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A regência do sintoma

Regency of symptoms

A regência do sintoma

Regency of symptoms

Nelson Pires

Catedrático de Clínica Psiquiátrica na Fac. Med. da Universidade da Bahia

RESUMO

Propõe-se uma noção nova, útil em patogenia de sintomas e, sobretudo, na terapêutica de distúrbios psicossomáticos. Mostra-se que o mesmo sintoma é dominável por terapêuticas diferentes conforme o indivíduo. Isto se vê mais em algumas síndromes que em outras. À luz do tratamento útil deduz-se qual o tipo de fator que rege o sintoma. Enumeram-se regências: neural, endocrínica, humoral, psíquica, endógeno-constitucional e lesionai. Procurou-se explicar o conhecido fato da mesma doença responder bem em um caso e, em outro, resistir a um mesmo tratamento. Mostrou-se a intimidade da função reguladora do sintoma e a dissociação das parcelas organísmicas incluídas na função reguladora. Na doença, as parcelas podem dissociar-se e uma ou duas delas podem ganhar hegemonia e reger o sintoma, transitória ou estàvelmente. A terapêutica útil é aquela que age sôbre o fator hegemônico responsável pela regência do sintoma. Isto é a prova empírico-clínica da regência.

ABSTRACT

The author proposes a new and valuable notion in the pathogenesis of symptoms and, above all, in the therapeutic procedure of the psychosomatic disturbances. He shows that the same symptoms may be cured by means of individual kinds of therapeutic procedures. This fact is more evident in some syndromes than in others. The way we have to know what kind of factor governs the symptoms is the analysis of the efficient therapeutic way. There are neural, endocrinological, psychological, humoral, constitutional and organic regencies.

The authors explains the very known fact that a therapeutic procedure in some patients gives good results and fails in others. The intrinsic mechanism of the regulation of the symptoms and the dissociation of the organismic parcels involved in the physiologic regulation, is discussed. In many diseases the parcels may be dissociated and one or two may get hegemony and governs the symptoms for a while or permanently. Good therapeutic results are obtained when the treatment acts on the hegemonic factor responsible by the regency of the symptom. This is a clinic proof of the regency of symptoms from the empiric point of view.

Em Medicina, sintoma quer dizer sinal ou indicio de doença: sintoma apenas subjetivo (como a dor leve) eqüivale a queixa; sintoma objetivo nem sempre inclui uma queixa (por exemplo, albuminúria). Diz Kurt Schneider: "Empiricamente nesta ou naquela doença encontra-se este ou aquele sinal. Visto de outra maneira: a partir dos sinais, pela experiência, conclui-se por uma determinada doença" (Klinische Psycho-pathologie, 5.ª ed., Thieme Verlag, Stuttgart, 1959, pág. 126).

A relação entre sintoma e doença pode ser direta: tumor comprime a medula e causa paraplegla crural. Mas essa relação entre sintoma e doença pode aparecer, por vezes, complicada e indireta: síndromes da menopausa vistas em Ginecologia e em Psiquiatria, irregular curso evolutivo dos sintomas de eczemas, inesperada ocorrência ou curso evolutivo dos sintomas da asma, das dores da úlcera gástrica, enigmático surgimento ou curso dos sinais de distonia vegetativa, autóctone ou não, e muitas outras. A relação entre o sintoma e a doença tida como causal pode tornar-se tão indeterminada que desaparece. Assim, vimos, em paciente portadora de pronunciada distonia vegetativa instalada por ocasião de disenteria amebiana, persistir a distonia durante os dois anos que se seguiram à extinção da afecção intestinal.

E vice-versa, os sintomas são dominados e a causa direta persiste, como neste caso da clínica de Cushing:

Um rapaz de 14 anos chega a ingerir, devido a grave diabete insípido, até 11 litros de líquidos; verifica-se que o jovem iniciou-se no onanismo e tem na sua polidipsia a possibilidade de purificar-se e a solução de seu conflito de consciência; por um tratamento psicanalítico, chegou tão longe a "cura" que a ingestão de líquidos baixou a 1,5 litro; certa manhã foi encontrado morto no leito e a autópsia mostrou grande tumor do mesencéfalo. Aqui a sede, sintoma de uma doença orgânica do sistema nervoso central, ganhou relação com o mundo dos impulsos e com o dos pensamentos do doente que se esforçou pelo domínio (Bewältigung) dela. Então as relações fizeram-se tão íntimas que se tornou possível um efeito terapêutico sobre a sede e a poliúria a partir dessas relações (K. Jaspers, Allgemeine Psychopathologie, 5" ed., Springer Verlag, Berlim e Heidelberg, 1948, pág. 203).

Ambas as síndromes mencionadas - a distonia surgida com a disenteria amebiana e a polidipsia surgida com o tumor mesencefálico - tinham, ao menos na aparência, relação direta com a doença causal. Relação direta mas destruída no primeiro caso (mantidos os sintomas vegetativos a despeito da cura total da afecção intestinal), suspensa no segundo caso pela psicoterapia, sendo mantida a doença até a morte, sem polidipsia.

Assim, até na doença orgânica, a relação causal com os sintomas, embora direta, pode mostrar-se altamente plástica, pouco sustentada, anulável. Novos exemplos aparecerão no curso deste trabalho. Em outros casos, pelo contrário, a relação entre doença e sintoma é fixa e inalterável. O estabelecimento ou não de relações fixas e inalteráveis depende da doença: é provável que dependa ainda mais do doente. Assim, não regride toda forma sintomática de tuberculose pulmonar, mas a mesma forma clínica regride em alguns doentes e não em outros. Fixemos:

a) Há setores em Medicina onde, entre doença e sintomas, a relação é predominantemente direta, fixa e inalterável. Ou melhor, nesses domínios o sintoma indica seguramente a doença e a espécie de determinismo que rege o sintoma: a dor local acusada pelo paciente com panarício indica que o processo inflamatório está comprometendo de algum modo os filetes nervosos do dedo. A dor está regida sobretudo pela lesão local que se organiza.

b) Pelo contrário, há setores onde, entre doença e sintomas, a relação é predominantemente indireta, tênue, plástica e móvel. Ou melhor, o sintoma pode indicar a doença, mas o faz inseguramente e não indica a espécie de determinismo que rege o sintoma: a distonia vegetativa da menopausa tem comando hormonal, vegetativo ou psíquico? E o mesmo se dá nos estados alérgicos (asma, eczema, etc), em casos de enxaqueca com disfunções ovarianas, nas dismenorréias dolorosas, em certos estados dolorosos (neuralgias do trigêmeo, úlcera péptica, herpes zoster, etc).

Explicando melhor o paralelo estabelecido entre a e b: em a, as relações entre doença e sintomas são claras e diretas (as bactérias causam o flegmão e este causa a dor por compressão, por agressão desintegradora tissular); em b, a distonia vegetativa da menopausa ou um desequilíbrio humoral alérgico podem ser determinados por constelações patogênicas complexas, múltiplas. Nessas constelações patogênicas a componente mais destacada pode ser hormonal, humoral, psíquica, neural ou constitucional. Sabemos que é assim porque assim se passam os fatos no empirismo da clínica: neste eczematoso, ou neste indivíduo distônico (por menopausa, por disenteria amebiana ou por qualquer outra causa) o melhor tratamento é o psicoterápico; naquele outro é a sedação do sistema nervoso central; em outro é a correção hormonal ou a dessensibilização ou, ainda, o bloqueio da inervação vegetativa; em outro a distonia ou a asma ou o eczema ou a colite ou a anorexia é oscilante, facilmente e sempre vencida por qualquer via, mas retornando sempre.

Assim esquematizamos: em a a regência é claramente fixa e é orgânico-lesional; em b a regência é móvel (psíquica, neural, hormonal, humoral ou constitucional). Chamamos regência a hegemonia, transitória ou duradoura, de uma classe de fatores que assegura a presença dos sintomas.

Dissemos acima que a relação entre doença e sintoma ora é direta, fixa, sólida e inalterável, ora é indireta, móvel, tênue e plástica. Dissemos que se isso já dependia da doença, dependia muito mais do doente.

Em nosso Serviço de Psiquiatria, sediado em hospital geral, patentearam-se os fatos que agora nos levam a propor o conceito de regência tal como o definimos há pouco. A maioria dos pacientes nos é enviada com aquele subentendido já tornado rotina equivocada: quando se encontram dificuldades clínicas fora do comum, pensa-se em causas psicógenas e no psicoterapeuta para resolvê-las.

1ª série - Um grupo de mulheres em menopausa é submetido ao tratamento hormonal habitual de suplencia. Algumas são beneficiadas. As não beneficiadas são submetidas à tranqüilização prolongada (Pacatal, Emedian, Lepenil, Amplictil, Bellergal); certo número delas melhora consideravelmente, outras ainda mostram resistência. As resistentes foram tratadas pela sonoterapia que trouxe grande vantagem para um grupo. As que resistiram à sonoterapia eram, em sua maioria, deprimidas: umas foram submetidas ao eletrochoque e tiveram remissão por largo tempo; outras foram tratadas pelo Tofranil, quase sempre com excelentes resultados. Entre as que resistiram a todos os tratamentos havia as que apresentavam insolúveis problemas familiares (mas outras com iguais problemas, melhoraram ou remitiram) e as que abandonaram a assistência ou não puderam ser mantidas nela por mais tempo por motivos diversos. A presença de conflitos psíquicos familiares, a proeminência de sintomas psíquicos ou endocrínicos não estava em relação racional com a natureza da terapêutica útil. Ou melhor: portadoras de conflitos podiam ser beneficiadas (ou não) com a sonoterapia ou com o Tofranil e sem qualquer psicoterapia. Portadoras de disendocrínias nítidas foram beneficiadas por essas mesmas terapêuticas discriminadas ou pela tranqüilização permanente sem qualquer aditivo hormonal supletivo. O benefício terapêutico foi sempre longo ou definitivo.

A sintomatologia compunha-se de alteração do ritmo e quantidade do menstruo, sinais de distonia vegetativa intensa, prurido vulvar (inconstante), oscilações da tensão arterial, insónia, ansiedade, fadiga, alterações do sono, do apetite e da exoneração intestinal, taquicardia, cefaléia e tonteiras, ondas de calor, depressão, inquietação, agitação, choros, tendência ao suicídio, irritabilidade, tendência às queixas monótonas, perda da excitabilidade sexual. Algumas foram enviadas por ginecologistas que já as haviam tratado por via hormonal. Insistimos: à proeminência de sintomas psíquicos ou endocrínicos ou vegetativos não corresponde o êxito com a terapêutica preferencialmente psíquica, endocrínica ou vegetativa. Essa correlação nem é ao menos constante. Acusa-se bem a sintomatologia psíquica, por exemplo, mas a regência é vegetativa.

2ª série - Um grupo de 8 pacientes com enxaqueca cujas crises dolorosas ora advêm em relação com o período menstrual, ora surgem ex-abrupto a propósito de um abalo emotivo, estado de tensão ou mera contrariedade, ora a partir de distúrbios digestivos. A maioria tem parentes portadores de enxaquecas. Em algumas a sedação neural prolongada (Bellergal, Meprobamato, Clorpromazina, Emedian) espaça nitidamente as crises com muito mais eficiência que a psicoterapia; em outras dá-se o contrário. Houve uma que melhorou mesmo com medicação anodina comprada por engano. Algumas vezes a sonoterapia cortou a crise com nitidez. Em um paciente em que tudo falhou, a educação física e balneoterapia (banhos de mar, exercícios físicos leves), ao lado da alimentação amiudada e cronometrada, diminuiu a enxaqueca que ocorre de preferência no período hipoglicêmieo pré-prandial. Em quase todos os casos é nítido o desencadeamento ora psíquico ora autóctone e só em poucas pacientes é nítida a relação com o ritmo menstrual.

Três portadoras de colite mucomembranosa melhoraram ora sob influência psíquica (sobretudo hipnose), ora sob regime dietético, ora pela ação de tranqüilizadores; nenhuma remitiu, ainda que, psiquicamente, uma delas se sentia até eufórica.

De quatro portadores de "anorexia nervosa" rebelde a qualquer tratamento inclusive psíquico, dois remitem ao eletrochoque definitimamente, outro fugazmente e, ao recidivar, algumas semanas depois, resiste ao mesmo tratamento; o último não melhora com tratamento algum.

Mãe e filha são portadoras de eczema de ambos os pés: na filha a afecção data de mais de 20 anos e mostrou-se resistente à psicoterapia, a tratamentos ora tópicos ora gerais anti-alérgicos, ao eletrochoque, às curas de dessensibilização; feito o bloqueio extradural paravertebral bilateral com xilocaina durante 6 dias, o eczema remitiu em 8 dias, persistindo a remissão por cerca de 1 ano, recidivando depois, a doente não permitindo repetir o tratamento; na mãe o mesmo tratamento não deu qualquer resultado.

Assim, em nossos casos de enxaqueca, ora o tratamento psíquico, ora o neural e, uma vez, o metabólico-humoral (alimentação cronometrada e amiudada) foi o mais eficiente. O mesmo se deu nos casos com colites. Nas pacientes com eczemas só o tratamento neural foi benéfico por um ano para uma delas, nada influindo em outra, mãe da primeira. Dos anoréxicos, dois tiveram êxito total, outro fugaz e outro nenhum. Vê-se como varia o grau e a fixidez do êxito e como varia o método terapêutico eficiente, embora seja idêntica a doença e também, como o mesmo tratamento não produz sempre o mesmo resultado no mesmo doente (anoréxico remitido com o eletrochoque e que resistiu a êle depois). Repetiu-se o fato, para nós já sediço: havia nesse material alguns "neuróticos". Apesar da proeminência da síndrome psíquica não era a terapêutica psíquica a mais eficaz e, sim, quase sempre a neural (tranqüilizadores, sonoterapia, bloqueio simpático, eletrochoque), mesmo naqueles casos em que se esperava o contrário.

3ª série - Indivíduos portadores de crises asmáticas. Uns deles amiúdam seus acessos quando expostos a uma soma de fatores identificados. Eis um caso: menina impúbere, aos 11 anos, foi forçada a casar com o viúvo de sua irmã; apavorada, fugia sempre e evitou o marido por um ano; aos 12 anos foi consumado o defloramento; nunca teve prazer com o marido; por essa época, ao tomar um banho em rio, teve seu primeiro acesso de asma; piorou deles quando enviuvou anos depois e passava fortíssimas dificuldades econômicas; melhorou e extinguiu-se a asma quando casou pela segunda vez e foi mais feliz; aqui agravos psíquicos e água fria foram desencadeantes; depois bastavam os agravos psíquicos.

Insiste-se na patogenia alérgica da crise asmática; no entanto, sabe-se como é praticamente excepcional o êxito do tratamento da asma com o exclusivo emprego da dessensibilização aos alérgenos. São de nosso conhecimento casos em que o acesso de asma foi dominado ou atenuado por sugestão, inclusive involuntária, por clister de éter, por bloqueio de um dos dois ganglios estrelados; outros em que a sonoterapia introduzida lentamente removeu "estados de mal asmático"; outros em que a longa tranqüilização atenuou e espaçou de muito os acessos; outro em que o emprego do Tofranil num asmático deprimido, resistente aos antialérgieos e antiasmáticos, removeu asma e depressão. O tratamento endereçou-se, nesses casos, às regências: psíquicas, neural-vegetativa, neural-somática e endógena constitucional.

4ª série - Mulher de 42 anos portadora de insuficiência cardíaca congestiva, decorrente de hipertensão arterial, com três fases de psicose maníaco-depressiva no passado; suas crises de hipertensão provocaram várias crises noturnas de edema pulmonar; a paciente teme deitar-se e ainda mais o dormir; torna-se deprimida; o clínico que a assiste não conseguiu êxito com terapêutica cardiológica variada, cogitando de feocromocitoma que não se confirma; convocados, instituímos o Tofranil; em poucos semanas desaparece a depressão e as crises hipertensivas e, com elas, as de edema pulmonar agudo.

Mulher de 32 anos, casada, vive razoavelmente ajustada ao marido até que uma infidelidade dele provocou certo desajustamento, logo superado com a docilidade do marido à esposa e renúncia à amante; poucos anos depois a paciente contrai disenteria amebiana, logo instalando-se intensa distonia vegetativa; o tratamento da afecção intestinal teve êxito total mas acentuou ainda mais a distonia; pouco a pouco estendeu-se o quadro, com desânimo, perda de apetencias (entre elas, o apetite e o prazer sexual), insónia, fraqueza nas pernas, tristeza e a eterna distonia vegetativa; foi sucessivamente tratada durante 2 anos com "antidistônicos" de todo tipo, eletrochoque, novos amebicidas e regimes, tudo sem efeito; instituímos a sonoterapia e a paciente piorou; recorremos ao Tofranil e em 3 semanas a paciente teve alta em remissão total da depressão e da distonia satélite, desencadeada pela amebíase e agravada pelo tratamento desta. O ajustamento conjugai retornou intato sem psicoterapia.

Em ambos os casos havia uma insuspeitada regência endógeno-constitucional (depressão endógena), mantendo tanto a distonia quanto a hipertensão em crises e suas seqüelas.

Poderíamos estender muito mais a casuística demonstrativa, mas renunciamos a fazê-lo por dois motivos: todos os clínicos ativos conhecem casos semelhantes; os casos que apresentamos são suficientemente claros e bastante para documentar o que chamamos de regência.

Na casuística de pacientes em menopausa, o tratamento útil ora foi o hormonal, ora o neural - seja com tranqüilizadores longamente empregados, seja com a sonoterapia - ora dirigiu-se ao endógeno-constitucional com o eletrochoque quando havia depressão, ora ao psíquico (psicoterapia). É que a regência dos sintomas ora era endocrínica, ora neural, ora depressivo-endógena, isto é, constitucional (de acordo com os postulados doutrinários da Psiquiatria), ora psicógena. As tentativas terapêuticas sem sucesso indicaram que quando o tratamento foi dirigido contra outra espécie de regência resultou inútil. Só foi útil determinado tratamento, endereçado ao fator que regia os sintomas.

Para o êxito não é indiferente o tipo de tratamento, embora a síndrome seja a mesma: a da menopausa, por exemplo. Embora os sintomas se destaquem numa área bem definida - na psíquica, na endocrínica ou na vegetativa - não é a natureza do sintoma predominante (psíquico, endocrínico, neural) que indica a natureza da regência. Isto se verificou também na paciente cardíaca com hipertensão e na distônica depressiva.

Na constelação patogênica há vários fatores presentes ou em causa, mas um ou dois deles comandam a manutenção dos sintomas. Pense-se no caso de Jaspers e em nossa cardiópata. A terapêutica que age sobre esse fator comandante elimina o sintoma ou síndrome. Chamamos regência a essa espécie de comando patogênico que a terapêutica denuncia.

Nas três outras séries de pacientes mencionados ocorreu também essa regência diversa, responsável pela presença dos sintomas (presença de sintomas não é mesmo que etiologia de doença, é claro). Não é indiferente o tipo de tratamento útil, no debelar uma crise de enxaqueca, de colite, de anorexia nervosa, de eczema, de asma, de insuficiência cardíaca congestiva ou de hipertensão arterial. Cada crise pode ter uma determinada regência e pode ocorrer que só o tratamento endereçado a essa regência tenha êxito. Certos acessos de asma, certos estados distônico-vegetativos, certas crises hipertensivas e certos surtos de insuficiência cardíaca congestiva serão facilmente dominados quando o tratamento fôr dirigido diretamente à regência ocasional dos sintomas.

Estenderíamos facilmente a lista de síndromes onde o fenômeno da regência se patenteia até escandalosamente à evidência. Então mencionaríamos que também verificamos a inesperada regência, talvez transitória ou rotativa, mas bem definida, na sintomatologia do líquen plano, da depressão (regência ora psíquica, ora endógena mesmo quando a depressão é, em aparência, psicógena), da schistossomose, do herpes zoster, do hipertireoidismo, dos pruridos e, sobretudo, na sintomatologia dolorosa ligada a qualquer causa (crises de angor, causalgia, ciática, dores na últicera gástrica, enxaquecas, etc). Com isso alongaríamos desmesurada e inconvenientemente este trabalho. Aqui estamos preparando a compreensão para uma reformulação do que se chama sintoma em Medicina, reformulação imposta pelas terapêuticas atuais. Com ela visamos forçar a revisão das velhas doutrinas sobre a patogenia dos sintomas. A revisão inicia-se com o conceito de regência.

Exatamente porque as relações entre sintoma e doença não são sempre diretas, fixas e inalteráveis, é que tanto desaparece o sintoma e a doença prossegue seu curso (caso citado da clínica Cushing), como desaparece a doença e prossegue o sintoma (nossa distônica curada de disenteria amebiana). Há uma regulação responsável pelo sintoma. E nessa regulação, parcelas e componentes integradores podem ganhar autonomia e emancipar-se da doença que originou os sintomas. Vimos ocorrer paradoxos deste tipo:

Homem de 32 anos é enviado à consulta porque se apresenta inválido há 8 meses desde que em certo almoço consumiu feijoada, depois do que ocorreu diarréia e severa distonia vegetativa com tonteiras, extremidades frias, taquicardia e tremores. Fora alcoolista até pouco tempo antes. Fixou esta sintomatologia e adicionou, mais tarde, desânimo, fobias diversas (morrer, perder os sentidos, ficar "maluco"), fraqueza, ansiedade, inapetência e palidez. Tratava-se há 8 meses sem resultado. Os exames de laboratório evidenciaram doença de Chagas (bloqueio de ramo direito ao ECG) e esquistossomose. O doente perdera mais de 8 quilos no curso de tratamentos de toda ordem: antimonio (que o piorava e não suportara), antidistônicos, regimes dietéticos, antidepressivos, repouso. Empreendemos a sonoterapia e o paciente melhorou lentamente de tudo, recuperando 6 quilos. Restava apenas certo grau de "tonteira" acusada subjetivamente. A essa altura um clínico, pouco atento aos fenômenos de regulação dos sintomas, empreendeu enérgica e completa "cura" pelo tártaro emético. Reapareceu dramaticamente toda sintomatologia e o doente perdeu 6 quilos em cerca de 12 dias. Fizemos novo tratamento pela sonoterapia, com nova melhora. Quê ocorrera? A síndrome de ataxia vegetativa fora desencadeada seguramente pela indigestão e gravada nesse terreno carenciado pelo alcoolismo, esquistossomose e doença de Chagas, ou seja, regência neural em terreno alterado. A sonoterapia atenuou a regência neural da ataxia vegetativa, permitindo certa autorregulação harmônica, desaparecendo os sintomas vegetativos muito intensos, mais molestos que as própr4as doenças de base. O tratamento antimonial agrediu essa incipiente autorregulação, reaparecendo a ataxia vegetativa de regência neural e ligada à esquistossomose e seus sintomas. Estes foram novamente levados à extinção pelos neurcplégicos. Neste caso a parcela neural de autorregulação geral agredida, destacou-se e regia a ataxia vegetativa.

A função - tal como o distúrbio da função - uma vez aprendida, pode executar-se ainda que lhe faltem aquelas condições supostas prioritárias. Assim como o sintoma perdura sem a doença, a função pode perdurar sem um substrato estrutural tido como prioritário. Exemplo da "regência da função" é o caso citado por Julius Bauer:

Um homem de 26 anos teve de ser completamente castrado devido a tuberculose bilateral nos testículos. O cirurgião implantou um falso testículo de parafina e o paciente acreditou durante toda sua vida que só havia perdido um testículo. A despeito de todos os sinais físicos de castração completa (obesidade com distribuição feminina do tecido adiposo, ginecomastia, escassos pêlos na região púbica e no peito e pouca barba), o homem nunca perdeu a potência sexual e teve relações sexuais regulares até os seus 60 anos, quando faleceu por tuberculose miliar (Julius Bauer - Constitution and Disease, Gruñe Stratton, New York, 1942, pág. 118). A ausência de increção testicular, parcela relevante da constelação de fatores que regulam a sexualidade física e psíquica, não impediu o exercício da função sexual, aprendida e executada até então. Bastou que não fosse também vulnerada uma outra parcela da constelação, a psíquica. Sabia-se já que os efeitos da castração são também influenciáveis pelos "motivos" dela, mais tolerados se legítimos, voluntários ou terapêuticos, menos tolerados se penais ou políticos (como ocorria na Alemanha nazista). O caso de Bauer adiciona mais um fato: o desconhecimento de estar totalmente castrado pode eliminar a conseqüência psicofisiológica mais comum que é, segundo Bleuler, a perda da potência sexual, embora não elimine tudo o mais (perda de pêlos, gordura feminóide, etc). Diríamos que na constelação de fatores que regulam a função genésica, a abolição da componente hormonal não impediu a regência psíquica que ganhou hegemonia reguladora e manteve a função.

Todo problema da regência apresentado neste trabalho reduz-se a uma regulação parcelar, anormal e mais ou menos instável, dos arranjos funcionais antes regulados e agora tumultuados. A regulação parcelar compõe sintomas ou vincula-se de alguma maneira (que pode ser regencial) ao sintoma já existente, lançado pela doença. Pergunta G. Mohnike: "Quem regula e quem é regulado?" E responde: "Submetido à regulação é o corpo inteiro em seus acontecimentos vitais, seu crescer e envelhecer, sua conservação e renovação bem como sua reprodução. Ao analisar este processo deparamos, ao fim e dentro do palpável, com incidências bioquímicas, das quais algumas são certas e bem conhecidas" (G. Mohnike - Über Regulationsfunktionen, Dtsch. Med. Wschr., 77:1196, 1952).

No fenômeno da regência que apresentamos como proposição com este trabalho, componentes partitivas reguladoras (neurais, psíquicas, endócrinas, humorais), habitualmente subordinadas e integradas em alta, harmônica e geral regulação, dissociaram-se. Uma ou duas dessas componentes parcelares agora ganham hegemonia, temporária ou não, e em vez da regulação superior normal, silenciosa (sem sintomas), harmônica e geral, mostram-se destacadas e dissonantes e regem elas próprias os sintomas. Fazem-no com o caráter de hegemonia mais ou menos rotativa, alternante, variável de indivíduo a indivíduo, de doença a doença e de época a época. A componente que comanda então, mesmo ocasionalmente, o sintoma, instalou sua regência. Regência efetiva, ainda que fugaz, predicado que não é obrigatório.

Partimos, em nossos exemplos, do que se passava com a menopausa onde poucas pacientes tinham sido beneficiadas com a medicação endócrina de suplencia; supusemos nelas a regência endocrínica. Nas outras que se beneficiaram com a terapêutica tranquilizadora supusemos a regência neural; em outras, deprimidas que remitiram com o eletrochoque ou com o Tofranil, falamos em regência endógeno-constitucional. Confronte-se isto com estas palavras de Manfred Bleuler: "No desenvolvimento da personalidade, o influxo hormonal é comparável a um som isolado num concerto: não tem qualquer significado próprio, mas recebe logo significado no confronto com o conjunto sonoro geral. É uma incidência peculiar numa configuração cujo significado depende inteiramente da configuração geral. Com esse fundamento é compreensível que o tratamento endocrínico dos pacientes de médico de nervosos resulte tão freqüentemente inseguro e mutável, auxiliando a um paciente, nada auxiliando a outro que apresenta o mesmo quadro endocrínico. É compreensível que êle freqüentemente apenas melhore em vez de curar; que um doente numa fase de doença responda bem a um tratamento e em outra fase não responda". E em grifo: "A personalidade modula, consoante suas próprias leis individuais, até a maioria dos influxos endocrínicos, bem como os efeitos da maioria dos tratamentos que atingem o endocrinium: isto, de conformidade com as tendências gerais do desenvolvimento psíquico, de acordo com a constituição e disposição, de acordo com outras influências psíquicas e corporais que operam igualmente sobre o paciente ou que operaram anteriormente" (Manfred Bleuler, capítulo no livro de Hans Hoff - Therapeutische Fortschritte in der Neurologie und Psychiatrie, Urban und Schwartzenberg, Wien, 1960, pág. 296).

O que dizemos sobre a regência ganha autoridade com essa transcrição que não menciona tal palavra, mas afirma-a como desejaríamos que o fizesse. Nosso trabalho abre numerosas questões, mesmo de Patologia Geral, apenas entrevistas e não exploradas em detalhe. Da extensa casuística que lhe serviu de base, parte está aqui exposta. Pouco dissemos sobre regência psíquica, importantíssimo fato ao qual voltaremos. Se não há (e não poderia haver) base experimental, apoia-se nosso conceito da regência, no empirismo da clínica partindo sobretudo da terapêutica com os novos fármacos de ação predominantemente neural e psíquica. Visamos apenas aqui, dentro da psico e fisiopatologia dos sintomas, demonstrar o que de pessoal há nas relações entre o sintoma, o indivíduo, a doença e a terapêutica. Isto se opõe à Medicina estandardizada e tabelada em esquemas, vistas no cotidiano. Por fim, isolamos aquela regência neural, tão confundida com a psíquica entre nós no Brasil.

Clínica Psiquiátrica — Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina — Salvador, Bahia — Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2013
  • Data do Fascículo
    Mar 1962
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