Acessibilidade / Reportar erro

A Constituição dos Atenienses de Pseudo-Xenofonte

Pseudo-Xenophon’s Constitution of the Athenians

Resumo:

A Constituição dos Atenienses é uma pequena obra acerca da politeia de Atenas e das condições que permitem que a democracia permaneça em Atenas como forma de gerenciar a vida da polis. Esta obra representa um problema filológico e historiográfico, porque, embora esteja no corpus das obras de Xenofonte, ela é considerada obra de outro autor, conhecido como Pseudo-Xenofonte ou “Velho Oligarca”. Trata-se de um pamphlet de orientação oligárquica que apresenta Atenas como um mundo ao contrário, em que os piores comandam e os melhores são como escravizados pela multidão ignorante.

Palavras-chave:
Pseudo-Xenofonte; constituição; Atenas; democracia

Abstract:

The Constitution of the Athenians is a short work about the politeia of Athens and the conditions by which Athenian democracy can last as constitutional regime which manages the life of the polis. This work represents both a philological and a historiographical problem, because, even if it was transmitted in the corpus of Xenophon’s work, it is considered to have been written by another author, known as Speudo-Xenophon or “Old Oligarch”. It is an oligarchic pamphlet which presents Athens as an upside down world, where the worst people rule and the best ones are as reduced to slavery by the ignorant multitude.

Keywords:
Pseudo-Xenophon; Constitution; Athens; Democracy

Introdução

A Constituição dos Atenienses (ΑΘΗΝΑΙΩΝ ΠΟΛΙΤΕΙΑ) ocupa um lugar muito particular na prosa ática dos séculos V e IV a.C. Acerca deste texto os estudiosos não concordam sobre o autor, sobre a data de composição, sobre a forma do texto, nem sequer sobre a intenção do texto; sendo esta a situação, este texto configura-se como um quebra-cabeças de não fácil resolução.

Nesta brevíssima introdução limitamo-nos a enunciar, em traços muito gerais, os problemas que este texto levanta para dar também ao leitor não especialista algumas indicações que possam torná-lo mais inteligível.

O termo grego πολιτεία (politeia), que é aqui traduzido por “constituição” - conforme a tradição -, não indica tanto o que nós modernos indicamos com o mesmo termo, porque hoje em dia “constituição” indica o conjunto de normas no qual estão baseadas todas as outras leis, as quais não podem estar em conflito com ela. O termo “politeia” indica, mais propriamente, o “sistema político” com o qual uma cidade se organiza. Temos vários textos com o título “politeia”: a Politeia dos Espartanos de Xenofonte, duas Politeiai de Crítias sobre o sistema político de Esparta, a República de Platão (De republica), título latinizado de politeia, e a Politeia dos Atenienses de Aristóteles. De fato, a política é um “gênero” que atravessa a produção literária grega, da poesia à historiografia. Exemplos podem ser a produção poética de Sólon e o diálogo entre Teseu e o arauto nas Suplicantes, o logos tripolitikós em Heródoto (III 80-2) e até as reflexões médicas de Ares, águas, lugares do corpus hippocraticum e a obra urbanística de Hipódamo de Mileto.

Quanto ao autor e à data de composição não há um acordo geral entre os estudiosos. Se a cronologia estabelecida pela maioria estiver certa, ou seja o último quarto do V século a.C., este texto seria o primeiro exemplo de prosa ática. O dado filológico é que este texto é incluído no corpus das obras de Xenofonte (e por isso fala-se de um Pseudo-Xenofonte), e na antiguidade o único que duvidou da atribuição a Xenofonte foi Demétrio de Magnésia, que junta os dois textos do corpus de Xenofonte, a Constituição dos Atenienses e a Constituição dos Espartanos, indicando-as nesta ordem.1 1 Cfr. DL 2.57 (Ἀγησίλαόν τε καὶ Ἀθηναίων καὶ Λακεδαιμονίων Πολιτείαν); cfr. Serra, 2018, p. XVII.

Na crítica moderna, para a identificação do autor foram avançadas várias propostas: Tucídides, alguém do entourage de Antifonte, Andócides, e o mesmo Crítias; esta última identificação apoia-se em indícios externos ao texto (Serra, 2018SERRA, G. (ed.) (2018). Pseudo-Senofonte. Costituzione degli Ateniesi. Milano, Fondazione Lorenzo Valla-Mondarori., p. XXV-XXVI) e é avançada por último por Luciano Canfora (Canfora, 2018CANFORA, L. (2018). Diamo un nome ad un “vecchio” che forse tale non era. In: SERRA, G. (ed.). Pseudo-Senofonte. Costituzione degli Ateniesi. Milano, Fondazione Lorenzo Valla-Mondarori, p. 199-224., p. 199). Todavia, o nosso autor é conhecido também como o “Velho oligarca”, cuja velhice foi pensada já por Wilamowitz.

O problema central desta obra é a data de composição: a descrição que o autor faz da constituição, da vida pública e a análise da estrutura econômico-política refere-se a uma situação da segunda metade do V século a.C. Todavia, o autor, como alguns estudiosos apontam, pode ter escrito lembrando uma situação histórica precípua para torná-la paradigmática, e isso no mesmo sentido do κτῆμα ἐς αἰεὶ de Tucídides, que quis mostrar as “leis” dos eventos humanos. E da data de composição pode derivar também a resolução do problema da intenção do texto, se este foi escrito com intenção séria ou com intento irônico: decisivo é se a composição posiciona-se antes ou depois da derrota de Atenas na guerra do Peloponeso.

Um status quaestionis acerca das várias propostas para a data está na introdução ao texto em Serra 2018SERRA, G. (ed.) (2018). Pseudo-Senofonte. Costituzione degli Ateniesi. Milano, Fondazione Lorenzo Valla-Mondarori.; mostramos aqui algumas propostas, de modo muito breve, sem entrar nas argumentações que os estudiosos apresentaram, e por isso nos referimos a Serra 2018 do qual propomos aqui brevemente o esquema das propostas de datação dadas pelos estudiosos ao longo da diatribe.

A história das tentativas de datar - e de dar um nome ao autor - começa com Wilhlem Roscher (1841ROSCHER, W. (1841). A. Fuchs. Quaestiones de libris Xenophontis de republica Lacedaemoniorum et de republica Atheniensium, Lipsiae 1828. Göttingische Gelehrte Anzeigen 1841, p. 424-429.), que negava a Xenofonte a paternidade da Constituição dos Atenienses,2 2 Roscher, 1841. indicando em Tucídides o autor, e pensando que este texto tivesse sido escrito antes do 424 a.C. Mazzarino (1965MAZZARINO, S. (1965). Il pensiero storico classico. Vol. 1. Bari, Laterza.) pensava numa data anterior à guerra do Peloponeso, enquanto Bowersock(1968BOWERSOCK, G. W. (1968). Pseudo-Xenophon. The Constitution of the Athenians. In: MARCHANT, E. C.; BOWERSOCK, G. W. Xenophon. Scripta minora. Cambridge, Harvard University Press.) numa data antes de 440/1. Para Marr&Rhodes (2008MARR, J. L.; RHODES, P. J. (2008). The “Old Oligarch”. The Constitution of the Athenians attributed to Xenophon with introduction, translation and commentary. Oxford, Aris & Phillips/Oxbow.), a composição deste texto se colocaria entre os anos 425 e 424, mas com certeza antes do 420. Poucos outros estudiosos propõem uma datação mais baixa, entre 410 e 406, antes da derrota de Atenas, como Fontana (1968FONTANA, M. J. (1968). L’Athenaion Politeia del V secolo a.C. Palermo, [impressão privada].) e Sordi (2002SORDI, M. (2002). L’Athenaion Politeia e Senofonte. Aevum 76, p. 17-24.; 2011). Para Canfora (1991CANFORA L. (ed.) (1991). Anonimo ateniese. La democrazia come violenza. Palermo, Sellerio.), o qual está seguro de que o autor é Crítias, a data mais provável é entre 429 e 424, enquanto, mudando de aviso, Canfora (2018)CANFORA, L. (2018). Diamo un nome ad un “vecchio” che forse tale non era. In: SERRA, G. (ed.). Pseudo-Senofonte. Costituzione degli Ateniesi. Milano, Fondazione Lorenzo Valla-Mondarori, p. 199-224. pensa que Crítias escreve durante o exílio, depois da tentativa de revolução oligárquica de 411 e depois do juramento coletivo durante às Grandes Dionísias (409).

A data de composição é um dado importante, porque pode indicar-nos o escopo do texto. Se, como Luciano Canfora (2018CANFORA, L. (2018). Diamo un nome ad un “vecchio” che forse tale non era. In: SERRA, G. (ed.). Pseudo-Senofonte. Costituzione degli Ateniesi. Milano, Fondazione Lorenzo Valla-Mondarori, p. 199-224.) quer, esta Constituição foi composta por Crítias em exílio, depois do falhado golpe oligárquico de 411, este texto apresenta-se não simplesmente como uma descrição do sistema político de Atenas, mas como um projeto político que visa tomar o poder numa cidade em que o sistema democrático não resulta praticamente desestabilizável. Índice disso seriam as últimas palavras, com as quais o autor nega a possibilidade, no imediato, de subverter a democracia pelos atimoi, os que são privados dos direitos.

Quanto à estrutura do texto, como já foi dito, é debatida a forma do texto, se ela seja uma prosa ou um diálogo. Aqui optamos pela forma não dialógica com a qual Serra (2018SERRA, G. (ed.) (2018). Pseudo-Senofonte. Costituzione degli Ateniesi. Milano, Fondazione Lorenzo Valla-Mondarori.) propõe o texto. Este divide-se em três secções. A primeira, em 20 parágrafos, expõe o sistema democrático, a segunda, de 20 parágrafos, as forças militares e a economia dos “dominadores do mar”, e a terceira, de 12 parágrafos, toma em conta o sistema de tribunais, terminando com uma análise das possibilidades que a democracia seja subvertida.

Caraterística deste texto é que o autor insiste em mostrar que a democracia é um sistema que, por um lado, favorece os piores em dano dos melhores, por outro que aquilo democrático é um sistema quase impossível de abater. Aqui o autor mostra sua peculiaridade, a de reconduzir tudo à política. Ainda mais interessante é a lucidez da análise que junta o dado econômico estrutural ao dado político: sendo a economia ateniense baseada na navegação, e sendo os trabalhadores desta pertencentes ao demos, é inevitável que o poder esteja nas mãos deste ator social, até o ponto que o autor diz que “o demos é lei” (1.18). Atenas, nas palavras deste texto, é apresentada como um mundo ao contrário, cuja única lógica é a manutenção da democracia; e a prova que Atenas seja um mundo ao invés é que em qualquer lugar do mundo o que é melhor (to beltiston) é contrário à democracia (1.5). Na concepção do nosso autor, Atenas inverte as práticas e as normas que todos os outros gregos consideram corretas, apresentando assim uma axiologia em que a dialética entre bom e mau premia o polo negativo que vira princípio e fundamento das leis e da vida civil.

De fato, mesmo no começo, o autor afirma que explicará que os Atenienses “fazem também as outras coisas que parecem erradas aos outros Helenos” (1.1). A crítica à democracia não poderia ser mais forte, e de fato a primeira notação do autor é que em Atenas prevalecem os maus (poneroi) sobre os nobres e os ricos, e a razão disso é que são os maus - identificados com os membros do demos - que movem a economia de Atenas, e por isso é justo que eles tenham os mesmos direitos dos bons e que mandem na cidade.

Em conclusão desta breve introdução à Constituição dos Atenieses, uma notação tem que ser feita acerca da perspectiva em que o autor coloca a dinâmica política de Atenas. Esta perspectiva não deixa nenhuma possibilidade para uma conciliação entre as duas classes de cidadãos - os ricos e os pobres - e é interessante que o autor se refira à eunomia (1.9). Eunomia é o termo utilizado por Sólon, e indica o estabelecimento de uma medida e para os ricos e para os pobres. A eunomia soloniana, portanto, é um elemento de equilíbrio no corpo social, o que não se pode dizer para a eunomia desta Constituição dos Atenienses. Aqui a eunomia, o bom governo, é o governo dos melhores, do qual deriva rapidamente a escravidão para o demos, para os pobres. Esta é uma ressignificação muito importante, porque nos introduz na batalha política do século V e nos deixa entender como entre ricos e pobres não pode ter harmonia. Muito agudamente, Platão, no livro VIII da República, descreve esta situação, afirmando que com a propriedade privada uma cidade nunca será uma, mas sempre duas, uma dos pobres e uma dos ricos, e embora essas ocupem o mesmo lugar, sempre conspiram uma contra a outra (cfr. 551d, e também 422e-423a). É mesmo esta luta que identifica o espaço político delineado pela Constituição dos Atenienses, um campo de batalha onde não há lugar para considerações morais, o que torna o nosso autor uma espécie de Maquiavel ante litteram.

Nota ao texto: a tradução está baseada no texto da edição crítica de Serra 2018SERRA, G. (ed.) (2018). Pseudo-Senofonte. Costituzione degli Ateniesi. Milano, Fondazione Lorenzo Valla-Mondarori..

Tradução

I

1. Acerca da constituição3 3 O termo grego politeia é aqui traduzido por “constituição”, mesmo que não coincida com o que nós modernos chamamos e definimos por constituição. dos Atenienses, o fato de que eles escolheram esta forma de constituição, eu não aprovo por esta razão: porque escolhendo isso eles escolheram que os maus ficassem melhor do que os bons. Mesmo por isso não aprovo. Visto que isto pareceu-lhes assim, explicarei como eles salvaguardam a constituição e fazem também outras coisas que parecem erradas4 4 O verbo hamartanein indica o erro técnico também. aos outros Helenos.

2. Em primeiro lugar eu direi isso: que aqui os maus e os pobres e o demos5 5 Deixamos assim o termo grego demos porque, neste texto, ele indica algo diferente do que em geral imaginamos. Como todos sabem, o termo democracia indicaria o poder (kratos) do povo (demos), no sentido de que o povo (todos os cidadãos) exercem o poder através das instituições democráticas. Neste texto, o termo “demos” não está utilizado somente neste sentido, porque indica também a parte mais pobre da população, a base de consenso do partido democrático, que estava nas mãos da família dos Alcmeônidas. Como destaca Lapini (1997, p. 25), o termo “demos” é utilizado pelo menos em quatro sentidos: 1) a totalidade do povo, e por isso indica o governo democrático, 2) os plebeus, 3) o partido político, 4) o grupo dentro do demos que toma as decisões. acham prevalecer6 6 O sintagma πλέον ἔχειν indica, propriamente, o “ter mais” ou “estar numa condição de superioridade”. Este sintagma é a base do termo πλεονεξία, que indica o “prevalecer sobre alguém”, “ter uma posição de força em relação a alguém”. Este é um dos termos mais importantes do debate ético-político dos séculos V-IV a.C., e é objeto de atenção por parte de Platão sobretudo na República. O conceito de πλεονεξία está a fundamento das sociogonias elaboradas por autores oligárquicos - como é o caso do autor desta Constituição dos Atenienses -, porque individua no desejo de “ter mais” (πλεονεξία) o caráter fundamental da natureza humana, uma natureza - por isso - violenta, que tenta dominar os outros homens e ultrapassar os limites que cada cidadão tem. justamente sobre os nobres e os ricos por esta razão: porque é o demos que move os barcos e confere a potência à cidade; e os timoneiros e os contramestres e os comandantes dos cinquenta remadores e os pilotos de proa e os carpinteiros, estes são os que dão a potência à cidade mais do que os hoplitas, os nobres e os bons. Sendo as coisas assim, parece justo que todos participem nos cargos públicos, no sorteio, assim como na eleição por braço erguido, e que seja possível falar para qualquer um dos cidadãos que queira.

3. Todavia, todos os cargos públicos que, se desempenhados com sucesso, aportam a salvação enquanto, se forem desempenhados sem sucesso, aportariam perigo ao povo todo, nestes cargos o demos não quer participar, nem nas estratégias nem nas hiparquias7 7 A hiparquia era uma formação militar de cavalaria composta por 512 cavaleiros e o cargo de hiparca era eletivo e durava um ano. acham que têm que participar. O demos, de fato, sabe que é mais vantajoso não exercer estes cargos, mas deixar que os exerçam os que têm mais capacidades. Ao contrário, todos os cargos que comportam um subsídio em dinheiro e uma vantagem para a própria casa, estes cargos o demos procura exercer.

4. Em segundo lugar,8 8 Depois do πρῶτον do parágrafo 2. alguns se maravilham com o fato de que eles - em cada caso - atribuem mais aos maus e aos pobres e aos democráticos9 9 O termo δημοτικός indica a parte da população que apoia o partido democrático. do que aos bons; nisso mesmo aparecerá que eles estão salvaguardando a democracia. De fato, os pobres e os incompetentes10 10 O termo grego que traduzimos por “incompetentes” é ἰδιώται. Este termo é de grande importância no debate científico-epistemológico do século V a.C., porque envolve a questão da existência da τέχνη. ἰδιώται significa “leigos”, e indica quem é desprovido de uma competência técnica. Mostrar que há quem é desprovido de competência numa determinada τέχνη é um dos meios para afirmar a existência daquela determinada τέχνη. No tratado Sobre a antiga medicina do corpus hippocraticum, o autor, para afirmar a existência da τέχνη ἰατρική, mostra que entre os profissionais há um diferente grau de competência, o que implica que existe um saber acerca da medicina (cfr. o capítulo 1). e os piores, ficando bem e tornando-se muitos, consolidam a democracia; se, ao contrário, os ricos e os bons ficassem bem, os democráticos tornariam forte11 11 O adjetivo ἰσχυρός, de ἰσχύς, indica a força, e nos mostra que a dialética política na Atenas dos séculos V-IV a.C. era uma dialética da força, em que parece não ter a possibilidade de diálogo e de acordo entre os dois partidos e os dois tipos de homens aos quais cada um deles se referem. a parte oposta a eles.

5. Em cada lugar da terra o melhor é oposto à democracia. Nos melhores, de fato, a intemperança e a injustiça são mínimas, enquanto é grande o zelo para as coisas vantajosas. Por outro lado, no demos são máximas a ignorância,12 12 O termo que aqui traduzimos por “ignorância” é ἀμαθία. Este termo, central na filosofia de Platão, não indica tanto a falta de conhecimento, antes a falta da possibilidade de ter conhecimento. O ἀμαθής é propriamente quem não é capaz de entender sua própria ignorância, e é por isso que é a condição de quem não sabe que não sabe (cfr. Plat. Soph. 229c-230a). a desordem e a maldade. De fato, sobretudo a pobreza os leva para as ações vergonhosas e a falta de educação,13 13 A falta de educação (ἀπαιδευσία) é o marco das pessoas pobres que não têm condição para estudar. e por causa da falta de bens há ignorância em alguns dos homens.

6. Alguém poderia dizer que era preciso não deixar todos falarem um após o outro nem participarem no Conselho,14 14 Aqui trata-se de participar na βουλή, órgão de poder com acesso mais restrito do que a ἐκκλησἰα, esta última aberta à participação de todos os cidadãos. mas dar esta possibilidade somente aos mais expertos e aos homens melhores. Mesmo nisso, todavia, eles tomam a decisão melhor deixando falar também os maus. De fato, se os melhores falassem e decidissem, derivariam vantagens para os homens que lhes são semelhantes, enquanto aos democráticos não. Agora, ao invés, levantando-se para falar quem quiser, se for um homem mau, procurará o bem para si mesmo e para os que lhe são parecidos.15 15 O autor está referindo-se aqui a um ato fundacional da democracia ateniense: a possibilidade de falar livremente na assembleia. Este ato pode ser indicado com dois termos: ἰσηγορια e παρρησία. O primeiro possui um campo semântico mais restrito do que outro, porque indica o aspecto institucional da democracia, tanto que, quando se fala de ἰσηγορια, se está falando de δημοκρατία. O segundo, παρρησία, foi cunhado no âmbito da poesia (a primeira ocorrência é em Eurípides) e indica o mesmo ato, mas tem um campo semântico mais abrangente, incluindo também a franqueza na fala privada. Vejam-se os ensaios Foucault (2016), clássico para os estudiosos de filosofia antiga, e Spina (1986), que dá um quadro mais rigoroso destes dois termos. O que é importante destacar é que o autor utiliza o termo ἰσηγορια, mas não o utiliza aqui: só no parágrafo 12 ocorre duas vezes num contexto em que se trata da “liberdade de fala dos escravos” (na minha opinião, com intenção de menosprezar esta prática, atribuindo-a aos escravos e não aos cidadãos livres).

7. Alguém poderia dizer: poderia conhecer o que é bom para si mesmo e o demos um homem de tal natureza? Todavia, eles sabem que a ignorância, a maldade e o favor deste homem são mais vantajosos do que a virtude, a sabedoria e hostilidade do homem bom.

8. Uma cidade não pode ser a melhor a partir dessas práticas, mas a democracia se salvaria sobretudo deste modo. O demos, de fato, quer não ser ele mesmo escravo numa cidade bem governada, mas ser livre e ter o poder, e pouco lhe importa o mau governo. É do que tu achas não ser bem governado que o demos traz força16 16 De novo aparece a ἰσχύς, a força, para indicar o fato de que a democracia é um tipo de governo violento, como também a oligarquia. e é livre.

9. Se estás procurando o bom governo,17 17 Aqui o termo é εὐνομία, o qual remete à obra legislativa de Sólon, que conseguiu pacificar as lutas entre ricos e pobres e deu estabilidade à sociedade ateniense, mas que tem outro sentido (cfr. a introdução). em primeiro lugar tu verás que são os mais capazes que estabelecem as leis; depois que os bons castigarão os maus e que sempre os bons decidirão acerca da cidade e não deixarão que homens loucos tomem decisões, nem que falem nem que participem na assembleia. Com estas boas práticas o demos cairia na escravidão o mais rápido possível.

10. Em Atenas há a máxima intemperança dos escravos e dos metecos, e não é possível aqui bater em escravos nem este te cederá a passagem: eu explicarei a causa pela qual existe esta prática nesta região. Se fosse hábito que um homem livre batesse em um escravo, um meteco ou um liberto, muitas vezes bateria em um Ateniense achando que seja um escravo. Em relação à roupa, aqui o demos não é por nada melhor do que os escravos e os metecos, e nem em relação ao aspecto exterior <os do demos> são melhores.

11. Se alguém se maravilha disso, ou seja, do fato de que aqui se deixam que os escravos vivam no luxo e que alguns deles conduzam uma vida com magnificência, também isso resultaria claro que agem com razão. Onde a potência naval deriva do dinheiro é necessário ser escravo dos escravos, para lucrar das receitas que eles trazem, e deixá-los irem livres; onde há ricos escravos, aqui mesmo não é vantajoso que o meu escravo te tema. Em Esparta, o meu escravo temer-te-ia. Se o teu escravo me teme, haverá o risco de que ele me dê o seu dinheiro para que ele próprio não corra riscos.

12. Por este motivo demos aos escravos o direito de falar livremente18 18 Aqui aparece o termo ἰσηγορια. para os homens livres assim como aos metecos para os cidadãos; por isso a cidade precisa dos metecos, por causa da grande quantidade das artes19 19 Aqui a polêmica é contra o proliferar das τέχναι, cujo expertos representavam a base de consenso do partido democrático. e da frota. Por isso, plausivelmente, demos o direito de falar livremente também aos metecos.

13. Ao invés, os que aqui se dedicam aos exercícios físicos e à música, o demos destruiu-os, achando que isso não fosse belo, bem sabendo que não pode praticá-los. Nas coregias e nas ginasiarquias e nas trierarquias20 20 A coregia, a ginasiarquia e a trierarquia eram “liturgias”, ou seja, eram serviços que os cidadãos privados ofereciam à cidade suportando os custos. Como se pode entender, estes serviços eram destinados aos ricos que podiam dispor de um grande patrimônio. A coregia consistia em suportar os custos dos coros nas representações dramáticas; a ginasiarquia era uma liturgia que previa a organização das competições atléticas na cidade; a trierarquia indicava o cargo de quem (o trierarca) comandava uma trirreme, suportando também os custos de construção e manutenção dela. sabem que os ricos financiam os coros, enquanto é o demos a ser beneficiado, e que os ricos financiam as competições de ginástica e a fabricação das trirremes, enquanto o povo utiliza as trirremes e participa nas competições. O demos considera justo receber dinheiro também quando canta, corre, dança e navega nos barcos, para que ele ganhe e os ricos se tornem mais pobres; e nos tribunais cuidam não do justo mas do que é vantajoso para eles.

14. Sobre os aliados, o fato de que os Atenienses, se afastando pelo mar, denunciam, perseguem e odeiam os bons, fazem isso sabendo que é necessário que quem manda seja odiado pelo que é mandado, e que, se os ricos e os bons adquirirem força,21 21 De novo a ἰσχύς, com o verbo ἰσχύω. o domínio do demos em Atenas existirá por pouco tempo. Por estas razões privam os bons dos direitos políticos22 22 Esta é a prática da ἀτιμία: o cidadão ateniense atingido por esta sanção podia ser privado de vários direitos (até a perda total destes). e dos bens deles, os exilam e matam enquanto dão mais força aos maus. Os bons entre os Atenienses salvaguardam os bons nas cidades aliadas, sabendo que para eles é bom salvaguardar sempre os bons nas cidades.

15. Poderia dizer-se que a força dos Atenienses é mesmo essa: se os aliados são capazes de pagar o tributo; mas aos democráticos parece ser um bem maior que cada um dos Atenienses tenha o dinheiro dos aliados, enquanto eles só o quanto dá para viver, e que eles trabalhem tanto que não sejam capazes de conspirar.

16. O demos de Atenas parece ter deliberado mal também na seguinte decisão, porque constrange os aliados a vir para Atenas para os processos; todavia, eles, por sua vez, calculam quantos benefícios para o demos dos Atenienses há nesta decisão. Em primeiro lugar, durante um ano pegam o salário das cauções para as contendas; depois, sentados em casa e sem navegar com os barcos, administram as cidades aliadas, salvam os homens do demos e destroem os adversários nos tribunais. Se todos os aliados, ao invés, enfrentassem em casa própria os processos, em quanto são irritados pelos Atenienses, destruiriam dentre eles os que fossem extremamente favoráveis ao demos dos Atenienses.

17. Além desses, o demos dos Atenienses obtém também esses benefícios dos processos aos aliados que são celebrados em Atenas. Em primeiro lugar, uma maior renda da taxa de um por cento para a cidade que se paga no porto do Pireu; depois, se alguém tem uma casa a alugar fica melhor, e se tem uma parelha de animais ou um escravo a fretar recebe mais dinheiro; depois, os arautos ficam melhor por causa das estadias dos aliados.

18. Além disso, se os aliados não viessem para Atenas para os processos, eles honrariam somente os que navegam de Atenas, ou seja os generais, os trierarcas23 23 Para o cargo de trierarca vide nota 20, acima. e os embaixadores, enquanto agora cada um dos aliados é constrangido a bajular o demos dos Atenienses, bem sabendo que, uma vez chegado em Atenas, é preciso dar e obter justiça de nenhum outro se não do demos, o qual é lei em Atenas, e é constrangido a suplicar nos tribunais e a pegar na mão de quem entra. Por isso os aliados tornam-se ainda mais escravos do demos dos Atenienses.

19. Além dessas coisas, por causa das posses nos territórios no exterior e dos cargos exercidos no exterior não se deram conta de que aprenderam a remar, eles mesmos e os servidores. De fato, é necessário que um homem que navega muitas vezes pegue o remo, ele mesmo e seu servidor, e que aprenda os termos empregados na navegação.

20. E tornam-se bons timoneiros através da experiência prática e da prática das navegações. Alguns exercitam-se pilotando um barco de transporte, outros um navio cargueiro, daqui outros passam a comandar as trirremes. A maioria deles seria capaz de pilotar mesmo no momento em que monta num barco, porque treinou durante toda a vida.

II

1. Quanto à força hoplítica deles, que parece estar pouco boa em Atenas, a situação assim se configura: eles acham que são mais fracos e em menor quantidade do que os inimigos; por outro lado são mais fortes também por terra dos aliados, os que pagam o tributo, e acham que a força hoplítica seja suficientemente forte, se são superiores aos aliados.

2. Além disso, a situação para eles é tal também pela sorte. Para os que são dominados na terra é possível combater junto uma vez reunidos, chegando de pequenas cidades, enquanto para os que são dominados no mar, os que são insulares, não é possível juntar as cidades numa única força. O mar, de fato, está no meio, e os que têm poder são os dominadores do mar.24 24 O termo θαλασσοκράτορες remete ao termo θαλασσοκρατία, propriamente o “domínio sobre o mar”,que Atenas exercia. O termo θαλασσοκράτωρ e o verbo θαλασσοκρατεῖν ocorrem em Heródoto (cfr. 3.122; 5.83) e Tucídides (cfr. 7.48.2; 8.30.2; 8.41.1; 8.63.1). E se fosse possível aos insulares convergirem numa ilha só, morreriam de fome.

3. De todas as cidades no continente que estão sob o império dos Atenienses, as grandes são dominadas pelo medo, as pequenas propriamente pela necessidade. De fato, não há nenhuma cidade que não precisa importar ou exportar algo. E estas coisas não lhe serão possíveis se não estiver sujeita aos dominadores do mar.

4. Depois, aos que dominam o mar é possível fazer o que aos que dominam a terra só raras vezes, ou seja, devastar a terra dos que são mais fortes. É possível, de fato, navegar ao longo da costa onde não há nenhum inimigo ou onde há poucos; e se os inimigos se aproximarem, se embarcarem e forem embora navegando; e fazendo isso encontram-se em menos dificuldades do que para quem responde a um ataque de infantaria.

5. Depois, os quem dominam o mar podem se afastar da própria terra por quanto querem navegar, enquanto aos que dominam na terra não é possível ir para fora do próprio território por uma expedição de muitos dias: as marchas são lentas e não é possível ter comida por muito tempo para quem vai a pé; e quem vai a pé tem que atravessar territórios de amigos ou vencer combatendo. Ao invés, quem navega pode descer do barco no ponto da terra onde for mais forte <e não descer onde não o é>, mas navegar ao longo da costa até chegar numa terra amiga ou a inimigos mais fracos do que ele.

6. Depois, os que dominam na terra suportam com dificuldades as doenças dos frutos, as que chegam de Zeus, enquanto os que dominam no mar facilmente: de fato a terra não adoece toda no mesmo momento, de modo que da terra que tem boas colheitas tudo chega aos dominadores do mar.

7. E se devem lembrar-se também as coisas menores, em primeiro lugar, graças ao domínio do mar, eles, mesclando-se reciprocamente com os outros, encontraram maneiras diferentes de se banquetearem: o que há de agradável na Sicília ou na Itália ou em Chipre ou no Egito ou na Lídia ou no Ponto ou no Peloponeso ou em qualquer outro lugar, todas estas coisas encontram-se reunidas num lugar só em virtude do domínio do mar.

8. Depois, escutando todas as línguas, pegaram uma coisa de uma, outra coisa de outra, e enquanto os Gregos usam seus próprios idioma, estilo de vida e vestimenta, os Atenienses usam uma mescla tirada de todos os Gregos e de todos os bárbaros.

9. Quanto a sacrifícios, ritos, festividades e santuários, sabendo que cada um dos pobres não pode sacrificar, banquetear-se, organizar ofertas sagradas, tornar mais linda e grande a cidade, o demos encontrou o modo pelo qual tudo isso pode se realizar. A cidade sacrifica muitas vítimas com despesas públicas, mas é o demos que se banqueteia e partilha as vítimas sacrificais.

10. Quanto a ginásios, banhos, vestiários, alguns ricos possuem-nos privadamente, enquanto o demos privadamente constrói para si mesmo como coisa privada muitas academias, vestiários, salas para banhos, e disso goza mais a multidão do que os poucos e os afortunados.

11. São os únicos capazes de ter a riqueza dos Gregos e dos bárbaros.25 25 Sigo a proposta de Chambry que refere τῶν Ἑλλήνων καὶ τῶν βαρβάρων a τὸν πλοῦτον e não a μόνοι (cfr. Canfora, 2018, p. 218). Traduzindo contra esta proposta, o texto diria “São os únicos dos Gregos e dos bárbaros capazes de ter a riqueza”. De fato, se alguma cidade é rica em madeira para construir barcos, onde a colocará se não obtiver permissão dos que dominam o mar? E então, se alguma cidade é rica em ferro, ou em cobre, ou em linho, onde os colocará se não obtiver permissão dos que dominam o mar? É exatamente por isso que tenho barcos: de um pego a madeira, de um outro o ferro, de outro o cobre, e de outro ainda a cera.

12. Além disso, não permitirão aos nossos adversários exportar essas matérias, ou não utilizarão o mar. E eu, não produzindo nada da terra, tenho todas estas coisas graças ao mar, enquanto nenhuma outra cidade tem dois recursos desses: não há na mesma cidade madeira e linho, mas onde há abundância de linho a região é desolada e sem madeira; nem cobre e ferro provêm da mesma cidade, nem as outras duas ou três matérias de uma cidade só, mas uma provém de uma cidade, outra de outra cidade.

13. Além do mais, ao longo de qualquer terra há um promontório que se evidencia, ou uma ilha que está em frente ou um estreito, de modo que é possível aos dominadores do mar, ancorados num destes lugares, danificar os que habitam o continente.

14. Só de uma coisa são carentes. De fato, se os Atenienses fossem dominadores do mar habitando uma ilha, poderiam causar danos, se quisessem, sem sofrer algum por todo o tempo em que dominassem o mar, e os inimigos não poderiam devastar nem invadir a terra deles. Agora, ao invés, os agricultores e os ricos tentam, mais do que outra coisa, cair nas boas graças dos inimigos, enquanto o demos, porque sabe bem que os inimigos não queimarão ou destruirão nada das coisas dele, vive sem medo e não quer ficar nas boas graças dos inimigos.

15. Além dessas considerações, eles estariam livres de um outro medo, se habitassem numa ilha: a cidade nunca seria entregue por poucos homens, nem as portas seriam abertas nem os inimigos irromperiam. De fato, como poderia acontecer isso, se eles habitassem uma ilha? Se habitassem uma ilha, não poderia haver sublevações contra o demos. Se se rebelassem agora, rebelar-se-iam com esperança nos inimigos: que seriam invadidos por terra. Enquanto que, se habitassem uma ilha, estariam seguros também quanto a isso.

16. Sendo que desde o começo não lhes coube em sorte habitar uma ilha, agora fazem o seguinte: põem em segurança a riqueza nas ilhas, confiando no império que têm sobre o mar, deixam que a terra da Ática seja destruída, sabendo que, se tivessem piedade dela, se privariam de bens maiores.

17. Ademais, para as cidades regidas por um governo oligárquico é necessário manter as alianças e os juramentos. E, se não respeitam os pactos, ou se alguém comete injustiça, os nomes estão entre os poucos que estipularam os pactos.26 26 O locus é corrupto e várias foram as emendas propostas (cfr. a edição de G. Serra, 2018, ad loc.). Aqui traduzo com Canfora 1991, que aceita a emenda de Frisch, para manter o ritmo narrativo. Além das questões filológicas, o sentido do trecho é claro. Numa oligarquia só os poucos podem estipular pactos, e isso significa que, quando se infringe um pacto, os nomes dos que o infringiram estão entre os nomes dos que têm o poder na cidade. Se o demos estipula pactos, atribuindo a causa a um só, quem propõe ou quem a submete a votação pode se defender dizendo “não estava presente nem concordo” aos que são informados dos acordos votados na assembleia pelo demos. E se decidem que os acordos não têm valor, já premeditaram inúmeros pretextos para não fazer o que não querem. E se algo de ruim resultar do que o demos decidiu, o demos considera a causa disso o fato de que pouco homens,27 27 “Poucos homens” seria ὀλίγοι ἄνθρωποι, que pode se referir também aos “oligarcas”, teóricos de um governo composto só por poucos homens. agindo contra ele, causaram a ruína; se, pelo contrário, algo de bom resultar, atribuem o mérito a eles mesmos.

18. Por outro lado, não deixam que o demos seja parodiado na comédia nem que se fale mal dele, para que não tenham uma má reputação; mas incitam a fazer isso contra um indivíduo, se alguém quiser; bem sabendo que quem é parodiado na comédia, como na maioria dos casos, não é um homem do demos nem da multidão, mas ou um rico, ou um nobre, ou um que tenha poder. Poucos dos pobres e do partido democrático são parodiados, e nem estes, pelo menos se não por causa de tecer intrigas e de tentar de prevalecer28 28 Mais uma vez aparece o sintagma πλέον ἔχειν no sentido mesmo de πλεονεξία (já esclarecido acima). sobre o demos, de modo que não se irritam se estes são parodiados nas comédias.

19. Eu mesmo digo que o demos de Atenas sabe quais são bons entre os cidadãos e quais são maus; e mesmo sabendo disso, os homens do demos29 29 No texto o autor coloca o sujeito singular demos, mas depois muda para o plural (sempre se referindo ao demos). Para manter o número dos verbos escolhemos inserir “os homens do demos”, tendo em vista a concordância. são amigos dos que lhe são favoráveis e úteis, mesmo se forem maus, e odeiam sobretudo os bons. Eles consideram a virtude dos bons gerada não para o bem próprio, mas para o dano deles mesmos. Mas tem caso contrário a isso: alguns, que pertencem sem dúvida ao demos, por natureza não são populares.30 30 Traduzimos aqui por “populares” o que antes foi traduzido por “homens do partido democrático”. O termo δημοτικός se refere a duas coisas muito parecidas: a pertença de um homem ao demos no sentido dos costumes, dos hábitos etc.; e a pertença à fação democrática, a base de consenso do partido democrático. A pergunta, sobre esta notação do autor, seria: “quais são estes homens que, mesmo pertencendo ao demos, não partilham os ideais dele?”

20. Eu admito que o demos queira a democracia: é compreensível que cada um faça bem a si mesmo. Todavia, quem, mesmo não pertencendo ao demos, escolhesse viver em uma cidade regida por um governo democrático em vez de uma governada por um governo oligárquico, preparar-se-ia para cometer injustiça, e saberia que, para um criminoso, é possível escapar da justiça em uma cidade regida por uma democracia, melhor do que em uma cidade governada por uma oligarquia.

III

1. Quanto à constituição dos Atenienses, eu não aprovo a forma dela. Todavia, desde que lhes pareceu conveniente viver sob um regime democrático, me parece que salvaguardam bem a democracia, utilizando o modo que eu mostrei.

Vejo ainda alguns que repreendem os Atenienses pelo fato de que algumas vezes o Conselho e o demos não conseguem dar um parecer a um homem que fica esperando por um ano. E isso acontece em Atenas por nenhuma outra razão que não pelo fato de, por causa da multidão de afazeres, mesmo ocupando-se das causas, não são capazes de livrar-se de todos.

2. De fato, como poderiam ser capazes, se mesmo eles, em primeiro lugar, têm que celebrar festividades quantas nenhuma outra das cidades gregas (e nestas festividades há menos possibilidades de liquidar os afazeres da cidade), depois julgar as causas privadas e públicas31 31 O termo δίκη indica o processo instaurado pela parte lesada, aqui traduzido por “causa privada”. O termo γραφή indica o processo instaurado por um cidadão acerca de uma questão que interessa à cidade: o processo contra Sócrates, por exemplo, foi uma γραφή. e os apuramentos financeiros dos magistrados quantos nem todos os Gregos juntos julgam, tendo o Conselho que deliberar em muitos assuntos que pertencem à guerra, muitos assuntos que pertencem às receitas, muitos acerca do estabelecimento de leis, muitos acerca das coisas que sempre acontecem no dia a dia na cidade, muitos relativos aos aliados, e têm que receber o tributo, cuidar dos estaleiros e dos cargos sagrados? Então, o que há para se maravilhar se, com estes afazeres tão exigentes, não são capazes de responder aos homens todos?

3. Alguns dizem: se alguém recorrer ao Conselho ou ao demos com dinheiro, conseguirá tramitação. Eu poderia concordar que em Atenas muitas coisas se resolvem com o dinheiro, e ainda mais se resolveriam se houvesse mais pessoas a quem dar dinheiro. Isso em particular eu sei bem: que a cidade não consegue resolver tudo por causa da multidão dos requerentes, por quanto ouro e prata se possam dar aos funcionários.

4. Devem-se julgar os seguintes casos: se alguém não repara o barco ou constrói sobre terreno público; e depois resolver as questões sobre os coregos para as festas dionisíacas, targélias, panateneias, prometeias e heféstias32 32 As dionisíacas, as targélias, as panateneias, as prometeias e as heféstias eram festas religiosas ligadas a determinadas divindades ou à época do ano em que eram celebradas. As dionisíacas eram dedicadas a Dioniso (e previam representações dramáticas), as targélias eram celebradas no sexto e no sétimo dia do mês de Targelión (entre maio e junho), as prometeias eram celebradas em honra a Prometeu, e as heféstias em honra a Hefesto. todos os anos, e nomear os quatrocentos trierarcas a cada ano, e todos os anos dar satisfação aos que querem esses cargos, e além disso devem-se avaliar os cargos dos magistrados e julgar, analisar os órfãos e nomear os guardas das prisões.

5. Estas tarefas apresentam-se a cada ano, mas de vez em quando devem-se julgar os processos contra os generais, se há um crime súbito ou se alguns cometem uma violência insólita ou um ato sacrílego, desleixo e ainda muitas coisas. Todavia, as coisas mais importantes foram ditas, exceto as regulamentações dos tributos, o que se dá em geral a cada quatro anos. Então escutem: não acham que se devem julgar todas estas práticas?

6. Que se diga o que não se deve julgar aqui! Todavia, se há que concordar com o fato de que se devem julgá-las todas, é necessário que se faça isso o ano todo, quando nem agora, julgando o ano todo, conseguem parar os que cometem crimes por causa da grande quantidade da população.

7. Então, dir-se-á que se deve julgar, mas têm que ser menos a julgar. Então, necessariamente, se não reduzem os tribunais, serão poucos em cada tribunal, de modo que será fácil se preparar para os juízes e corrompê-los todos e julgar muito menos justamente.

8. Além disso, deve-se também pensar que os Atenienses também têm que celebrar festas, nas quais não é possível julgar, e eles celebram o dobro das festas que os outros celebram: mas eu posso admitir que celebram festas de número igual à cidade que celebra menos festas.

Sendo as coisas desse modo, eu afirmo que em Atenas as coisas não podem estar de outra forma do que agora, exceto se pouco a pouco fosse possível tirar ou adicionar algo; não podem fazer-se grandes mudanças sem tirar algo da democracia.

9. Podem-se encontrar de fato muitos modos para melhorar a constituição, e fazer com que a democracia permaneça; mas encontrar isso de uma maneira que seja suficiente na medida em que os Atenienses tenham uma constituição melhor, não é fácil, a não ser que, como acabei de dizer, pouco a pouco se tire e se adicione algo.

10. Todavia, me parece que os Atenienses nem isso deliberam corretamente, pelo fato de que escolhem os piores nas cidades onde há guerra civil. Todavia, eles fazem isso com razão. De fato, se eles escolhessem os melhores, escolheriam não os que têm as mesmas opiniões deles: em nenhuma cidade, de fato, os melhores são favoráveis ao demos, mas em qualquer cidade a parte pior é favorável ao demos. De fato, os semelhantes são favoráveis aos semelhantes;33 33 Este princípio, conhecido no Latim por similia similibus, é um dos assuntos mais compartilhados na cultura grega, da física à política. por isso os Atenienses escolhem o que lhes convém.

11. Todas as vezes em que escolheram os melhores, não obtiveram nenhum benefício; mas em pouco tempo o demos foi reduzido à escravidão. O mesmo quando escolheram os melhores dos Beócios: em pouco tempo na Beócia o demos foi reduzido em escravidão. O mesmo também quando escolheram apoiar os melhores dos Milésios: em pouco tempo estes revoltaram-se e massacraram o demos. E ainda, quando escolheram ajudar os Espartanos contra os Messênios: em pouco tempo, os Espartanos, depois de submeterem os Messênios, entraram em guerra contra os Atenienses.

12. Alguém poderia pensar que em Atenas ninguém seja injustamente privado dos direitos, mas eu digo que há alguns, mas poucos, que foram injustamente privados dos direitos. Mas não podem ser poucos para derrotar a democracia em Atenas. Pois as coisas estão assim: não se interessam pelos homens justamente privados dos direitos, mas só se alguém foi privado deles injustamente.

13. Como se poderia pensar que em Atenas muitos foram privados dos direitos, onde quem ocupa os cargos das magistraturas é o demos? Do fato de não se exercer justamente as magistraturas, de se não dizer nem fazer as coisas justas, por tais coisas os homens são privados dos direitos em Atenas. Considerando estas coisas, é preciso não pensar que em Atenas haja um perigo da parte dos homens privados dos direitos.

Bibliografia

  • BOWERSOCK, G. W. (1968). Pseudo-Xenophon. The Constitution of the Athenians In: MARCHANT, E. C.; BOWERSOCK, G. W. Xenophon. Scripta minora Cambridge, Harvard University Press.
  • CANFORA L. (ed.) (1991). Anonimo ateniese. La democrazia come violenza Palermo, Sellerio.
  • CANFORA, L. (2018). Diamo un nome ad un “vecchio” che forse tale non era. In: SERRA, G. (ed.). Pseudo-Senofonte. Costituzione degli Ateniesi Milano, Fondazione Lorenzo Valla-Mondarori, p. 199-224.
  • CENTANNI, M. (2011). La nascita della politica: la Costituzione di Atene Venezia, Libreria Editrice Cafoscariana.
  • DAKYNS, H. G. (1971). Pseudo-Xenophon. Constitution of the Athenians In: LEWIS, N.. The fifth Century B.C. Toronto, A.M. Hakkert, p. 51-63.
  • FONTANA, M. J. (1968). L’Athenaion Politeia del V secolo a.C Palermo, [impressão privada].
  • FONTANA, M. J. (ed.) (1969). La Costituzione degli Ateniesi Palermo, Palumbo.
  • FOUCAULT, M. (2016). Discours et vérité : précédé de La parrêsia Paris, Vrin.
  • FRISCH, H. (1942). The Constitution of the Athenians A Philological-historical Analysis of Pseudo-Xenophon’s treatise De republica Atheniensium København, Gyldendalske Boghandel-Nordisk Forlag.
  • GALIANO, M. F. (1971). Pseudo-Jenofonte. La República de los Atenienses 2ed. Madrid, Instituto de Estudios Políticos. (1ed 1951).
  • GIGANTE, M. (1953). La “Costituzione degli Ateniesi” Studi sullo Pseudo-Senofonte. Napoli, Giannini.
  • GRAY, V. J. (ed.) (2007). Xenophon. On government Cambridge, Cambridge University Press.
  • JOYAL, M. (2002). [Xenophon]’s Constitution of the Athenians Bryn Mawr, Bryn Mawr Commentaries.
  • KALINKA, E. (1913). Die pseudoxenophontische Ἀθηναίων πολιτεία Einleitung, Übersetzung, Erklärung. Leipzig/Berlin, Teubner.
  • KALINKA, E. (ed.) (1914). Xenophontis qui inscribitur libellus Ἀθηναίων πολιτεία Lipsiae, Teubneri.
  • KIRCHHOFF, A. (1889). Xenophontis qui fertur libellus de republica Atheniensium 3ed. Berolini, Wilhelmum Hertz.
  • LAPINI, W. (1997). Commento all’Athenaion politeia dello Pseudo-Senofonte Firenze, Pubblicazioni dell’Istituto Giorgio Pasquali dell’Università di Firenze.
  • LEDUC, C. (1976). La Constitution d’Athènes attribuée à Xénophon Traduction et commentaire. Paris, Les Belles Lettres.
  • LENFANT, D. (2017). Pseudo-Xénophon. La Constitution des Athéniens Texte édité, traduit et commenté. Paris, Les Belles Lettres.
  • MARCHANT, E. C. (ed.) (1920). Xenophontis Opuscula Oxonii, e typographeo clarendoniano.
  • MARR, J. L.; RHODES, P. J. (2008). The “Old Oligarch”. The Constitution of the Athenians attributed to Xenophon with introduction, translation and commentary. Oxford, Aris & Phillips/Oxbow.
  • MAZZARINO, S. (1965). Il pensiero storico classico Vol. 1. Bari, Laterza.
  • MOORE, J. M. (2010). Aristotle and Xenophon on democracy and oligarchy Aristotle’s The Constitution of Athens, Xenophon’s The Politeia of the Spartans, The Constitution of the Athenians ascribed to Xenophon the orator, The Boeotian Constitution from the Oxyrhynchus historian. Translations, introduction and commentary. 2ed. Berkeley, University of California Press. (1ed 1983)
  • MÜLLER-STRÜBING, H. (1884). Die attische Schrift vom Staat der Athener Philologus, Vierter supplementum band, p. 1-188.
  • OSBORNE, R. (2004). The Old Oligarch. Pseudo-Xenophon’s Constitution of the Athenians Introduction, translation and commentary. London, The London Association of Classical Teachers. (1ed 1968).
  • RAMÍREZ VIDAL, G. (trad.) (2005). Jenofonte. La constitución de los Atenienses Mexico, Universidad Nacional Autónoma de México.
  • ROSCHER, W. (1841). A. Fuchs. Quaestiones de libris Xenophontis de republica Lacedaemoniorum et de republica Atheniensium, Lipsiae 1828. Göttingische Gelehrte Anzeigen 1841, p. 424-429.
  • SERRA, G. (1979). La Costituzione degli Ateniesi dello Pseudo-Senofonte Testo e traduzione. Roma, L’Erma di Bretschneider.
  • SERRA, G. (ed.) (2018). Pseudo-Senofonte. Costituzione degli Ateniesi Milano, Fondazione Lorenzo Valla-Mondarori.
  • SORDI, M. (2002). L’Athenaion Politeia e Senofonte. Aevum 76, p. 17-24.
  • SORDI, M. (2011). La nautike dynamis in Senofonte dall’Athenaion Politeia ai Poroi Historiká 2011, n. 1, p. 11-20.
  • SPINA, L. (1986). Il cittadino alla tribuna: diritto e libertà di parola nell’Atene democratica Napoli, Liguori.
  • WEBER, G. (2010). Pseudo-Xenophon. Die Verfassung der Athener. Herausgegeben, eingeleitet und übersetzt. Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft.
  • 1
    Cfr. DL 2.57 (Ἀγησίλαόν τε καὶ Ἀθηναίων καὶ Λακεδαιμονίων Πολιτείαν); cfr. Serra, 2018SERRA, G. (ed.) (2018). Pseudo-Senofonte. Costituzione degli Ateniesi. Milano, Fondazione Lorenzo Valla-Mondarori., p. XVII.
  • 2
    Roscher, 1841ROSCHER, W. (1841). A. Fuchs. Quaestiones de libris Xenophontis de republica Lacedaemoniorum et de republica Atheniensium, Lipsiae 1828. Göttingische Gelehrte Anzeigen 1841, p. 424-429..
  • 3
    O termo grego politeia é aqui traduzido por “constituição”, mesmo que não coincida com o que nós modernos chamamos e definimos por constituição.
  • 4
    O verbo hamartanein indica o erro técnico também.
  • 5
    Deixamos assim o termo grego demos porque, neste texto, ele indica algo diferente do que em geral imaginamos. Como todos sabem, o termo democracia indicaria o poder (kratos) do povo (demos), no sentido de que o povo (todos os cidadãos) exercem o poder através das instituições democráticas. Neste texto, o termo “demos” não está utilizado somente neste sentido, porque indica também a parte mais pobre da população, a base de consenso do partido democrático, que estava nas mãos da família dos Alcmeônidas. Como destaca Lapini (1997LAPINI, W. (1997). Commento all’Athenaion politeia dello Pseudo-Senofonte. Firenze, Pubblicazioni dell’Istituto Giorgio Pasquali dell’Università di Firenze., p. 25), o termo “demos” é utilizado pelo menos em quatro sentidos: 1) a totalidade do povo, e por isso indica o governo democrático, 2) os plebeus, 3) o partido político, 4) o grupo dentro do demos que toma as decisões.
  • 6
    O sintagma πλέον ἔχειν indica, propriamente, o “ter mais” ou “estar numa condição de superioridade”. Este sintagma é a base do termo πλεονεξία, que indica o “prevalecer sobre alguém”, “ter uma posição de força em relação a alguém”. Este é um dos termos mais importantes do debate ético-político dos séculos V-IV a.C., e é objeto de atenção por parte de Platão sobretudo na República. O conceito de πλεονεξία está a fundamento das sociogonias elaboradas por autores oligárquicos - como é o caso do autor desta Constituição dos Atenienses -, porque individua no desejo de “ter mais” (πλεονεξία) o caráter fundamental da natureza humana, uma natureza - por isso - violenta, que tenta dominar os outros homens e ultrapassar os limites que cada cidadão tem.
  • 7
    A hiparquia era uma formação militar de cavalaria composta por 512 cavaleiros e o cargo de hiparca era eletivo e durava um ano.
  • 8
    Depois do πρῶτον do parágrafo 2.
  • 9
    O termo δημοτικός indica a parte da população que apoia o partido democrático.
  • 10
    O termo grego que traduzimos por “incompetentes” é ἰδιώται. Este termo é de grande importância no debate científico-epistemológico do século V a.C., porque envolve a questão da existência da τέχνη. ἰδιώται significa “leigos”, e indica quem é desprovido de uma competência técnica. Mostrar que há quem é desprovido de competência numa determinada τέχνη é um dos meios para afirmar a existência daquela determinada τέχνη. No tratado Sobre a antiga medicina do corpus hippocraticum, o autor, para afirmar a existência da τέχνη ἰατρική, mostra que entre os profissionais há um diferente grau de competência, o que implica que existe um saber acerca da medicina (cfr. o capítulo 1).
  • 11
    O adjetivo ἰσχυρός, de ἰσχύς, indica a força, e nos mostra que a dialética política na Atenas dos séculos V-IV a.C. era uma dialética da força, em que parece não ter a possibilidade de diálogo e de acordo entre os dois partidos e os dois tipos de homens aos quais cada um deles se referem.
  • 12
    O termo que aqui traduzimos por “ignorância” é ἀμαθία. Este termo, central na filosofia de Platão, não indica tanto a falta de conhecimento, antes a falta da possibilidade de ter conhecimento. O ἀμαθής é propriamente quem não é capaz de entender sua própria ignorância, e é por isso que é a condição de quem não sabe que não sabe (cfr. Plat. Soph. 229c-230a).
  • 13
    A falta de educação (ἀπαιδευσία) é o marco das pessoas pobres que não têm condição para estudar.
  • 14
    Aqui trata-se de participar na βουλή, órgão de poder com acesso mais restrito do que a ἐκκλησἰα, esta última aberta à participação de todos os cidadãos.
  • 15
    O autor está referindo-se aqui a um ato fundacional da democracia ateniense: a possibilidade de falar livremente na assembleia. Este ato pode ser indicado com dois termos: ἰσηγορια e παρρησία. O primeiro possui um campo semântico mais restrito do que outro, porque indica o aspecto institucional da democracia, tanto que, quando se fala de ἰσηγορια, se está falando de δημοκρατία. O segundo, παρρησία, foi cunhado no âmbito da poesia (a primeira ocorrência é em Eurípides) e indica o mesmo ato, mas tem um campo semântico mais abrangente, incluindo também a franqueza na fala privada. Vejam-se os ensaios Foucault (2016FOUCAULT, M. (2016). Discours et vérité : précédé de La parrêsia. Paris, Vrin.), clássico para os estudiosos de filosofia antiga, e Spina (1986SPINA, L. (1986). Il cittadino alla tribuna: diritto e libertà di parola nell’Atene democratica. Napoli, Liguori.), que dá um quadro mais rigoroso destes dois termos. O que é importante destacar é que o autor utiliza o termo ἰσηγορια, mas não o utiliza aqui: só no parágrafo 12 ocorre duas vezes num contexto em que se trata da “liberdade de fala dos escravos” (na minha opinião, com intenção de menosprezar esta prática, atribuindo-a aos escravos e não aos cidadãos livres).
  • 16
    De novo aparece a ἰσχύς, a força, para indicar o fato de que a democracia é um tipo de governo violento, como também a oligarquia.
  • 17
    Aqui o termo é εὐνομία, o qual remete à obra legislativa de Sólon, que conseguiu pacificar as lutas entre ricos e pobres e deu estabilidade à sociedade ateniense, mas que tem outro sentido (cfr. a introdução).
  • 18
    Aqui aparece o termo ἰσηγορια.
  • 19
    Aqui a polêmica é contra o proliferar das τέχναι, cujo expertos representavam a base de consenso do partido democrático.
  • 20
    A coregia, a ginasiarquia e a trierarquia eram “liturgias”, ou seja, eram serviços que os cidadãos privados ofereciam à cidade suportando os custos. Como se pode entender, estes serviços eram destinados aos ricos que podiam dispor de um grande patrimônio. A coregia consistia em suportar os custos dos coros nas representações dramáticas; a ginasiarquia era uma liturgia que previa a organização das competições atléticas na cidade; a trierarquia indicava o cargo de quem (o trierarca) comandava uma trirreme, suportando também os custos de construção e manutenção dela.
  • 21
    De novo a ἰσχύς, com o verbo ἰσχύω.
  • 22
    Esta é a prática da ἀτιμία: o cidadão ateniense atingido por esta sanção podia ser privado de vários direitos (até a perda total destes).
  • 23
    Para o cargo de trierarca vide nota 20, acima.
  • 24
    O termo θαλασσοκράτορες remete ao termo θαλασσοκρατία, propriamente o “domínio sobre o mar”,que Atenas exercia. O termo θαλασσοκράτωρ e o verbo θαλασσοκρατεῖν ocorrem em Heródoto (cfr. 3.122; 5.83) e Tucídides (cfr. 7.48.2; 8.30.2; 8.41.1; 8.63.1).
  • 25
    Sigo a proposta de Chambry que refere τῶν Ἑλλήνων καὶ τῶν βαρβάρων a τὸν πλοῦτον e não a μόνοι (cfr. Canfora, 2018CANFORA, L. (2018). Diamo un nome ad un “vecchio” che forse tale non era. In: SERRA, G. (ed.). Pseudo-Senofonte. Costituzione degli Ateniesi. Milano, Fondazione Lorenzo Valla-Mondarori, p. 199-224., p. 218). Traduzindo contra esta proposta, o texto diria “São os únicos dos Gregos e dos bárbaros capazes de ter a riqueza”.
  • 26
    O locus é corrupto e várias foram as emendas propostas (cfr. a edição de G. Serra, 2018SERRA, G. (ed.) (2018). Pseudo-Senofonte. Costituzione degli Ateniesi. Milano, Fondazione Lorenzo Valla-Mondarori., ad loc.). Aqui traduzo com Canfora 1991CANFORA L. (ed.) (1991). Anonimo ateniese. La democrazia come violenza. Palermo, Sellerio., que aceita a emenda de Frisch, para manter o ritmo narrativo. Além das questões filológicas, o sentido do trecho é claro. Numa oligarquia só os poucos podem estipular pactos, e isso significa que, quando se infringe um pacto, os nomes dos que o infringiram estão entre os nomes dos que têm o poder na cidade.
  • 27
    “Poucos homens” seria ὀλίγοι ἄνθρωποι, que pode se referir também aos “oligarcas”, teóricos de um governo composto só por poucos homens.
  • 28
    Mais uma vez aparece o sintagma πλέον ἔχειν no sentido mesmo de πλεονεξία (já esclarecido acima).
  • 29
    No texto o autor coloca o sujeito singular demos, mas depois muda para o plural (sempre se referindo ao demos). Para manter o número dos verbos escolhemos inserir “os homens do demos”, tendo em vista a concordância.
  • 30
    Traduzimos aqui por “populares” o que antes foi traduzido por “homens do partido democrático”. O termo δημοτικός se refere a duas coisas muito parecidas: a pertença de um homem ao demos no sentido dos costumes, dos hábitos etc.; e a pertença à fação democrática, a base de consenso do partido democrático. A pergunta, sobre esta notação do autor, seria: “quais são estes homens que, mesmo pertencendo ao demos, não partilham os ideais dele?”
  • 31
    O termo δίκη indica o processo instaurado pela parte lesada, aqui traduzido por “causa privada”. O termo γραφή indica o processo instaurado por um cidadão acerca de uma questão que interessa à cidade: o processo contra Sócrates, por exemplo, foi uma γραφή.
  • 32
    As dionisíacas, as targélias, as panateneias, as prometeias e as heféstias eram festas religiosas ligadas a determinadas divindades ou à época do ano em que eram celebradas. As dionisíacas eram dedicadas a Dioniso (e previam representações dramáticas), as targélias eram celebradas no sexto e no sétimo dia do mês de Targelión (entre maio e junho), as prometeias eram celebradas em honra a Prometeu, e as heféstias em honra a Hefesto.
  • 33
    Este princípio, conhecido no Latim por similia similibus, é um dos assuntos mais compartilhados na cultura grega, da física à política.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    16 Set 2019
  • Aceito
    18 Set 2019
Universidade de Brasília / Imprensa da Universidade de Coimbra Universidade de Brasília / Imprensa da Universidade de Coimbra, Campus Darcy Ribeiro, Cátedra UNESCO Archai, CEP: 70910-900, Brasília, DF - Brasil, Tel.: 55-61-3107-7040 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: archai@unb.br