Acessibilidade / Reportar erro

Précis de Neuro-Psvchiatrie Infantile: Gilbert-Robin. Um volume com 416 páginas. Doin Ed., Paris, 2.ª edição, 1950.

ANÁLISES DE LIVROS

Précis de Neuro-Psvchiatrie Infantile. Gilbert-Robin. Um volume com 416 páginas. Doin Ed., Paris, 2.ª edição, 1950.

A publicação da 2.ª edição do compêndio de Gilbert-Robin exige, de quem faz a crítica déste trabalho, algo diverso das convencionais fórmulas vagas de aplauso com que em geral são comentados os livros de medicina. Acreditamos mesmo ser inteiramente injustificável, na crítica de livros científicos, a atitude de aplauso sistemático, que é, quase sempre, a norma seguida pelos que se dedicam a este trabalho. Estamos, também neste particular, de acordo com o espírito arejado de War-tenberg, que adota um critério que só pode merecer aplausos: o de procurar mostrar as falhas e enganos contidos em publicações científicas, com o fito único e exclusivo de orientar honestamente o leitor.

Logo de início devemos estranhar o título do livro, que nos parece infeliz. Por que "Précis de Neuro-Psychiatrie", se o livro se refere quase que exclusivamente a problemas de ordem psiquiátrica, roçando apenas de leve, em alguns capítulos (encefalopatias, epilepsias, tumores), no campo pròpriamente da Neurologia? O espírito do A. está quase que exclusivamente voltado para a Psiquiatria; os temas de ordem predominantemente neurológica, que constituem o assunto de alguns capítulos, são tratados por um psiquiatra que descuida totalmente do estudo da semiótica neurológica e dos meios auxiliares de diagnóstico, detendo-se em aspectos secundários dos problemas que são aí as perturbações de ordem mental.

O critério seguido na distribuição da matéria, não obstante a afirmação de Heuyer, em prefácio, de que se trata de um livro que tem "le rare inerite d'etre clinique" - parece-nos também condenável. E' assim que, ao lado de capítulos como "L'Epilepsie chez l'enfant", encontramos outros que tratam de assuntos limitadíssimos, como "Incontinence nocturne d'urine et enurésie", ou um curioso capítulo sobre os "Rires et sourires morbides chez l'enfant". Não se encontra qualquer ordenação na distribuição da matéria, tornando-se por isto difícil e penosa a leitura.

O fato do livro ser destinado mais para a consulta do clínico geral do que para o estudo do especialista em Neurologia ou Psiquiatria, faz com que sejamos obrigados a chamar a atenção para certos detalhes com os quais não podemos concordar e sobre os quais é impossível silenciar. Não pretendemos nos estender sobre todos os capítulos, pois eles são muitos. Tocaremos em alguns pontos que nos chocaram particularmente e que consideramos perigosos de serem lidos por clínicos gerais.

No capítulo em que são estudadas as causas dos vários tipos de retardo mental (pág. 88), o A., referindo-se à sífilis congênita - a qual é teimosamente denominada "hérédo-syphilis" - reporta-se a pontos de vista antiquados e ultrapassados, que a seu ver são capazes na prática de "résoudre le problème". Sem fornecer qualquer elemento de convicção, que leve o leitor a acreditar na responsabilidade da sífilis como agente etiológico, o A. cita uma infinidade de sinais de "probabilidade" e de "certeza" da "hérédo-syphilis", inclusive disgenesias tais como sin-dactilias, lábio leporino, "pied-bot", etc. Tão convicto está o A. da importância da sífilis como agente etiológico de alguns destes retardos mentais, que, ao estudar o diagnóstico diferencial entre os distúrbios conseqüentes a uma encefalite de natureza indeterminada e as encefalopatias, aponta como elemento diferenciador o fato de que "les arsénobenzènes, qui font merveille dans Pencéphalopathie, n'améliorent pas l'état mental des encéphalitiques" (pág. 91). Tal afirmação, que contraria o consenso quase unanime dos especialistas, e que só se explica por um raciocínio prèso a preconceitos clínicos inteiramente ultrapassados, somente poderia ser objeto de discussão se o A. nos oferecesse estatísticas de casosi com etiologia luètica comprovada, nos quais fossem demonstrados, objetivamente, os resultados favoráveis obtidos com a terapêutica antiluética, demonstração esta que se poderia fazer, quer com os testes de desenvolvimento, quer com os variados recursos da semiologia neurológica. Na verdade, nada disto é oferecido ao leitor, que se vê obrigado a aceitar gratuitamente as afirmações do A. Mais adiante (pág. 99), cuidando da terapêutica dos deficientes intelectuais, o A. reforça sua convicção (não a do leitor) a tal ponto que afirme textualmente que os arsenobenzois, em vista de seu valor neurotônico e neurotrófico "doivent entrainer la preference du thérapeute, mê-me en l'absence de signes de présomption". Em última análise, os arsenobenzois constituem uma terapêutica obrigatória para os deficientes intelectuais. A tal ponto chega Gilbert-Robin nesta sua quase obsessão pela etiologia luètica, que, ao tratar da "Encoprésie" (defecação involuntária), afirma textualmente (pág. 249) que, em neuropsiquiatria, a defecação involuntária se observa na "hérédo-syphilis" e que "c'est une sage precaution de suivre le conseil de Marfan et de rechercher cette affection".

Ainda dentro do mesmo campo, isto è, do tratamento dos deficientes intelectuais, o A. estende-se sobre a opoterapia que, a seu ver, deve ser considerada como uma terapêutica de base para estes estados; destaca "la thyroide" que, pelo seu maior valor, "reste le chef de file de Popotherapie". Aqui, como alhures, a mesma falta de elementos objetivos; não é oferecido ao leitor - convenhamos que seria muito difícil fazê-lo - qualquer elemento capaz de comprovar objetivamente uma deficiência tireóidea, ou pelo menos qualquer demonstração positiva de que esta terapêutica traz realmente alguma melhora, seja sob o ponto de vista mental, seja sob o motor.

Muito curioso é o critério terapêutico seguido pelo A. Em eventualidades clínicas em que a lues pouca ou nenhuma responsabilidade tem, os arsenobenzois são os medicamentos obrigatórios; entretanto, ao cuidar do tratamento da paralisia geral infantil, mostra-se discretissimo quanto à terapêutica, afirmando mesmo (pág. 94) que os tratamentos anti-sifilíticos são inoperantes na maior parte dos casos, se bem que a terapêutica pelo Stovarsol, sugerida por Sézary, conte com algum sucesso. E' quase inacreditável que, em pleno ano de 1950, se preconize uma terapêutica antiga e inteiramente superada, e não se faça a menor referência à já clássica penicilinoterapia!

Gilbert-Robin parece não ter tido conhecimento dos progressos da medicina desde que foi publicada a primeira edição de seu livro em 1939; tal é o que podemos depreender, não somente do que referimos acima sobre a terapêutica, como também das jsuperficialíssimas considerações feitas sobre a eletrencefalografia (pág. 238) no capítulo em que é estudada a epilepsia. Superficiais e estranhíssimas, digamos de passagem. Segundo expõe o A., graças ao EEG podem ser separados vários estados que confinam com a epilepsia e que são: 1) a grande crise histérica; 2) a narcolepsia; 3) a lipotimia; 4) "le spasme du sanglot"; 5) a cata-plexia. Como se vê, o A. trata com certa ênfase exatamente das aplicações menos úteis da eletrencefalografia, pois, como é sabido, esta tem muito menor valor no diagnóstico diferencial da epilepsia, do que na determinação do tipo de crise convulsiva (P.M., G.M., Psm), do caráter idiopàtico ou sintomático-focal, e mesmo do controle de evolução do tratamento, que constituem as principais indicações do EEG na epilepsia. Ainda no capítulo da epilepsia, cuidando da orientação dietètica, depois de acentuar judiciosamente que "l'alcool sera suprime" (!), mostra-se tão céptico em relação à dieta cetogênica a ponto de afirmar que "le regime sera riche en sucre".

Iríamos muito longe se pretendêssemos esmiuçar com detalhe cada um dos capítulos. Lamentamos ter que adotar um critério assim severo ao fazer a crítica do livro de Gilbert-Robin; resta-nos apenas lembrar que, se assim o fizemos, foi porque, como todos os neurologistas brasileiros, temos não somente uma imorredoura dívida de gratidão para com a neurologia francesa, como também a certeza de que seus grandes mestres do passado têm hoje em sua pátria seguidores que os honram de todas as maneiras e que são capazes de manter a Neurologia francesa na posição de excepcional destaque em que sempre merecidamente esteve.

Antonio B. Lefèvre

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Fev 2015
  • Data do Fascículo
    Jun 1951
Academia Brasileira de Neurologia - ABNEURO R. Vergueiro, 1353 sl.1404 - Ed. Top Towers Offices Torre Norte, 04101-000 São Paulo SP Brazil, Tel.: +55 11 5084-9463 | +55 11 5083-3876 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista.arquivos@abneuro.org