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Identificação de transtornos traumáticos cumulativos em portuários para o raciocínio clínico

Resumo

Objetivo

Relacionar os transtornos traumáticos cumulativos autorreferidos por trabalhadores portuários e seus condicionantes socioambientais.

Métodos

Estudo transversal com 232 portuários (136 em terra e 96 a bordo) com média de idade de 48,7 anos. Os transtornos traumáticos cumulativos foram autorreferidos; a intensidade foi medida pela atribuição de uma nota de 1 a 4. Foi realizada análise do coeficiente de Spearman para relacionar intensidade dos transtornos e variáveis de caracterização, e teste qui quadrado de Pearson foi usado para relacionar grupos de trabalhadores aos transtornos.

Resultados

Ambas as categorias de portuários destacaram lombocitalgias (36,8% em terra e 28,1% a bordo) e tendinite (27,9% em terra e 31,3% a bordo de navio). Houve correlação estatística entre a idade e tempo de trabalho com a intensidade dos adoecimentos.

Conclusão

A autorreferência de adoecimentos ressaltou doenças lombares e tendinosas que inferiram causalidade às doenças autorreferidas, cuja clínica deve integrar o processamento do raciocínio clínico da enfermagem.

Saúde do trabalhador; Enfermagem do trabalho; Avaliação em enfermagem; Transtornos traumáticos cumulativos; Competência clínica

Abstract

Objective

To associate cumulative post-traumatic disorders self-reported by port workers with their socio-environmental constraints.

Methods

Cross-sectional study conducted with 232 port workers (136 onshore and 96 on board) with a mean age of 48.7 years. The cumulative post-traumatic disorders were self-reported, and their intensity was measured by a grade from one to four. Spearman’s correlation coefficient was used to associate the intensity of disorders with characterization variables, and Pearson’s chi-square test was used to associate groups of workers with the disorders.

Results

Both categories of port workers pointed out lumboischialgia (36.8% onshore and 28.1% on board) and tendinitis (27.9% onshore and 31.3% on board). There was a statistical correlation between age and work time with the intensity of the illnesses.

Conclusion

The self-reporting of illnesses pointed out low back pain and tendon disorders that inferred causality to the self-reported diseases, whose practice should integrate the processing of the nursing clinical reasoning.

Occupational health; Occupational health nursing; Nursing assessment; Cumulative trauma disorders; Clinical competence

Introdução

O processo de adoecimento relacionado ao trabalho exige do enfermeiro uma atuação contínua e sistemática, a fim de operacionalizar os elementos condicionantes da saúde do trabalhador de forma a eliminá-los ou controlá-los. Para isso, utiliza-se o raciocínio clínico, caracterizado pelo processo cognitivo de pensar sobre as informações em saúde, organizando ideias e explorando experiências que proporcionam o planejamento da assistência. Ele permite a assimilação e a análise de evidências em saúde, diferenciando-as conforme sua utilidade, eficácia e aplicação aos indivíduos assistidos, o que, no trabalho, ocorre a partir da interação do trabalhador em seu ambiente ocupacional.(11. Banning M. Clinical reasoning and its application to nursing: Concepts and research studies. Nurse Educ Pract. 2008; 8(3):177-83.,22. Simmons B. Clinical reasoning: concept analysis. J Adv Nurs. 2010; 66(5):1151-8.)

No âmbito das doenças osteomusculares, o raciocínio clínico da enfermagem tem sido promovido a partir da análise de características socioambientais, sociodemográficas e na autorreferência do trabalhador, de forma que a identificação e o reconhecimento das doenças e do ambiente em que elas se desenvolvem possa contribuir para sua recuperação. Além disso, deve ser possível regular as respostas emocionais e corporais, para modificar comportamentos de saúde, ao mesmo tempo em que se produzem habilidades profissionais para controle dessas doenças e fortalecimento do raciocínio clínico ocupacional.(33. Cezar-Vaz MR, Cardoso LS, Bonow CA, Sant’Anna CF, Sena J. Conhecimento clínico do enfermeiro na atenção primária à saúde: aplicação de uma matriz filosófica de análise. Texto Contexto Enferm. 2010; 19(1):17-24.,44. Schoormans D, Mulder BJ, Van Melle JP, Pieper PG, Van Dijk AP, Sieswerda GT, et al. Illness perceptions of adults with congenital heart disease and their predictive value for quality of life two years later. Eur J Cardiovasc Nurs. 2014; 13(1):86-94.)

Entende-se que a saúde muscular de trabalhadores portuários é condicionada pelas operações de movimentação de mercadorias nos portos organizados, cujas atividades de capatazia, estiva, conferência de carga, conserto de carga, trabalho em bloco e vigilância de embarcação constituem processos mistos de trabalho, integrando atividades manuais, automatizadas e informatizadas. Essas características propiciam o desencadeamento patológico muscular, conforme já identificado em estudos, e as doenças mais prevalentes, segundo diagnóstico médico, foram a tendinite e as artroses.(55. Almeida MC, Cezar-Vaz, MR, Rocha LP, Cardoso LS. Dock worker: profile of occupational diseases diagnosed in an occupational health service. Acta Paul Enferm. 2012; 25(2):270-6.

6. Almeida MC, Cezar-vaz MR, Soares JF, Silva MR. The prevalence of musculoskeletal diseases among casual dock workers. Rev Lat Am Enfermagem. 2012; 20(2):243-50.
-77. Cezar-Vaz MR, Soares JF, Almeida MC, Cardoso LS, Bonow CA. Self-referred illnesses related to work in self-employed port workers. Cienc Cuid Saude. 2010; 9(4):774-81.)

Dessa forma, o processamento do raciocínio clínico de enfermagem pode ser incitado a partir das características anatomofisiológicas dessas doenças, bem como pela autopercepção do adoecimento pelo trabalhador, e os condicionantes pessoais e relacionados ao trabalho, que podem estar envolvidos, desencadeando, assim, tanto intervenções pontuais como normativas e clínicas, que atenuem o acometimento. Concretiza-se, assim, um processo específico de raciocínio clínico que contribuirá para aprofundar a relação saúde-ambiente-trabalho-doença do trabalhador portuário, mediando-se a comunicação de riscos ocupacionais para a manutenção saudável do processo de trabalho portuário e de outras realidades ocupacionais.(88. Cezar-Vaz MR, de Almeida MC, Bonow CA, Rocha LP, Borges AM, Piexak DR. Casual dock work: profile of diseases and injuries and perception of influence on health. Int J Environ Res Public Health. 2014; 11(2):2077-91.,99. Bonow CA, Cezar-Vaz MR, Silva LR, Rocha LP, Turik C. Health disorders related to learning the welding trade: assessment of approaches to risk communication. Rev Lat Am Enfermagem. 2014; 22(1):43-50.) Assim, este artigo objetivou relacionar os transtornos traumáticos cumulativos autorreferidos por trabalhadores portuários aos condicionantes socioambientais desse trabalho.

Métodos

Trata-se de um estudo transversal, de caráter quantitativo, realizado com trabalhadores portuários do Porto do Rio Grande (RS), na Região Sul do Brasil. O período de coleta de dados foi de janeiro a outubro de 2014. A seleção dos trabalhadores atendeu a critérios de inclusão único, estar realizando às atividades de trabalho portuário. A coleta dos dados ocorreu por meio de entrevista, com aplicação de questionário semiestruturado, validado por especialistas na área de saúde do trabalhador e aplicado em pesquisas prévias realizadas pelo grupo de pesquisa que integra este estudo, o Laboratório de Estudos de Processos Socioambientais e Produção Coletiva de Saúde – LAMSA. Este instrumento abordou variáveis de caracterização dos participantes tais como: idade, escolaridade, estado civil e renda, bem como envolveu a caracterização do trabalho a partir de características como tempo, categoria e jornada de trabalho.(77. Cezar-Vaz MR, Soares JF, Almeida MC, Cardoso LS, Bonow CA. Self-referred illnesses related to work in self-employed port workers. Cienc Cuid Saude. 2010; 9(4):774-81.) Foram abordados também o conhecimento da condição de saúde, os recursos, instrumentos e tecnologias de trabalho, os serviços de vigilância em saúde e as estratégias de prevenção e promoção da saúde socioambiental.(77. Cezar-Vaz MR, Soares JF, Almeida MC, Cardoso LS, Bonow CA. Self-referred illnesses related to work in self-employed port workers. Cienc Cuid Saude. 2010; 9(4):774-81.)

Os transtornos traumáticos cumulativos foram identificados a partir do grupo de doenças relacionadas em levantamento prévio dos diagnósticos de adoecimentos osteomusculares do serviço médico de saúde ocupacional do órgão gestor de mão-de-obra do Rio Grande (RS), no período entre 2000 e 2009. E, esses trabalhadores cadastrados no serviço médico foram questionados e referiram os diagnósticos de: lombocitalgias, artroses, artrites, tendinites, epicondilites, bursites, sinovites e tenossinovites e dedo em gatilho. Após, os trabalhadores foram questionados se consideravam os transtornos apontados como relacionados ao trabalho e, por meio de uma escala psicométrica, atribuíram a intensidade do transtorno como leve (nota 1), moderada (nota 2), grave (nota 3) e completa (nota 4).

Para evitar vieses, realizou-se um estudo piloto, aplicando-se o questionário a 13 trabalhadores portuários avulsos selecionados conforme sua disposição para responder ao instrumento. Além disso, os entrevistadores receberam um treinamento e um manual de apoio, com vistas à uniformização na aplicação do questionário. No ano de coleta de dados, dispunha-se de um total de 579 trabalhadores portuários aptos a participarem da pesquisa. Destes, optou-se por uma amostra não aleatória, estratificada, calculada com a ferramenta StatCalc do programa Epi-Info, versão 3.5.2, selecionando-se 232 trabalhadores, os quais foram subdivididos em trabalhadores que atuavam em terra, ou seja, nas áreas do cais portuário e dos armazéns (trabalhadores de capatazia, n=136) e naqueles que exerciam suas atividades a bordo dos navios (estivadores, consertadores, trabalhadores em bloco, conferentes e vigias de embarcações, n=96). O nível de confiança utilizado foi de 95%.

Os dados quantitativos foram digitalizados e organizados no software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) versão 21.0; foram aplicadas as estatísticas descritivas e inferenciais utilizando-se a análise do coeficiente de Spearman, que permitiu analisar a correlação existente entre os dois grupos de trabalhadores, e as variáveis de caracterização pessoais e do trabalho, além da aplicação do teste qui quadrado de Pearson, que verificou a significância da relação entre os grupos de trabalhadores e a autorreferência dos transtornos.

O manuscrito foi extraído da tese intitulada “Adoecimento osteomuscular de trabalhadores portuários avulsos e o processamento do raciocínio clínico da enfermagem”, orientada pela Profa. Dra. Marta Regina Cezar-Vaz e defendida em 27 de maio de 2015 no Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande.

O estudo foi registrado no Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), da Universidade Federal do Rio Grande sob o número - 68/2013.

Resultados

Dos 232 trabalhadores entrevistados, 58,6% (n=136) atuavam em terra e 41,4% (n=96) exerciam suas atividades a bordo dos navios. A média de idade foi de 48,7 anos (desvio padrão − DP=7,64) e a média de tempo de trabalho portuário de 24,2 anos (DP=8,2), com tempo médio de jornada de trabalho de 7,2 horas (DP=1,9). Com relação aos turnos de trabalho, 76,7% dos trabalhadores (n=178) trabalhavam tanto nos turnos diurnos como noturnos, conforme variava a escala de trabalho. Com relação à cor da pele, 56% (n=130) dos trabalhadores se consideravam brancos, 60,8% (n=141) eram casados, 37,1% (n=86) possuíam Ensino Médio e 28,9% (n=67) Ensino Fundamental incompleto.

A respeito das doenças autorreferidas pelos portuários, os que atuam em terra referenciaram mais frequentemente a ocorrência de todos os tipos investigados. Para ambas as categorias, os mais referidos foram a lombocitalgia (36,8% dos trabalhadores em terra e 28,1% dos trabalhadores a bordo), e a tendinite (27,9% dos trabalhadores em terra e 31,3% dos trabalhadores a bordo). No intuito de verificar associações entre as categorias profissionais e os adoecimentos osteomusculares, foi aplicado o teste do qui-quadrado, cujo p value bem como a frequência dos adoecimentos são apresentados na tabela 1.

Tabela 1
Frequência dos adoecimentos osteomusculares autorreferidos pelos trabalhadores portuários

Quando questionados sobre a intensidade das doenças musculares, 42,3% (n=33) dos trabalhadores a bordo e 57,7% (n=45) dos trabalhadores em terra as consideraram moderadas. A identificação de nexo causal do trabalho com as doenças investigadas foi reconhecida por 76% (n=73) dos trabalhadores a bordo e 79% (n=108) dos trabalhadores em terra.

Entre as duas categorias de trabalhadores, os adoecimentos afetaram mais membros superiores do que inferiores. Diferentemente de outros adoecimentos localizados nos membros inferiores, a bursite foi mais referida por trabalhadores a bordo do que em terra (Figura 1).

Figura 1
Frequência da ocorrência dos distúrbios conforme localização e categoria profissional afetada – Sinovite e Tenossinovite

Ao analisar possibilidades de correlação entre a intensidade dos adoecimentos osteomusculares e variáveis de caracterização pessoal (idade) e do trabalho (tempo e jornada), realizou-se o coeficiente de Spearman. Ocorreram correlações significativas entre a intensidade dos adoecimentos e a idade, ou seja, quanto maior a idade, maior a percepção da intensidade (p=0,130; p<0,048); e também uma correlação positiva entre a intensidade e o tempo de atuação do trabalhador no porto, indicando que quanto maior o tempo de trabalho, maior a percepção da intensidade do adoecimento (p=0,158; p<0,016). Na relação com a jornada de trabalho, não houve correlação significativa (p =0,203; p<0,955).

Discussão

As limitações do estudo estão relacionadas ao próprio desenho de um estudo transversal que não permite estabelecimento de nexos causais, porém um estudo desta natureza contribui para rastrear e elucidar aspectos relevantes para futuros estudos de intervenção, por exemplo. Tais características reforçam outras limitações especificas, como à apresentação do instrumento de coleta, pois a baixa escolaridade dos trabalhadores pode ter interferido no entendimento e reconhecimento do acometimento pelos adoecimentos questionados. Inclui-se ainda a questão da masculinidade culturalmente atribuída ao trabalhador portuário, que pode mascarar a presença e a intensidade das doenças.

A identificação dos adoecimentos confere subsídios para que a enfermagem, a partir de seu raciocínio clínico, problematize os condicionantes do trabalho que produzem o adoecimento e tornam as atividades laborais tão dolorosas e difíceis de serem desenvolvidas, considerando, a partir disso, as medidas que podem reduzir o efeito das doenças. Os resultados do estudo apontaram que, entre os trabalhadores portuários pesquisados, os adoecimentos mais autorreferidos foram a lombocitalgia e a tendinite, que se desenvolveu predominantemente em membros superiores. A lombocitalgia refere-se à dor lombar, que se irradia para os membros inferiores, podendo chegar até os dedos dos pés. É um tipo de lombalgia mais específico e de difícil diagnóstico. Está associada à presença de compressão nervosa como em hérnias de disco, estenoses de canais medulares, entre outras, e, quando relacionada à hérnia discal, este adoecimento piora ao esforço físico, como na manobra de Valsalva, ao espirrar e ao tossir.(1010. Barbosa MH, Silveira TB, Cussi RA, Bonato FZ. [Lombalgia: fatores de melhora e piora entre os clientes atendidos no ambulatório de ortopedia]. Saúde Coletiva. 2011; 8(47):18-23. Portuguese.)

No desenvolvimento do trabalho portuário, a lombocitalgia pode estar relacionada a condicionantes que submetem o trabalhador por longo período de tempo à contratura estática ou à imobilização da região da cabeça, pescoço ou ombros. Exemplo disso são as operações portuárias com guindastes e guinchos, que exigem concentração para movimentação e posicionamento de grandes estruturas, mantendo com firmeza a postura corporal exposta à vibração dos maquinários. Outras atividades envolvem também tensão crônica, esforços excessivos, elevação e abdução dos braços acima da altura dos ombros como, por exemplo, na movimentação de cargas a granel e de cargas soltas, realizadas cotidianamente pelos trabalhadores.

Além dos condicionantes do ambiente de trabalho, importante relacionar os pessoais. Trabalhadores portuários apresentam uma média elevada de idade, o que provoca desidratação dos discos intervertebrais, conduzindo à degeneração, instabilidade e dor na região lombar.(1010. Barbosa MH, Silveira TB, Cussi RA, Bonato FZ. [Lombalgia: fatores de melhora e piora entre os clientes atendidos no ambulatório de ortopedia]. Saúde Coletiva. 2011; 8(47):18-23. Portuguese.,1111. Organização Mundial da Saúde (OMS). Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10). 10a rev. São Paulo: OMS; 2008 [cited 2015 Aug 31]. Available from: http://www.datasus.gov.br/cid10/V2008/cid10.htm.
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) Destaca-se também o acometimento do trabalhador por condições sistêmicas, como a obesidade, que pode contribuir para aumento da lordose lombar, favorecendo a ocorrência de lombalgia mecânica,(1212. Oliveira JG, Salgueiro MM, Alfieri FM. [Low back Pain and Lifestyle]. UNOPAR Cient Ciênc Biol Saúde. 2014; 16(4):341-4. Portuguese.,1313. Borges TP, Kurebayashi LF, Silva MJ. [Occupational low back pain in nursing workers: massage versus pain]. Rev Esc Enferm USP. 2014; 48(4):699-75. Portuguese.) condição esta de etiologia diferente da lombocitalgia. Dessa forma, esses acometimentos exigem que o raciocínio clínico seja pautado em um exame físico acurado e uma avaliação neurológica completa, que compreenda diferentes técnicas clínicas, como, por exemplo, a palpação, em que se pode identificar a hipertonia dolorosa muscular paravertebral, bem como identificar o comprometimento mecânico, compressivo, de raiz ou do nervo espinhal junto à coluna lombar, a partir da manobra de Lasègue,(1010. Barbosa MH, Silveira TB, Cussi RA, Bonato FZ. [Lombalgia: fatores de melhora e piora entre os clientes atendidos no ambulatório de ortopedia]. Saúde Coletiva. 2011; 8(47):18-23. Portuguese.) detectando a possibilidade de uma lombocitalgia. Já a identificação de atividades cotidianas de risco, como carregamento de peso e má postura corporal, bem como a existência de condicionantes pessoais relevantes, pode ajudar na detecção da lombalgia mecânica.

A tendinite caracteriza-se por inflamações do tecido próprio dos tendões, com ou sem degeneração de suas fibras.(1414. Brasil. Ministério da Saúde do Brasil. Organização Pan-Americana da Saúde no Brasil. Doenças relacionadas ao trabalho: manual de procedimentos para os serviços de saúde. Normas e Manuais Técnicos. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2001. [cited 2015 Jun 30]. Available from: http://dtr2004.saude.gov.br/susdeaz/instrumento/arquivo/16_Doencas_Trabalho.pdf.
http://dtr2004.saude.gov.br/susdeaz/inst...
) Trata-se de uma doença de alta incidência no Brasil e é considerada uma das principais causadoras de afastamento dos trabalhadores de suas atividades diárias. O nexo com o trabalho advém de achados epidemiológicos, dados de história ocupacional e de análises ergonômicas do trabalho.(1414. Brasil. Ministério da Saúde do Brasil. Organização Pan-Americana da Saúde no Brasil. Doenças relacionadas ao trabalho: manual de procedimentos para os serviços de saúde. Normas e Manuais Técnicos. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2001. [cited 2015 Jun 30]. Available from: http://dtr2004.saude.gov.br/susdeaz/instrumento/arquivo/16_Doencas_Trabalho.pdf.
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) A doença pode afetar qualquer parte do corpo, mas, caso os músculos acometidos possuam uma cobertura ou bainha sinovial, o processo é denominado de tenossinovite. A localização da tendinite entre os trabalhadores portuários mostrou-se mais frequentemente em membros superiores, assim como identificado com trabalhadores mineiros de carvão, em que a doença manifestou-se por meio de epicondilite lateral, doença De Quervain, e neuropatia ulnar,(1515. Özdolap S, Emre U, Karamercan A, Sarikaya S, Köktürk F. Upper limb tendinitis and entrapment neuropathy in coal miners. Am J Ind Med. 2013; 56(5):569-75.) e também entre trabalhadores de produção, por meio de tendinoses que aconteceram principalmente em trabalhadores expostos continuamente em atividades que exijam posturas de flexão e extensão dos braços e pulsos.(1616. Harris-Adamson C, You D, Eisen EA, Goldberg R, Rempel D. The impact of posture on wrist tendinosis among blue-collar workers: the San Francisco study. Hum Factors. 2014; 56(1):143-50.)

Trabalhadores portuários efetuam operações com esses tipos de posicionamentos, como na utilização de maquinários como pás carregadeiras, retroescavadeiras, guinchos, empilhadeiras, veículos e no trabalho manual com vassouras, pás, espias e cabos, no tombamento ou deslizamento manual de cargas, entre outros. Expõem-se também no trabalho de vigilância de embarcações, sinalização de operações, amarração/atracação e na movimentação de contêineres, visto que, quando estão suspensos por guinchos e guindastes e sofrem desvios de direção devido ao vento, os próprios trabalhadores tentam movimentá-los, colocando-os na posição necessária.

Essas atividades ocupacionais dos trabalhadores podem justificar também a frequência significativa da referência de artroses, que se caracterizam por alterações bioquímicas e anatômicas progressivas nas articulações, comprometendo estrutura e função. Essa doença é multifatorial e está relacionada tanto à idade como a elementos do trabalho, sendo verificada entre estivadores na região da coluna vertebral, dado o carregamento de peso realizado durante as operações portuárias.(1717. Garcia Júnior AC. Segurança e Saúde no Trabalho Portuário - Manual Técnico da NR 29. São Paulo: Fundacentro; 2014.) A doença articular também já foi relacionada a atividades de elevação do braço e ao trabalho em pé, que provocaram sobrecarga das articulações do quadril e do joelho entre professores, dificultando a irrigação sanguínea e gerando dor e o adoecimento.(1818. Ribeiro IQ, Araújo TM, Carvalho FM, Porto LA, Rei EJ. [Occupational factors associated to musculoskeletal pain among teachers]. Rev Baiana Saúde Pública. 2011; 35(1): 42-64. Portuguese.)

Outro fator importante, neste estudo, foi a correlação entre a idade e tempo de trabalho com a intensidade das doenças autorreferidas. Infere-se que trabalhadores de maior faixa etária apresentam um tempo maior de exposição aos condicionantes socioambientais, o que produziria maior chance de ocorrência de adoecimentos e, consequentemente, maior percepção da intensidade desses. Da mesma forma, atua o maior tempo de trabalho, que influencia no conhecimento do ambiente ocupacional e da consequente exposição característica.

Os resultados apresentados conferem subsídios para que a enfermagem utilize o raciocínio clínico para identificar o porquê das atividades produzirem o adoecimento e tornarem-se tão dolorosas e difíceis de serem desenvolvidas, considerando, a partir disso, as medidas que podem reduzir o efeito das doenças. Por mais que os resultados obtidos tenham sido fundamentados em diagnósticos médicos, o processamento do raciocínio clínico da enfermagem à saúde do trabalhador ultrapassa esse âmbito, podendo se utilizar tanto de dados biológicos quanto dos elementos socioambientais pessoais e do trabalho, que viabilizam um olhar sobre as interações existentes entre os processos de saúde e adoecimento ocupacional.

Assim, visualiza-se a possibilidade de organizar a experiência do trabalhador como fator de proteção a sua saúde, uma vez que disporá de maior identificação/conhecimento sobre as doenças provocadas pelo trabalho, permitindo perceber, com maior nitidez, a intensidade destas e promovendo, assim, a prevenção, por meio de estratégias de autocuidado e orientação conjunta (entre colegas). Perceber como o corpo adoece é uma medida que pode ser fortalecida pela comunicação dos riscos ocupacionais, aqui representados pelos elementos pessoais (idade) e organizacionais (tipo de trabalho, tempo e jornada de trabalho), os quais mostraram-se relacionados à produção do adoecimento, instrumentalizando, assim, o raciocínio clínico da enfermagem para intervenção em saúde. Podem ser também organizadas estratégias de autogestão, as quais permitem gerir o ambiente e os instrumentos de trabalho de forma a evitar que as atividades ocupacionais produzam ou intensifiquem as doenças.(1919. Walker J. Shoulder pain: pathogenesis, diagnosis and management. Nurs Stand. 2014; 28(22):51-8.) Além dessas, a enfermagem pode utilizar instrumentos de avaliação em saúde, como a eletromiografia, como forma de ponderar as respostas biomecânicas corporais, identificando a atividade muscular, os músculos fadigados, a tensão e a carga osteomuscular dos indivíduos.(2020. Oliveira GS, Cezar-Vaz MR, Rocha LP, Severo LO, Bonow CA. [Electromyography in clinical occupational health: integrative review]. Rev Enferm UFPE On Line. 2013; 7(4):1216-24. Portuguese.)

Além dessas medidas, utilizando-se de seu raciocínio clínico, a enfermagem pode complementar as avaliações ergonômicas do ambiente em que o trabalho se desenvolve,(2121. Silva LA, Secco IA, Dalri RC, Araújo SA, Romano CC, Silveira SE. [Ergonomics and occupational health nursing: prevention of health disorders]. Rev Enferm UERJ. 2011; 19(2):317-23. Portuguese.) considerando não só as áreas internas, mas também as externas ao cais portuário, como os sindicatos, onde são realizadas as chamadas para o trabalho, e onde os trabalhadores dispõem de local mais apropriado a sua organização e descanso, antes ou entre as atividades de trabalho. Com um olhar mais abrangente, o raciocínio colabora com o processo ergonômico para promover um aproveitamento ambiental e funcional do trabalho, favorecendo, consequentemente, a adaptação do trabalhador e a prevenção das doenças musculares.

Conclusão

A lombocitalgia e a tendinite foram as doenças mais frequentes entre os trabalhadores portuários, cuja intensidade mostrou correlação significativa com condicionantes socioambientais pessoais e relacionados ao trabalho, influenciando, assim, no delineamento do raciocínio clínico da enfermagem, que neste âmbito, deve considerar a cronicidade dos adoecimentos, organizando medidas preventivas à longo prazo, e constantemente, instrumentalizando a implementação da assistência socioambiental de enfermagem ao trabalhador.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    9 Set 2015
  • Aceito
    19 Maio 2016
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