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Reforma psiquiatrica brasileira: muito a refletir

Reforma psiquiátrica brazileña: mucho a reflejar

Brazilian psychiatric reform: a lot to reflect on

Resumos

Este estudo teve por objetivo fazer uma reflexão sobre a Reforma Psiquiátrica brasileira a partir das práticas que vêm tentando consolidala, ressaltando questões e impasses atuais. É uma contribuição à historiografia de um processo que está em curso, podendo incidir em riscos metodológicos por se realizar uma análise no decorrer do próprio processo. A despeito de inúmeras dificuldades, ao longo desses anos a Reforma foi abraçada por diversos segmentos sociais, ocorrendo avanços consideráveis no modo de perceber e assistir a pessoa em sofrimento mental, com crescente conscientização da sociedade em torno da compreensão de que um outro tipo de atenção, mais terapêutico, humano e libertador, é possível de ser dispensada. Estratégias e parcerias informais ou formais vêm permitindo ampliar o leque de alternativas assistenciais e construir histórias alentadoras e de sucesso no tratamento na área. Mesmo assim, é necessário manter-se vigilante e atento a tentativas de retrocesso ideológicos e assistenciais.

Formulação de políticas; Enfermagem psiquiátrica; Saúde mental tentativas de retrocessos ideológicos e assistenciais


Este estudio a tenido por objetivo hacer una reflexión sobre la Reforma Psiquiátrica brasileña a partir de las prácticas que vienen intentando consolidarla, resaltando cuestiones e impases actuales. Es una contribuición a la historiografia de un proceso que está en curso, pudiendo incidir en riesgos metodológicos por realizarse un análisis en el transcurso del propio proceso. A pesar de la innumerables dificultades, a lo largo de esos años, la Reforma fue abrazada por diversos segmentos sociales, ocurriendo avances considerables en el modo de percibir y asistir a la persona en sufrimiento mental, con creciente concienciación de la sociedad en torno a la compresión de que otro tipo de atención, más terapéutico, humano y libertador, es posible de ser dispensada. Estrategias y asociaciones informales o formales vienen permitiendo ampliar el abanico de alternativas asistenciales y construir historias alentadoras y de éxito en el tratamiento en el área. Aún así, es necesario mantenerse vigilante y atento a intentos de retrocesos ideológicos y asistenciales.

Formulación de políticas; Enfermería psiquiátrica; Salud mental


This study reflected on the Brazilian Psychiatric Reform beginning with clinical practice, highlighting current questions and issues. This study is a contribution to the historiography of a continuing process, making it possible to incur methodological risks by carring on an analysis during the process itself. In spite of numerous difficulties, during these years the Brazilian Psychiatric Reform has been embraced by several social classes, resulting in remarkable advances in the perception of assistance to the person with mental suffering, while increasing society's sensitivity that another kind of attention, more therapeutic, human and liberating, is possible to be given. Several formal and informal strategies and partnerships have been expanding the range of alternatives in clinical practice, resulting in comforting and successful stories in psychiatric treatment. Even so, it is necessary to keep under surveillance and to be attentive to ideological and clinical practice retrocession.

Policy making; Psychiatric nursing; Mental health


ARTIGO ATUALIZAÇÃO

Reforma psiquiatrica brasileira: muito a refletir

Brazilian psychiatric reform: a lot to reflect on

Reforma psiquiátrica brazileña: mucho a reflejar

Maria de Nazaré de Oliveira FragaI; Ângela Maria Alves e SouzaII; Violante Augusta Batista BragaIII

IDoutora em Enfermagem; Professora Adjunto Apsentada pela Universidade Federal do Ceará - UFC - Frotaleza (CE), Brasil; Coordenadora do Grupo de Pesquisa GRUPPS "Políticas e Práticas de Saúde – UFC – Fortaleza (CE), Brasil

IIDoutora em Enfermagem; Professora Adjunto do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal do Ceará - Fortaleza (CE), Brasil; Membro do Grupo de Pesquisa GRUPPS "Políticas e Práticas de Saúde – UFC – Fortaleza (CE), Brasil

IIIDoutora em Enfermagem; Professora Adjunto do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal do Ceará - UFC - Fortaleza (CE), Brasil; Coordenadora do Grupo de Pesquisa GRUPPS "Políticas e Práticas de Saúde – UFC– Fortaleza (CE), Brasil

Autor Correspondente Autor Correspondente: Ângela Maria Alves e Souza R. João Sorongo, 1891 Fortaleza - CE CEP:60430-440 E-mail: amas@ufc.br

RESUMO

Este estudo teve por objetivo fazer uma reflexão sobre a Reforma Psiquiátrica brasileira a partir das práticas que vêm tentando consolidala, ressaltando questões e impasses atuais. É uma contribuição à historiografia de um processo que está em curso, podendo incidir em riscos metodológicos por se realizar uma análise no decorrer do próprio processo. A despeito de inúmeras dificuldades, ao longo desses anos a Reforma foi abraçada por diversos segmentos sociais, ocorrendo avanços consideráveis no modo de perceber e assistir a pessoa em sofrimento mental, com crescente conscientização da sociedade em torno da compreensão de que um outro tipo de atenção, mais terapêutico, humano e libertador, é possível de ser dispensada. Estratégias e parcerias informais ou formais vêm permitindo ampliar o leque de alternativas assistenciais e construir histórias alentadoras e de sucesso no tratamento na área. Mesmo assim, é necessário manter-se vigilante e atento a tentativas de retrocesso ideológicos e assistenciais.

Descritores: Formulação de políticas; Enfermagem psiquiátrica; Saúde mental tentativas de retrocessos ideológicos e assistenciais.

ABSTRACT

This study reflected on the Brazilian Psychiatric Reform beginning with clinical practice, highlighting current questions and issues. This study is a contribution to the historiography of a continuing process, making it possible to incur methodological risks by carring on an analysis during the process itself. In spite of numerous difficulties, during these years the Brazilian Psychiatric Reform has been embraced by several social classes, resulting in remarkable advances in the perception of assistance to the person with mental suffering, while increasing society's sensitivity that another kind of attention, more therapeutic, human and liberating, is possible to be given. Several formal and informal strategies and partnerships have been expanding the range of alternatives in clinical practice, resulting in comforting and successful stories in psychiatric treatment. Even so, it is necessary to keep under surveillance and to be attentive to ideological and clinical practice retrocession.

Keywords: Policy making; Psychiatric nursing; Mental health

RESUMEN

Este estudio a tenido por objetivo hacer una reflexión sobre la Reforma Psiquiátrica brasileña a partir de las prácticas que vienen intentando consolidarla, resaltando cuestiones e impases actuales. Es una contribuición a la historiografia de un proceso que está en curso, pudiendo incidir en riesgos metodológicos por realizarse un análisis en el transcurso del propio proceso. A pesar de la innumerables dificultades, a lo largo de esos años, la Reforma fue abrazada por diversos segmentos sociales, ocurriendo avances considerables en el modo de percibir y asistir a la persona en sufrimiento mental, con creciente concienciación de la sociedad en torno a la compresión de que otro tipo de atención, más terapéutico, humano y libertador, es posible de ser dispensada. Estrategias y asociaciones informales o formales vienen permitiendo ampliar el abanico de alternativas asistenciales y construir historias alentadoras y de éxito en el tratamiento en el área. Aún así, es necesario mantenerse vigilante y atento a intentos de retrocesos ideológicos y asistenciales.

Descriptores: Formulación de políticas; Enfermería psiquiátrica; Salud mental

INDRODUÇÃO

A hospitalização dos loucos no país, como em todo o mundo, é algo bastante recente. Durante os três primeiros séculos após o descobrimento do Brasil, nossa sociedade foi bastante tolerante com eles, deixando-os vagar pelos campos, pelas ruas das recém- criadas cidades ou mantendo-os reclusos nas casas de famílias mais abastadas. Quando as cidades começaram a se tornar mais populosas a presença dos loucos nas ruas foi se tornando indesejável e as medidas tomadas com eles e com outros desviantes foi encaminhá-los a prisões e aos porões das Santas Casas. A ocorrência de maus tratos e as precárias condições de funcionamento daqueles espaços fez surgir apelos humanitários, assumidos por políticos da época, defendendo a criação de instituições exclusivas para acolhimento dos loucos.

Como conseqüência, em 1852 foi inaugurado no Rio de Janeiro, capital do Império, o Asilo de Pedro II. Com o Estado admitindo, a partir daquele momento, que a questão da loucura era de sua responsabilidade, os alienistas, argumentando sobre a necessidade de tratar os loucos, assumiram a condução do Asilo de Pedro II. A presença deles ali e nos demais hospícios que foram inaugurados em diversas regiões do Brasil tinha como propósito conferir caráter técnico-científico à segregação dos alienados. Nesse período de ampliação do número de hospícios fica patente a tendência de segregar o louco, perceptível nos reclamos da sociedade que, entre outras medidas, fez adotar a que passou a proibir o internamento dos doentes mentais em hospitais gerais.

A tendência de exclusão cristalizou-se, mais ainda, quando durante o regime militar, iniciado em 1964 e que durou mais de vinte anos, a assistência psiquiátrica foi incorporada à previdência social. Leitos privados eram contratados pela previdência social e com isso foram criados muitos hospitais psiquiátricos privados. Mas essa tendência esbarrou em alguns obstáculos, entre os quais, um dos mais fortes, a não resolutividade dos hospitais psiquiátricos, o que fez crescer a denúncia de que havia uma verdadeira indústria da loucura. Essas denúncias receberam certa acolhida do Estado que respondeu com algumas medidas, como produção de manuais, ordens de serviço e resoluções propondo a ambulatorização e interiorização da assistência psiquiátrica. Entretanto, quase todas essas medidas não saíram do papel.

A crise da assistência psiquiátrica aguçou-se e tomou força quando, em 1979, o Governo, por ocasião das eleições, perdeu força e legitimidade, iniciando-se, então, a processo de abertura política. Este processo abriu espaço para que os mais diferentes segmentos dos trabalhadores brasileiros se organizassem em defesa de maiores direitos. É neste contexto de redemocratização interna, e com articulações ao nível internacional que se desenvolve o movimento dos trabalhadores de saúde mental. Esse movimento englobou progressivamente diversos setores sociais preocupados com o tipo de assistência psiquiátrica que se prestava no Brasil e, de conquista em conquista, paralelamente à reforma sanitária que também estava em construção, desembocou no que veio a se constituir como a Reforma Psiquiátrica.

Daqueles momentos iniciais até hoje foram produzidas algumas reflexões importantes, bem como tem havido uma crescente preocupação dos trabalhadores de saúde mental na direção de fazer avançar essa reforma, vigiar para que seus propósitos não sejam desvirtuados e de lutar para que se construa e se firme um prática assistencial condizente com seus princípios norteadores.

Quando estamos a mais de vinte anos do início desse movimento, é oportuno resgatar o processo de constituição e princípios, refletir sobre as práticas que vêm tentando consolidar a reforma e ressaltar as questões e impasses atuais. É este o nosso objetivo no presente artigo. É uma contribuição à historiografia de um processo que ainda está em curso. Portanto, pode incidir em riscos metodológicos porque se propõe a realizar uma análise no decorrer do próprio processo, implicando em dificuldade de objetivação de detalhes que se imbricam. Mesmo assim, consideramos a reflexão ora produzida uma tarefa necessária.

Processo, princípios e questões atuais

O processo de Reforma Psiquiátrica começou a ser gestado nos diversos encontros de trabalhadores de saúde mental que se realizaram, principalmente, em cidades da região Sudeste. Posteriormente, com abrangência maior, realizam-se as Conferências Nacionais de Saúde Mental, nos anos de 1987, 1992 e 2001.

As discussões iniciais objetivaram denunciar as condições degradantes da assistência que era prestada nos asilos e hospitais psiquiátricos, até então. Os trabalhadores de saúde mental também realizaram uma autocrítica sobre o papel que vinham desempenhando nessa assistência que era de baixa qualidade, desrespeitosa e segregadora dos doentes mentais, e sobre o novo papel político que precisariam assumir para transformar tal realidade.

Veio à tona a necessidade de lutar pelo resgate da cidadania dos doentes mentais durante a I Conferência Nacional de Saúde Mental, quando foram traçadas estratégias para processar modificações na legislação psiquiátrica, sanitária, trabalhista, civil e penal, modificações essas que dariam suporte ao novo enfoque de cidadania que se queria constituir. Nessa mesma Conferência foram definidos os pontos principais do novo modelo de assistência em saúde mental e que foi aperfeiçoado em momentos posteriores.

Resgatar a cidadania do doente mental é a marca distintiva do processo de reforma psiquiátrica brasileira. A reforma psiquiátrica tem como objetivos questionar o modelo assistencial até então vigente, e propor estratégias para a transformação, fazendo emergir um novo paradigma para a psiquiatria(1). Adicionaram-se proposições como: reverter o hospitalocentrismo, implantando rede extra-hospitalar e atenção multiprofissional; proibir e construção de novos hospitais psiquiátricos ou a ampliação dos existentes e fazer desativação progressiva dos leitos existentes; inserir leitos e unidades psiquiátricas em hospitais gerais; integrar a saúde mental a outros programas de saúde, movimentos sociais e instituições.

A Reforma Psiquiátrica pode ser vista como um campo heterogêneo, que abarca a clínica, a política, o social, o cultural e as relações com o jurídico, e é obra de atores muito diferentes entre si(2).

Embora o movimento dos trabalhadores de saúde mental tenha desenvolvido uma abrangência crescente, em seu processo sempre contou com adversários poderosos, entre os quais se destacaram os proprietários dos hospitais psiquiátricos privados que, a todo custo, pretendiam continuar auferindo vultosos lucros, bem como entidades médicas conservadoras. Culturalmente, as famílias haviam sido preparadas para entender que o tratamento do doente mental só era possível e aceitável no interior dos hospitais psiquiátricos. Além do mais, os trabalhadores de saúde mental, sem exceção, haviam sido treinados para desenvolver suas atividades profissionais na área, no interior de asilos ou de hospitais psiquiátricos, havendo todo tipo de dificuldade de se lançar a desenvolver práticas terapêuticas, acolhedoras e cidadãs.

O movimento foi firmando importantes e indispensáveis alianças, tanto ao nível nacional quanto internacional, assim como nos mais diversos recantos do país. Ao nível internacional, em momentos decisivos os trabalhadores de saúde mental buscaram e puderam contar com uma retaguarda reconhecida e reconhecedora de seus esforços. Incluem-se nesse âmbito as diversas vindas ao Brasil de Franco Basaglia, o mentor da psiquiatria democrática italiana. A Declaração de Caracas(3), constitui-se em esforço, indicando que sejam implementadas reformas da assistência em saúde mental na América Latina, baseadas na atenção primária de saúde, dando ênfase ao atendimento extra-hospitalar e assegurando o respeito aos direitos humanos e civis do doente mental, que constituem os eixos fundamentais da reforma que já estava em curso no Brasil. Foram iniciativas desse porte que livraram o movimento pela Reforma Psiquiátrica de certa condição de marginalidade que durante alguns anos lhe tentaram impor.

No Brasil, no campo legislativo foi de fundamental importância o Projeto de Lei No. 08/91, do Deputado Federal Paulo Delgado, que incorporava as proposições do movimento dos trabalhadores de saúde mental com o propósito de formalizar a Reforma Psiquiátrica como lei nacional. Referido projeto enfrentou os mais diversos obstáculos, mas auspiciou inúmeras discussões, e através da imprensa houve a crescente conscientização da sociedade sobre as proposições da Reforma Psiquiátrica. Com isso, antes que houvesse regulamentação por lei nacional, em muitas regiões do país foram promulgadas leis estaduais proibindo a internação psiquiátrica involuntária, promovendo a criação e ampliação de hospitais psiquiátricos e definindo a criação de recursos extra-hospitalares de atenção em saúde mental. Só em 2001 é que foi aprovada a Lei n.º 10.216(4), cujo texto final incorporou outras proposições, perdeu algo do texto original, mas pode ser considerado que, atribuí ainda assim, à lei um caráter progressista.

Cabe ressaltar, que ao longo dos dez anos em que o projeto de lei tramitou sem ser aprovado houve avanços importantes do processo de reforma, com importantes indicadores de transformação da assistência. São emblemáticas desse período duas experiências, entre várias outras, e que representam iniciativas institucionais bem-sucedidas na formatação de um novo tipo de atenção em saúde mental. São elas: o Centro de Atenção Psicossocial Luiz Cerqueira da cidade de São Paulo e a intervenção da Casa de Saúde Anchieta.

Da experiência de Santos, surge um vigoroso programa municipal de saúde mental, organizado em torno dos Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS). Esta experiência está fartamente documentada e discutida em artigos, dissertações e teses. Assenta-se na criação de uma rede de cuidados, cujo eixo é os NAPS. Estes são estruturas abertas e regionalizadas, responsáveis por toda a demanda de certa região, funcionando diuturnamente, contando até com leitos para internação breve.

O Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Luiz Cerqueira da cidade de São Paulo, diferentemente da experiência de Santos, é uma unidade específica de saúde mental, apresenta-se como um serviço de atendimento-dia, e assenta-se no entendimento de que as dificuldades de vida geradas pela doença mental requerem mais do que tratamento através de consultas periódicas. Além disso, fundamenta-se na idéia de que o tratamento de doentes graves exige condições que ambulatórios e hospitais psiquiátricos tradicionais não dispõem(5). Por este motivo, ao atendimento diurno estão vinculadas outras estratégias como atividades terapêuticas diversificadas e o trabalho em equipe multiprofissional.

O modelo inaugurado em São Paulo inspirou, na década de 90, a criação de dezenas de outros CAPS nas mais diversas regiões do Brasil, estabelecendo um novo tipo de serviço de saúde mental. Com tal expansão, foram amadurecendo e se consolidando processos que passaram a compor o cenário da Reforma Psiquiátrica. Vale salientar, que os CAPS e NAPS só foram regulamentados em plano nacional pelo Ministério da Saúde pelas Portarias n.º 189 de 1991(6) e n.º 224 de 1992(7).

É verdade que naquela década assistiu-se a um conjunto de realizações importantes: paulatinamente, vão sendo definidas medidas que passam a formatar uma política pública nacional assentada em diretrizes reformistas; implantação de experiências inovadoras bem sucedidas em todas as regiões brasileiras; vitalidade das experiências pioneiras que se mantêm em funcionamento; redirecionamento do financiamento das ações em saúde mental, com certa priorização do atendimento alternativo à internação; formalização de regras mais rígidas para o funcionamento de hospitais psiquiátricos públicos ou contratados.

Acrescente-se que já na presente década, além da promulgação da Lei n.º 10.216(4), foram adotadas novas medidas pelo Ministério da Saúde. Entre elas, podemos destacar: Programa de Volta para Casa que institui o pagamento de auxílio-reabilitação para possibilitar, juntamente com outras estratégias, a permanência fora de hospital psiquiátrico e a reinserção social ampla de pessoas acometidas por transtornos mentais com história de longa internação psiquiátrica; Serviços Residenciais Terapêuticos que não são precisamente serviços de saúde mental, mas casas localizadas em espaço urbano para moradia de pessoas com transtornos mentais graves, articuladas à rede de atenção psicossocial de cada município para a inclusão social dos moradores; portarias diversas que definem a destinação de valor financeiro para os diversos tipos de CAPS dos municípios que sejam habilitados pelo Ministério da Saúde; Procedimentos Ambulatoriais de Alta Complexidade/Custo(APAC) para custeio mensal dos procedimentos desenvolvidos por equipes especializadas dos CAPS e outros equipamentos extra-hospitalares de assistência em saúde mental que cumpram as exigências protocolares estabelecidas. Além disso, estão regulamentadas as Unidades Psiquiátricas em Hospitais Gerais.

As medidas relacionadas acima sugerem que a reforma é um sucesso. A partir do início da década de 90, o Ministério da Saúde tornou-se aliado do MTSM e assumiu formalmente suas proposições, enquanto estratégia política. Essa nova concepção, de alguma forma, conseguiu redirecionar o financiamento público das ações de saúde mental e exercer maior controle sobre o funcionamento dos hospitais psiquiátricos.

Estima-se que 3% dos brasileiros exigem cuidados contínuos em saúde mental, o que representaria mais de seis milhões de pessoas. Entretanto, em setembro de 2001, o Ministério da Saúde estimava que apenas quinhentas mil pessoas eram assistidas por cuidados contínuos de saúde mental no sistema público. Houve um momento em que foi estimado que o país necessitaria de uma rede de atenção psicossocial composta de 1.600 serviços. Em 2004 o Ministério da Saúde contabilizava a existência de 516 CAPS e de 256 Serviços Residenciais Terapêuticos, sendo estes últimos distribuídos em apenas quatorze estados e 45 municípios brasileiros, e abrigando 1.400 pessoas. Além do mais, as estimativas do Ministério da Saúde indicavam a existência de 12.000 pacientes internados que poderiam ser beneficiados por serviços residenciais(8).

Embora seja necessário enfatizar que já há uma outra lógica, não se pode afirmar que a prevalência do manicômio como principal recurso de assistência para a maioria da clientela tenha deixado de ser uma realidade. Por isso, há a necessidade de analisar os mesmos considerando as necessidades da população em relação ao sistema público de saúde mental.

Questões e impasses atuais

Mesmo registrando os indicadores de sucesso já referidos, consideramos indispensável apontar as fragilidades e os espaços em que devem ocorrer maiores investimentos, tanto materiais quanto políticos.

É um fato que a atenção primária no setor de saúde mental ainda se coloca de modo tímido, prevalecendo ações nas práticas secundárias e terciárias, estas mesmas ainda insuficientes para as necessidades da população brasileira. Por sua vez, os serviços especializados em saúde mental como CAPS, Serviços Residenciais Terapêuticos e Hospitais-dia, ainda se fazem insuficientes, mal distribuídos geograficamente, havendo muitos municípios brasileiros que não possuem qualquer dessas estruturas. Por essas razões, a rede de serviços de saúde mental ainda não se faz resolutiva e articulada, tendo em vista que algumas estruturas previstas têm número reduzido, como é o caso das unidades de saúde mental em hospitais gerais.

Em relação ao financiamento das ações de saúde mental, ainda permanecem questões importantes, principalmente relacionadas à cobertura de iniciativas que ampliem e dêem maior resolutividade à atenção primária. Há também dificuldades no que diz respeito a ações que demandam intersetorialidade. Tanto iniciativas relacionadas à ampliação do financiamento, quanto da intersetorialidade das ações, seriam bem vindas para ampliar a atenção a pacientes crônicos ou não.

É verdade que nas universidades tem ocorrido todo um esforço para adequação dos conteúdos ministrados nos cursos de graduação, houve a criação de cursos de especialização e a ampliação de cursos de mestrado e de doutorado com a inclusão de disciplinas voltadas a discutir as questões mais recentes da saúde mental. Com isso, já existe uma produção teórica bastante abrangente, inclusive resultante de pesquisas multicêntricas, que oferecem todo um suporte para refinar os eixos filosóficos da reforma e para exercer uma vigilância em torno de tudo o que a ela se relaciona. Mesmo assim, é forçoso reconhecer que as universidades não deram conta da grande demanda por qualificação específica, para trabalhar dentro da perspectiva filosófica da Reforma Psiquiátrica, oriunda de profissionais com as mais diversas formações básicas.

Quanto à formação, felizmente pudemos assistir e participar dos esforços e da criatividade política dos trabalhadores brasileiros de saúde mental que, em significativo número de municípios, promoveram, ora encontros de CAPS, ora consórcios de entidades médicas e de outras profissões com a iniciativa privada, ou outros tipos de arranjo, de forma tal que puderam superar a morosidade e burocracia, sempre presentes nas universidades e em outras instâncias oficiais. Foram iniciativas dessa natureza que permitiram promover uma qualificação ágil e mais afinada com o novo momento. Registre-se que o Governo atual tem se mostrado bastante comprometido com a qualificação em saúde, criando os Pólos de Capacitação financiados com verbas públicas e que, já no ano de 2005, vêm agilizando a capacitação de recursos humanos de saúde mental nos principais municípios do país.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É necessário ressaltar que, a despeito de inúmeras dificuldades, ao longo desses anos, a reforma foi abraçada por diversos segmentos sociais, o que fez com que ocorressem avanços consideráveis. Houve crescente conscientização da sociedade em torno da compreensão de que um outro tipo de atenção, mais terapêutico, humano e libertador é possível de ser dispensado ao doente mental. Os trabalhadores desenvolveram estratégias e parcerias informais ou formais, que vêm permitindo ampliar o leque de alternativas assistenciais e construir histórias alentadoras e de sucesso no tratamento de pessoas com transtornos mentais crônicos ou não.

O contexto político atual do Brasil, que se caracteriza por desmobilização geral das pessoas em torno de bandeiras de luta que não são novas e necessitam de permanente vigilância para que não ocorram retrocessos, foi um forte determinante de nossa decisão para proceder à presente análise. Somos do parecer que não podemos nos contentar com os avanços já alcançados no âmbito da reforma psiquiátrica.

É fundamental que todo cidadão esteja atento e vigilante, para impedir retrocessos e para cobrar o que ainda não lhe satisfaz. No presente momento, cabe resgatar a necessidade de manter desperta a idéia de controle social, sob pena de vermos arrefecidas as energias que em décadas anteriores dedicamos para reconquistar a democracia, para garantir uma Constituição compatível com essa condição, e uma legislação de saúde que possa garantir todas as necessidades do povo brasileiro. No campo da saúde mental essa vigilância se faz particularmente necessária no presente momento, pois muito ainda há para construir.

Artigo recebido em 21/11/2005 e aprovado em 30/03/2006

  • 1. Amarante P, (Organizador). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz;1995.
  • 2. Tenório F. A reforma psiquiátrica brasileira, da década de 1980 aos dias atuais: história e conceitos. Hist Ciênc Saúde Manguinhos. 2002; 9(1): 25-59.
  • 3. Brasil Ministério da Saúde. Declaração de Caracas. In: Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Legislação em Saúde Mental:1990-2004. 5a ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2004.p. 11-2.
  • 4
    Brasil. Leis; Decretos.Lei 10.216 de 6 de abril de 2001. In: Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Legislação em Saúde Mental:1990-2004. 5a ed. Brasília: 2004. p. 243- 51.
  • 5. Goldberg J. A clínica da psicose: um projeto na rede pública. Rio de Janeiro: Te Corá; 1994.
  • 6. Brasil. Portaria SNAS No. 189 de 19 de novembro de 1991. In: Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Legislação em Saúde Mental: 1990-2004. 5a ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2004.p. 237- 41.
  • 7
    Brasil Portaria SNAS No. 224 de 29 de janeiro de 1992. In: Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Legislação em Saúde Mental:1990-2004. 5a ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2004. p.17-20.
  • 8. Brasil. Ministério da Saúde. Saúde Mental no SUS: Os centros de atenção psicossocial. Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, Coordenação Nacional de Saúde Mental; 2004.
  • Autor Correspondente:
    Ângela Maria Alves e Souza
    R. João Sorongo, 1891
    Fortaleza - CE
    CEP:60430-440
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Set 2007
    • Data do Fascículo
      Jun 2006

    Histórico

    • Aceito
      30 Mar 2006
    • Recebido
      21 Nov 2005
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