Acessibilidade / Reportar erro

Xenofonte e o Cinegético: a construção do caçador grego ideal

Xenophon and the Cynegeticus: the construction of the ideal Greek hunter

Resumo:

Partindo do tratado de caça Cinegético, de autoria atribuída a Xenofonte, este artigo busca refletir sobre a maneira como se dá a construção do caçador ideal da pólis descrito pelo autor ático. Este objetivo se dará tanto em termos práticos - equipamentos, presas, métodos de condução da cinegética etc - quanto em termos morais, em vista dos inúmeros ataques desferidos contra os sofistas ao longo do opúsculo. Para cumpri-lo, o presente texto comporta uma breve recapitulação da vida de Xenofonte, as interpretações historiográficas mais importantes relativas ao Cinegético e à sua datação, e, por fim, a forma como o autor ático descreve seu caçador grego ideal.

Palavras-chave:
Xenofonte; Cinegético; Tratados de caça

Abstract: Starting from the hunting treatise Cynegeticus, assigned to Xenophon, this article seeks to reflect on the way in which the construction of the ideal hunter of the polis described by the Attic author. This aim will aboard both practical terms - equipment, prey, methods of hunting conducting etc - and moral terms, taking in account the numerous attacks made against the sophists throughout the booklet. To accomplish this aim, the present text includes a brief recapitulation of Xenophon's life, the most important historiographical interpretations on the Cynegeticus and its dating, and, finally, the way in which the Attic author describes his ideal Greek hunter.

Keywords:
Xenophon; Cynegeticus; Hunting treatises


Xenofonte e o Cinegético: datação e discussões historiográficas

Quando se fala em Xenofonte, dois são os aspectos fundamentais: trata-se de escritor de rara proficiência no Mundo Antigo, capaz de fazer bom proveito dos mais distintos gêneros literários, e de indivíduo afortunado, uma vez que todos seus trabalhos sobreviveram. Ilustram o primeiro ponto escritos ecléticos como a Anábase (misto de memórias, manual de liderança e relato de viagem), Ciropédia (biografia ficcional do primeiro soberano aquemênida), Constituição dos Lacedemônios (análise política), os textos sobre Sócrates (Memoráveis, Banquete), além dos tratados técnicos, entre os quais está o Cinegético (Lee, 2017LEE, J. W. (2017). Xenophon and his Times. In: FLOWER, M. (ed.). The Cambridge Companion to Xenophon. Cambridge, Cambridge University Press , p. 15-36. , p. 15-6.)1 1 É comum alocar o Cinegético entre as “obras menores” de Xenofonte. Para crítica ao conceito de “obras menores”, ver: Dillery (2017, p. 195-6).

No esforço de coligir dados de modo a reconstituir a biografia (e a bibliografia) de Xenofonte, as informações fornecidas pelo próprio autor são centrais, afora outros textos tardios, com Diógenes Laércio (2.55) que, embora não informe a data de nascimento do literato, afirma que seu acme se deu durante a 94ª Olimpíada (401-400 a.C.). Uma vez que os antigos acreditavam que o fastígio dos indivíduos se dava por volta dos 40 anos, acredita-se que Xenofonte tenha nascido em c. 440 a.C. Outros indícios, entretanto, apontam para data menos recuada, como o fato de o autor, em trechos diversos da Anábase, definir a si próprio como jovem comandante (neaniskos), fazendo com que alguns especialistas estipulem o nascimento de Xenofonte em c. 430 a.C. (Lee, 2017LEE, J. W. (2017). Xenophon and his Times. In: FLOWER, M. (ed.). The Cambridge Companion to Xenophon. Cambridge, Cambridge University Press , p. 15-36. , p. 16-7, para o debate). Já a data de morte é menos polêmica, e, outra vez segundo Diógenes (2.56), seria o primeiro ano da 150ª Olimpíada, ou seja, 360/59 a.C.

Testemunha de eventos centrais da história grega, é costume rotular como “ateniense” a primeira parte da vida de Xenofonte, período que vai do seu nascimento até 401 a.C. Na Anábase (3.3.19), o ático assegura possuir cavalos e armadura de montaria desde jovem, o que pode indicar que seu pai, Grillus, pertencia à classe dos hippeis, segundo posto mais elevado entre os cidadãos atenienses, o que é de especial relevância quando se recorda que o evento-chave da juventude de Xenofonte foi a Guerra do Peloponeso (431 - 404 a.C.) - é possível que o autor tenha se interessado por táticas de batalha, cuidado com os equinos e pormenores da política grega à luz de suas experiências juvenis (Lee, 2017LEE, J. W. (2017). Xenophon and his Times. In: FLOWER, M. (ed.). The Cambridge Companion to Xenophon. Cambridge, Cambridge University Press , p. 15-36. , p. 20). Algumas passagens sugerem que Xenofonte tomou parte do conflito como cavaleiro mesmo antes de completar 18 anos, e trechos de sua própria obra (Hell. 1.2.1; 1.4.10) indicam participação no ataque ateniense a Éfeso em 409 a.C.

Além das memórias bélicas, a convivência com Sócrates é também central nos anos de formação do escritor. Diógenes (2.48) oferece o relato mais conhecido, e por certo mais fantasioso, a respeito do encontro. Xenofonte teria avistado o filósofo em uma rua estreita e perguntado como um homem poderia se tornar bom e nobre (καλοὶ κἀγαθοὶ). A proverbial resposta de Sócrates foi “pois me siga e aprenda” (ἕπου τοίνυν (...) καὶ μάνθανε) (cf. Xen. Mem. 4.4.5). Doravante, Xenofonte se converteria em fiel seguidor de Sócrates, fazendo com que ataques aos sofistas se tornassem chavões em suas obras, inclusive no Cinegético. Após a derrota ateniense de 404 a.C., é possível que Xenofonte tenha servido como cavaleiro sob os 30 Tiranos, embora, em alguns de seus textos, tenha retratado o regime de forma negativa (Hell. 2.4.9; 2.4.2-6.) - o que foi interpretado como possível forma de cobrir seus rastros sem levantar suspeitas de desprivilégio entre os atenienses.2 2 Para o debate a respeito, com bibliografia e com as recentes críticas historiográficas, ver (Lee, 2017, p. 25).

O segundo período da vida de Xenofonte, liderando os mercenários de Ciro, o jovem, entre 401 e 399 a.C., é um dos mais conhecidos. Passagem da Anábase (3.1.4-10), com forte verniz anedótico, dá conta de que o literato teria consultado Sócrates antes de embarcar para a Ásia, temeroso de que o mestre pudesse ser defenestrado de Atenas caso seus laços com os aquemênidas se estreitassem. Sócrates o aconselhou a visitar o Oráculo de Delfos, mas Xenofonte apenas indagou a quais deuses deveria sacrificar para que sua jornada fosse vitoriosa. Ainda que seja impossível cravar os motivos pelos quais o ático decidiu se aventurar na Pérsia, Lee (2017LEE, J. W. (2017). Xenophon and his Times. In: FLOWER, M. (ed.). The Cambridge Companion to Xenophon. Cambridge, Cambridge University Press , p. 15-36. , p. 26) especula que a ausência de família constituída e o desejo de marcar com letras douradas seu nome na história helênica teriam impulsionado Xenofonte.

Após o fracasso na Batalha de Cunaxa (401 a.C.), Xenofonte e seus comandados iniciaram a retirada para Grécia, que inspirou a Anábase. O contato contíguo com a Pérsia, o aprofundamento das realidades da guerra e a reflexão sobre os gregos e seus vizinhos no Mediterrâneo, todos aperfeiçoados durante a expedição, seriam temas aos quais a obra de Xenofonte sempre retornaria. Enfim aportado na Anatólia, o autor passa os anos seguintes, c. 399-394 a.C., combatendo sátrapas oriundos dos limites do Império, como Tissafernes e Farnázabo, sob as ordens de comandantes espartanos, dentre eles o rei Agesilau II (r. 400 - 360 a.C.), sob quem o literato enfrentaria os atenienses na primavera de 394 a.C..3 3 O apreço de Xenofonte por Esparta é evidente, haja vista sua Constituição dos Lacedemônios. Nela (4.7), Licurgo afirma que a caça é a mais nobre das ocupações (κάλλιστον εἶναι τὸ θηρᾶν) (Barringer, 2001, p. 11). Em paralelo a essas campanhas, e também às derrotas lacedemônias frente aos persas, Xenofonte é exilado de Atenas, por razões que continuam motivo de contenda.

Por um lado, as relações de Xenofonte com Ciro foram encaradas como falta de prestação de serviços a Atenas, conforme atestado em diversas fontes (Xen. Anab. 3.1.4; Diog. Laert. 2.58; Dio Chrys. Or. 8.1; Paus. 5.6.5.). Por outro, o mesmo Diógenes (2.51) aponta que o motivo da proscrição era por Xenofonte ter tomado parte entre os lacedemônios (παρ᾽ ὃν καιρὸν ἐπὶ Λακωνισμῷ φυγὴν ὑπ᾽ Ἀθηναίων κατεγνώσθη). Fato é que, por volta de 393 a.C., o autor do Cinegético se viu obrigado a residir em Scillus, ao sul de Olímpia, no Peloponeso, onde se sabe, outra vez de acordo com Diógenes (2.52), ter vivido com sua consorte, Filésia, e dois filhos, Grillus e Diodoro.

A estada de Xenofonte em Scillus é de particular importância, uma vez que, para especialistas como Lee (2017LEE, J. W. (2017). Xenophon and his Times. In: FLOWER, M. (ed.). The Cambridge Companion to Xenophon. Cambridge, Cambridge University Press , p. 15-36. , p. 33), representa o momento em que o autor teria debutado, durante as décadas de 380 e 370 a.C. Embora seja claro que Xenofonte reuniu anotações ao longo da vida, seria durante esse período que o literato achou por bem sistematizar seus escritos. Os anos de 370 a.C. também representaram mudanças para a cidadania de Xenofonte. Embora haja discordâncias entre as fontes (Paus. 5.6.6; Diog. Laert. 2.53), é sabido que o banimento de Atenas foi revogado, sendo possível até mesmo que Xenofonte tenha visitado a cidade cerca de 20 anos depois.

A movimentada vida de Xenofonte ainda reservaria surpresas em seus anos finais, com seu filho Grillus recebendo honras fúnebres e sendo agraciado com uma estela funerária (Paus. 8.11.6; 8.9.5). Anos mais tarde, a estoa pintada de Atenas reservou um retrato de Grillus ferindo o general tebano Epaminondas na Batalha de Mantinea (362 a.C.) (Paus. 1.3.4, 9.15.5; Plut. Mor. 346b-e; HN 35.129). Xenofonte faleceu em Corinto, acredita-se (Lee, 2017LEE, J. W. (2017). Xenophon and his Times. In: FLOWER, M. (ed.). The Cambridge Companion to Xenophon. Cambridge, Cambridge University Press , p. 15-36. , p. 35; Palagia, 2021PALAGIA, O. (2021). The Iconography of War. In: HECKEL, W. et alii (eds.). A Companion to Greek Warfare. Hoboken, Blackwell , p. 369-383. , p. 382).4 4 Moreno (2001, p. 33) reforça um dado importante a respeito: Eufrânor era conhecido, segundo Pausânias (1.3.4), por distorcer levemente os eventos históricos em suas pinturas. No caso em exame, a obra levaria a crer que o filho de Xenofonte matou Epaminondas no curso do combate, quando, na verdade, ambos tombaram no dia seguinte.

No que diz respeito ao Cinegético, dois são os principais debates a mobilizar seus intérpretes. O primeiro, mais comezinho, envolve a datação do opúsculo; o segundo, mais acérrimo, põe em xeque a autoria de alguns trechos, ou até mesmo a atribuição a Xenofonte, em especial pela estrutura pouco ortodoxa da obra. O Cinegético se inicia com burilado intróito, que atravessa todo o primeiro capítulo e no qual Xenofonte tributa a atividade da caça - aqui utilizando a sinédoque “jogos do agro e cães” - à criação divina, especialmente Apolo e Artêmis5 5 Aqui, vale notar, como fez Delattre (2006), diferença fundamental entranhada nas práticas de caça gregas e helenísticas. No primeiro caso, muitas vezes a evocação de Artêmis no curso da cinegética dá a ela ares divinos, em oposição às venatórios de caráter laico típicas do helenismo. Para o classicista francês, trata-se de distinção fundamental, obtida por meio do cruzamento de texto de Xenofonte com autores com Políbio. (τὸ μὲν εὕρημα θεῶν, Ἀπόλλωνος καὶ Ἀρτέμιδος, ἄγραι καὶ κύνες). Os irmãos bafejaram o centauro Chíron com os segredos da cinegética que, por seu turno, foi o responsável por transmiti-los a seus ilustres aprendizes, como Asclépio, Nestor, Peleu, Meleagro, Teseu, Hipólito, Castor, Diomedes, Odisseu, Enéas, Aquiles e outros, os quais foram, em seu devido tempo, agraciados pelos deuses (Cyn. 1.1-2).

Xenofonte lista as proezas de cada um daqueles que se destacaram no esporte venatório (1.6-16). Após a longa laudatio, o autor relembra que o correr dos séculos não foi suficiente para que deixassem de ser laureados entre os melhores, mais excelsos (ἀγαθοὶ) pela demonstração de coragem e virtude (ἀρετὴν) que legaram à posteridade. Graças aos ensinamentos abalizados de Chíron e aos efeitos salutares do exercício cinegético, mesmo quando os gregos se defrontaram com as multidões bárbaras (βαρβάρους πάντας), foram responsáveis por tornar a Grécia invencível (ἀνίκητον τὴν Ἑλλάδα) (Xen. Cyn. 1.17).

Em anotação final (1.18), o ateniense exorta os jovens a não menoscabarem exorta os jovens a não menoscabarem a caçada e qualquer outra forma de ensino (ἐγὼ μὲν οὖν παραινῶ τοῖς νέοις μὴ καταφρονεῖν κυνηγεσίων μηδὲ τῆς ἄλλης παιδείας): trata-se do caminho ideal para que os homens se tornem excelentes na guerra e demais matérias (εἰς τὸν πόλεμον ἀγαθοὶ καὶ εἰς τὰ ἄλλα), em palavra e ação (καὶ λέγειν καὶ πράττειν).

A segunda e mais longa seção do Cinegético percorre os capítulos 2 a 11, e se ocupa do aspecto prático das caçadas (τῶν πράξεων τῶν ἐν τοῖς κυνηγεσίοις) (12.1). O próximo seguimento deste estudo será dedicado à sua análise, de forma que, por ora, deve-se passar ao encerramento do opúsculo, no qual o autor engata epílogo em que são lançadas diversas diatribes contra os sofistas.

Xenofonte (12.6) retoma os aspectos profícuos da caçada, capazes de tornar o corpo saudável, melhorar a visão e retardar o envelhecimento, constituindo-se, pois, no melhor treinamento possível para a guerra (τὰ δὲ πρὸς τὸν πόλεμον μάλιστα παιδεύει). À parte os dados técnicos, como a semelhança em perseguir as feras e os inimigos humanos, o aspecto moral seria de primeira grandeza, já que a caçada é capaz de fincar o homem na sobriedade e treiná-lo na escola da verdade (ἀληθείᾳ παιδεύεσθαι) (Xen. Cyn. 12.7). Após extenso trecho (12.10-22) em que volta a insistir nas consequências salubres do exercício venatório, Xenofonte inicia seu ataque aos sofistas (13.1), tendo a audácia de chamá-los pelo nome, rotulando-os de os assim-chamados sofistas (τῶν σοφιστῶν καλουμένων).6 6 Uma tentativa de identificar a quais sofistas Xenofonte apontava seus canhões foi levada a efeito por Thomas (2018). Esse grupo hediondo, embora alegasse levar a juventude para o bom caminho da virtude (ἀρετὴν), acabava por, de fato, conduzindo ao exato oposto: contaminando o espaço citadino com seu miasma insuportável, os sofistas escreviam inúmeros tratados a respeito de assuntos frívolos (ἀλλὰ περὶ μὲν τῶν ματαίων πολλὰ αὐτοῖς γέγραπται), incapazes de tratar da virtude (ἀρετὴ) e responsáveis por contagiar os jovens com prazeres vazios (ἡδοναὶ κεναί) (Xen. Cyn. 13-2). Frases desse jaez fazem comentadores como Ferrario (2017FERRARIO, S. B. (2017). Xenophon and Greek Political Thought. In: FLOWER, M. (ed.). The Cambridge Companion to Xenophon. Cambridge, Cambridge University Press , p. 57-83., p. 72-3) defenderem que, talvez mais do que à caça, o Cinegético é dedicado à formação moral da juventude ateniense.

O autor (13.6) prossegue classificando a leitura de textos dos sofistas como perda de tempo, uma vez que a doutrina professada é composta de palavras e não de pensamentos, além de arriscar até defesa prévia de sua própria obra, ao lembrar que os sofistas sequer dispunham de envergadura moral para criticá-lo, uma vez que escrevem para seu próprio bem e de nenhum outro (ἐπὶ τῷ ἑαυτῶν κέρδει, καὶ οὐδένα οὐδὲν).

Mais do que isso, e em sutil recurso à ironia embasado no tema do opúsculo, Xenofonte adverte que sofistas apenas caçam jovens e abastados (πλουσίους καὶ νέους θηρῶνται), ao passo que os autênticos filósofos são amigos nos quais se pode inspirar para todas as ações (οἱ δὲ φιλόσοφοι πᾶσι κοινοὶ καὶ φίλοι) (Xen. Cyn. 13.9). Por oposição à mesquinhez dos sofistas, o caçador coloca à disposição do uso comum dos cidadãos seus corpos e suas posses (οἱ δὲ κυνηγέται εἰς τὸ κοινὸν τοῖς πολίταις καὶ τὰ σώματα καὶ τὰ κτήματα) (Xen. Cyn. 13.11). Caçadores atacam as feras; sofistas atacam seus próprios amigos (ἔρχονται δὲ οἱ μὲν ἐπὶ τὰ θηρία, οἱ δ᾽ ἐπὶ τοὺς φίλους) (Xen. Cyn 13.12). O autor ático conclui, com o tom assertivo que caracterizou epílogo, afirmando que todos os homens amantes da caça são, por definição, excelsos (ἄνδρες κυνηγεσίων ἠράσθησαν ἐγένοντο ἀγαθοί) (Xen. Cyn 13-18). Ao cruzar o tratado de Xenofonte com obras de Platão (como Soph. 218d), Claudia Marsico (2021MARSICO, C. (2021). La inteligência del cazador: Virtudes intelectuales, filosofía y sofística em Jenofonte y Aristóteles. Calíope, nº 41, p. 4-31. , p. 18) afirmou que “el sofista es más peligroso que las peores fieras”.

A estrutura incomum e as incursões sobre temas tangenciais à caça fazem com que especialistas como Higgins (1977HIGGINS, W. E. (1977). Xenophon the Athenian: The Problem of the Individual and the Society of Polis. New York, State University of New York Press. , p. 12) e Nickel (1979NICKEL, R. (1979). Xenophon. Erträge der Forschung. Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft. , p. 17) rechacem por completo o Cinegético do corpus de Xenofonte. Outros, como Delebecque (1970DELEBECQUE, E. (1970). L’art de lachasse. Paris, Les Belles Lettres., p. 33), são peremptórios em afirmar que o opúsculo saiu integralmente da pena do autor ático. O mais frequente, entretanto, é atitude mais nuançada, buscando analisar cada seção do Cinegético em minúcia para, então, classificá-la como autêntica ou espúria. Tal postura vicejava desde o século XIX, quando filólogos como Radermacher (1896RADERMACHER, L. (1896). Über den Cynegeticus des Xenophon. Rheinisches Museum für Philologie, vol. 51, p. 596-627. ) e Norden (1898) depositavam particular dúvida na autoria do intróito e epílogo do Cinegético - o primeiro especialista opta por um apócrifo do século III a.C.; o segundo, do século II d.C. Em análise mais recente, Marchant propôs que apenas o capítulo 1 é falso, produto de exórdio retórico típico da Segunda Sofística, datável da primeira metade do século II d.C., sob Adriano (1984, p. xxxvi). Estão de acordo com Marchant Stadter (1976STADTER, P. (1976). Xenophon in Arrian’s Cynegeticus. Greek, Roman, and Byzantine Studies, nº 17, p. 157-167., p. 157) e Anderson (p. 161 nota 2). Embora não se mostre taxativo, Guntiñas Tuñon (1984, p. 236), responsável por verter o Cinegético ao espanhol, afirma ser “arriesgado” sustentar a autoria de Xenofonte sobre todo o opúsculo, ao passo que Hull, responsável pela versão inglesa, mostra dúvidas quanto à introdução, mas se mostra seguro com a exortação final (1964, p. 108).

Em artigo bem documentado, Gray levantou pontos diversos em favor da autenticidade total do tratado, partindo de argumentos presentes já no Mundo Antigo. O fato de Arriano, admirador confesso, imitador declarado e conhecedor inigualável do estilo de Xenofonte, ter tomado o Cinegético in toto como autêntico é o primeiro argumento elencado (Gray, 1985, p. 157). Ademais, em seu Discurso a Demonicus (5), Isócrates delineia o nascimento de um novo gênero literário de caráter exortativo, voltando à formação moral dos jovens, chamado paraínesis, do qual o Cinegético seria parte constituinte (Grey, 1985, p. 160. Contra Dillery 2017DILLERY, J (2017). Xenophon: the Small Works. In: FLOWER, M. (ed.). The Cambridge Companion to Xenophon. Cambridge, Cambridge University Press, 2017, p. 195-223., p. 214). De fato, o desejo de Xenofonte de encaixar o opúsculo nessa categoria seria a motivação dos ataques aos sofistas. Gray fecha o estudo fazendo comparação formal entre o Cinegético e o tratado de equitação de Xenofonte - cuja autoria jamais foi posta sob suspeita - constatando semelhanças diversas de estilo e figuras de linguagem (Gray, 1985, p. 168-70). Da mesma opinião é Dillery, mesmo o Cinegético sendo ponto fora da curva (definite outlier) quanto cotejado às demais obras do escritor ático (2017, p. 213).

Há pouco e em sentido próximo, Fögen lembra que proêmios empolados constituem uma espécie de “crime comum” na literatura grega (2016, p. 275). Da mesma opinião é Chambry (1954CHAMBRY, P. (1954). Notice sur le Traitê de la chasse. In: CHAMBRY, P. Anabase; Banquet; Economique de la Chasse; Republique de Lacedemoniens; Republique des Atheniens. Xenofonte. Paris, Garnier, p. 383-388., p. 387). Já Dorion se dedicou à empresa de enumerar as críticas aos sofistas presentes no corpus do literato, de forma a demonstrar como essa postura atravessa toda sua produção. (2017, p. 42-5). Por seu turno, tão convicto é Kidd (2014KIDD, S. (2014). Xenophon’s Cynegeticus and its Defense of Liberal Education. Philologus, nº 48, vol. 1, p. 76-96. , p. 82 e p. 82 nota 37) a respeito da autoria de Xenofonte sobre todo o Cinegético que chega a ouvir ecos do tratado em ninguém menos que Políbio (31.29.1-12), quando o historiador de Megalópolis contrasta as venatórias laboriosas de Cipião com a indolência de seus companheiros. De fato, é documentado por Cícero (Q. Fr. 1.1.23; Tusc. 2.62) que a Ciropédia era o livro favorito de Cipião, prova que o general frequentava com assiduidade os escritos de Xenofonte.

Lançando mão de modernos softwares de análise quantitativa associados à velha e boa filologia clássica, Labiano (2012LABIANO, M. (2012). The Problem of authorship of Xenophon’s Cynegeticus. In: MARTÍNEZ, J. (ed.). Mundus vult decipi. Estudios interdisciplinares sobre falsificación textual y literaria. Madrid, Ediciones Classicas, p. 171-184.) negou totalmente a autoria do tratado a Xenofonte. Embora não arrisque seu autor, o estudioso espanhol defende que o estilo, o vocabulário e a sintaxe do Cinegético se encaixam com os padrões do início do século IV a.C.

Com respeito à datação do Cinegético, Delebecque (1970DELEBECQUE, E. (1970). L’art de lachasse. Paris, Les Belles Lettres., p. 33-4) o situa entre os anos de 392 a 388, particularmente 391/390 a.C., pelo Zeitgeist: trata-se do período de publicação de Contra os Sofistas, de Isócrates, assim como de diversos diálogos de Platão, obras que contêm ataques semelhantes àqueles perpetrados no manual de caça. Sem explicitar seus argumentos, Calder (2017CALDER, L. (2017). Pet and Image in the Greek World: The Use of Domesticated Animals in Human Interaction. In: FÖGEN, T. & THOMAS, E. (eds.). Interactions between Animals and Humans in Graeco-Roman Antiquity. Berlin, De Gruyter, p. 61-88., p. 64) opta por 380 a.C., de maneira semelhante à de Anderson (1985ANDERSON, J. K. (1985). Hunting in the Ancient World. Berkeley, University of California Press., p. 17), que opta por genérico “algum tempo antes da metade do século IV a.C.”. Já Chambry (1954CHAMBRY, P. (1954). Notice sur le Traitê de la chasse. In: CHAMBRY, P. Anabase; Banquet; Economique de la Chasse; Republique de Lacedemoniens; Republique des Atheniens. Xenofonte. Paris, Garnier, p. 383-388., p. 388) teoriza tratar-se do primeiro escrito de Xenofonte, denunciado por seu estilo juvenil e adoração acrítica a Sócrates. Marchant (1984MARCHANT, E. C. (1984). Introduction. In: MARCHANT, E. C. Scripta Minora. Xenofonte. Cambridge, Harvard University Press, p. vii-xivii., xxxviii) segue pelo mesmo caminho, acrescentando que a ausência de menções às práticas de caça asiáticas revelaria produção do Cinegético antes da expedição oriental de Xenofonte.

Feitos os debates pertinentes à obra, cabe observar como se dá a constituição do caçador grego no Cinegético.

Xenofonte e a construção do caçador ideal

Cada cão conhecia o seu dono e atendia ao chamado dele. Cada caçador sabia qual era a sua função, o seu lugar e o seu destino. Assim que atravessaram a sebe, todos, sem fazer barulho e sem conversar, distribuíram-se de modo uniforme e tranquilo pela estrada e pelo campo (...)

Tolstói. Guerra e Paz. Tomo 2, quarta parte, capítulo IV

MacKinnon (2014, p. 186) enumera alguns dos motivos pelos quais os gregos saiam à caça. Obtenção de carne alimentar e controle de pestes como javalis, gado selvagem, coelhos e raposas são nomeados. Entretanto, o tema de interesse aqui é a maneira pela qual Xenofonte descreve a atividade cinegética como esporte, labor responsável por despertar reações salutares no corpo e no espírito. Para o autor ático, assim como para Tolstói, o cão é o melhor companheiro no homem nas venatórias - e cabe lembrar a origem etimológica de “cinegético”, derivada de κύων, κυνός (cão).7 7 O caso dos laços entre homem e cães vale algumas palavras, principalmente no que respeita à relação entre nossa espécie e o díptico cão/lobo. Conforme propõe Walker (2013, p. 52-3), parte fundamental do processo de domesticação do cão foi seu emprego nas caçadas, de forma que os animais mais próximos aos humanos - em contraposto à alcateia selvagem - obtinham alimentos com mais facilidade. Entretanto, muito longe de um processo de domesticação unilateral, trata-se de episódio que revela a profunda intimidade (intimacy) entre nossa espécie e as demais, uma vez que os cães, dotados da devida agência, foram capazes de notar os benefícios trazidos por sua convivência com os humanos. Produzido a partir de uma experiência concreta -- Xenofonte, afinal, é um caçador (Chevitarese; Andrade & Bustamante, 2006CHEVITARESE, A.; ANDRADE, M. M.; BUSTAMANTE, R. (2006). Imagens da Caça na Antiguidade Clássica: entre a cidade e o campo. Phoinix, vol. 12, p. 46-86. , p. 61) --, o opúsculo caracteriza, repetidas vezes, o caçador ideal com os seguintes atributos: jovem que conduz a cinegética a pé, acompanhando de cães e fazendo o uso de redes para capturar lebres (Rossi, 1916ROSSI, S. (1916). Introduzione. In: XENOFONTE. Il Cinegetico. Livorno, Raffaello Giusti, p. i-xii., p. x). Antes de abordagem propositiva, contudo, vale operar pelo revés, isto é, a maneira como atributos como a perseguição às grandes feras e o emprego dos cavalos nas caçadas são negligenciados no tratado em análise.

Um dos primeiros nomes lembrados quando se fala em especialistas na obra de Xenofonte, Delebecque (1970DELEBECQUE, E. (1970). L’art de lachasse. Paris, Les Belles Lettres., p. 22-3) - com a pena da galhofa e a tinta da pilhéria - anotou que, na economia do Cinegético, quando se trata das presas, a lebre é, de longe, a mais citada, com 71,5% das ocorrências, mormente ao longo dos capítulos 2 a 8. Em seguida, vêm javali (16%) e cervídios (11%), ao passo que os grandes felinos e ursos correspondem à cifra irrisória de 1,5%. O que se tem, pois, é de uma ironia curiosa: ainda que Xenofonte pese a mão em aspectos como o valor educativo da caça e o amor pelo perigo que ela desperta, em mais de 80% de seu opúsculo os animais colocados sob a mira do homem não oferecem risco à sua vida. De fato, e como notou Kidd (2014KIDD, S. (2014). Xenophon’s Cynegeticus and its Defense of Liberal Education. Philologus, nº 48, vol. 1, p. 76-96. , p. 78), tão deslocadas estão as espécies outras que não a lebre que Xenofonte as menciona quase como um posfácio (almost as an afterthought) (2014, p. 78).

É sintomático que o único momento em que o autor cite leões, leopardos, linces, pantera, ursos e feras assemelhadas seja para informar que sua perseguição se dá em territórios estrangeiros (λέοντες δὲ καὶ παρδάλεις, λύγκες, πάνθηρες, ἄρκτοι καὶ τἆλλα ὅσα ἐστὶ τοιαῦτα θηρία ἁλίσκεται ἐν ξέναις χώραις) (Xen. Cyn. 11.1). Vale mencionar que a forma como Xenofonte (11. 2-3) descreve a captura dessas feras difere visceralmente do procedimento padrão encontrado ao longo do Cinegético. Claro, seria tolice esperar que lebres e leões fossem caçados com o uso dos mesmos métodos, mas algum ranço de alteridade na descrição do autor ático não pode passar despercebido.

Com efeito, uma das possibilidades para caçar os grandes felinos consiste em envenená-los com acônito misturado aos alimentos favoritos dos animais e colocado próximo a fontes de água e outros locais em que rondam as bestas (περὶ τὰ ὕδατα καὶ πρὸς ὅ τι ἂν ἄλλο προσίῃ) (Xen. Cyn. 11.2). Outra possibilidade se dá quando os felinos se aventuram pela planície à noite (καταβαίνοντα εἰς τὸ πεδίον τῆς νυκτὸς), ocasião em que se faz necessário que os caçadores se aproximem das feras montados e com armadura completa (μετὰ ἵππων καὶ ὅπλων). Mais importante do que os pormenores técnicos é o comentário com o qual Xenofonte arremata o passo: trata-se de um modo perigoso de capturá-los (εἰς κίνδυνον καθιστάντα τοὺς αἱροῦντας) (Xen. Cyn. 11.3). A passagem inspira comentários.

Em primeiro lugar, chama atenção que Xenofonte classifique como perigoso procedimento venatório que em muito se assemelha às práticas da caçada régia oriental, também realizada a cavalo e tendo as grandes feras como presas. Talvez mais do que juízo moral ou alerta prático aos jovens atenienses que se aventuraram na variante, é preciso ter em mente que Xenofonte alude, também, aos percalços práticos envolvidos nessa modalidade, tanto pela escassez desses animais em solo grego como pelo próprio terreno acidentando, impróprio para a condução dos cavalos. A conjunção de felinos vagando à noite pelas poucas planícies helênicas parece rara.

Em segundo, não se pode deslocar Xenofonte de alguns dos discursos de alteridade vigente à sua época, sobretudo aqueles conectados a aspectos da venatória oriental. É sabido, que os reis asiáticos conduziam as caçadas contra os felinos nos paradeisoi, parques artificiais que reuniam vasta fauna e flora, autênticas metonímias para o poder real. Como notou Allsen (2006ALLSEN, T. (2006). The royal hunt in Eurasian history. Philadelphia, University of Pennsylvania Press., p. 35; 283 nota 86), é comum encontrar certo desdém dos autores clássicos pelos paradeisoi. O próprio Xenofonte ajuda a contribuir com esse filão. Destarte, no longo relato da caçada de Ciro na corte de Astíages registrado na Ciropédia (1.4.13-20), Allsen propõe que Xenofonte, ainda que de forma discreta, reprova a excitação do jovem príncipe, que caminharia à contramão da retórica do equilíbrio helênico idealizado por Sócrates e herdado pelo literato. O fato de Ciro ser incapaz de guardar silêncio diante do prazer da caçada (καὶ Κύρῳ ἥδετο οὐ δυναμένῳ σιγᾶν ὑπὸ τῆς ἡδονῆς) seria exemplo basilar.8 8 Vale destacar que Xenofonte não dá indicação peremptória do cenário dessa incursão em particular. Entretanto, alguns trechos atrás e em tom apologético, o autor (1.4.5) destaca que Ciro havia esgotado todos os animais do paradeisos de Astíages (ἐν τῷ παραδείσῳ θηρία ἀνηλώκε), o que, ao menos a meu ver, indica como as incursões em parques eram a regra da corte local. Escrevendo séculos depois, João Crisóstomo (3.137-38) afirmou sem rodeios que matar animais em parques de caça era semelhante a abater prisioneiros de guerra desarmados e arrogar-se grande guerreiro.

Sobre a relação entre caçadores e suas montarias, nota Onians (1996ONIANS, J. (1996). Arte y pensamiento en la época Helenistica: la vision griega del mundo (350 a.C.-50 a.C). Tradução de Rafael Jackson. Madrid, Alianza, 1996., p. 18-9) que, embora os gregos, e os atenienses em particular, tivessem apreço pelos cavalos, é igualmente verdade que o amor excessivo aos equinos era visto como ferramenta de alteridade. Onians cita a presença maciça de gregos a pé enfrentando centauros, amazonas e persas, sempre a cavalo, em obras tão canônicas como os frisos do Parthenon ou as amazonomaquias do Mausoléu de Halicarnaso. Nessa interpretação, a narrativa confere ao par montado versus a pé a mesma pecha de fraqueza encontrada em outros binarismos como arco e flecha versus espada ou armadura completa versus nudez heroica, fartamente empregados na arte helênica dos séculos V e IV a.C.. Outro argumento nessa direção reside no fato de que, na iconografia da cerâmica grega, o tema do cuidado com os cavalos - em cenas de estábulo, por exemplo - é menos frequente do que o emprego dos animais por inimigos dos gregos. Moore (2004MOORE, M. (2004). Horse Care as Depicted on Greek Vases before 400 B.C. Metropolitan Museum Journal, vol. 39, p. 35-67. ) testifica o fenômeno, embora sem atinar com suas causas.

Llewellyn-Jones (2013, p. 85) lembra como o fausto associado aos cavalos era parte importante desse discurso. Os exemplos são muitos: dos animais conectados com a ideologia real aquemênida e o esplendor da corte (Hdt. 9.20; Diod. 17.59.2; Ctésias Frag. 19) ao uso dos equinos em passatempos aristocráticos como caçada e corrida (Xen. Cyr. 8.3.25,33; Hdt 7.196). Parte central do Império, quando da morte de um rei os cavalos tinham suas crinas cortadas e eram postos em procissão de lamento (Hdt. 9.24; Curt. 10.5.17), além de ser o mais celebrado presente trocado entre os nobres persas (Xen. Anab. 1.2.27). O caso mais infame seria a coroação de Dario I relatada por Heródoto (3.85), segundo o qual o Grande Rei obteve a púrpura após empinar sua montaria ao sol nascente. Trata-se, é quase certo, de incompreensão das práticas persas de hipomancia, isto é, de divinização por meio dos cavalos (Briant, 2002BRIANT, P. (2002). From Cyrus to Alexander: a History of the Persian Empire. Tradução de Peter Daniels. Winona Lake, Eisenbrauns Press. (1st ed. 1996), p. 109).

É sintomático, portanto, que o Cinegético não traga menções à equitação associada ao exercício da caçada, uma vez que o opúsculo, presume-se, era endereçado ao caçador médio (Marchant, 1984MARCHANT, E. C. (1984). Introduction. In: MARCHANT, E. C. Scripta Minora. Xenofonte. Cambridge, Harvard University Press, p. vii-xivii., p. xxxvi-xxxvii). Mesmo em outro de seus tratados, Sobre a Equitação (8.10), Xenofonte aconselha a caçar montado apenas onde o terreno é adequado e há presas disponíveis (ὅπου μέν ἐστι χωρία ἐπιτήδεια καὶ θηρία), o que, em vasta medida, retoma as informações do Cinegético (Lane Fox, 1996, p. 136). Tradutor de Xenofonte para o francês, Chambry (1954CHAMBRY, P. (1954). Notice sur le Traitê de la chasse. In: CHAMBRY, P. Anabase; Banquet; Economique de la Chasse; Republique de Lacedemoniens; Republique des Atheniens. Xenofonte. Paris, Garnier, p. 383-388., p.383) notou que a caçada a cavalo tem pouco lugar no Cinegético tanto pelo interesse menor de seu autor quanto, sobretudo, pela dificuldade prática de levá-la adiante no acidentado território grego. Mais importante é o fato de que em nenhum momento de todo o corpus de Xenofonte é dada a informação de que jovens caçavam cervos ou javalis a cavalo, indicando a característica alienígena da modalidade.

Um último ponto diz respeito à possível hýbris imbricada no abate dos grandes animais. Amostra vem do Crítias (119 d-e), de Platão. Em intepretação ousada, Burkert (1983BURKERT, W (1983). Homo Necans. The Anthropology of Ancient Greek Sacrificial Ritual and Myth. Tradução de Peter Bing. Berkley; Los Angeles; London, University Of California Press, 1983. (1st ed. 1972), p. 15), defendeu que a caçada aos bois e seu posterior sacrífico são descritos de forma semi-barbaresca (semi-barbarous fashion) na idealizada Atlântida do filósofo.

Feitas ponderações sobre as ausências no Cinegético, cabe comentar o que diz o texto a respeito do caçador idealizado por Xenofonte. Assim, logo no início (2.1) o literato afirma que a instituição cinegética deve ser dirigida primeriamente à juventude, aos jovens recém-saídos da infância (πρῶτον [...] τὸ τῶν κυνηγεσίων τὸν ἤδη ἐκ παιδὸς ἀλλάττοντα τὴν ἡλικίαν), conselho que não chega a surpreender, uma vez que, em Xenofonte, a caçada é exercício pedagógico ideal, atividade bafejada pelos deuses e firmada entre os heróis como demonstração de frugalidade (Delattre, 2006DELATTRE, C. (2006). Récits de chasse en Grèce Ancienne. In: SIDÉRA, I. et alii (orgs.). La chasse: pratiques sociales et symboliques. Paris, De Boccard, p. 157-165., p. 157-8), autêntica “barreira moral contra o avanço das ideias sofistas entre a juventude (rica) ateniense” (Chevitarese; Andrade & Bustamante, 2006CHEVITARESE, A.; ANDRADE, M. M.; BUSTAMANTE, R. (2006). Imagens da Caça na Antiguidade Clássica: entre a cidade e o campo. Phoinix, vol. 12, p. 46-86. , p. 55). Retardar a iniciação na venatória implicaria esvaziá-la de seus principais propósitos.

O texto prossegue com os atributos ideais do caçador (2.3).9 9 Orgulhoso caçador, além de reputado classicista, Hull (1964, p. 4), após exame minucioso do texto de Xenofonte, assim resumiu os trajes ideais do caçador: chiton curto, de cor imperceptível, além de clâmide com as mesmas tonalidades, botas e pétaso. Clâmide e pétaso eram usados, sobretudo, pelos efebos. O responsável pela rede (ἀρκυωρὸν) deve, além de falar grego (φωνὴν Ἕλληνα), ter em torno de vinte anos e possuir predicados como ser ágil, forte e resoluto (ἐλαφρόν, ἰσχυρόν, ψυχὴν δὲ ἱκανόν), capaz de resistir às intempéries. A necessidade de ser helenófobo, segundo Anderson (1985ANDERSON, J. K. (1985). Hunting in the Ancient World. Berkeley, University of California Press., p. 37), indica que, por vezes, o condutor poderia ser estrangeiro. Após a descrição das redes utilizadas (2. 4-9),10 10 As redes, novamente de acordo com Anderson (1985, p. 38), eram fabricadas com linho importado de Cartago ou do Mar Negro, indicando, outra vez, o viés aristocrático da cinegética. Xenofonte trata com particular atenção dos cães (3.1), destacando os tipos mais comuns: o castoriano (καστόριαι) e o vulpino (ἀλωπεκίδες). Ambos, como demonstra Marchant,11 11 Comentário de Marchant no aparato crítico de sua tradução de Xenfonte, pág. 377 nota 2. são variações do cão da Lacônia, sendo o primeiro de tamanho mais avantajado. Xenofonte tem o cuidado de explicar a etimologia: castoriano deve sua graça a Castor, responsável pelos cruzamentos que desembocaram na cepa. Já o vulpino, como o nome indica, é híbrido entre cão e raposa. Segue-se análise das vantagens das raças (3.2-7), até o literato fornecer informação relevante (3.8): o cão que ignora a trilha e avança por sobre o rastro da lebre possui má-formação (ὅσαι δὲ τῶν κυνῶν τὰ ἴχνη τὰ μὲν εὐναῖα ἀγνοοῦσι, τὰ δὲ δρομαῖα ταχὺ διατρέχουσιν, οὐκ εἰσὶ γνήσιαι).

Três são os pontos de destaque aqui. O primeiro é reforçar a lebre como presa por excelência, única citada em situações desconfortáveis como aquelas em que o cão se desgarra de sua trilha. O segundo é o aceno ao cruzamento de raças e à importância crucial dos mastins na condução das caçadas. De fato, mesmo autor tardio e vegetariano convicto como Porfírio (De abs. 3.6. 1) não deixou de exaltar a intimidade entre caçador e cão no repertório grego (Clark, 2017CLARK, G. (2017). Philosophers’ Pets: Porphyry’s Partridge and Augustine’s Dog. In: FÖGEN, T. & THOMAS, E. (eds.). Interactions between Animals and Humans in Graeco-Roman Antiquity. Berlin, De Gruyter , p. 139-157. , p. 147). O último ponto é observar como a venatória possui estágios definidos, protocolos rígidos, etapas sucessivas, que em muito se distanciam das caças ao leão protagonizadas por Alexandre e os diádocos, em que relatos de fugas, acidentes e perseguições indevidas são autênticos topoi literários e iconográficos - embora, e como os esperado, o conquistador triunfe ao final.

O Cinegético avança com elogio às características físicas e emocionais dos cães (3.9 - 4.11), até alcançar uma longa seção, que cobre todo o capítulo 5, dedicada exclusivamente às vicissitudes envolvidas na caça à lebre. Em minúcia, são examinadas dificuldades envolvendo o farejar de seu rastro, a complexidade em apanhar animal tão veloz, sua capacidade de encontrar esconderijos furtivos ainda que acossada pelos mastins, além de detalhes sobre os diferentes tipos do animal e informações sobre sua morfologia. O capítulo seguinte volta suas preocupações ao trato prático dos cães, sempre com vistas a aperfeiçoar sua capacidade de perseguir as lebres. O passo 6.17 merece aparte, uma vez Xenofonte revela comunicação direta entre caçadores e cães, sendo necessárias admoestações como “agora, cães, agora”, “muito bem, bravo, cães” (Ἰὼκύνες, ἰώ, καλῶς, σοφῶς γε ὦ κύνες) para que a presa fosse apanhada a contendo.

É apenas no livro 9, e de passagem, que Xenofonte provém o leitor com dados a respeito da captura de animais outros que não lebre. Cervos e veados são mencionados, e o autor aconselha o emprego dos cães indianos12 12 Conforme Heródoto (1.192-4), o rei persa possuía exemplares do cão indiano em sua corte na Babilônia, e não seria impossível que alguns fossem dados como presentes a sátrapas da Ásia Menor, aos quais Xenofonte teve acesso (Anderson, 1985, p. 49). (κύνας [...] Ἰνδικάς) para sua perseguição (9.1). Seguindo a fórmula, o capítulo seguinte (10.1) trata do javali, para o qual os cães indicados são indianos, cretenses, lócrios e lacônicos (κύνας Ἰνδικάς, Κρητικάς, Λοκρίδας, Λακαίνας), além de redes adequadas ao animal, lanças, javelins e estrepes. Mais perigoso do que lebres e cervídeos, Xenofonte (8.10) aconselha que o mais experimentado (ἐμπειρότατον) conduza a cinegética, responsável por comandar cães e demais companheiros. O opúsculo dedica passo ao procedimento de captura da besta (10.20-22), que indica conhecimento de primeira mão e que contrasta, fortemente, as informações algo vagas a respeito do abatimento dos grandes felinos. Os últimos capítulos, 12 e 13, são dedicados ao ataque aos sofistas, já aludidos.

Esta panorâmica pelo Cinegético - como sua ênfase na importância da caçada para a formação do jovem ateniense e na riqueza de detalhes para a captura das lebres em oposição aos dados exóticos envolvidos na cinegética dos felinos - confirma o inusitado paralelo de Marchant (1984MARCHANT, E. C. (1984). Introduction. In: MARCHANT, E. C. Scripta Minora. Xenofonte. Cambridge, Harvard University Press, p. vii-xivii., p. xxxvi): “Quando um inglês diz que ‘vai caçar’, você entende que ele quer dizer que pretende caçar a raposa a cavalo. Se ouvisse um jovem grego do século IV a.C. fazer a mesma observação, todas as chances seriam de que ele iria caçar a lebre a pé”.

Bibliografia

  • ALLSEN, T. (2006). The royal hunt in Eurasian history Philadelphia, University of Pennsylvania Press.
  • ANDERSON, J. K. (1985). Hunting in the Ancient World Berkeley, University of California Press.
  • BARRINGER, J. (2001). The Hunt in the Ancient Greece Baltimore;London, The John Hopkins University Press.
  • BRIANT, P. (2002). From Cyrus to Alexander: a History of the Persian Empire. Tradução de Peter Daniels. Winona Lake, Eisenbrauns Press. (1st ed. 1996)
  • BURKERT, W (1983). Homo Necans The Anthropology of Ancient Greek Sacrificial Ritual and Myth Tradução de Peter Bing. Berkley; Los Angeles; London, University Of California Press, 1983. (1st ed. 1972)
  • CALDER, L. (2017). Pet and Image in the Greek World: The Use of Domesticated Animals in Human Interaction. In: FÖGEN, T. & THOMAS, E. (eds.). Interactions between Animals and Humans in Graeco-Roman Antiquity. Berlin, De Gruyter, p. 61-88.
  • CHAMBRY, P. (1954). Notice sur le Traitê de la chasse. In: CHAMBRY, P. Anabase; Banquet; Economique de la Chasse; Republique de Lacedemoniens; Republique des Atheniens. Xenofonte. Paris, Garnier, p. 383-388.
  • CHEVITARESE, A.; ANDRADE, M. M.; BUSTAMANTE, R. (2006). Imagens da Caça na Antiguidade Clássica: entre a cidade e o campo. Phoinix, vol. 12, p. 46-86.
  • CLARK, G. (2017). Philosophers’ Pets: Porphyry’s Partridge and Augustine’s Dog. In: FÖGEN, T. & THOMAS, E. (eds.). Interactions between Animals and Humans in Graeco-Roman Antiquity. Berlin, De Gruyter , p. 139-157.
  • DELATTRE, C. (2006). Récits de chasse en Grèce Ancienne. In: SIDÉRA, I. et alii (orgs.). La chasse: pratiques sociales et symboliques. Paris, De Boccard, p. 157-165.
  • DELEBECQUE, E. (1970). L’art de lachasse Paris, Les Belles Lettres.
  • DILLERY, J (2017). Xenophon: the Small Works. In: FLOWER, M. (ed.). The Cambridge Companion to Xenophon Cambridge, Cambridge University Press, 2017, p. 195-223.
  • DORION, L. (2017). Xenophon and Greek Philosophy. In: FLOWER, M. (ed.). The Cambridge Companion to Xenophon Cambridge, Cambridge University Press , p. 37-56.
  • FERRARIO, S. B. (2017). Xenophon and Greek Political Thought. In: FLOWER, M. (ed.). The Cambridge Companion to Xenophon Cambridge, Cambridge University Press , p. 57-83.
  • FÖGEN, T. (2016). Technical Literature. In: HOSE, M.; SCHENKER, D. (eds.). A Companion to Greek Literature Hoboken, Blackwell, p. 266-279.
  • GRAY, V. (1985). Xenophon’s ‘Cynegeticus’. Hermes, nº 113, vol. 2, p. 156-172.
  • GUNTIÑAS TUÑON, O. (1984). Introducción. In: GUNTIÑAS TUÑON, O. Obras Menores. De la caza Xenofonte. Madrid, Editorial Gredos, p. 235-240.
  • HIGGINS, W. E. (1977). Xenophon the Athenian: The Problem of the Individual and the Society of Polis New York, State University of New York Press.
  • HULL, D. B. (1964). Hounds and Hunting in Ancient Greece Chicago; London, The University of Chicago Press.
  • KIDD, S. (2014). Xenophon’s Cynegeticus and its Defense of Liberal Education. Philologus, nº 48, vol. 1, p. 76-96.
  • LABIANO, M. (2012). The Problem of authorship of Xenophon’s Cynegeticus. In: MARTÍNEZ, J. (ed.). Mundus vult decipi Estudios interdisciplinares sobre falsificación textual y literaria. Madrid, Ediciones Classicas, p. 171-184.
  • LANE FOX, R. (1996). Ancient Hunting: From Homer to Polybios. In: SHIPLEY, G.; SALMON, J. (eds.). Human landscapes in Classical Antiquity: Environment and Culture. London, Routledge, p. 119-153.
  • LEE, J. W. (2017). Xenophon and his Times. In: FLOWER, M. (ed.). The Cambridge Companion to Xenophon Cambridge, Cambridge University Press , p. 15-36.
  • LLEWELLYN-JONES, L. (2013). King and Court in Ancient Persia 559 to 331 BC Edinburgh, Edinburgh University Press.
  • MACKINNON, M.. (2014). Hunting. In: CAMPBELL, G. L. (ed.). The Oxford Handbook of Animals in Classical Thought and Life Oxford, Oxford University Press, p. 185-195.
  • MARCHANT, E. C. (1984). Introduction. In: MARCHANT, E. C. Scripta Minora Xenofonte. Cambridge, Harvard University Press, p. vii-xivii.
  • MARSICO, C. (2021). La inteligência del cazador: Virtudes intelectuales, filosofía y sofística em Jenofonte y Aristóteles. Calíope, nº 41, p. 4-31.
  • MOORE, M. (2004). Horse Care as Depicted on Greek Vases before 400 B.C. Metropolitan Museum Journal, vol. 39, p. 35-67.
  • MORENO, P. (2001). Apelles. The Alexander Mosaic Tradução de David Stanton. Milano, Skira.
  • NICKEL, R. (1979). Xenophon Erträge der Forschung. Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft.
  • NORDEN, E. (1989). Die Antike Kunstprosa Leipzig, B. G. Teubner.
  • ONIANS, J. (1996). Arte y pensamiento en la época Helenistica: la vision griega del mundo (350 a.C.-50 a.C). Tradução de Rafael Jackson. Madrid, Alianza, 1996.
  • PALAGIA, O. (2021). The Iconography of War. In: HECKEL, W. et alii (eds.). A Companion to Greek Warfare Hoboken, Blackwell , p. 369-383.
  • RADERMACHER, L. (1896). Über den Cynegeticus des Xenophon. Rheinisches Museum für Philologie, vol. 51, p. 596-627.
  • ROSSI, S. (1916). Introduzione. In: XENOFONTE. Il Cinegetico Livorno, Raffaello Giusti, p. i-xii.
  • STADTER, P. (1976). Xenophon in Arrian’s Cynegeticus. Greek, Roman, and Byzantine Studies, nº 17, p. 157-167.
  • THOMAS, D. (2018). The Enemies of Hunting in Xenophon’s Cynegeticus. In: DANZING, G; JOHNSON, D.; MORRISON, D. (eds.). Plato and Xenophon Comparative Studies. Leiden, Brill, p. 612-639.
  • FIGUEIREDO, R. (2012). Guerra e Paz Liev Tolstoi. São Paulo, Cosac Naify [1st ed. 1867].
  • WALKER, B. L. (2013). Animals and the intimacy of history. History and Theory, vol. 52, p. 45-67.
  • 1
    É comum alocar o Cinegético entre as “obras menores” de Xenofonte. Para crítica ao conceito de “obras menores”, ver: Dillery (2017DILLERY, J (2017). Xenophon: the Small Works. In: FLOWER, M. (ed.). The Cambridge Companion to Xenophon. Cambridge, Cambridge University Press, 2017, p. 195-223., p. 195-6).
  • 2
    Para o debate a respeito, com bibliografia e com as recentes críticas historiográficas, ver (Lee, 2017LEE, J. W. (2017). Xenophon and his Times. In: FLOWER, M. (ed.). The Cambridge Companion to Xenophon. Cambridge, Cambridge University Press , p. 15-36. , p. 25).
  • 3
    O apreço de Xenofonte por Esparta é evidente, haja vista sua Constituição dos Lacedemônios. Nela (4.7), Licurgo afirma que a caça é a mais nobre das ocupações (κάλλιστον εἶναι τὸ θηρᾶν) (Barringer, 2001BARRINGER, J. (2001). The Hunt in the Ancient Greece. Baltimore;London, The John Hopkins University Press., p. 11).
  • 4
    Moreno (2001MORENO, P. (2001). Apelles. The Alexander Mosaic. Tradução de David Stanton. Milano, Skira. , p. 33) reforça um dado importante a respeito: Eufrânor era conhecido, segundo Pausânias (1.3.4), por distorcer levemente os eventos históricos em suas pinturas. No caso em exame, a obra levaria a crer que o filho de Xenofonte matou Epaminondas no curso do combate, quando, na verdade, ambos tombaram no dia seguinte.
  • 5
    Aqui, vale notar, como fez Delattre (2006DELATTRE, C. (2006). Récits de chasse en Grèce Ancienne. In: SIDÉRA, I. et alii (orgs.). La chasse: pratiques sociales et symboliques. Paris, De Boccard, p. 157-165.), diferença fundamental entranhada nas práticas de caça gregas e helenísticas. No primeiro caso, muitas vezes a evocação de Artêmis no curso da cinegética dá a ela ares divinos, em oposição às venatórios de caráter laico típicas do helenismo. Para o classicista francês, trata-se de distinção fundamental, obtida por meio do cruzamento de texto de Xenofonte com autores com Políbio.
  • 6
    Uma tentativa de identificar a quais sofistas Xenofonte apontava seus canhões foi levada a efeito por Thomas (2018THOMAS, D. (2018). The Enemies of Hunting in Xenophon’s Cynegeticus. In: DANZING, G; JOHNSON, D.; MORRISON, D. (eds.). Plato and Xenophon. Comparative Studies. Leiden, Brill, p. 612-639.).
  • 7
    O caso dos laços entre homem e cães vale algumas palavras, principalmente no que respeita à relação entre nossa espécie e o díptico cão/lobo. Conforme propõe Walker (2013WALKER, B. L. (2013). Animals and the intimacy of history. History and Theory, vol. 52, p. 45-67., p. 52-3), parte fundamental do processo de domesticação do cão foi seu emprego nas caçadas, de forma que os animais mais próximos aos humanos - em contraposto à alcateia selvagem - obtinham alimentos com mais facilidade. Entretanto, muito longe de um processo de domesticação unilateral, trata-se de episódio que revela a profunda intimidade (intimacy) entre nossa espécie e as demais, uma vez que os cães, dotados da devida agência, foram capazes de notar os benefícios trazidos por sua convivência com os humanos.
  • 8
    Vale destacar que Xenofonte não dá indicação peremptória do cenário dessa incursão em particular. Entretanto, alguns trechos atrás e em tom apologético, o autor (1.4.5) destaca que Ciro havia esgotado todos os animais do paradeisos de Astíages (ἐν τῷ παραδείσῳ θηρία ἀνηλώκε), o que, ao menos a meu ver, indica como as incursões em parques eram a regra da corte local.
  • 9
    Orgulhoso caçador, além de reputado classicista, Hull (1964HULL, D. B. (1964). Hounds and Hunting in Ancient Greece. Chicago; London, The University of Chicago Press. , p. 4), após exame minucioso do texto de Xenofonte, assim resumiu os trajes ideais do caçador: chiton curto, de cor imperceptível, além de clâmide com as mesmas tonalidades, botas e pétaso. Clâmide e pétaso eram usados, sobretudo, pelos efebos.
  • 10
    As redes, novamente de acordo com Anderson (1985ANDERSON, J. K. (1985). Hunting in the Ancient World. Berkeley, University of California Press., p. 38), eram fabricadas com linho importado de Cartago ou do Mar Negro, indicando, outra vez, o viés aristocrático da cinegética.
  • 11
    Comentário de Marchant no aparato crítico de sua tradução de Xenfonte, pág. 377 nota 2.
  • 12
    Conforme Heródoto (1.192-4), o rei persa possuía exemplares do cão indiano em sua corte na Babilônia, e não seria impossível que alguns fossem dados como presentes a sátrapas da Ásia Menor, aos quais Xenofonte teve acesso (Anderson, 1985ANDERSON, J. K. (1985). Hunting in the Ancient World. Berkeley, University of California Press., p. 49).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    05 Fev 2022
  • Aceito
    29 Maio 2023
Universidade de Brasília / Imprensa da Universidade de Coimbra Universidade de Brasília / Imprensa da Universidade de Coimbra, Campus Darcy Ribeiro, Cátedra UNESCO Archai, CEP: 70910-900, Brasília, DF - Brasil, Tel.: 55-61-3107-7040 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: archai@unb.br