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O Deus Pai junto à mesa: a centralidade do supervisor nas cartas de Inácio de Antioquia

God the Father at the Table: The Centrality of the Overseer in the Letters of Ignatius of Antioch

Resumo:

O desenvolvimento de uma autoridade concentrada em uma única pessoa é, certamente, um dos principais processos sociais do cristianismo dos dois primeiros séculos d.C. e também um dos que deixaram um legado mais duradouro e influente na Igreja cristã dos séculos seguintes. Nesse sentido, Inácio de Antioquia vem a ser não somente uma testemunha histórica das dinâmicas envolvendo tal processo na Ásia Proconsular de seu tempo, mas também, e sobretudo, um agente histórico que trabalha, usando de sua habilidade retórica e de sua condição de prisioneiro, para reorganizar as comunidades cristãs às quais se dirigia em torno daquele que defendia ser a própria representação do Deus Pai na ceia sagrada.

Palavras-Chave:
Inácio de Antioquia; Ásia Proconsular; Hierarquia eclesiástica

Abstract:

The development of a kind of authority concentrated in one person is surely one of the main social processes in the first two centuries CE Christianity and also one of those which left the most perennial and influent legacies in the Christian Church of posterior centuries. In this sense, Ignatius of Antioch is not only an historical witness of the dynamics around such a process in Proconsular Asia of his time. He is also, and most of all, an historical agent who, using his rhetorical abilities and imprisonment conditions, works for the reorganization of the Christian communities around the one he defended to be the representation in the holy supper of God the Father himself.

Keywords:
Ignatius of Antioch; Asia Proconsular; Ecclesiastical hierarchy

O cristianismo1 1 Artigo adaptado da dissertação defendida no Programa de Pós-graduação em História Social da FFLCH/USP (Piza, 2016), conforme sugestão da banca examinadora. Agradeço à FAPESP pelo financiamento da pesquisa no mestrado e de seu suporte à minha atual pesquisa de doutorado. (ou os cristianismos) da virada dos séculos I e II d.C. encontra-se em pleno processo de assentamento nos diversos centros urbanos às margens do Mediterrâneo, especialmente naqueles com grandes contingentes populacionais que têm no grego a língua materna e/ou cotidiana. Consequência direta de tal processo é a grande diversidade interna ao novo movimento religioso. Tanto na teologia quanto no ritual, as comunidades cristãs manifestam tendências bem diferentes entre si, daí decorrendo por vezes soluções de compromisso entre grupos dissidentes, assim como conflitos notórios, facilmente identificáveis na documentação. No entanto, é nas formas de organização das igrejas locais que a diversidade cristã antiga encontra uma de suas expressões mais marcantes: conforme estabelecido por Henry Chadwick, a variedade nas formas de expressão de autoridade era a norma para as comunidades oriundas dos primeiros impulsos missionários do século I (Chadwick, 1967CHADWICK, H. (1967). The Early Church. London, Penguin Books., p. 51); era necessário adaptar-se a contextos específicos, especialmente quando estes envolviam divisões internas. Alguns acreditavam que o caminho para a unidade seria a supressão de toda diversidade interna. Era essa especialmente a visão de um líder cristão de Antioquia no Orontes, que nos legou um curto epistolário composto quando de sua transferência como prisioneiro da Síria a Roma.2 2 Ainda que Alan Brent (2009, p. 21) e, antes dele, P. N. Harrison (1936, p. 79-106) tenham levantado argumentos relevantes em favor de um contexto de violenta oposição interna à igreja de Antioquia como explicação para a prisão de Inácio, estaremos provavelmente em terreno mais seguro se mantivermos que a principal acusação que pesava sobre nossa fonte seria a de declarar-se cristão, conforme suas próprias palavras em sua carta aos cristãos efésios, onde diz ter sido “posto em correntes pelo nome e esperança comuns” (τοῦ κοινοῦ ὀνόματος καὶ ἐλπίδος; 1.2). Quanto ao transporte de prisioneiros entre uma província e a capital romana para execução, tratava-se de evento um tanto raro, porém possível e existente, como bem defenderam Stevan L. Davies (1976, p. 175-180) e Brent (2009, p. 14-19).

Inácio de Antioquia foi um personagem histórico que fez de tudo para que aquela que acreditava ser sua última viagem (se pudermos dizer que havia feito outras, o que não pode ser afirmado com certeza) fosse também um grande evento mediterrânico (Schoedel, 1985SCHOEDEL, W. R. (1985). Ignatius of Antioch: A Commentary on the Letters of Ignatius of Antioch. Minneapolis, Fortress Press., p. 12): enviou mensageiros às comunidades cristãs na província da Ásia e também a Roma; ditou quantas cartas pôde (Ign. Rom. 4.1; Pol. 8.1), chamando a atenção de seus destinatários para que obedecessem ao seu supervisor, assim como aos anciãos e servidores que os presidiam; tratou sua morte como um grande ritual envolvendo todas as igrejas cristãs, um sacrifício em prol de todos aqueles que comungavam de seu pensamento com respeito à unidade comunal (Brent, 2009BRENT, A. (2009). Ignatius of Antioch: A Martyr Bishop and the Origin of Episcopacy. London, T & T Clark., p. 94; cf. Ign. Pol. 6.1). Morrendo na arena romana,3 3 Acerca dos problemas e questões envolvendo o processo judicial nebuloso de Inácio de Antioquia, cf. Brent, 2009, p. 14-19; Davies, 1976. o antioqueno esperava que seu clamor em favor da autoridade de um supervisor único fosse atendido por todos aqueles aos quais escreveu. Com a cópia e difusão das cartas de Inácio de Antioquia, não eram apenas as últimas palavras de um mártir próximo que se faziam conhecer, mas também a defesa contundente e apaixonada (porém não menos racionalizada) de um modelo de organização da comunidade no qual a figura do supervisor único é colocada em posição proeminente, sobretudo e especialmente (e, à época, contrariamente ao uso comum) em um contexto de culto. Semelhante defesa encontra-se em praticamente todas as suas cartas, excetuando unicamente a dirigida aos cristãos romanos.

O presente artigo tem por objetivo demonstrar como a caracterização patriarcal do supervisor por parte de Inácio e sua defesa da necessária centralidade do supervisor no ritual da ceia sagrada podem ser lidas como uma ação do autor em prol de um severo controle social de uma comunidade cristã local por parte do mesmo, tendo em vista torná-lo o elemento central de unidade do grupo e o principal opositor às suas divisões internas. Para tanto, uma análise minuciosa é feita do discurso de Inácio, seus pressupostos e suas consequências para as comunidades às quais escreve.

A presença de homens designados como επίσκοποι (literalmente, “aqueles que têm uma visão sobre”; daí “supervisores” como tradução possível, não descartando outras possibilidades) à frente de algumas comunidades cristãs urbanas do século I d.C. é um fenômeno relativamente bem atestado na documentação cristã do período. No entanto, origem, função, número em uma mesma igreja e difusão de tal forma de liderança são alvos de intenso debate entre estudiosos da área, assim como sua relação com outras formas de autoridade com frequência menos fixas e menos vinculadas ao grupo local.4 4 Para uma iniciação no debate a respeito, cf. Baur, 1879, p. 16-61; Von Harnack, 2004; Von Campenhausen, 1969; Burtchaell, 1992; e Stewart, 2014, p. 11-53. Pelo início do século II d.C., o mais provável, ao menos em alguns casos de igrejas da Ásia, é que o supervisor se encontrasse de fato à frente do governo de um conjunto de fieis, o que não significa necessariamente que todos os grupos cristãos estivessem dispostos a seguir alguém executando tal função. Nesse ponto, as cartas de Inácio de Antioquia contribuem para apresentar um quadro geral (porém um tanto variável conforme a comunidade) em que o supervisor serve como um líder mais ou menos aceito por parte considerável dos cristãos locais, ainda que a natureza de seu ofício e seus limites não se encontrem nitidamente delineados (Trebilco, 2004TREBILCO, P. (2004). The Early Christians in Ephesus from Paul to Ignatius. Grand Rapids/Cambridge, William B. Eerdmans Publishing Company., p. 640).

No entanto, mesmo onde o supervisor tivesse sua posição relativamente consolidada, teríamos aí uma caracterização do mesmo como uma figura patriarcal? A quantidade formidável de resistências em todas as cartas dirigidas aos cristãos asiáticos parece sugerir-nos uma resposta negativa: mesmo que alguns cristãos tivessem em mente a equiparação analógica entre o governo da casa e o governo da igreja.5 5 Esse é o caso, por exemplo, da Primeira Carta a Timóteo, carta pseudepígrafa que, arrogando a autoridade do apóstolo Paulo, prescreve uma série de normas a serem postas em prática na comunidade de Éfeso (1 Tm. 1.3). Em determinado momento, ao abordar a função de supervisor, o autor afirma que este “saiba governar bem a própria casa (τοῦ ἰδίου οἴκου καλῶς προϊστάμενον), mantendo os filhos na submissão (τέκνα ἔχοντα ἐν ὑποταγῇ), com toda a dignidade”. Afinal, “se alguém não sabe governar bem a própria casa, como cuidará da Igreja de Deus” (1 Tm. 3.4-5)? Os supervisores, em geral, não se encontravam estabelecidos de forma sólida o suficiente frente aos fiéis em geral, de modo que pudessem ser vistos como uma figura paterna.6 6 Este ponto contradiz um dos principais argumentos de Robert Joly contra a autoria das cartas por Inácio de Antioquia: “Les Lettres sont d’une part un plaidoyer on ne peut plus insistant pour l’autorité de l’évêque, mais d’autre part, elles témoignent que cette hiérarchie cléricale est pleinement acquise, comme un fait qui va de soi dans les communautés auxquelles Ignace s’adresse” (Joly, 1979 , p. 75). É como se o próprio Joly tivesse sido convencido pela retórica de Inácio: de certo, seria difícil imaginar nessa época todos os cristãos de uma mesma cidade aceitando pacificamente uma autoridade centralizadora como o seria o supervisor (bispo) idealizado pelo autor. Se o supervisor fosse um dos responsáveis por receber os cristãos em sua casa para a realização da ceia sagrada, o que é possível se tivermos em vista a “hospitalidade” requerida por, por exemplo, 1 Timóteo (3.2) aos candidatos à função, poderíamos conjecturar que muito do respeito devido a ele se desse por uma relação do tipo patrono-cliente. No entanto, como não temos maior embasamento documental para afirmar algo do tipo, o melhor é que nos calemos por aqui a esse respeito.

Interessa-nos, por outro lado, realçar a resposta de Inácio de Antioquia a tal situação. Ele claramente não se encontra satisfeito com o que encontra, seja pessoalmente (como se deu, muito provavelmente, em Esmirna; Ign. Smy. 5.2-3), seja pelo relato das delegações a ele enviadas, todas elas contando com o supervisor à sua frente (Ign. Eph. 1.3; Mag. 2; Tra. 1.1). Inácio, como visto anteriormente, vincula o supervisor à figura de Deus Pai; em outras palavras, ele visa “patriarcalizar” a função de supervisão. Neste ponto, ele não se prende à mera figuração retórica, partindo, ao invés, para exortações práticas tanto aos fiéis como ao próprio supervisor, todas elas apontando para o mesmo sentido.

No caso de suas exortações aos fiéis, o foco de Inácio é na necessidade, para a boa e divina ordem, de os cristãos se submeterem ao seu supervisor, o que nos faz lembrar do que diz o autor de 1 Timóteo quanto à necessidade de um bom governante de uma casa saber manter seus filhos em submissão (cf. nota 3). Podemos destacar o caso da carta aos magnésios, onde Inácio usa o exemplo dos próprios anciãos que “se submetem” (συγχωροῦντας αὐτῷ) a Damas, o supervisor local, de modo a requerer do resto dos cristãos a mesma atitude (Ign. Mag. 3.1). Outros exemplos, porém, podem ser citados, por vezes arrolando outras lideranças do grupo:

Ansiemos, portanto, por não resistir (ἀντιτάσσεσθαι τῷ ἐπισκόπῳ) ao supervisor, de modo que possamos ser obedientes a Deus (ὦμεν θεῷ ὑποτασσόμενοι). E quanto mais alguém vê um supervisor manter-se em silêncio, mais deveria ele temê-lo (αὐτὸν φοβείσθω). (Ign. Eph. 5.3-6.1)

Pois quando vós sois submissos ao supervisor como a Jesus Cristo (τῷ ἐπισκόπῳ ὑοτάσσησθε ὡς Ἰησοῦ Χριστῷ), fica claro para mim que vós estais vivendo não à maneira humana, mas à maneira de Jesus Cristo, que morreu por nós, de modo que, acreditando em sua morte, vós possais escapar de morrer. (Ign. Tra. 2.1)

Sustentai ao supervisor (Τῷ ἐπισκόπῳ προσέχετε), de modo que Deus também possa atender-vos. Eu sou uma expiação daqueles sujeitos ao supervisor, anciãos e servidores (τῶν ὑποτασσομένων τῷ ἐπισκόπῳ, πρεσβυτέροις, διακόνοις); e que eu possa obter minha parte com eles em Deus. (Ign. Pol. 6.1)

As cartas inacianas deixam patente uma recorrência de seu autor à defesa da submissão dos fiéis ao supervisor, de modo a manter a unidade do corpo da comunidade. Se existe um único supervisor e todos se submetem a ele, como representação da figura patriarcal de Deus Pai, a unidade está garantida. No entanto, Inácio sabe que não pode contar unicamente com sua autoridade arrogada para inculcar tal ideia na cabeça de seus destinatários. Era necessário que a prática social cotidiana os conduzisse a enxergar o caráter paternal de seu supervisor, de modo a verem nele um pai e não um tirano centralizador. É possível que Inácio só tenha se dado conta disso quando prestes a partir de Trôade, na costa da Ásia, para zarpar rumo a Neápolis, na Macedônia (Ign. Pol. 8.1); de fato, somente neste momento ele toma a resolução de escrever uma nova carta a Esmirna, desta vez direcionada ao supervisor cristão local, Policarpo.

Na carta, Inácio tece uma série de conselhos ao seu destinatário a respeito de como agir na igreja posta aos seus cuidados. O prisioneiro espera atitudes de Policarpo, especialmente em uma comunidade cristã em que sua posição não se encontrava consolidada, talvez sequer considerada de forma especial enquanto tal (Trebilco, 2004TREBILCO, P. (2004). The Early Christians in Ephesus from Paul to Ignatius. Grand Rapids/Cambridge, William B. Eerdmans Publishing Company., p. 666). O supervisor é instado por Inácio a tomar ações que, embora não referidas explicitamente como tal, tendem a realçar o paternalismo da função por meio da manutenção de contatos estreitos com todos os membros: Policarpo deve carregar os fardos de todos, falar com todos individualmente e ajudá-los a carregar suas doenças como “um perfeito atleta” (Ign. Pol. 1.2); deve, do mesmo modo, estar especialmente atento aos discípulos mais “problemáticos” (τοὺς λοιμοτέρους), de modo a trazê-los à submissão por meio da “gentileza” (ἐν πραότητι; 2.1); deve ser o guardião especialmente das viúvas e não desprezar os escravos, como já visto (4.1), assim como deve evitar as más artes e pregar contra elas (5.1); do mesmo modo, deve exortar os casais a se manterem unidos e fieis, assim como é necessário que toda união se dê somente com a sua aprovação. Em outras palavras, o supervisor Policarpo deve fazer valer o caráter patriarcal de sua função todos os dias e a todo instante, com todos aqueles de cujo cuidado foi encarregado. Aparentemente, era como se Inácio quisesse que todos os fiéis de Esmirna pudessem enxergar nas ações de Policarpo uma figura do próprio Deus Pai ao qual adoravam, com toda sua diligência e autoridade. Os âmbitos do sagrado e do doméstico se confundiriam na função do supervisor, de modo que, como representação viva da divindade patriarcal, reuniria em si a prerrogativa de ação na comunidade, tanto de forma coletiva, isto é, no ambiente de culto, quanto individualmente, em sua relação com cada um dos membros da igreja sobre a qual fora designado.

Apesar de toda sua estratégia discursiva, com a exortação recorrente para que os cristãos se submetessem a seu supervisor, assim como os conselhos dados a Policarpo para que pusesse em prática o caráter paternal de sua função com cada membro de sua igreja, Inácio de Antioquia estava consciente de que somente isso não seria o suficiente para garantir a unidade do grupo por meio de um combate à diversidade. Era necessária uma forma de controle social por parte do supervisor,7 7 Schoedel nota que a exortação de Inácio para que toda união entre cristãos se desse apenas com a aprovação do supervisor (para ele, “bispo”) punha em suas mãos “um potente instrumento de controle social - a ‘endogamia do grupo’” (Schoedel, 1985, p. 273). Embora não nos foquemos tanto neste ponto, voltando-nos para o controle social por meio do ritual da ceia sagrada, não ignoramos a importância de tal ferramenta, sutilmente abordada por Inácio e que pode ser considerada, como o foi no texto, um traço considerável no desenho patriarcal que é feito, pelo prisioneiro, das responsabilidades do supervisor. de modo a identificar e agir contra aqueles que poderiam questionar sua autoridade e/ou que já estivessem fazendo-o. A solução inaciana está explicitada em uma sentença que, segundo o autor, não era de sua autoria, mas sim do Espírito Santo: “Não façais nada sem o supervisor...” (Χωρις τοῦ ἐπισκόπου μηδὲν ποιεῖτε; Ign. Phi. 7.2).

Por que Inácio faz tal clamor? Devemos notar, em princípio, como as restrições espaciais praticamente impossibilitavam que toda a comunidade de cristãos de uma localidade se reunisse em uma única casa. Exceções existiam, como no caso de Gaio de Corinto, o qual, segundo Paulo, recebia toda a igreja em sua casa (Rom. 16.23). Neste caso, muito provavelmente, ou o patrono do grupo dispunha de uma soma considerável de dinheiro, de modo a possuir uma edificação suficientemente grande para receber todo o grupo, ou a comunidade de cristãos da cidade era consideravelmente restrita.

No caso das igrejas da Ásia à época de Inácio, essa não parecia ser a regra na maioria dos casos, e ele se ressente desse fato. Mesmo com todo o respeito que demonstra, por exemplo, com a igreja de Éfeso, Inácio não deixa de vocalizar suas repreensões nesse sentido:

Que ninguém se engane: se alguém não está dentro do altar (ἐὰν μὴ τις ᾖ ἐντος τοῦ θυσιαστηρίου), ele não tem o pão de Deus (τοῦ ἄρτου τοῦ θεοῦ); pois se a oração de um ou dois tem tamanho poder, quanto mais aquela do supervisor e de toda a igreja (τοῦ ἐπισκόπου καὶ πάσης τῆς ἐκκλησίας)! Aquele, portanto, que não vem, demonstra, desta forma, arrogância (ὑπερηφανει) e julgou a si mesmo. Pois está escrito: “Deus resiste ao arrogante”. Ansiemos, portanto, por não resistir ao supervisor, de modo que possamos ser obedientes a Deus. (Ign. Eph. 5.2-3)

Alguns cristãos efésios se recusam a participar da “oração do supervisor e de toda a igreja”. Inácio critica-os, chamando-os de “arrogantes”, provavelmente colocando como pressuposto que considerassem sua própria oração individual mais poderosa que a de toda a coletividade reunida em torno do supervisor. No entanto, podemos nos perguntar se os “arrogantes” referidos pelo autor realmente resistiam isoladamente, ou se, por outro lado, constituíam um ou mais grupos que simplesmente mantinham suas próprias orações coletivas, sem reunir-se com aqueles que se encontravam em torno do supervisor Onésimo. Se em Éfeso paira tal dúvida, em Magnésia esse é o caso explícito:

É correto, portanto, não apenas sermos chamados “cristãos”, mas também o sermos (Πρέπον οὖν ἐστιν μὴ μόνον καλεῖσθαι Χριστιανούς); assim como alguns certamente falam no “supervisor” (ὥσπερ καί τινες ἐπίσκοπον μὲν καλοῦσιν), mas fazem tudo sem ele (χωρὶς δὲ αὐτοῦ πάντα πράσσουσιν). Tais pessoas não me parecem agir em boa consciência, porque não se encontram validamente, de acordo com o mandamento (τὸ μὴ βεβαίως κατ’ ἐντολὴν συναθροίζεσθαι). (Ign. Mag. 4.1)

Nesse trecho, Inácio faz menção a um grupo de cristãos que, por mais que deem certo valor à figura do supervisor, preferem insistir no hábito já antigo de manter suas próprias reuniões. O prisioneiro acusa tais reuniões de serem inválidas, uma vez que elas desobedecem ao “mandamento”. Não está claro a qual mandamento ele se refere aqui, mas podemos imaginar mais ou menos o quadro no qual se desenvolve o problema. Em outro momento da mesma carta, o autor investe contra um grupo cristão da cidade que insiste em “viver conforme o judaísmo”,8 8 Para uma análise das referências na documentação cristã mais antiga acerca de cristãos que permaneciam fieis às práticas rituais judaicas (normalmente denominados “judaizantes”, tanto pela literatura teológica quanto pela historiografia), ver Selvatici, 2013. Selvatici destaca, no referido artigo, que Inácio de Antioquia é um dos autores do século II d.C. que se dedicam a advertir seus leitores contra os “judaizantes”. o que ele considera absurdo (κατὰ Ἰουδαϊσμὸν ζῶμεν; 8.1). É bem possível que tal grupo, como defende Selvatici (2015SELVATICI, M. (2015). Identidades religiosas no mundo romano: O caso de judeus e cristãos na Ásia Menor dos séculos I e II d.C. Antíteses 8, n. 16, p. 50-70.) encarasse a adoção de uma identidade judaica como uma forma tentadora de evitar as perseguições que volta e meia atingiam os cristãos da Ásia, uma vez que aos judeus era resguardado o direito de não cultuar as divindades locais e os imperadores. Por esse motivo, ao que parece, os membros desse grupo não se reuniam no primeiro dia da semana, como aqueles em torno de Damas, o supervisor, e sim no sábado, uma vez que Inácio utiliza contra eles o exemplo dos primeiros convertidos:

Se, portanto, aqueles que viviam nos velhos caminhos vieram para a novidade de esperança, não mais mantendo o sábado (μηκέτι σαββατίζοντες), mas vivendo em conformidade com o dia do Senhor (κατὰ κυριακὴν) [...] (9) Ansiemos, portanto, por não resistir (ἀντιτάσσεσθαι τῷ ἐπισκόπῳ) ao supervisor, de modo que possamos ser obedientes a Deus (ὦμεν θεῷ ὑποτασσόμενοι). E quanto mais alguém vê um supervisor manter-se em silêncio, mais deveria ele temê-lo (αὐτὸν φοβείσθω) (Ign. Eph. 5.3-6.1).

Pois quando vós sois submissos ao supervisor como a Jesus Cristo (τῷ ἐπισκόπῳ ὑοτάσσησθε ὡς Ἰησοῦ Χριστῷ), fica claro para mim que vós estais vivendo não à maneira humana, mas à maneira de Jesus Cristo, que morreu por nós, de modo que, acreditando em sua morte, vós possais escapar de morrer. (Ign. Tra. 2.1)

Sustentai ao supervisor (Τῷ ἐπισκόπῳ προσέχετε), de modo que Deus também possa atender-vos. Eu sou uma expiação daqueles sujeitos ao supervisor, anciãos e servidores (τῶν ὑποτασσομένων τῷ ἐπισκόπῳ, πρεσβυτέροις, διακόνοις); e que eu possa obter minha parte com eles em Deus. (Ign. Pol. 6.1).

O caso de Magnésia é um exemplo claro de como a existência de diferentes reuniões em diferentes casas poderia ser muito propícia à manifestação da diversidade própria ao cristianismo dos primeiros séculos. Um grupo que tivesse, como parte de sua identidade, a continuidade do seguimento da lei hebraica não poderia reunir-se no mesmo dia que aqueles que não a seguissem mais. Iriam, ao invés, escolher outro local, conforme o costume de quase a metade de um século, ainda que querendo manter a comunhão com o supervisor local (o que, para Inácio, era impossível). No entanto, em outros lugares, a reunião autônoma poderia ser o espaço propício também para a continuidade de uma autoridade paralela àquela do supervisor, ao mesmo tempo que manifestando diferenças teológicas. No caso de Esmirna, por exemplo, um líder da comunidade parecia não conferir tamanha importância à posição de Policarpo enquanto supervisor (Ign. Smy. 6.1). O contexto geral da carta de Inácio aos cristãos de Esmirna, assim como o do trecho referido em especial, sugere-nos que esse líder estivesse à frente daquele grupo, condenado pelo prisioneiro, que insistia em defender o caráter meramente aparente da vinda de Cristo. Sobre eles, o autor escreve que

permanecem afastados da ação de graças e das orações (Εὐχαριστίας καὶ προσευχῆς ἀπέχονται), porque não confessam que a ação de graças é a carne de nosso salvador Jesus Cristo (τὴν εὐχαριστίαν σάρκα εἶναι τοῦ σωτῆρος ἡμῶν Ἰησοῦ Χριστοῦ), que sofreu por nossos pecados, o qual o Pai ressuscitou por sua bondade (Ign. Smy. 7.1).

Apesar do que diz explicitamente Inácio, o mais provável não é que os adversários referidos não fizessem qualquer reunião ou oração, mas sim que se reunissem de forma apartada, de modo a não comungar com aquilo que eles consideravam ser um erro teológico, tendo um líder próprio à sua frente.

Qual a solução, portanto, segundo Inácio? Ela é relativamente simples: nenhuma reunião deve ser feita sem o supervisor ou alguém por ele indicado. A reunião única é necessária de modo a tornar visível a unidade da igreja local por meio do encontro direto entre os fiéis e aquele que, tanto na vida da comunidade quanto na própria ceia sagrada, serve de representação ritual do próprio Deus Pai, enquanto os anciãos (todos reunidos no mesmo local) e os servidores representam outras realidades:

[...] eu vos exorto: ansiai por fazer tudo na concórdia de Deus (ἐν ὁμονοίᾳ θεοῦ), com o supervisor estabelecido sobre vós no lugar de Deus (προκαθημένου τοῦ ἐπισκόπου εἰς τόπον θεοῦ), e os anciãos no lugar do conselho dos apóstolos (τῶν πρεσβυτέρων εἰς τόπον συνεδρίου τῶν ἀποστόλων), e os servidores (καὶ τῶν διακόνων), muito doces para mim, encarregados com o serviço de Jesus Cristo (πεπιστευμένων διακονίαν Ἰησοῦ Χριστοῦ), o qual antes das eras estava com o Pai e apareceu ao fim. (Ign. Mag. 6.1)

Aqui temos claramente uma descrição de Inácio de qual é a função ritual que cada um dos líderes da igreja deve exercer em sua ceia ideal. Nesse sentido, Brent vai além, ao enxergar aqui também uma pista da disposição espacial idealizada por Inácio, com o supervisor permanecendo em uma posição ao centro da guirlanda formada pelos anciãos (Brent, 2009, p. 85-86); tal disposição, segundo o autor, parece estar implícita em outro trecho de da Carta aos Magnésios, onde encontra-se escrito:

Ansiai, portanto, por serem confirmados nos preceitos do Senhor [...] com vosso justíssimo supervisor, e vossa coroa espiritual dignamente tecida (ἀξιοπλόκου πνευματικοῦ στεφάνου), o colégio de anciãos [...] (Ign. Mag. 13.1).

Do mesmo modo, Inácio retorna ao mesmo tema em Ign. Tra. 2.2-3, logo antes do trecho, já citado anteriormente, de 3.1, onde ele fala do supervisor “como um tipo do Pai”:

É necessário, portanto (como é de vosso feitio), não fazer nada sem o supervisor (ἄνευ τοῦ ἐπισκόπου μηδὲν πράσσειν ὑμᾶς); mas ser também submissos ao colégio de anciãos como aos apóstolos de Jesus Cristo (ἀλλ’ ὑποτάσσεσθαι καὶ τῷ πρεσβυτερίῳ ὡς τοῖς ἀποστόλοις Ἰησοῦ Χριστοῦ), nossa esperança, em quem seremos encontrados, se nele vivermos; e também é necessário que aqueles que são servidores dos mistérios de Jesus Cristo (τοὺς διακόνους ὄντας μυστηρίων Ἰησοῦ Χριστοῦ) satisfazer todo o povo de todas as maneiras; pois eles não são servidores de comida e bebida, mas servos da igreja de Deus (ἐκκλησίας θεοῦ ὑπηρέται); assim, eles devem estar em guarda contra reclamações como se fossem fogo.

Os mesmos líderes encontram-se sempre juntos, na visão de Inácio, no mesmo ambiente ritual. A necessidade da presença do supervisor é justificada, para o autor, pela impossibilidade de se executar uma reunião sagrada sem a pessoa encarregada de ser a representação do próprio Deus Pai; é como se, sem ele, o ritual ficasse manco: estariam presentes as representações dos apóstolos e do próprio Cristo, mas não do Pai, o ordenador divino de todas as coisas. Em outras palavras, a ceia sagrada (assim como, provavelmente, outros tipos de reunião, como aquela de caráter deliberativo) não estaria completa se não servisse de representação fiel da corte celeste, onde se encontram Deus, Jesus Cristo e os apóstolos. Tal representação do céu seria particularmente familiar aos cristãos da Ásia, considerando sua proximidade e semelhança com aquela descrição feita pelo profeta João, em seu Apocalipse:

Fui imediatamente movido pelo Espírito: eis que havia um trono no céu, e no trono, Alguém sentado. [...] Ao redor desse trono estavam dispostos vinte e quatro tronos, e neles assentavam-se vinte e quatro Anciãos (πρεσβυτέρους), vestidos de branco e com coroas de ouro na cabeça. [...] Com efeito, entre o trono com os quatro Viventes e os Anciãos (πρεσβυτέρων), vi um Cordeiro de pé, como que imolado. (Ap. 4.2.-5.6)

Uma vez que uma ceia sagrada nunca estaria completa se o teatro sagrado não contasse com todos os seus personagens, no caso da ausência do supervisor, apenas alguém por ele indicado poderia executar sua função ritual em seu lugar:

Que ninguém faça nada sem o supervisor que tenha a ver com a igreja (μηδεὶς χωρὶς τοῦ ἐπισκόπου τι πρασσέτω τῶν ἀνηκόντων εἰς τὴν ἐκκλησίαν). Que seja considerada como válida a ação de graças (ἐκείνη βεβαία εὐχαριστία) que é celebrada sob o supervisor ou alguém a quem ele o tenha encarregado (ἢ ᾧ ἂν αὐτὸς ἐπιτρέψῃ). Onde o supervisor aparecer, que aí esteja a multidão (ἐκεῖ τὸ πλῆθος ἤτω); assim como onde Jesus Cristo estiver, aí se encontra toda a igreja (ἐκεῖ ἡ καθολικὴ ἐκκλησία). Não é permitido, sem o supervisor, batizar ou celebrar o amor (οὐκ ἐξόν ἐστιν χωρὶς τοῦ ἐπισκόπου οὔτε βαπτίζειν οὔτε ἀγάπην ποιεῖν); mas tudo o que ele aprovar também é agradável a Deus (ἀλλ’ ὃ ἂν ἐκεῖνος δοκιμάσῃ, τοῦτο καὶ τῷ θεῷ εὐάρεστον), de modo que tudo o que fizerdes possa ser certo e válido. (Ign. Smy. 8.1-2)

A presença do supervisor (ou de seu representante), para Inácio, confere validade a qualquer ação ritual da comunidade, uma vez que elas recebem o selo de compromisso com a unidade. O governante da igreja, como representação de Deus Pai, garante a legitimidade de tal ação, como um pai que lidera um culto doméstico. A questão, porém, não permanece no âmbito da mera analogia, mas envolve principalmente as consequências práticas do ideal de autoridade expresso pelo prisioneiro. A necessidade da presença do supervisor confere ao mesmo uma ferramenta importante de controle social, a qual pode ser captada entre as linhas de um trecho singular da carta de Inácio aos cristãos tralianos:

Guardai-vos, portanto, de tais pessoas [adversários]. Assim será para vós se não vos exaltardes e se fordes inseparáveis de Jesus Cristo, do supervisor e das ordenanças dos apóstolos. Aquele que está dentro do altar é puro (ὁ ἐντὸς θυσιαστηρίου ὢν καθαρός ἐστιν) - isto é, a pessoa que faz qualquer coisa apartado do supervisor, do colégio de anciãos e do servidor, não está puro em consciência (οὗτος καθαρός ἐστιν τῇ συνειδήσει). (Ign. Tra. 7.1-2)

Ao proferir tal sentença enquanto “acorrentado em Cristo” e profeta com conhecimento oculto (ver Ign. Tra. 5), Inácio de Antioquia confere um instrumento inestimável para o supervisor realçar sua autoridade: a ceia sagrada acaba por servir ao mesmo como meio de vigilância, onde ele pode ser “aquele que olha sobre” (significado literal do termo grego ἐπίσκοπος) a multidão reunida; o contato pessoal com os fiéis, também requerido por Inácio dos supervisores, permite de imediato a identificação dos ausentes, possivelmente aqueles que lhe resistem mesmo com a exortação de um mártir próximo a favor de sua autoridade. “Que nada aconteça sem tua aprovação” (μηδὲν ἄνευ γνώμης σου γινέσθω), diz ele a Policarpo (Ign. Pol. 4,1). A ceia sagrada realizada com o supervisor ao centro é o sinal permanente da unidade da igreja local: aqueles que resistem em abandonar sua antiga autonomia, ou que desejam continuar realizando o mesmo ritual no sétimo dia, ou ainda que não podem aceitar a teologia por trás do banquete com o supervisor no comando, devem ser considerados inimigos da unidade. Para os que pensam em seguir os resistentes, vale um pouco de pedagogia do medo:

Não sejais enganados, meus irmãos: corruptores de lares (οἱ οἰκοφθόροι) não herdarão o reino de Deus; se, portanto, morrem os que fazem tais coisas no reino da carne, quanto mais se alguém, pelo ensinamento mau (ἐν κακῇ διδασκαλίᾳ), corrompe a fé em Deus pela qual Jesus Cristo foi crucificado? Tal ser imundo irá para o fogo inextinguível (ὁ τοιοῦτος ῥυπαρὸς γενόμενος), do mesmo modo que também quem o ouve (ὁμοίως καὶ ὁ ἀκούων αὐτου). (Ign. Eph. 16.1)

O ritual da ceia sagrada para Inácio, portanto, deve necessariamente ser um ambiente no qual a unidade prevaleça com a vigilância do supervisor, um meio de controle sobre os que frequentam a reunião inclusive pela sua faculdade de exortar os presentes, como sugerido por Ign. Pol. 5.1. Se os discordantes insistirem em se reunir à parte, não o farão mais por uma autonomia de costume, mas por uma exclusão completa, inclusive no âmbito do convívio social: “É correto, portanto, evitar tais pessoas e não falar delas em privado e nem em público...” (μήτε κατ’ ἰδίαν περὶ αὐτῶν λαλεῖν μήτε κοινῇ), escreve ele aos esmirniotas (Ign. Smy. 7.2). Por outro lado, uma vez que a comunidade local seja demasiadamente grande para ser contida em uma única reunião, em um único local, como certamente era o caso da igreja de Éfeso, que mais ceias sagradas sejam organizadas:

Ansiai, portanto, por vos encontrardes com mais frequência para a ação de graças e glória a Deus (εἰς εὐχαριστίαν θεοῦ καὶ εἰς δόξαν); pois quando vós vos reunis com frequência (ὅταν γὰρ πυκνῶς ἐπὶ τὸ αὐτὸ γίνεσθε), os poderes de Satanás são quebrados, e sua destrutividade é esfacelada pela concórdia de vossa fé. Nada é melhor que a paz (οὐδέν ἐστιν ἄμεινον εἰρήνης), pela qual toda guerra de seres celestiais e terrenos é destruída. (Ign. Eph. 13)

Inácio de Antioquia espera que, com seu próprio sacrifício, o seu clamor seja ouvido, de modo que o supervisor de cada igreja seja encarado de uma outra forma pelos cristãos. A diversidade, desta forma, deve ceder espaço à unidade em torno de uma mesma mesa, na qual deve ser representado o teatro sagrado da corte celestial. Tudo isso com o supervisor “vigilante com um espírito que não dorme” (Ign. Pol. 1.3). Por esse motivo, sempre que Inácio faz um retrato ideal de uma igreja unida, ele sempre é construído a partir de referenciais ritualísticos:

Assim como, portanto, o Senhor não fez nada sem o Pai - estando a ele unido - nem por ele e nem pelos apóstolos, também vós não façais nada sem o supervisor e os anciãos (οὕτως μηδὲ ὑμεῖς ἄνευ τοῦ ἐπισπόπου καὶ τῶν πρεσβυτέρων μηδὲν πράσσετε), nem deixeis que nada pareça certo por vós mesmos (μηδὲ πειράσητε εὔλογόν τι φαίνεσθαι ἰδίᾳ ὑμῖν); mas que haja uma só prece em comum, uma só petição, uma só mente, uma só esperança no amor, em alegria sem culpa, que é Jesus Cristo, do qual nada é melhor. Todos vós correi juntos como a um único templo de Deus (πάντες ὡς εἰς ἕνα ναὸν συντρέχετε θεοῦ), a um único altar (ὡς ἐπὶ ἓν θυσιαστήριον), a um único Jesus Cristo (ἐπὶ ἕνα Ἰησοῦν Χριστόν), que procedeu do único Pai e estava com o único e para ele retornou. (Ign. Mag. 7)

Não sejais enganados, meus irmãos: se alguém segue um cismático (εἴ τις σχίζοντι ἀκολουθεῖ), ele não herda o reino de Deus; se alguém anda em um propósito estranho, essa pessoa não se conforma com a paixão [de Cristo]. Ansiai, portanto, por celebrar uma única ação de graças (Σπουδάσατε οὖν μιᾷ εὐχαριστίᾳ χρῆσθαι); pois uma única é a carne de nosso Senhor Jesus Cristo (μία γὰρ σὰρξ τοῦ κυρίου ἡμῶν Ἰηςοῦ Χριστοῦ), e um único o cálice para a união pelo seu sangue (ἓν ποτήριον εἰς ἕωσιν τοῦ αἵματος αὐτοῦ); um só o altar, assim como um só é o supervisor (ὡς εἷς ἐπίσκοπος) junto com o colégio de anciãos e os diáconos, meus co-escravos; de modo que tudo o que façais o seja de maneira divina (ὁ ἐὰν πράσσητε, κατὰ θεὸν πράσσητε). (Ign. Phi. 3.3-4.1)

Em suma, Inácio de Antioquia demonstra, em seu curto epistolário, partir do princípio da “igreja-household” ao colocar, em suas cartas, o supervisor como uma representação do próprio Deus Pai, o ícone patriarcal supremo do imaginário cristão mais antigo, fundamental para a própria identidade dos fieis como seres especiais frente à sociedade; de fato, é isso que sugere o próprio rito batismal paulino, se dele fizer mesmo parte a exclamação aramaica Abba!, conforme as palavras do próprio Paulo (cf. Gl. 4.6). No entanto, ao mesmo tempo que Inácio parece dialogar com uma tendência já expressada pela 1 Timóteo, ele também vai além: o supervisor não é um mero administrador, conforme Inácio reforça a Policarpo, mas deve possuir uma relação de proximidade paternalista com os membros da comunidade, influindo em sua intimidade e fazendo-lhes exortações.

O caráter patriarcal da supervisão dos cristãos nas cartas de Inácio conta com um desenvolvimento importante em seu papel ritual na comunidade: o supervisor que, em documentos anteriores, não tem destacada entre suas funções qualquer parte especial no culto, passa a ser, na idealização inaciana, o próprio centro da ceia sagrada, sendo inválidas quaisquer outras reuniões que não se encontrem, de uma forma ou de outra, sob a sua égide. Esse ponto do ideal de Inácio é o desenvolvimento lógico do apontamento do supervisor como representação de Deus Pai. É muito provável inclusive que nossa fonte esperasse que tal representação se desse, fundamentalmente, em um contexto litúrgico, e que, a partir daí, tivesse consequências para todas as relações entre o supervisor e os outros fieis. Ocorre, porém, que a validade exclusiva de reuniões executadas sob a supervisão do ἐπίσκοπος é, em nossa visão, um grande instrumento de controle social idealizado por Inácio, apontando para as consequências práticas de seu modelo. Uma vez que a unidade por ele imaginada exclui qualquer diversidade interna do grupo, tanto em termos doutrinais quanto rituais, a reunião única sob a autoridade do supervisor único poderia perfeitamente servir de meio para que o mesmo tivesse considerável controle de seus frequentadores, sobretudo considerando sua prerrogativa de fazer exortações ao grupo reunido. No entanto, para além disso, serviria também para a identificação de “elementos problemáticos”, que poderiam se manifestar (na visão de Inácio) sobretudo na recusa de comparecimento à ceia única para a manutenção de reuniões independentes. Esse instrumento mostra-se mais significativo em um período em que a diversidade teológica mostra-se no início da formação de uma autoconsciência. Sugere-o não apenas a resistência de alguns grupos recriminados por Inácio (sendo de especial nota aqueles que o faziam em Magnésia, visando manter o respeito judaico ao sétimo dia), mas também outros documentos do cristianismo em geral do mesmo período. A Primeira Carta de João, por exemplo, não é nada mais que uma exortação contra um grupo que, aparentemente, resolveu livremente afastar-se daquele representado pelo autor (cf. 1 Jo. 2.18-28). Também um “apócrifo”, o Evangelho de Tomé, parece ser obra de um autor que, possivelmente representando um grupo cristão específico, tem consciência da existência de outros que tinham os evangelhos de Mateus e Marcos em alta conta, ao mesmo tempo que deles visa se apartar (cf. Tomé 13). Neste contexto, a reunião única defendida por Inácio (inspirado pelo Espírito de Deus, segundo ele) ao mesmo tempo que visa, certamente, uma integração social do grupo por meio de sua coesão, também tem seu efeito inverso, tendendo para o favorecimento e estímulo à desintegração entre os grupos cristãos, um processo que, de fato, encontra um crescendo justamente a partir do século II d.C.

Não é possível dizermos que as cartas inacianas tiveram efeito direto ou mesmo indireto neste sentido, uma vez que não podemos inferir a extensão de sua aceitação entre as comunidades da Ásia às quais se dirigiu. Podemos, no entanto, concluir o artigo notando que o instrumento cristão de controle social pelo culto, idealizado por Inácio, aponta para uma estrutura de longa duração da história do cristianismo, que é a utilização da ceia sagrada como fator de exclusão e marginalização social por meio do controle dos que a ela têm acesso. O caso mais característico, neste sentido, é o da excomunhão. Significativamente, sobretudo a partir da Antiguidade Tardia, o detentor da prerrogativa de execução de tal pena é justamente o bispo, desenvolvimento histórico direto de nosso ἐπίσκοπος.

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  • 1
    Artigo adaptado da dissertação defendida no Programa de Pós-graduação em História Social da FFLCH/USP (Piza, 2016PIZA, P. L. T. (2016). Pela unidade da igreja: Inácio de Antioquia e o monepiscopado na província romana da Ásia. Dissertação de Mestrado. São Paulo, Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.), conforme sugestão da banca examinadora. Agradeço à FAPESP pelo financiamento da pesquisa no mestrado e de seu suporte à minha atual pesquisa de doutorado.
  • 2
    Ainda que Alan Brent (2009BRENT, A. (2009). Ignatius of Antioch: A Martyr Bishop and the Origin of Episcopacy. London, T & T Clark., p. 21) e, antes dele, P. N. Harrison (1936HARRISON, P. N. (1936). Polycarp’s Two Epistles to the Philippians. Cambridge, Cambridge University Press., p. 79-106) tenham levantado argumentos relevantes em favor de um contexto de violenta oposição interna à igreja de Antioquia como explicação para a prisão de Inácio, estaremos provavelmente em terreno mais seguro se mantivermos que a principal acusação que pesava sobre nossa fonte seria a de declarar-se cristão, conforme suas próprias palavras em sua carta aos cristãos efésios, onde diz ter sido “posto em correntes pelo nome e esperança comuns” (τοῦ κοινοῦ ὀνόματος καὶ ἐλπίδος; 1.2). Quanto ao transporte de prisioneiros entre uma província e a capital romana para execução, tratava-se de evento um tanto raro, porém possível e existente, como bem defenderam Stevan L. Davies (1976DAVIES, S. L. (1976). The Predicament of Ignatius of Antioch. Vigiliae Christianae 30, n. 3, p. 175-180., p. 175-180) e Brent (2009, p. 14-19).
  • 3
    Acerca dos problemas e questões envolvendo o processo judicial nebuloso de Inácio de Antioquia, cf. Brent, 2009BRENT, A. (2009). Ignatius of Antioch: A Martyr Bishop and the Origin of Episcopacy. London, T & T Clark., p. 14-19; Davies, 1976DAVIES, S. L. (1976). The Predicament of Ignatius of Antioch. Vigiliae Christianae 30, n. 3, p. 175-180..
  • 4
    Para uma iniciação no debate a respeito, cf. Baur, 1879BAUR, F. C. (1879). The Church History of the First Three Centuries. London, Williams and Norgate., p. 16-61; Von Harnack, 2004; Von Campenhausen, 1969; Burtchaell, 1992BURTCHAELL, J. T. (1992). From synagogue to church: Public services and offices in the earliest Christian communities. Cambridge, Cambridge University Press.; e Stewart, 2014STEWART, A. C. (2014). The Original Bishops: Office and Order in the First Christian Communities. Grand Rapids, Baker Academic., p. 11-53.
  • 5
    Esse é o caso, por exemplo, da Primeira Carta a Timóteo, carta pseudepígrafa que, arrogando a autoridade do apóstolo Paulo, prescreve uma série de normas a serem postas em prática na comunidade de Éfeso (1 Tm. 1.3). Em determinado momento, ao abordar a função de supervisor, o autor afirma que este “saiba governar bem a própria casa (τοῦ ἰδίου οἴκου καλῶς προϊστάμενον), mantendo os filhos na submissão (τέκνα ἔχοντα ἐν ὑποταγῇ), com toda a dignidade”. Afinal, “se alguém não sabe governar bem a própria casa, como cuidará da Igreja de Deus” (1 Tm. 3.4-5)?
  • 6
    Este ponto contradiz um dos principais argumentos de Robert Joly contra a autoria das cartas por Inácio de Antioquia: “Les Lettres sont d’une part un plaidoyer on ne peut plus insistant pour l’autorité de l’évêque, mais d’autre part, elles témoignent que cette hiérarchie cléricale est pleinement acquise, comme un fait qui va de soi dans les communautés auxquelles Ignace s’adresse” (Joly, 1979 , p. 75). É como se o próprio Joly tivesse sido convencido pela retórica de Inácio: de certo, seria difícil imaginar nessa época todos os cristãos de uma mesma cidade aceitando pacificamente uma autoridade centralizadora como o seria o supervisor (bispo) idealizado pelo autor.
  • 7
    Schoedel nota que a exortação de Inácio para que toda união entre cristãos se desse apenas com a aprovação do supervisor (para ele, “bispo”) punha em suas mãos “um potente instrumento de controle social - a ‘endogamia do grupo’” (Schoedel, 1985, p. 273). Embora não nos foquemos tanto neste ponto, voltando-nos para o controle social por meio do ritual da ceia sagrada, não ignoramos a importância de tal ferramenta, sutilmente abordada por Inácio e que pode ser considerada, como o foi no texto, um traço considerável no desenho patriarcal que é feito, pelo prisioneiro, das responsabilidades do supervisor.
  • 8
    Para uma análise das referências na documentação cristã mais antiga acerca de cristãos que permaneciam fieis às práticas rituais judaicas (normalmente denominados “judaizantes”, tanto pela literatura teológica quanto pela historiografia), ver Selvatici, 2013SELVATICI, M. (2013). Construção de fronteiras entre o judaísmo e o cristianismo no Império Romano: os judaizantes e a retórica antijudaica no movimento cristão dos séculos I e II d. C. Romanitas 1, p. 23-37.. Selvatici destaca, no referido artigo, que Inácio de Antioquia é um dos autores do século II d.C. que se dedicam a advertir seus leitores contra os “judaizantes”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Out 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    03 Abr 2020
  • Aceito
    14 Ago 2020
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