Acessibilidade / Reportar erro

Lições de anatomia: do corpo eterno à eternidade do corpo

Anatomy Lessons: from the Eternal Body to the Body’s Eternity

Lecciones de anatomía: de lo cuerpo eterno hasta la eternidad del cuerpo

Resumos

As duas pinturas de Rembrandt van Rijn (1606-1669) nas quais o artista holandês retrata lições de anatomia em 1632 e 1656 revelam limitações que a leitura de uma obra de arte pode impor ao olhar contemporâneo se nos ativermos apenas ao universo de nossa subjetividade, ignorando o panorama histórico no qual tais representações foram criadas. A partir dessa constatação aparentemente óbvia, o presente trabalho pretende apontar os parâmetros clássicos que determinaram a longa tradição das práticas anatômicas e alguns de seus desdobramentos contemporâneos, com especial enfoque nos trabalhos do polêmico artista, ou seria melhor dizer, médico e anatomista alemão Gunther Von Hagens. Como no Atlas Mnemosyne , de Aby Warburg, a associação de imagens estrutura o eixo das reflexões.

anatomia; dissecação; corpo; clássico; contemporâneo


The paintings by Rembrandt van Rijn (1606-1669) in which the Dutch artist portrays anatomy lessons in 1632 and 1656 reveal the limitations that the interpretation of a work of art can impose on the contemporary outlook if we stick only to the realm of our own subjectivity, ignoring the historical context of creation of such representations. Based on this apparently obvious remark, the present work intends to point out the classic parameters that determined the long tradition of anatomical practices and some of its contemporary developments, focusing specially on works of the controversial artist, or should we say German physician and anatomist Gunther Von Hagens. As in Aby Warburg’s Atlas Mnemosyne , the association of images represents the axis of reflection.

Anatomy; Dissection; Body; Classic; Contemporary


Las dos pinturas de Rembrandt van Rijn (1606-1669) en las cuales el artista holandés retrata lecciones de anatomía en 1632 y 1656 revelan limitaciones que la interpretación de una obra puede imponer a la mirada contemporánea si nos atenemos al universo de nuestra subjetividad simplemente y ignoramos el panorama histórico en lo cual esas representaciones fueron creadas. Partiendo de esa constatación aparentemente obvia, este trabajo intenta señalar los parámetros clásicos que han determinado la larga tradición de las prácticas anatómicas y algunos de sus desdoblamientos contemporáneos, enfocando trabajos del polémico artista, o deberíamos decir médico y anatomista alemán Gunther Von Hagens. Como en el Atlas Mnemosyne , de Aby Warburg, la asociación de imágenes estructura el axis de las reflexiones.

anatomía; disecación; cuerpo; clásico; contemporáneo


I. Humores e dissecação

Como podemos ler no texto “Dissecação e anatomia”, de Rafael Mandressi (2010)MANDRESSI, Rafael. Dissecação e anatomia. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do corpo: Da Renascença às luzes / trad. Lúcia M. E. Orth; revisão da tradução Ephrain Ferreira Alves. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010, v.1, cap. 6. pp. 411-440. , ocorre um crescente interesse pela dissecação de cadáveres a partir dos séculos XII e XIII, inicialmente motivada por uma curiosidade anatômica e que se intensificaria como procedimento a partir do século XVI.

Foi mais ou menos no fim da Idade Média que se começou, na Europa, a abrir cadáveres humanos para o estudo da anatomia. Isto não se fazia desde o século III a.C., quando dissecações humanas – as únicas que o mundo antigo conheceu – foram feitas em Alexandria. (Ibidem, p. 411)

O que nos interessa desse texto é o que irá perdurar até pelo menos o século XIX, ou seja, a influência de Claudio Galeno (131-200), médico e filósofo romano de origem grega, preservada particularmente pela tradução de sua obra De usu partium corporis humani . Nela, Galeno explica o funcionamento do corpo humano, subordinando a saúde e a doença à ação de quatro humores: “Na teoria humoral, o corpo é constituído de quatro humores fundamentais: o sangue, a pituíta ou fleugma, a bílis amarela e a bílis escura.” (Ibidem, p. 438)

Olivier Faure (2010), em “O olhar dos médicos”, reforça a ideia de uma íntima relação entre as representações do corpo na medicina e o contexto de uma dada sociedade.

Mais que isso, derivada da medicina antiga, a representação de um corpo essencialmente composto por quatro humores (o sangue, a bílis, a fleuma e a atrabílis, ou bílis negra), penetrou fortemente o corpo social. Lê-se abertamente nas correspondências e registros íntimos do século XVIII o caráter dominante da representação humoral do corpo. (Ibidem, p. 17)

É interessante perceber como as obras da antiguidade pagã estão presentes como fontes de referências em todas as áreas do conhecimento durante o Renascimento e depois. A influência da medicina humoral de Galeno, por exemplo, irá perdurar até que uma concepção mecanicista e vitalista do corpo humano, própria do pensamento cartesiano do Iluminismo e a ele adequada, comece a configurar uma nova representação do universo. Nesse contexto, em que as duas concepções médicas do corpo passam a coexistir e se misturar (Ibidem), temos a formulação e a definição dos estados nacionais, o que irá favorecer o desenvolvimento e a institucionalização da medicina clínica.

Segundo Mandressi (2010)MANDRESSI, Rafael. Dissecação e anatomia. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do corpo: Da Renascença às luzes / trad. Lúcia M. E. Orth; revisão da tradução Ephrain Ferreira Alves. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010, v.1, cap. 6. pp. 411-440. , as orientações de Galeno não ensinam apenas o modo de ver, mas também o que ver, misturando ciência e crença como resultado de uma evidente impossibilidade contextual. Desse modo, as dissecações têm apenas um caráter demonstrativo-descritivo; queremos dizer, de posse de traduções e desdobramentos da obra clássica de Galeno, segue-se um procedimento pré-determinado que não revela nada além do estabelecido – intuitivamente e sem qualquer confirmação científica – muitos séculos antes.

No campo das artes visuais vale lembrar o longo caminho que liga essas primeiras dissecações, desde antes do Renascimento e seus manuais de anatomia, passando pelo mórbido Honoré Fragonard (1732-1799), no século XVIII, aos nossos dias de polêmicas alimentadas pela plastinação, técnica criada e patenteada nos anos 1970 e desenvolvida até o presente pelo anatomista alemão Gunther Von Hagens1 1 . “Dono da empresa sediada em Heidelberg - BIODUR™, que comercializa os equipamentos e os polímeros utilizados na técnica de plastinização e também um Instituto onde põe em prática o trabalho de conservação e fixação das peças anatômicas.” ( REBOLLO, 2003 , p. 101). Sob críticas da Igreja Protestante e da Sociedade de Anatomia da Alemanha, foi inaugurado, em 18 de fevereiro de 2015, o Menschen Museum (Museu Humano, em tradução livre), na cidade de Berlim, a primeira exposição permanente dos corpos plastinizados de Hagens. Disponível em: https://bodyworlds.com/city/berlin/ . Acesso em: 17 jul. 2020. .

II. De Galeno a Gunther Von Hagens: anatomias de uma tradição

Como mencionamos acima, o pensamento do médico e filósofo romano Claudio Galeno exerceria a maior influência já vista no campo da medicina no Ocidente. A leitura da obra de Galeno, baseada na teoria humoral, forneceria uma hierárquica estrutura2 2 . “O professor comandava seu desenrolar, lia e comentava os escritos de autoridades do alto de sua cátedra. Ele era secundado por um demonstrator, que fazia os assistentes ver o que o mestre explicava, enquanto a preparação do cadáver era em geral confiada a um cirurgião ou um barbeiro.” ( MANDRESSI, 2010 , p. 414); “[...] o ensino universitário da anatomia entre o século XIV e a metade do século XVI consistia na leitura de um texto pelo professor para os alunos, geralmente o pequeno e prático Anathomia de Mondino dei Liucci, seguido no século XVI por textos de Galeno, enquanto um assistente, usualmente um cirurgião iletrado, mostrava junto do cadáver as estruturas descritas nesse texto.” ( KICKHÖFEL, 2003 , p. 391). para as dissecações públicas, desde sua retomada na Idade Média até o século XVI ( MANDRESSI, 2010MANDRESSI, Rafael. Dissecação e anatomia. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do corpo: Da Renascença às luzes / trad. Lúcia M. E. Orth; revisão da tradução Ephrain Ferreira Alves. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010, v.1, cap. 6. pp. 411-440. , p. 414), período no qual André Vesálio (1514-1564) propõe algumas mudanças significativas para a prática anatômica ( VESALIUS, 1543VESALIUS, Andreas. De humani corporis fabrica libri septem. HISTORICAL ANATOMIES ON THE WEB. Basel: Johannes Oporinus, 1543. Diposnível em: http://www.nlm.nih.gov/exhibition/historicalanatomies/vesalius_home.html. Acesso: 25 jan. 2020
http://www.nlm.nih.gov/exhibition/histor...
).

Eduardo Henrique Peiruque Kickhöfel (2003KICKHÖFEL, Eduardo Henrique Peiruque. A licão de anatomia de Andreas Vesalius e a ciência moderna. Scientiae Studia. 1(3), 2003, pp. 389-404. , pp. 389-404) aponta o nome de Vesálio como um dos responsáveis por, no Renascimento, divulgar e ampliar o conhecimento da obra de Claudio Galeno, tendo importância também por insistir no estudo e no ensino anatômico, que restituía aos médicos-professores o comando das dissecações, indispensável ao desenvolvimento daquela prática, até então restrita a uma tradição em que o professor apenas expunha aos alunos algo que já estava estabelecido nos textos clássicos ( figura 1 ). Também Mandressi (Op. cit., pp 425-427) explicita o condicionamento das dissecações no século XVI aos textos clássicos, os quais ensinavam, como já dissemos, o modo de ver e também o que ver.

Figura 1
Johannes de Kethan, Cena de Dissecação , 1494. Publicado em Fasiculo de medicina. Veneza: Zuane & Gregorio di Gregorii, 1494. Disponível em: https://www.nlm.nih.gov/exhibition/historicalanatomies/ketham_home.html . Acesso em: 30 jan. 2020.

Visto que considera Leonardo da Vinci (1452-1519) uma exceção de alcance limitado à sua época, Daniel Arasse3 3 . Arasse (2010 , p. 567) refere-se às qualidades de Leonardo, que baseava grande parte de seu conhecimento na observação direta; no entanto, não deixa de frisar a liberdade a que o artista se permite “[...] em inventar anatomias prováveis para satisfazer a necessidade da própria representação, quando a observação não foi possível”. refere-se a Vesálio como “o grande iniciador da anatomia moderna” ( ARASSE, 2010ARASSE, Daniel. A carne, a graça, o sublime. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do corpo: Da Renascença às luzes / trad. Lúcia M. E. Orth; revisão da tradução Ephrain Ferreira Alves. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010, v.1, pp. 535-620. , p. 570), por meio de seu De humani corporis fábrica , publicado em 1543, cujas ilustrações foram atribuídas por Vasari ao pintor e gravador flamengo Sthephan van Calcar4 4 . A partir da indicação de Arasse (2010 , p. 567, nota 66), chegamos a um antiquário italiano que possuía duas gravuras da célebre publicação de Vesálio. Na nota explicativa da gravura, o antiquário faz a mesma referência a Tiziano e la silografia veneziana del Cinquecento (1976), de Michelangelo Muraro e David Rosand, citando o nome de Sthephan van Calcar como autor das pranchas. (1499-1546), ex-aluno de Tiziano (1490-1576) em Veneza.

Dar a ver no papel o que podia ser observado na mesa de dissecação, eis o papel atribuído por Vesálio às suntuosas pranchas que ilustram sua obra. A transformação do leitor em espectador, o intuito pedagógico no uso das ilustrações e seu desdobramento intensivo são novidades trazidas pelo anatômico século XVI. ( MANDRESSI, 2010MANDRESSI, Rafael. Dissecação e anatomia. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do corpo: Da Renascença às luzes / trad. Lúcia M. E. Orth; revisão da tradução Ephrain Ferreira Alves. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010, v.1, cap. 6. pp. 411-440. , p. 424)

Em relação à estética das ilustrações presentes nos manuais de anatomia, a partir do exemplo de Vesálio e de várias publicações posteriores, Mandressi (2010MANDRESSI, Rafael. Dissecação e anatomia. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do corpo: Da Renascença às luzes / trad. Lúcia M. E. Orth; revisão da tradução Ephrain Ferreira Alves. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010, v.1, cap. 6. pp. 411-440. , p. 425) refere-se a uma encenação dos corpos como a mistura de um interesse científico com uma expressão sensível das artes daquele contexto. Arasse (2010ARASSE, Daniel. A carne, a graça, o sublime. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do corpo: Da Renascença às luzes / trad. Lúcia M. E. Orth; revisão da tradução Ephrain Ferreira Alves. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010, v.1, pp. 535-620. , pp. 569-571) reforça esse aspecto, enfatizando que a observação científica aparece incorporada ora pela moral cristã ( figuras 2 e 3 ), ora pela arte clássica ( figuras 4 e 5 ).

Figura 2
Masaccio, A expulsão do Paraíso (detalhe), ca. 1425. Afresco, 214 x 88 cm, Capela Brancacci, Florença.

Figura 3
Stephan van Calcar, Esqueleto humano , 1543. Publicado em De human corporis fábrica, de Andreas Vesálius. Basiléia: Joannes Oporinus, 1543. Disponível em: https://www.nlm.nih.gov/exhibition/historicalanatomies/vesalius_home.html . Acesso em: 30 jan. 2020.

Figura 4
Torso Belvedere, ca. 200 a.C. Mármore. Coleção Museus Vaticanos, Roma.

Figura 5
Stephan van Calcar, 1543. Publicado em De human corporis fábrica, de Andreas Vesálius. Basiléia: Joannes Oporinus, 1543. Disponível em: https://www.nlm.nih.gov/exhibition/historicalanatomies/vesalius_home.html . Acesso em: 30 jan. 2020.

Este amalgama teve provavelmente por função legitimar, cultural e moralmente, uma ciência nascente cuja prática, apesar da autorização da Igreja, era há pouco conotada negativamente: a encenação artística ou moral do corpo anatomizado contribuiu, paradoxalmente, para proclamar “a autonomia de uma nova ciência do corpo”. ( ARASSE, 2010ARASSE, Daniel. A carne, a graça, o sublime. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do corpo: Da Renascença às luzes / trad. Lúcia M. E. Orth; revisão da tradução Ephrain Ferreira Alves. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010, v.1, pp. 535-620. , p. 571)

Após mencionar uma série de outras publicações, Arasse (Ibidem, p. 574) destaca os aspectos dramáticos de uma das gravuras ( figura 6 ) de Jacques Gamelin5 5 . Cf. GAMELIN (1779) . (1738-1803) publicada em 1779 no Novo compêndio de osteologia e de miologia desenhado a partir da natureza: para a utilização de cientistas e artistas , uma das primeiras anatomias artísticas que teriam grande sucesso no século XIX, dado o evidente neoclassicismo de sua abordagem. No entanto, o autor conclui sua interpretação dessas imagens, realizadas em pleno século XVIII, com um certo cunho dramático, definindo-as como a expressão estética das dificuldades que a anatomia encontrava para se firmar enquanto uma ciência igual às outras e analisando por esse aspecto também as duas pinturas de Rembrandt mencionadas no início deste texto.

Figura 6
Jacques Gamelin, Surgite mortui venite ad Judicium , 1779. Publicado em Nouveau recueil d’ostéologie et de myologie dessiné après nature: pour l’utilité des sciences et des arts. Tolouse: J. F. Desclassan, 1779. Disponível em: https://www.nlm.nih.gov/exhibition/historicalanatomies/gamelin_home.html. Acesso: 30 jan. 2020

Nesse momento nos demos conta de que as representações visuais, mesmo as mais fascinantes, sempre surgem em meio a outras representações – sociais, políticas, religiosas, jurídicas, médicas, científicas e sexuais – do corpo, sendo as obras de arte fruto de um diálogo consciente ou inconsciente por parte dos artistas com esse contexto cultural mais amplo. Em outras palavras, analisar as lições de anatomia de Rembrandt com o olhar contemporâneo é, simplesmente, sobrepor a essas obras a maior revolução científica que se processou no conhecimento do corpo humano, quase trezentos anos depois, durante o século XX.

Depois de ter tentado “civilizar” a prática anatômica como ciência autônoma, sua encenação figurativa coloca ao contrário em valor o que pode sugerir que o corpo não é um “objeto científico” indiferente, que o ser humano é indissociável de seu corpo. ( ARASSE, 2010ARASSE, Daniel. A carne, a graça, o sublime. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do corpo: Da Renascença às luzes / trad. Lúcia M. E. Orth; revisão da tradução Ephrain Ferreira Alves. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010, v.1, pp. 535-620. , p. 574)

De uma abordagem neutra e distanciada que enfatiza a dimensão científica da cena na Lição de anatomia do doutor Tulp (1632) ( figura 7 ) passa-se a uma abordagem dramática da Lição de anatomia do doutor John Deyman (1656) ( figura 8 ), cuja iluminação e composição – que, sem dúvida, remetem à Lamentação pelo Cristo morto (ca. 1475-1478), de Andrea Mantegna (1431-1506) ( figura 9 ) – parecem enfatizar um espaço de incerteza reforçado pelo olhar perdido do assistente (Ibidem, p. 574). Seja como for, há, de fato uma mudança no espírito das obras, e essa resistência em encarar o corpo como um objeto para a análise científica perdura de um modo ou de outro no presente.

Figura 7
Rembrandt van Rijn, A Lição de anatomia do Dr. Nicolaes Tulp , 1632. Óleo sobre tela, 169,5 x 216,5 cm. Coleção Mauritshius, Haia.

Figura 8
Rembrandt van Rijn, A Lição de anatomia do Dr. John Deyman , 1656. Óleo sobre madeira, 100 x 134 cm. Coleção Amsterdan Museum, Amsterdã.

Figura 9
Andrea Mantegna, Lamentação pelo Cristo morto , ca. 1475-1478. Têmpera sobre tela, 68 x 81 cm. Coleção Pinacoteca di Brera, Milão.

Uma inquietante versão contemporânea desse tema, intitulada VOOM Portraits: Robert Downey Jr. 6 6 . O nome da série VOOM Portraits refere-se ao estúdio VOOM HD Networks, nos Estados Unidos. Em sistema de residências artísticas nomes como Robert Wilson são convidados a criarem trabalhos em vídeo de alta-definição. ( figura 10 ), foi realizada no ano de 2004 pelo aclamado diretor e artista multimídia americano Robert Wilson. A princípio, trata-se de uma imagem fotográfica que apresenta um corpo morto em escala real no momento em que se processa a análise anatômica de seu braço esquerdo, assim como na Lição de anatomia do doutor Tulp . As primeiras diferenças ficam para o cenário: não há aprendizes e não podemos distinguir com clareza o corpo do anatomista, que permanece imerso nas sombras. Sua identidade é omitida, e vemos apenas parte do braço direito e sua mão iluminada, “manipulando” um instrumento semelhante ao da pintura de Rembrandt. Na realidade, parece que o artista processou uma síntese entre a lição do doutor Tulp e a do doutor John Deyman. Da primeira, aproveita a composição aberta, expondo o belo corpo em sua totalidade e, da segunda, o aspecto sombrio que nos foi legado e, talvez, intensificado acidentalmente pela incompletude da pintura.

Figura 10
Robert Wilson, frame de VOOM Portraits: Robert Downey Jr ., 2004. Vídeo de alta definição. 08’52”

Quando nos damos conta de que se trata de um “retrato em vídeo” de altíssima definição, as coisas ficam ainda mais intrigantes: numa espécie de inversão do que ocorre nos trabalhos da série Black Mirror 7 7 . Cf. COLIVA; CIARALLO (2014) . Folder sobre intervenção na Galleria Borguese apresentada entre outubro de 2014 e janeiro de 2015. Trabalho visto e fotografado pelo autor do presente texto. “Três pinturas de Caravaggio [...] aparecem e desaparecem detrás das superfícies de grandes espelhos emoldurados em vidro negro de Murano. As figuras são animadas e se apresentam como em pose para a pintura; elas respiram, fecham os olhos e se movem em nossa direção. São pessoas comuns, prestes a se transformarem em ícones religiosos, como espectros apanhados em um espaço indefinido entre o mundo real e o reino da pintura. ( COLIVA; CIARALLO, 2014 , não paginado, tradução nossa). (2014), de Matt Colishaw, na qual pinturas de Caravaggio (1571-1610) parecem ganhar alma e movimento, aqui é como se a vida resistisse à imobilidade da pintura, desafiando sua perene iconicidade por meio de nossa relutante percepção ( figura 11 ). O diafragma do ator americano Robert Downey Jr. sobe e desce lentamente, assim como seus olhos, que se abrem em nossa direção. Em meio à penumbra do fundo e à luminosidade fria do corpo, destaca-se o braço anatomizado em seus tons quentes, animado pelos quase imperceptíveis movimentos do sombrio doutor que o sustenta pelo tendão, enquanto seu corpo oscila num limiar entre realidade física e representação. A trilha sonora é uma faixa do CD Bone Machine (1992), de Tom Waits, e intensifica o estranhamento da cena, não apenas pelo som, mas também pelos sentidos de “The Ocean”8 8 . Tradução realizada pela professora Dra. Deborah Castro, da Universidade Federal de Alfenas. :

Figura 11
Robert Wilson, frame de VOOM Portraits: Robert Downey Jr. , 2004. Vídeo de alta definição.08’52”

O oceano não me quer hoje

Mas amanhã eu estarei de volta para brincar

E os estranjos [anjos estranhos, do original strangels (strange angels)] vão [me levar

Para o fundo de seu mar salgado

Os cerebranjos [anjos cérebros, do original braingels (brain angels)] [maliciosos

Para dentro de um vinho azul sem fim

Abrirei minha cabeça e deixarei sair

Todo meu tempo

Adoraria me afogar

Mas o oceano não me quer hoje

Vou entrar até aqui

Não é possível que vá me machucar

Tudo que encontrarão é minha cerveja

E minha camisa

A maré está ficando enfurecida

E o salva-vidas não está

Mas o oceano não me quer hoje

Mas o oceano não me quer hoje

A atuação sobre os limiares também parece ser um dos segredos do interesse despertado por Gunther Von Hagens, seja pelas polêmicas, seja pelas qualidades que escapam à restrição de muitos dos olhares críticos que se lançam sobre essa figura singular de nosso tempo. Certamente ele não foi o primeiro a causar estranhamento no âmbito da dissecação, sendo que um de seus mentores mais ilustres do passado – o francês Honoré Fragonard9 9 . “Honoré Fragonard, primo coirmão do pintor de sucesso, é ‘professor e demonstrador de anatomia’ de 1766 a 1771 na escola veterinária de Alfort, dotando-a rapidamente de um laboratório de anatomia [...]” ( ARASSE, 2010 , p. 616) – já havia sido fortemente criticado à sua época, quem diria, por especialistas alemães ( ARASSE, 2010ARASSE, Daniel. A carne, a graça, o sublime. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do corpo: Da Renascença às luzes / trad. Lúcia M. E. Orth; revisão da tradução Ephrain Ferreira Alves. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010, v.1, pp. 535-620. , p. 616). Quando Arasse, para além dessas críticas, destaca a originalidade de Fragonard, parece estarmos lendo uma análise endereçada ao anatomista contemporâneo:

Mais do que interessa à pesquisa anatômica e médica propriamente dita, ele aperfeiçoa sem cessar seus próprios métodos para melhorar a “expressão vigorosa” de suas anatomias. Assim, ele se coloca “numa posição de esteta da ciência”. Mas, é preciso acrescentar, sua estética só pode ser muito pouco científica: operando a partir de tecidos naturais, a “expressão vigorosa” que ele busca é a de um efeito de realidade inevitavelmente mais perturbador ainda do que a cera, em consequência da identidade entre o representante e o representado, e da recuperação de um pelo outro. (Ibidem, p. 617)

Felizmente para nós, não há qualquer incompatibilidade na aproximação que fazemos, e o próprio Hagens explicita isso de maneira eloquente, ao homenagear Fragonard numa releitura de sua obra mais famosa, o conhecido Cavaleiro do Apocalipse ( figuras 12 e 13 ). Quando postos lado a lado fica evidente que estamos ante um patamar sem paralelos, como se Hagens tivesse levado ao pé da letra o aperfeiçoamento da técnica para melhorar a expressão vigorosa de suas anatomias, sendo, mais do que qualquer outro, e a partir de todos os outros, um esteta da ciência, ou, como nós preferimos, simplesmente um anatomista que usa corpos reais para dar visibilidade para a ciência da anatomia através da arte. Sobre a mostra “Body Worlds”, Mariluce Moura escreveu:

Figura 12
Honoré Fragonard, O Cavaleiro do Apocalipse , 1766-1771. Coleção Musée Fragonard d’Alfort, Paris.

Figura 13
Gunther von Hagens, Homem em cavalo empinado . Corpos de cavalo e homem plastinizados.© Gunther von Hagens’ BODY WORLDS, Institute for Plastination, Heidelberg, Germany

O corpo visível em sua completa materialidade, camada após camada, e perceptível nas adaptações ao movimento, em suas funções, muitas, uma após a outra até a compreensão de sua fantástica funcionalidade. O corpo insistentemente reiterado, inteiro, depois dissecado em partes, em fatias, ossos, músculos, nervos, vasos e vísceras. Numa multiplicidade atordoante, ele se oferece ao olhar leigo nessa exposição pensada em cada detalhe para iluminar um espetáculo fascinante, espantoso talvez, e minucioso da anatomia humana. ( MOURA, 2007MOURA, Mariluce. Lição de anatomia: Exposição Bodies produz um espetáculo espantoso e minucioso da anatomia humana. Revista Pesquisa FAPESP, ed. 132, fev. 2007, sem paginação. Disponível em http://revistapesquisa.fapesp.br/2007/02/01/licao-de-anatomia/ . Acesso em: 12 abr. 2015
http://revistapesquisa.fapesp.br/2007/02...
, sem paginação)

Nascido em 1945, com apenas 30 anos o jovem e virtuoso Gunther Von Hagens criou a técnica da plastinação, ou plastinização10 10 . “O método incide sobre duas questões fundamentais para a preservação do corpo após a morte: a desidratação e a criação de um meio adequado para impedir a proliferação de fungos e bactérias e, assim, assegurar a manutenção dos tecidos e das demais estruturas anatômicas.” (JUNQUEIRA, 2007 apud MOURA, 2007 , sem paginação); “A plastinização substitui os fluidos corporais e a gordura com polímeros reativos, tais como silicone, borracha, resinas de epóxi ou poliéster. Na primeira fase do processo, solventes substituem gradualmente os fluidos com um banho de solvente gelado (‘substituição por congelamento’); em seguida, a peça desidratada é colocada num banho de imersão de solvente na temperatura ambiente, para a retirada da gordura. A peça desidratada e sem gordura, [sic] é colocada numa solução de polímero. O solvente é, então, fervido a vácuo e continuamente extraído. O solvente evaporado cria um vazio dentro da peça que será gradualmente preenchido pelo polímero. Após o processo (chamado de ‘impregnação forçada’), a peça é curada com gás, luz, ou calor, dependendo do tipo de polímero utilizado.” ( REBOLLO, 2003 , p. 101) , patenteada em 1977 e aperfeiçoada até se encontrar em condições de utilização, em 1990. Ao contrário do que se pode imaginar, a divulgação da técnica se fez primeiro no âmbito científico. No Brasil, foi o professor Aldo Junqueira, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), o primeiro a perceber, ainda em 1988, a importância dessa nova técnica para a atualização dos estudos de anatomia, em particular, para a anatomia seccional ( figura 14 ).

Figura 14
Gunther von Hagens. Corpo humano plastinizado e seccionado © Gunther von Hagens’ BODY WORLDS, Institute for Plastination, Heidelberg, Germany

É preciso notar que só 5% dos seres humanos têm total capacidade espacial, habilidade de intuir com clareza como os elementos se distribuem no espaço e formam volumes, a partir de imagens em duas dimensões ou de peças dispersas. Ora, como tentar perceber a anatomia sem espacialidade é algo estéril, quanto mais próximos colocarmos os estudantes de medicina dessa anatomia real e espacializada, melhor os formamos. (JUNQUEIRA, 2007 apud MOURA, 2007MOURA, Mariluce. Lição de anatomia: Exposição Bodies produz um espetáculo espantoso e minucioso da anatomia humana. Revista Pesquisa FAPESP, ed. 132, fev. 2007, sem paginação. Disponível em http://revistapesquisa.fapesp.br/2007/02/01/licao-de-anatomia/ . Acesso em: 12 abr. 2015
http://revistapesquisa.fapesp.br/2007/02...
, sem paginação)

Talvez, de maneira apressada ou simplesmente por desconhecer as reais possibilidades dessa técnica que permite a obtenção de lâminas de órgãos do corpo humano de até um milímetro de espessura, ideais para suprir essas deficiências da percepção humana, que atinge a mesma e assustadora porcentagem entre os estudantes de medicina ( MOURA, 2007MOURA, Mariluce. Lição de anatomia: Exposição Bodies produz um espetáculo espantoso e minucioso da anatomia humana. Revista Pesquisa FAPESP, ed. 132, fev. 2007, sem paginação. Disponível em http://revistapesquisa.fapesp.br/2007/02/01/licao-de-anatomia/ . Acesso em: 12 abr. 2015
http://revistapesquisa.fapesp.br/2007/02...
), Regina André Rebollo (2003)REBOLLO, Regina André. “De humani corporis circus” de Gunther Von Hagens. Scientiae Studia, 1(1), 2003, pp. 101-107. faz duras críticas ao trabalho e à postura de Hagens, contrapondo as polêmicas de suas exposições à bem sucedida “Spectacular bodies: the art and science of the human body from Leonardo to now”, ocorrida na Hayward Gallery, em Londres, no ano 2000.

Hagens não é um cientista e nem se comporta enquanto tal. Por isso, ao se comparar aos grandes anatomistas do passado, como Galeno e Vesálio, Hagens ignora que tais anatomistas estavam estabelecendo um novo método de observação e sistematização do corpo humano, que trouxe ao conhecimento médico e científico novos resultados. ( REBOLLO, 2003REBOLLO, Regina André. “De humani corporis circus” de Gunther Von Hagens. Scientiae Studia, 1(1), 2003, pp. 101-107. , p. 105)

Pelas palavras da autora, percebe-se que os condicionamentos socioculturais constroem, com grande uniformidade, também os parâmetros e as expectativas para parte do comportamento acadêmico e profissional! Além disso, o que tem feito Hagens senão estabelecer um novo e, evidentemente, incomparável método de observação e sistematização do corpo humano, servindo, antes de mais nada, ao conhecimento aplicado no campo do ensino da medicina?

Hagens não ignora essa tradição, incorporando dela as duas faces que se apresentam a partir do próprio Vesálio durante o Renascimento, ou seja, o conhecimento científico sob as formas sensíveis das artes visuais. Assim como seus antecessores, portanto, ele também criou um método de observação, mas que, graças aos avanços da medicina no século XX, está baseado em procedimentos e em conhecimentos comprovados cientificamente, ao contrário do que ocorria na teoria humoral que se estende de Galeno na antiguidade ao final do século XIX.

Se, como afirmou Rebollo (2003REBOLLO, Regina André. “De humani corporis circus” de Gunther Von Hagens. Scientiae Studia, 1(1), 2003, pp. 101-107. , p. 106), a exposição na Hayward Gallery foi aceita e elogiada, isso se deve à rede de informação que sustenta o próprio sistema da arte contemporânea, cujos artistas, representados pelas mais poderosas galerias comerciais do mundo, fornecem a sua própria justificação. O fato de haver discussões conceituais e filosóficas em torno da exposição apenas enfatiza o poder de organização dessa rede que, por meio do conhecimento acadêmico e de parcerias com as grandes instituições culturais, oferecem bases “incontestáveis”, disseminadas por um pesado sistema de divulgação nas mídias eletrônicas e de informação.

Segundo Anne Cauquelin (2005CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea: uma introdução / trad. Rejane Janowitzer. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Coleção Todas as artes. , p. 14) “há de fato um ‘sistema’ da arte, e é o conhecimento desse sistema que permite apreender o conteúdo das obras”. Os critérios de valor utilizados na modernidade, período que a autora define como regime de consumo, não podem mais ser aplicados com a mesma segurança aos padrões da arte contemporânea ou ao regime da comunicação11 11 . Walter Benjamin, ainda nos anos de 1935/1936, em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, intui mudanças que Cauquelin analisa com clareza no cenário artístico contemporâneo: “Com efeito, assim como na pré-história a preponderância absoluta do valor de culto conferido à obra levou-a a ser concebida em primeiro lugar como instrumento mágico, e só mais tarde como obra de arte, do mesmo modo a preponderância absoluta conferida hoje a seu valor de exposição atribuiu-lhe funções inteiramente novas, entre as quais a ‘artística’ , a única de que temos consciência, talvez se revele mais tarde como secundária .” ( BENJAMIN, 1994 , p. 173, grifo nosso). . Os que seriam, no primeiro contexto, produtores e produtos, ou seja, artistas e obras, a princípio considerados em sua autonomia como constituintes da rede, na realidade são absorvidos pela comunicação coordenada por um outro grupo de profissionais, ou, se preferirmos, pelos verdadeiros produtores do sistema da arte há algum tempo – conservadores de grandes museus, importantes marchands /galeristas, experts , diretores de fundações internacionais ( CAUQUELIN, 2005CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea: uma introdução / trad. Rejane Janowitzer. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Coleção Todas as artes. ).

O problema de “Body Worlds” parece residir justamente no fato de se tratar de corpos reais, o que se evidenciou nas polêmicas geradas desde a primeira vez em que a mostra foi apresentada, em 1996. Acusado de possuir corpos de indigentes e pacientes siberianos com problemas mentais13 13 . “De fato, Hagens possui um contrato com o Instituto de Anatomia da Universidade de Novossibirsk, autorizando-o a recolher os corpos não reclamados de moradores de asilos e instituições assistenciais.” ( REBOLLO, 2003 , p. 102); “A procedência dos corpos foi questionada, e a dimensão ética veio a tona [sic], ainda que o próprio Hagens sempre tenha afirmado que se tratavam [sic] de corpos doados voluntariamente, segundo os termos de um rígido contrato que rege as doações.” ( MOURA, 2007 ). Para o leitor interessado no programa de doação de corpos, basta acessar o link: https://bodyworlds.com/plastination/bodydonation/Acesso em: 17 jul. 2020. ( REBOLLO, 2003REBOLLO, Regina André. “De humani corporis circus” de Gunther Von Hagens. Scientiae Studia, 1(1), 2003, pp. 101-107. , p. 102), “argumentou-se que a exibição feria a dignidade humana e a ética do fazer científico” ( MOURA, 2007MOURA, Mariluce. Lição de anatomia: Exposição Bodies produz um espetáculo espantoso e minucioso da anatomia humana. Revista Pesquisa FAPESP, ed. 132, fev. 2007, sem paginação. Disponível em http://revistapesquisa.fapesp.br/2007/02/01/licao-de-anatomia/ . Acesso em: 12 abr. 2015
http://revistapesquisa.fapesp.br/2007/02...
, sem paginação). Surpreende-nos pensar que a mesma sociedade que ignora corpos vivos, a ponto de classificá-los na categoria da indigência – “situação de extrema necessidade material, de penúria; miséria, pobreza, inópia” (HOUAISS, 2009, p. 1073) – até que morram de frio, de fome ou assassinados, demonstre uma falsa hipocrisia ética que questiona a possível utilização desses corpos. Talvez o incômodo seja gerado pela vaga possibilidade dessa existência ignorada adquirir a identidade de uma úlcera permanente, como índice do sistema social em sua desumana decadência.

III. Do corpo eterno à eternidade do corpo

A partir do pensamento de Erwin Panofsky (2011)PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes Visuais / trad. Maria Clara F. Kneese e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2011. , podemos afirmar que o Renascimento inicia uma história que perdura até nossos dias, uma integração, por vezes conflituosa, entre o mundo pagão da Arte Clássica e o mundo religioso da Idade Média. A Arte Clássica é preservada e inflectida por mudanças de função no requerimento das imagens segundo os interesses da Igreja, depois os valores pagãos são retomados no Renascimento, estabelecendo uma tensão que, de algum modo, permanece em nossos dias, influenciando de maneira decisiva a leitura e interpretação de imagens e trabalhos como os produzidos por Gunther Von Hagens.

Assim como nos exemplos de Vesálio ou Juan Valverde de Amusco14 14 . Cf. VALVERDE DE AMUSCO (1560) . (1525-1587) ( figura 15 a 17 ), em que a base visual de suas ilustrações era extraída da própria arte, as representações anatômicas dessa tradição de raízes clássicas delineada no Renascimento – entendidas também como ícones que fundaram padrões idealizados da representação do corpo humano no Ocidente – servem a Hagens como argumentos com forte apelo estético e conceitual ( figura 18 ). Além disso e das polêmicas que o acompanham, a dúvida que se impõe é: em qual patamar devemos classificá-lo, o da técnica, o da ciência, do espetáculo15 15 . Rebollo (2003 , p. 104) refere-se a esse aspecto, citando a dissecação pública realizada em Londres por Hagens no dia 20 de novembro de 2002, 170 anos após a proibição dessa prática no Reino Unido. Atrás do médico foi fixada uma reprodução da Lição de anatomia do doutor Tulp . “Ele afirma que é um continuador da tradição anatômica de Galeno e Vesálio e de uma época na qual as demonstrações públicas eram promovidas em teatros anatômicos. Para ele, lamentavelmente, tais demonstrações estariam hoje confinadas a uma elite médica, privando o público leigo “do espetáculo e da maravilha do corpo humano” (Ibidem, p. 104). ou das artes?

Figura 15
Michelangelo Buonarrotti, O Juízo Fina l (detalhe), 1537-1541. Afresco. Capela Sistina, Vaticano, Roma.

Figura 17
Gunther von Hagens, Homem sem pele . Corpo humano despelado e plastinizado. © Gunther von Hagens’ BODY WORLDS, Institute for Plastination, Heidelberg, Germany

Figura 18
Gunther von Hagens, Homem vitruvian o. Corpo humano plastinizado. © Gunther von Hagens’ BODY WORLDS, Institute for Plastination, Heidelberg, Germany

Se consideramos o atual cenário da arte contemporânea, no qual se manifestam simultaneamente todas as linguagens tradicionais e eletrônicas, além das interfaces digitais, dos ideais de uma “evolução” cyborg e das experiências de manipulação biotecnológica ( MICHAUD, 2009MICHAUD, Yves. Visualização: o corpo e as artes visuais. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do corpo: As mutações do olhar. O século XX / tradução e revisão de Ephrain Ferreira Alves. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009, parte V, cap. 4. pp. 541-565. ), poderíamos dizer que Hagens é um jogador ( figura 19 ). E como um bom e consciente jogador ( figura 20 ), transita pelos tênues limites que perpassam o conhecimento e os meios atuais através de sua própria técnica, embaralhando as já imprecisas fronteiras entre a realidade e as suas representações, sejam elas tomadas como técnicas, científicas, artísticas ou sociais.

Figura 19
Gunther von Hagens, O jogador de xadrez . Corpo humano plastinizado e tabuleiro de xadrez. © Gunther von Hagens’ BODY WORLDS, Institute for Plastination, Heidelberg, Germany

Figura 20
Arnold T. Rosenberg, Marcel Duchamp jogando xadrez sobre um pedaço de vidro , 1958. Fotografia. Coleção National Portrait Gallery, Smithsonian Institution, Wahington D.C. © Arnold Rosenberg

Nesse mesmo sentido, parece-nos ainda oportuno analisar o fenômeno Hagens a partir da aproximação com um iconoclástico evento contemporâneo. Por iniciativa do inglês Damien Hirst (n. 1965) a prestigiada casa de leilões Sotheby’s promoveu, em 2008, “Beautiful inside my head forever”16 16 . O leilão, ocorrido nos dias 15 e 16 de setembro de 2008 na Sotheby’s, em Londres, vendeu 223 obras, tendo alcançado uma cifra final de 365 milhões de reais em meio a um desastre financeiro em escala global. “Nesse mercado, o poder está nas mãos dos galeristas. Eles vendem as obras produzidas pelos artistas e embolsam comissões que variam de 30% a 50%. Só depois de cerca de cinco anos é que as mesmas obras chegam aos leilões – vendidas não pelos artistas diretamente, mas por colecionadores e galeristas que as compraram na baixa e vêem [sic] aí sua chance de lucrar. Por esse sistema, até o artista mais valorizado não ganha nada quando um trabalho seu atinge altas cotações nos leilões – apenas na Inglaterra eles têm direito a uma comissão ínfima, de 3% do valor da venda. Há dezoito meses, Hirst resolveu que era hora de peitar esse status quo. Planejou em detalhes a operação, produziu o lote de obras a toque de caixa e só avisou os galeristas que o representam em maio passado. O inglês Jay Jopling e o americano Larry Gagosian a princípio espernearam contra o golpe. Mas deram o braço a torcer: suas galerias terminaram por apoiar o leilão.” (REVISTA VEJA, 24 de setembro de 2008, pp. 102-103) : leilão histórico no qual o artista negociou diretamente suas obras, excluindo os intermediários que comandam a estrutura das redes de informação na arte contemporânea ( marchands , galerias, curadores, críticos de arte, grandes museus e outras instituições culturais)17 17 . O fato descrito na nota anterior, de que as próprias galerias “apoiaram” e até compraram obras no referido leilão, confirma o que Omar Calabrese disse em 1987, quando afirmou que os excessos são previstos pelo próprio sistema: “A fronteira, por causa de um excesso ‘aceitável’, é simplesmente empurrada mais para lá (até muito mais para lá do que dantes), com a consequente absorção, mesmo que conflitual, do excesso” ( CALABRESE, 1987 , p. 79). . Hagens, de modo similar, promove o próprio espetáculo de maneira independente, utilizando, pela primeira vez na história da arte ocidental, o corpo humano em sua identidade física e biológica – ainda que inanimado – como suporte e matéria para a representação. Talvez não seja mera coincidência o fato de Hagens repetir, com sua escolha dando-se sugestivamente entre tantos animais, o assustador protagonista de The physical impossibility of death in the mind of somenone living , realizado por Hirst em 1991.

Seja como for, não se pode negar as excepcionais habilidades do fazer de Hagens, fato ao qual se soma a evidência de uma rica cultura visual, não apenas pelo modo como mobiliza a tradição já mencionada, mas também a arte como um todo, inclusive por sutis citações da arte moderna e contemporânea que se escondem no choque da exposição de corpos reais e na generalidade banal de seus títulos, configurando mais indícios de sua refinada consciência artística18 18 . “A citação é um modo tradicional de construir um texto, que existe em todas as épocas e estilos. [...] Importaria então saber antes qual é o tipo e a natureza da citação actual. Esta revela-se um elemento relevante, de facto, só e somente se difere em alguns traços da citação do passado.” (Ibidem, p. 187) .

Esse é o caso de O corredor , trabalho com forte teor subjetivo que não encontraria justificativas nas práticas da ciência anatômica ou na análise do próprio movimento não fosse a confrontação com Formas únicas de continuidade no espaço 19 19 . O gesso original foi comprado de Benedetta Marinetti (viúva do poeta futurista), em 1952, por Ciccillo Matarazzo e doado pelo colecionador ao antigo MAM de São Paulo. Em 8 de abril de 1963, o trabalho foi doado para a USP e, desde então, faz parte do acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP). A cronologia completa da obra pode ser consultada no texto “Cronologia das obras Formas únicas de continuidade no espaço e Desenvolvimento de uma Garrafa no espaço de Umberto Boccioni”, de Marina Barzon Silva. Disponível em: http://www.mac.usp.br/mac/conteudo/academico/publicacoes/boletins/escultura/pdfs/CRONO_BOCCIONI_PORT.pdf . Acesso: 15 jul. 2020. , obra prima do Futurismo italiano, realizada em 1913 por Umberto Boccioni ( figuras 21 e 22 ). Estamos diante de uma evidente releitura de um corpo que se deforma pelo movimento, como um construto da nova era anunciada pelo seu “profeta” (MARINETTI, [1909]1988, p. 290) mais radical um século atrás:

Figura 21
Gunther von Hagens. O corredor. Corpo humano plastinizado. © Gunther von Hagens’ BODY WORLDS, Institute for Plastination, Heidelberg, Germany

Figura 22
Umberto Boccioni, Formas únicas de continuidade no espaço , 1913. Bronze. Coleção Museum of Modern Art (MoMA), Nova York.

Afirmamos que a magnificência do mundo se enriqueceu de uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um carro de corrida adornado de grossos tubos semelhantes a serpentes de hálito explosivo... um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais belo que a Vitória de Samotrácia. (Ibidem)

Apesar dessa homenagem à plasticidade mecânica de Boccioni, não é à velocidade moderna que Hagens rende reverência20, mas aos tempos da musa de Samotrácia, não apenas por se considerar um continuador das tradições clássicas da anatomia de Galeno e Vessálio, mas porque seu interesse pela expressão contemporânea também se manifesta na direção de um corpo clássico, no sentido dilatado proposto por Omar Calabrese (1987)CALABRESE, Omar. A Idade Neobarroca / trad. Carmem de Carvalho e Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1987.21. Em outras palavras,

diante de Homem impulsionando roda ( figura 23 ) foi impossível não recordarmos do belo Thomas (1987), de Robert Mapplethorpe ( figura 24 ), fotógrafo que melhor ressignificou o fascínio exercido pela beleza do corpo clássico, numa abordagem contemporânea dotada de ordem, equilíbrio dinâmico e simetria.

Figura 23
Gunther von Hagens, Homem impulsionando roda. Corpo humano plastinizado. © Gunther von Hagens’ BODY WORLDS, Institute for Plastination, Heidelberg, Germany

Figura 24
Robert Mapplethorpe, Thomas , 1987. Fotografia, 48,8 x 48,8 cm. Adquirida em conjunto pelo Los Angeles County Museum of Art, com fundos subsidiados pela The David Geffen Foundation e The J. Paul Getty Trust, 2011.7.31. © Fundação Robert Mapplethorpe, EUA.

Os gregos construíram uma idealização perene do corpo porque dele partiram, a ele retornando a cada gesto de sua expressão. Se entre as muitas e complexas características que singularizam a humanidade em sua animada existência simbólica está, como afirmou em entrevista Jean Pierre Lebrun (2009LEBRUN, Jean-Pierre. Ensinem seus filhos a falhar. Revista Veja, 5 de dezembro de 2009, edição 2142, pp. 21-25. Entrevista realizada por Ronaldo Soares. , p. 21), a consciência de sua mortalidade, o trabalho de Hagens parece partir desse último suspiro, momento no qual a beleza de nossa constituição efêmera perde seu encanto, para, a partir dessa matéria inerte, animá-la “plasticamente” à eternidade da arte ( figura 25 ).

Figura 25
Gunther von Hagens, A equilibrista (detalhe). Corpo plastinizado. © Gunther von Hagens’ BODY WORLDS, Institute for Plastination, Heidelberg, Germany

Por outro lado, não seria demasiado apontar que a técnica da plastinização criada por Hagens, assim como várias manifestações produzidas pela arte contemporânea, não redimem nossa humanidade através do uso de corpos reais, isso porque, entre outros motivos, muitas representações de nosso tempo sugerem, de maneira quase inocente, ora ilusórias possibilidades de reconexão do corpo com um passado humano distante, ora pretensas limitações que a nossa constituição física em sua complexa condição biológica poderia encerrar. A imagem do reencontro com um corpo mítico irá permear parte significativa da produção artística a partir da segunda metade do século XX, com uma característica que permanece na ordem do dia: a arte toca a vida e, desse modo, constrói um testemunho específico de seu tempo. No caso de Gunther Von Hagens, a arte se faz a partir de um toque na morte.

Figura 16
Juan Valverde de Amusco, página de Anatomia del corpo humano. Roma: Ant. Salamanca and Antonio Lafrery, 1560.

Bibliografia

  • ARASSE, Daniel. A carne, a graça, o sublime. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do corpo: Da Renascença às luzes / trad. Lúcia M. E. Orth; revisão da tradução Ephrain Ferreira Alves. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010, v.1, pp. 535-620.
  • BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (primeira versão). In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura / trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. pp. 165-196.
  • CALABRESE, Omar. A Idade Neobarroca / trad. Carmem de Carvalho e Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1987.
  • CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea: uma introdução / trad. Rejane Janowitzer. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Coleção Todas as artes.
  • COLIVA, Anna; CIARALLO, Valentina. Black Mirror: Mat Collishaw, cat.exp., Roma, 2014, sem paginação.
  • FAURE, Olivier. O olhar dos médicos. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do corpo: Da Revolução à Grande Guerra / tradução João Batista Kreuch e Jaime Clasen; revisão da tradução Ephrain Ferreira Alves. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009, v.2, parte I, cap.1, pp. 13-55.
  • GAMELIN, Jacques. Nouveau recueil d’ostéologie et de myologie dessiné après nature: pour l’utilité des sciences et des arts. In: HISTORICAL ANATOMIES ON THE WEB. Tolouse: De l’imprimiere de J. F. Desclassan, 1779. Disponível em: http://www.nlm.nih.gov/exhibition/historicalanatomies/gamelin_home.html . Acesso em: 25 jan. 2020.
    » http://www.nlm.nih.gov/exhibition/historicalanatomies/gamelin_home.html
  • GLUSBERG, Jorge. A arte da performance / trad. Renato Cohen. São Paulo: Perspectiva, 2008. Coleção Debates 206.
  • HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. 1.ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
  • JEUDY, Henri-Pierre. O corpo como objeto de arte / trad. Tereza Lourenço. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.
  • KICKHÖFEL, Eduardo Henrique Peiruque. A licão de anatomia de Andreas Vesalius e a ciência moderna. Scientiae Studia. 1(3), 2003, pp. 389-404.
  • LEBRUN, Jean-Pierre. Ensinem seus filhos a falhar. Revista Veja, 5 de dezembro de 2009, edição 2142, pp. 21-25. Entrevista realizada por Ronaldo Soares.
  • MANDRESSI, Rafael. Dissecação e anatomia. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do corpo: Da Renascença às luzes / trad. Lúcia M. E. Orth; revisão da tradução Ephrain Ferreira Alves. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010, v.1, cap. 6. pp. 411-440.
  • MARINETTI, Filippo Tomaso. Manifesto Futurista (1909). In: CHIPP, H. B. Teorias da Arte Moderna / trad. Waltensir Dutra et al. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
  • MICHAUD, Yves. Visualização: o corpo e as artes visuais. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do corpo: As mutações do olhar. O século XX / tradução e revisão de Ephrain Ferreira Alves. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009, parte V, cap. 4. pp. 541-565.
  • MOURA, Mariluce. Lição de anatomia: Exposição Bodies produz um espetáculo espantoso e minucioso da anatomia humana. Revista Pesquisa FAPESP, ed. 132, fev. 2007, sem paginação. Disponível em http://revistapesquisa.fapesp.br/2007/02/01/licao-de-anatomia/ . Acesso em: 12 abr. 2015
    » http://revistapesquisa.fapesp.br/2007/02/01/licao-de-anatomia/
  • PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes Visuais / trad. Maria Clara F. Kneese e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2011.
  • REBOLLO, Regina André. “De humani corporis circus” de Gunther Von Hagens. Scientiae Studia, 1(1), 2003, pp. 101-107.
  • REVISTA VEJA. Faturar é uma Arte. São Paulo: Revista Veja, 24 de setembro de 2008, edição 2079, pp. 102-103.
  • SILVA, Marina Barzon. Cronologia das obras Formas únicas de continuidade no espaço e Desenvolvimento de uma Garrafa no espaço de Umberto Boccioni. Seminário Internacional de Conservação de Escultura Moderna, MAC – USP, 2012. Disponível em: http://www.mac.usp.br/mac/conteudo/academico/publicacoes/boletins/escultura/pdfs/CRONO_BOCCIONI_PORT.pdf Acesso em: 15 jul. 2020.
    » http://www.mac.usp.br/mac/conteudo/academico/publicacoes/boletins/escultura/pdfs/CRONO_BOCCIONI_PORT.pdf
  • VALVERDE DE AMUSCO, Juan. Anatomia del corpo humano. HISTORICAL ANATOMIES ON THE WEB. Rome: Ant. Salamanca and Antonio Lafrey, 1560. Disponível em: http://www.nlm.nih.gov/exhibition/historicalanatomies/valverde_home.html Acesso em: 30 jan. 2020.
    » http://www.nlm.nih.gov/exhibition/historicalanatomies/valverde_home.html
  • VESALIUS, Andreas. De humani corporis fabrica libri septem. HISTORICAL ANATOMIES ON THE WEB. Basel: Johannes Oporinus, 1543. Diposnível em: http://www.nlm.nih.gov/exhibition/historicalanatomies/vesalius_home.html Acesso: 25 jan. 2020
    » http://www.nlm.nih.gov/exhibition/historicalanatomies/vesalius_home.html

Bibliografia complementar

  • GOMBRICH, E. H. Arte e ilusão: Um estudo da psicologia da representação pictórica / trad. Raul de Sá Barbosa. 4. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.
  • MAYAYO, Patrícia. La reinvención del cuerpo. In: RAMÍREZ, Juan Antonio; CARRILLO, Jesús (Eds.). Tendendias del arte, arte de tendências a principios del siglo XXI. Madrid: Ensayos Arte Cátedra, 2004, pp. 85-125.
  • SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à ciber-cultura. São Paulo: Paulus, 2003.
  • WARBURG, Aby. Atlas Mnemosyne / trad. Joaquin Chamorro Mielke. Madrid: Ediciones Akal, S.A., 2010.
  • 1
    . “Dono da empresa sediada em Heidelberg - BIODUR™, que comercializa os equipamentos e os polímeros utilizados na técnica de plastinização e também um Instituto onde põe em prática o trabalho de conservação e fixação das peças anatômicas.” ( REBOLLO, 2003REBOLLO, Regina André. “De humani corporis circus” de Gunther Von Hagens. Scientiae Studia, 1(1), 2003, pp. 101-107. , p. 101). Sob críticas da Igreja Protestante e da Sociedade de Anatomia da Alemanha, foi inaugurado, em 18 de fevereiro de 2015, o Menschen Museum (Museu Humano, em tradução livre), na cidade de Berlim, a primeira exposição permanente dos corpos plastinizados de Hagens. Disponível em: https://bodyworlds.com/city/berlin/ . Acesso em: 17 jul. 2020.
  • 2
    . “O professor comandava seu desenrolar, lia e comentava os escritos de autoridades do alto de sua cátedra. Ele era secundado por um demonstrator, que fazia os assistentes ver o que o mestre explicava, enquanto a preparação do cadáver era em geral confiada a um cirurgião ou um barbeiro.” ( MANDRESSI, 2010MANDRESSI, Rafael. Dissecação e anatomia. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do corpo: Da Renascença às luzes / trad. Lúcia M. E. Orth; revisão da tradução Ephrain Ferreira Alves. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010, v.1, cap. 6. pp. 411-440. , p. 414); “[...] o ensino universitário da anatomia entre o século XIV e a metade do século XVI consistia na leitura de um texto pelo professor para os alunos, geralmente o pequeno e prático Anathomia de Mondino dei Liucci, seguido no século XVI por textos de Galeno, enquanto um assistente, usualmente um cirurgião iletrado, mostrava junto do cadáver as estruturas descritas nesse texto.” ( KICKHÖFEL, 2003KICKHÖFEL, Eduardo Henrique Peiruque. A licão de anatomia de Andreas Vesalius e a ciência moderna. Scientiae Studia. 1(3), 2003, pp. 389-404. , p. 391).
  • 3
    . Arasse (2010ARASSE, Daniel. A carne, a graça, o sublime. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do corpo: Da Renascença às luzes / trad. Lúcia M. E. Orth; revisão da tradução Ephrain Ferreira Alves. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010, v.1, pp. 535-620. , p. 567) refere-se às qualidades de Leonardo, que baseava grande parte de seu conhecimento na observação direta; no entanto, não deixa de frisar a liberdade a que o artista se permite “[...] em inventar anatomias prováveis para satisfazer a necessidade da própria representação, quando a observação não foi possível”.
  • 4
    . A partir da indicação de Arasse (2010ARASSE, Daniel. A carne, a graça, o sublime. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do corpo: Da Renascença às luzes / trad. Lúcia M. E. Orth; revisão da tradução Ephrain Ferreira Alves. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010, v.1, pp. 535-620. , p. 567, nota 66), chegamos a um antiquário italiano que possuía duas gravuras da célebre publicação de Vesálio. Na nota explicativa da gravura, o antiquário faz a mesma referência a Tiziano e la silografia veneziana del Cinquecento (1976), de Michelangelo Muraro e David Rosand, citando o nome de Sthephan van Calcar como autor das pranchas.
  • 5
    . Cf. GAMELIN (1779)GAMELIN, Jacques. Nouveau recueil d’ostéologie et de myologie dessiné après nature: pour l’utilité des sciences et des arts. In: HISTORICAL ANATOMIES ON THE WEB. Tolouse: De l’imprimiere de J. F. Desclassan, 1779. Disponível em: http://www.nlm.nih.gov/exhibition/historicalanatomies/gamelin_home.html . Acesso em: 25 jan. 2020.
    http://www.nlm.nih.gov/exhibition/histor...
    .
  • 6
    . O nome da série VOOM Portraits refere-se ao estúdio VOOM HD Networks, nos Estados Unidos. Em sistema de residências artísticas nomes como Robert Wilson são convidados a criarem trabalhos em vídeo de alta-definição.
  • 7
    . Cf. COLIVA; CIARALLO (2014)COLIVA, Anna; CIARALLO, Valentina. Black Mirror: Mat Collishaw, cat.exp., Roma, 2014, sem paginação. . Folder sobre intervenção na Galleria Borguese apresentada entre outubro de 2014 e janeiro de 2015. Trabalho visto e fotografado pelo autor do presente texto. “Três pinturas de Caravaggio [...] aparecem e desaparecem detrás das superfícies de grandes espelhos emoldurados em vidro negro de Murano. As figuras são animadas e se apresentam como em pose para a pintura; elas respiram, fecham os olhos e se movem em nossa direção. São pessoas comuns, prestes a se transformarem em ícones religiosos, como espectros apanhados em um espaço indefinido entre o mundo real e o reino da pintura. ( COLIVA; CIARALLO, 2014COLIVA, Anna; CIARALLO, Valentina. Black Mirror: Mat Collishaw, cat.exp., Roma, 2014, sem paginação. , não paginado, tradução nossa).
  • 8
    . Tradução realizada pela professora Dra. Deborah Castro, da Universidade Federal de Alfenas.
  • 9
    . “Honoré Fragonard, primo coirmão do pintor de sucesso, é ‘professor e demonstrador de anatomia’ de 1766 a 1771 na escola veterinária de Alfort, dotando-a rapidamente de um laboratório de anatomia [...]” ( ARASSE, 2010ARASSE, Daniel. A carne, a graça, o sublime. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do corpo: Da Renascença às luzes / trad. Lúcia M. E. Orth; revisão da tradução Ephrain Ferreira Alves. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010, v.1, pp. 535-620. , p. 616)
  • 10
    . “O método incide sobre duas questões fundamentais para a preservação do corpo após a morte: a desidratação e a criação de um meio adequado para impedir a proliferação de fungos e bactérias e, assim, assegurar a manutenção dos tecidos e das demais estruturas anatômicas.” (JUNQUEIRA, 2007 apud MOURA, 2007MOURA, Mariluce. Lição de anatomia: Exposição Bodies produz um espetáculo espantoso e minucioso da anatomia humana. Revista Pesquisa FAPESP, ed. 132, fev. 2007, sem paginação. Disponível em http://revistapesquisa.fapesp.br/2007/02/01/licao-de-anatomia/ . Acesso em: 12 abr. 2015
    http://revistapesquisa.fapesp.br/2007/02...
    , sem paginação); “A plastinização substitui os fluidos corporais e a gordura com polímeros reativos, tais como silicone, borracha, resinas de epóxi ou poliéster. Na primeira fase do processo, solventes substituem gradualmente os fluidos com um banho de solvente gelado (‘substituição por congelamento’); em seguida, a peça desidratada é colocada num banho de imersão de solvente na temperatura ambiente, para a retirada da gordura. A peça desidratada e sem gordura, [sic] é colocada numa solução de polímero. O solvente é, então, fervido a vácuo e continuamente extraído. O solvente evaporado cria um vazio dentro da peça que será gradualmente preenchido pelo polímero. Após o processo (chamado de ‘impregnação forçada’), a peça é curada com gás, luz, ou calor, dependendo do tipo de polímero utilizado.” ( REBOLLO, 2003REBOLLO, Regina André. “De humani corporis circus” de Gunther Von Hagens. Scientiae Studia, 1(1), 2003, pp. 101-107. , p. 101)
  • 11
    . Walter Benjamin, ainda nos anos de 1935/1936, em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, intui mudanças que Cauquelin analisa com clareza no cenário artístico contemporâneo: “Com efeito, assim como na pré-história a preponderância absoluta do valor de culto conferido à obra levou-a a ser concebida em primeiro lugar como instrumento mágico, e só mais tarde como obra de arte, do mesmo modo a preponderância absoluta conferida hoje a seu valor de exposição atribuiu-lhe funções inteiramente novas, entre as quais a ‘artística’ , a única de que temos consciência, talvez se revele mais tarde como secundária .” ( BENJAMIN, 1994BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (primeira versão). In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura / trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. pp. 165-196. , p. 173, grifo nosso).
  • 12
    . Antes do início da divulgação da plastinização, Omar Calabrese (1987CALABRESE, Omar. A Idade Neobarroca / trad. Carmem de Carvalho e Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1987. , p. 66) escreveu: “O fantástico já está entre nós, basta apenas levá-lo mais além. [...] Dado o confim de um certo domínio científico examinemos-lhe os rebordos, os susceptíveis de fazerem avançar o próprio confim para onde o não havia, e, implicitamente, declara-se a existência de uma zona de fronteira variável ou irreconhecível entre ‘real’ e ‘possível inactual’”.
  • 13
    . “De fato, Hagens possui um contrato com o Instituto de Anatomia da Universidade de Novossibirsk, autorizando-o a recolher os corpos não reclamados de moradores de asilos e instituições assistenciais.” ( REBOLLO, 2003REBOLLO, Regina André. “De humani corporis circus” de Gunther Von Hagens. Scientiae Studia, 1(1), 2003, pp. 101-107. , p. 102); “A procedência dos corpos foi questionada, e a dimensão ética veio a tona [sic], ainda que o próprio Hagens sempre tenha afirmado que se tratavam [sic] de corpos doados voluntariamente, segundo os termos de um rígido contrato que rege as doações.” ( MOURA, 2007MOURA, Mariluce. Lição de anatomia: Exposição Bodies produz um espetáculo espantoso e minucioso da anatomia humana. Revista Pesquisa FAPESP, ed. 132, fev. 2007, sem paginação. Disponível em http://revistapesquisa.fapesp.br/2007/02/01/licao-de-anatomia/ . Acesso em: 12 abr. 2015
    http://revistapesquisa.fapesp.br/2007/02...
    ). Para o leitor interessado no programa de doação de corpos, basta acessar o link: https://bodyworlds.com/plastination/bodydonation/Acesso em: 17 jul. 2020.
  • 14
    . Cf. VALVERDE DE AMUSCO (1560)VALVERDE DE AMUSCO, Juan. Anatomia del corpo humano. HISTORICAL ANATOMIES ON THE WEB. Rome: Ant. Salamanca and Antonio Lafrey, 1560. Disponível em: http://www.nlm.nih.gov/exhibition/historicalanatomies/valverde_home.html. Acesso em: 30 jan. 2020.
    http://www.nlm.nih.gov/exhibition/histor...
    .
  • 15
    . Rebollo (2003REBOLLO, Regina André. “De humani corporis circus” de Gunther Von Hagens. Scientiae Studia, 1(1), 2003, pp. 101-107. , p. 104) refere-se a esse aspecto, citando a dissecação pública realizada em Londres por Hagens no dia 20 de novembro de 2002, 170 anos após a proibição dessa prática no Reino Unido. Atrás do médico foi fixada uma reprodução da Lição de anatomia do doutor Tulp . “Ele afirma que é um continuador da tradição anatômica de Galeno e Vesálio e de uma época na qual as demonstrações públicas eram promovidas em teatros anatômicos. Para ele, lamentavelmente, tais demonstrações estariam hoje confinadas a uma elite médica, privando o público leigo “do espetáculo e da maravilha do corpo humano” (Ibidem, p. 104).
  • 16
    . O leilão, ocorrido nos dias 15 e 16 de setembro de 2008 na Sotheby’s, em Londres, vendeu 223 obras, tendo alcançado uma cifra final de 365 milhões de reais em meio a um desastre financeiro em escala global. “Nesse mercado, o poder está nas mãos dos galeristas. Eles vendem as obras produzidas pelos artistas e embolsam comissões que variam de 30% a 50%. Só depois de cerca de cinco anos é que as mesmas obras chegam aos leilões – vendidas não pelos artistas diretamente, mas por colecionadores e galeristas que as compraram na baixa e vêem [sic] aí sua chance de lucrar. Por esse sistema, até o artista mais valorizado não ganha nada quando um trabalho seu atinge altas cotações nos leilões – apenas na Inglaterra eles têm direito a uma comissão ínfima, de 3% do valor da venda. Há dezoito meses, Hirst resolveu que era hora de peitar esse status quo. Planejou em detalhes a operação, produziu o lote de obras a toque de caixa e só avisou os galeristas que o representam em maio passado. O inglês Jay Jopling e o americano Larry Gagosian a princípio espernearam contra o golpe. Mas deram o braço a torcer: suas galerias terminaram por apoiar o leilão.” (REVISTA VEJA, 24 de setembro de 2008, pp. 102-103)
  • 17
    . O fato descrito na nota anterior, de que as próprias galerias “apoiaram” e até compraram obras no referido leilão, confirma o que Omar Calabrese disse em 1987, quando afirmou que os excessos são previstos pelo próprio sistema: “A fronteira, por causa de um excesso ‘aceitável’, é simplesmente empurrada mais para lá (até muito mais para lá do que dantes), com a consequente absorção, mesmo que conflitual, do excesso” ( CALABRESE, 1987CALABRESE, Omar. A Idade Neobarroca / trad. Carmem de Carvalho e Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1987. , p. 79).
  • 18
    . “A citação é um modo tradicional de construir um texto, que existe em todas as épocas e estilos. [...] Importaria então saber antes qual é o tipo e a natureza da citação actual. Esta revela-se um elemento relevante, de facto, só e somente se difere em alguns traços da citação do passado.” (Ibidem, p. 187)
  • 19
    . O gesso original foi comprado de Benedetta Marinetti (viúva do poeta futurista), em 1952, por Ciccillo Matarazzo e doado pelo colecionador ao antigo MAM de São Paulo. Em 8 de abril de 1963, o trabalho foi doado para a USP e, desde então, faz parte do acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP). A cronologia completa da obra pode ser consultada no texto “Cronologia das obras Formas únicas de continuidade no espaço e Desenvolvimento de uma Garrafa no espaço de Umberto Boccioni”, de Marina Barzon Silva. Disponível em: http://www.mac.usp.br/mac/conteudo/academico/publicacoes/boletins/escultura/pdfs/CRONO_BOCCIONI_PORT.pdf . Acesso: 15 jul. 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    7 Fev 2020
  • Aceito
    2 Jul 2020
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo Depto. De Artes Plásticas / ARS, Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, 05508-900 - São Paulo - SP, Tel. (11) 3091-4430 / Fax. (11) 3091-4323 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: ars@usp.br