordam que 50% ou mais das crianças recuperam completamente os sintomas afásicos, dependendo de fatores específicos como a idade, tipo de afasia, etiologia e localização da lesão2-5. As características tradicionalmente descritas relatam: dificuldades de compreensão, apesar da audição e inteligência normais; dificuldades acadêmicas e na expressão de linguagem. As dificuldades lingüísticas podem persistir com a idade1,5.

O diagnóstico fonoaudiológico de DAL atualmente descrito pode ser realizado nos casos de DCV na infância em função do advento de sofisticados recursos laboratoriais em líquidos orgânicos e as novas técnicas não-invasivas por imagem (ultrassom transfontanela, Doppler craniano, tomografia computadorizada (TC), ressonância magnética (RM), angio-ressonância, SPECT, PET). Esta peculiaridade tornou possível a definição das anormalidades vasculares em crianças e adolescentes e desmistificou a DCV como patologia subvalorizada e subdiagnosticada, como aconteceu por décadas. Hoje, procedimentos bem orientados, na fase aguda, associados a medidas preventivas com respaldo na investigação da etiologia básica, reduzem significativamente o risco de recorrência, preservando a integridade morfofuncional do cérebro em desenvolvimento6-8. A implantação do Ambulatório de Pesquisa Clínica Neurológica e Laboratorial em Anormalidade Cerebrovascular na Infância e Adolescência no Hospital das Clínicas da UNICAMP, permitiu o acompanhamento da criança desde a fase aguda da DCV hemorrágica ou isquêmica. Dessa forma, é possível avaliar as condições fonoaudiológicas das crianças com a referida anormalidade.

O objetivo deste estudo é descrever as manifestações comunicativas lingüísticas (fonético-fonológicas, morfo-sintáticas, semântico-lexicais, pragmáticas, discursiva-narrativas e perceptivo-cognitivas) e não-lingüísticas em crianças com DCV em fase pré-escolar, verificando a presença ou não de DAL na casuística proposta na fase pré-escolar e possíveis alterações na aquisição da leitura e escrita; ainda, relacionar os achados da avaliação neurológica clínica e de imagem com os resultados da avaliação fonoaudiológica no estudo de crianças com diagnóstico de DCV.

MÉTODO

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, tendo os pais assinado Termo de Consentimento.

Sujeitos–Dez pré-escolares, sendo 5 no G-DCV (S1, S2, S3, S4, S5) respeitando os seguintes critérios de inclusão: a) idade cronológica anterior a 6 anos de idade, buscando assim dados de crianças pré-escolares; b) acuidade auditiva preservada; c) ter apresentado DCV confirmada por diagnóstico neurológico clínico e de imagem na fase aguda. Os 5 sujeitos do Gc, foram selecionados de acordo com os critérios para inclusão: a) parear sexo e idade com o G-DCV; b) não ter histórico de atraso na aquisição da linguagem oral; c) apresentar desenvolvimento de linguagem compatível com a idade cronológica e acuidade auditiva preservada.

Avaliação fonoaudiológica–1) Anamnese com os pais; 2) Triagem auditiva (audiômetro pediátrico); 3)Teste de vocabulário por imagens Peabody (TVIP)9,10; 4) Protocolo de avaliação da linguagem infantil11,12, envolvendo as produções: fonético-fonológica, morfo-sintática, semântico-léxica, pragmática ou da atividade comunicativa, discurso-narrativo e compreensão linguística; 5) Protocolo de praxias orofaciais13,14; 6) Provas de discriminação visual, orientação espacial, ordenação temporal, coordenação vísuo-motora, síntese, análise, análise-síntese, discriminação auditiva e percepção figura-fundo da coleção Pra Pré15.

Avaliação neurológica – Na fase aguda, a confirmação do diagnóstico foi feita através de exames de imagem. Prosseguiu-se com o estudo da evolução do exame neurológico tradicional através do roteiro de atendimento da Disciplina de Neurologia Infantil - FCM UNICAMP.

Relato dos casos

Sujeito 1 – Sexo masculino, após o nascimento apresentou dificuldades de sucção superadas até os 3 meses de idade, mamou na mamadeira até 3 meses e logo após usou colher e copo. Apresentou neurodesenvolvimento conforme esperado para idade até 2 anos, idade em que ocorreu o primeiro episódio de DCV (hemisfério esquerdo). Após este ictus não foram observadas alterações lingüísticas e de nenhuma outra área de desenvolvimento, retomando seu desenvolvimento sem intercorrências. Após 2 meses, aconteceu o segundo episódio de DCV e então apresentou mutismo por aproximadamente uma semana comunicando-se apenas por gestos indicativos. Gradativamente retomou suas aquisições, entretanto de forma lenta. Atualmente, a família relata que há trocas de fonemas e sua narração mostra-se precária.

Sujeito 2 – Sexo masculino, apresentou quadro agudo 22 horas pós nascimento, sendo comprovado por exames de imagem DCV do lado esquerdo. Permaneceu hospitalizado por 28 dias. Após a alta hospitalar, foi constatado quadro de hemiparesia direita. Atualmente, a família não tem queixas de desenvolvimento lingüístico.

Sujeito 3 – Sexo feminino, apresentou neurodesenvolvimento esperado para idade até a instalação do primeiro episódio de DCV que aconteceu com 1 ano e 2 meses (hemisfério esquerdo). Após a primeira intercorrência, não houve alterações significativas no desenvolvimento da linguagem e o neurodesenvolvimento prosseguiu com aquisições. Antes do segundo episódio de DCV (hemisfério direito), com 2 a 8 m, a criança era capaz de narrar pequenos acontecimentos e logo após entrou em mutismo por aproximadamente 4 dias, comunicando-se por gestos indicativos. Após este período vem retomando seu desenvolvimento lingüístico lentamente.

Sujeito 4 – Sexo masculino, apresentou neurodesenvolvimento sem intercorrências até 3 anos de idade, quando apresentou quadro agudo comprovado por imagem de DCV (hemisfério direito) e ficou aproximadamente 15 dias em mutismo, comunicando-se por meio de gestos indicativos. Após esta fase, retomou gradativa e lentamente a aquisição de linguagem.

Sujeito 5 – Sexo masculino, com 12 horas de vida apresentou DCV (hemisfério esquerdo) e os testes laboratoriais revelaram policitemia (65% de microhematócrito), necessitando transfusão exsanguínea parcial. Foi constatada hemiparesia direita e na evolução observou-se atraso do neurodesenvolvimento. A avó da criança, com quem convive atualmente, desconhece a evolução e detalhes do neurodesenvolvimento anterior aos 3 anos. Relata apenas que em torno desta idade, emitia sons silábicos com intencionalidade, entretanto não formava palavras e usava gestos indicativos que permanecem até o momento como forma de comunicação.

Todos os indivíduos do G-DCV nasceram a termo. A avaliação fonoaudiológica foi realizada respectivamente com 5 anos e 3 meses, 5 anos e 5 meses, 5 anos e 7 meses, 5 anos e 1 mês e 5 anos e 10 meses.

Os resultados da avaliação fonoaudiológica, considerando os aspectos fonético-fonológico, morfo-sintático, semântico-léxico, pragmático, discurso-narrativo, compreensão lingüística, perceptivo-cognitivo, praxia orofacial, triagem audiológica, constam das Tabelas 1 (G-DCV) e 2 (Gc). A avaliação neurológica do G-DCV, que descreve o diagnóstico, exames de imagem, etiologia e sinais clínicos, é apresentada na Tabela 3.

DISCUSSÃO

Apresentamos em nosso trabalho 3 casos de crianças com DCV acometendo o hemisfério esquerdo, portanto algumas características específicas para prejuízo da linguagem como descrito em trabalho de Pitchford16 que descreve 5 casos crianças com DCV no hemisfério esquerdo, sendo duas pré-escolares, e com achados para o processamento da linguagem semelhantes aos nossos. Estes sujeitos manifestaram prejuízo significante na performance verbal com indícios de dificuldades na leitura e escrita. Déficit que pode ser justificado pela lesão no hemisfério esquerdo durante estágios precoces do neurodesenvolvimento e levar a dificuldades específicas no processamento da informação verbal; entretanto, parece não afetar a aquisição de vocabulário novo, como constatado pela performance normal em tarefas de compreensão auditiva e nomeação.

Um achado conclusivo é a idade precoce de ocorrência da DCV, como ocorreu com o caso 1 de nosso estudo. Revela uma fase que o hemisfério esquerdo estaria assumindo totalmente suas funções verbais, enquanto o hemisfério direito estaria gradativamente reduzindo o potencial para as funções de linguagem17. Estudo com 53 crianças com lesões cerebrais precoces (incluindo intra-uterinas), chama a atenção para a variedade de achados anatômicos e fisiológicos que podem indicar a importância da plasticidade do cérebro imaturo, de tal que as conseqüências das lesões cerebrais podem ser consideradas menos sérias durante a infância do que na vida adulta18. Assim, hipotetizou-se que quanto mais cedo ocorre lesão no SNC, mais completa é a recuperação e representação da função da linguagem. Todavia, algumas pesquisas discutem outros aspectos dessa compensação, como a gravidade da lesão no hemisfério esquerdo. Alterações pré-natais e pós-natais precoces resultam em desenvolvimento da dominância manual esquerda, a mediação da linguagem é feita de forma bilateral ou no hemisfério direito, ou a reorganização acontece em áreas ainda intactas do hemisfério esquerdo. Assim, a variável mais importante deste estudo é demonstrar que a gravidade da lesão não constitui o aspecto mais relevante, mas sim a idade de ocorrência16.

Traumer e Mannino19 estudaram 9 crianças com DCV no período neonatal e sugeriram prognóstico favorável para níveis desenvolvimentais e motores. Por outro lado, estudo de Riva et al.20 em crianças com lesões precoces em grupos com lesões no hemisfério esquerdo ou no direito, concluíram que o cérebro imaturo parece ser mais vulnerável a lesões do que o maturo. Esta susceptibilidade pode causar importantes déficits cognitivos, mas nem sempre baixa performance de linguagem. Já o estudo de Koelfen et al.21, com oito neonatos com infarto cerebral, relatou que DCV nesses pacientes tem prognóstico variável e não há muitos relatos na literatura sobre o funcionamento cognitivo, social e motor em longo prazo. Estes estudos justificam os achados em nosso caso 2, a bilateralidade da lesão não foi o aspecto mais significativo, mas o período de ocorrência da lesão foi um fator prognóstico favorável para a recuperação completa da linguagem oral; entretanto, permanece o indicativo de dificuldades acadêmicas, como observado nas provas perceptivo-cognitivas (Tabela 1). Os comportamentos de desatenção observados sugerem a avaliação de profissional habilitado.

As lesões bilaterais, muitas vezes, indicam prognóstico pior, entretanto o caso 2 apresentou um diferencial como já descrito, da mesma forma ocorreram algumas peculiaridades com o caso 3. Ou seja, o primeiro episódio de DCV neste sujeito aconteceu com 1 ano e 2 meses, "idade em que a especialização hemisférica esquerda está em pleno desenvolvimento em detrimento ao hemisfério direito17". O exame de imagem (Tabela 1) revela prejuízo de estruturas subcorticais. Entretanto, a literatura não é unânime em explicar o papel destas estruturas na linguagem, principalmente no cérebro em desenvolvimento, "certamente, nossa compreensão do papel das estruturas subcorticais na linguagem são diferentes dos quadros clássicos; além disso, mais estudos baseados em TC, RM e tomografias com emissão de pósitrons são necessários para determinar com maior precisão a relação entre lesões em estruturas subcorticais e a ocorrência de déficits específicos de linguagem22". O fator tempo entre o primeiro ictus e a recorrência pode ser considerado importante para o nosso caso 3, pois a lacuna de aproximadamente 17 meses favoreceu a recuperação dos déficits em decorrência da lesão no hemisfério esquerdo e, então, quando a especialização hemisférica estava em fase avançada, muito provavelmente áreas intactas do lado esquerdo haviam reorganizado a função da linguagem, aconteceu a lesão no hemisfério direito. Sabe-se que esse hemisfério apresenta menor relação com a formulação da linguagem, "as lesões do hemisfério direito dos destros raramente impedem os componentes semânticos e gramaticais da linguagem, conseqüentemente o papel do hemisfério direito na linguagem tem sido considerado rudimentar por alguns pesquisadores23".

Outras crianças com lesões bilaterais podem não ter o mesmo sucesso na recuperação. Kandel et al.l 24 afirmaram que "a linguagem não é uma capacidade única, mas sim uma família de capacidades, duas das quais - compreensão e expressão-são mediadas por regiões cerebrais distintas. Apesar de alguns insights notáveis, a compreensão neurobiológica da linguagem ainda é rudimentar". Poucos estudos relatam casos de lesões bilaterais na infância em decorrência de DCV. Estudo de Listianingshi et al.25 apresentou 14 casos de DCV na infância, sendo 4 casos com lesões bilaterais, dos quais 3 crianças maiores que 10 anos e uma com 6 anos. Este sujeito com 6 anos apresentou déficit para as funções lingüísticas e cognitivas e nenhuma correlação adicional foi feita neste estudo. Para o caso 4 de nosso estudo, é importante ressaltar que aos 3 anos o hemisfério esquerdo estaria trabalhando com as funções da linguagem, sendo dominante, e assim uma lesão do lado direito provocaria menos alterações de linguagem. Outro fator de semelhante importância é o fato da maioria das estruturas lesionadas serem subcorticais (Tabela 1), deste modo com menor atuação para aspectos de compreensão e formulação da linguagem. Contrariamente a essa posição, encontramos um estudo que mostra déficits na compreensão da linguagem em crianças com lesões no hemisfério esquerdo e/ou direito, concluindo que os resultados indicam a completa aquisição da linguagem dependendo do funcionamento normal de ambos hemisférios ao longo do neurodesenvolvimento. A precisa natureza dos prejuízos neurolingüísticos em crianças permanece indeterminada, uma vez que não houve diferenças significativas entre as lesões esquerda e direita, estando os dois grupos inferiores aos seus controles26.

No presente estudo, o caso 4 seria o único com lesão em hemisfério direito; entretanto, não se deve descartar entre os déficits de linguagem, possível dificuldades para o aprendizado do código gráfico, ao considerar o entrelaçamento de vias neurais para a palavra falada e escrita. Primeiramente, devido à dificuldade de realização das provas e num segundo momento pelo fato de que "há poucos estudos sobre a natureza sobreposta das dificuldades adquiridas de leitura em crianças com a linguagem falada27". Outra pesquisa com grupo de crianças com DCV revelou entre suas conclusões que aspectos lexicais podem estar deficitários em lesões de hemisfério esquerdo e direito, o que confirma a representação bilateral da estrutura básica de muitas funções23.

Um próximo ponto a ser ressaltado, é a gravidade e extensão da lesão, como ocorrido com o caso 5, em que áreas de encefalomalácia caracterizam lesão mais grave, principalmente com envolvimento de lobo temporal esquerdo, importante potencial para a aquisição de linguagem. Fato caracterizado por meio dos instrumentos de sua avaliação fonoaudiológica terem sido adaptados, pois este não apresenta atividade lingüística; portanto, sua investigação englobou as habilidades comunicativas.

Concordando com nossos achados, estudo de Günther28 com 54 crianças com lesões no lobo temporal, concluiu que a recuperação do DAL na infância depende da interrelação dos diversos aspectos a serem analisados individualmente. A DCV representa importante causa de lesão cerebral no período neonatal e a maioria dos episódios acontece em recém nascidos a termo, em torno de 24 a 48 horas pós nascimento. A avaliação neuropsicológica contribui para demonstrar déficits envolvendo motricidade fina, coordenação, linguagem, habilidades perceptuais e distúrbios de comportamento nesta população com DCV no período neonatal8,29-34.

Quanto à etiologia, após ampla investigação laboratorial e de imagem, o caso 1 teve a etiologia da DCV esclarecida como ausência de proteína C na coagulação sangüínea e, no caso 5, confirmou-se policitemia com valores de microhematócritos de 65%. Alguns autores discutem o fato dos vários defeitos genéticos de proteínas que regulam a coagulação sanguínea como fator de risco para eventos venosos tromboembólicos, assim como a presença de policitemia, coagulação intravascular disseminada, infecções e hipercoagulopatia parecem ser não-específicas, mas podem ser correlacionadas a DCV28. Algumas vezes, a causa do infarto cerebral no período neonatal não é clara, mas algumas condições podem ser consideradas.

Recebido 27 Julho 2004, recebido na forma final 3 Maio 2005. Aceito 7 Junho 2005.

Dra. Karina Tamarozzi de Oliveira - Rua Danúncio Camarosano 3-43 - 17051-090 Bauru SP - Brasil. E-mail: katamarozzi@hotmail.com

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Mar 2006
    • Data do Fascículo
      Set 2005

    Histórico

    • Aceito
      07 Jun 2005
    • Recebido
      27 Jul 2004
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