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O filósofo & a arte1 1 . SOULAGES, François (org.). Recherche & Bibliothèque. Paris: PUV, 2004.

Resumos

Que inter-relações possíveis existem entre a pesquisa filosófica1 e a arte? Tal é o problema que será trabalhado neste texto, no qual, por falta de espaço, não faço mais que evocar as experiências pessoais do primeiro momento, reservando sua análise para um futuro livro. No segundo momento, serão tiradas as consequências dessas experiências traçando-se as grandes linhas de uma estética em inter-relação com a arte.

pesquisa filosófica; arte; estética


What are the possible interrelations between art and philosophical research? This is the issue to be discussed on this text, in which, for a matter of space, I do nothing more than evoke personal experiences from a first moment, saving the analisis of the question for a future book. In a second moment, the consequences will be drawn from these experiences by drawing the main lines of an aesthetic in interrelation with art.

philosophical research; art; aesthetics



Gilbertto Prado, Série Amazonas, 2011.

Para Bernard d’Argenton

A condição humana implica a faculdade de compreender o que denominamos ideia, isto é, ser capaz de partir da multiplicidade de sensações para alcançar a unidade mediante reflexão.

Platão2 2 . Platon, Phèdre, 29 b-c, trad. L. Robin, Paris, Les Belles Lettres, 1970. [Utiliza-se, aqui da tradução de Carlos Alberto Nunes: PLATÃO. Fedro. Belém: Editora da UFPA, 2007, p. 75].

Um filósofo & a arte

Teoria & estética

Para trabalhar, o filósofo tem três campos de produção: o mundo exterior, que ele pode observar, analisar e interrogar, o mundo intermediário, que é o do pensamento, da escrita, do imaginário e do inconsciente, e o mundo da cultura, mais especificamente, da cultura filosófica. Ele dialoga com esses três campos; nesses três campos ele dialoga com outros homens. Pensar, escrevia Platão, “[... é operar] um discurso (logos) que a alma mantém consigo mesma, acerca do que ela quer examinar. (...) A alma no ato de pensar: formula uma espécie de diálogo para si mesma com perguntas e respostas, ora para afirmar ora para negar”3 3 . Platon, Théétète, 189 e, Paris, Les Belles Lettres, 1976. [Utiliza-se, aqui, da tradução de Carlos Alberto Nunes: PLATÃO. Teeteto. Belém: Editora da UFPA, 2001, p. 108]. . Acrescentemos: por certo consigo mesma, e isto é essencial, mas também com os outros e com o mundo, tal como Sócrates, por meio de seus diálogos.

O filósofo que quer fazer pesquisas sobre a arte é, portanto, obrigado a se confrontar, certamente com o mundo intermediário e o mundo da cultura, mas, antes de tudo, com o mundo exterior, ou seja, o ou os mundos da arte.

Mas o que compõe o mundo da arte? As obras, sem dúvida, os processos que produziram essas obras – de onde a poiética –, os condicionamentos e as intenções dos artistas em seus atos de fazer ou de criar, os artistas e suas fábulas, a microssociedade rizomática em que se realizam essas práticas artísticas – sua produção, sua comunicação, sua venda, seu consumo, sua contemplação – e os discursos e práticas que os acompanham.

O filósofo deve, portanto, conhecer esse mundo além das aparências, e, assim, nele imergir, para compreendê-lo de dentro, bem como de seu exterior.

Por essa razão, o filósofo não será antes de tudo um esteta, mas um pesquisador, homem da pesquisa de campo, comparável, por vezes, ao etnógrafo, e, outras, ao psicanalista, ao arqueólogo, ao sociólogo etc. Por esse motivo, ele será sempre teórico, isto é, aquele que também tem uma abordagem teórica da arte, aquele que estuda objetos do mundo da arte como se não fossem arte, ou, mais exatamente, fazendo a epoché no sentido fenomenológico do termo, colocando entre parênteses a questão de saber se tal coisa é arte ou não-arte e que valor estético poderia ter. Essa postura teórica deve sempre ser uma fase primeira do trabalho da pesquisa e ao mesmo tempo uma exigência que acompanha o filósofo que trabalha a arte, mesmo quando ele desdobra o momento estético.

Em consequência, a pesquisa do filósofo em arte deve ser duplamente pluridisciplinar: em sua própria prática e em suas relações inevitáveis com pesquisadores pertencentes a outras disciplinas e especializados em seus respectivos tipos de abordagem.A pesquisa do filósofo sobre a arte articula então a teoria e a estética.

Exemplos

E é por isso que sempre trabalhei com artistas para fazer pesquisa sobre arte. Em geral, artista vivos; mas pode-se também trabalhar com os falecidos, o que é diferente.

Por falta de tempo, apenas evocarei – uma análise minuciosa seria bastante útil, mas tomaria muito tempo – alguns exemplos de tipos de inter-relação entre minha pesquisa e artistas.

1. O acolhimento e a escuta: encontro um artista e antes de mais nada olho o que ele fez, leio o que escreveu e sobretudo escuto o que diz, tal como um analista; além disso, é possível que eu me cale, e, ainda melhor: entro em seu mundo, tentando, a cada instante, criticar ou, em todo caso, estar consciente de meus próprios a priori de recepção. Exemplo: ORAMAS, Sandro. Fotografia e arqueologia. Paris: L’Harmattan [coleção Eidos, série Phtographie], 2013.

2. O diálogo: o trabalho é então mais socrático: por meio de minha fala e meu silêncio, mais do que por minhas perguntas, não só fazer com que o outro engendre algo essencial, mas também ajudá-lo a sair de sua repetição, do discurso que o assegura e que se conhece, de sua fábula. Exemplo: Bernard Koest, artiste-contemporain. Paris: L’Harmattan [coleção Eidos, série Création], 2013.

3. A análise geral da obra com o artista e suas relações em laços estreitos comigo: qualquer pergunta é aqui possível. Exemplo: Vera Chaves Barcellos, obras imcompletas. Porto Alegre: Zouk, 2009 – Prêmio Açorianos da melhor publicação de arte 2009 do Brasil.

4. A colaboração: os papéis são então trocados: sou aceito no campo com minhas especificidades; o etnógrafo entra na tribo. Projetos e colaborações estabelecem-se. Exemplo: Dedans/Dehors. Paris: Faut Voir, 1984 [com Marc Pataut].

5. Uma exposição sobre a obra do artista, ou como ser curador. Exemplo: Gérard Moulin, Proximité (Paris, Argraphie, 1987).

6. Uma exposição individual com um artista. Exemplo: Catherine Brebel, Moments éphémères (Paris, Argraphie, 1988).

7. Uma exposição coletiva com vários artistas. Exemplo: Création (photographique) en France (Toulon, Musée de Toulon, 1988).

8. Um livro sobre um artista. Exemplo: Ecrits sur images. Sur Philippe Bazin. Paris: L’Harmattan [coleção Eidos, série Photographie], 2013.

9. Um livro para um artista: sou então o editor. Exemplo: a coleção Carnets, da Editions Argraphie.

10. Um livro com um artista. Exemplo: L’alphabet indien. Aubervilliers: La Maladrerie, 1986 [com Marc Pataut].

11. Uma pesquisa com um artista. Exemplo: Franz Aabaa, Géoartistique & Géopolitique. Paris: L’Harmattan [coleção Eidos, série Local & Global], 2012.

12. Uma pesquisa com um artista-pesquisador universitário. Exemplo: sobre a imagem, com Gilbertto Prado.

13. Pesquisa com os artistas mortos. Exemplo: Relire Kosztolanyi. Paris: L’Harmattan, 2006.

A estética

A partir desses trabalhos específicos em campo, uma estética pode ser induzida.

O método da estética é intrinsicamente constituinte da própria estética; a separação da essência e do método da estética é uma separação de exposição e não de natureza: não há de um lado a estética e de outro seu método; há uma disciplina que existe com e por seu método; o pesquisador deve saber disso, experimentá-lo e colocá-lo em prática.

Para ser rigorosa e pertinente, a abordagem estética de um objeto – de uma ou várias obras, de uma ou várias artes ou da arte – deve se basear primeiro em uma abordagem sensível desse objeto, e, em seguida, em sua abordagem teórica. Essa proposição aplica-se igualmente ao fundamento e ao método da estética. Minha concepção da estética apoia-se numa reflexão induzida pela pluralidade e diversidade das experiências que tive e que tenho da arte: experiência sensível, poética, criadora, teórica, filosófica etc. Essa indução é semelhante à das ciências experimentais.

Se falo da abordagem de uma obra ou de uma arte, é para insistir no fato de que a obra ou a arte nunca é totalmente alcançada por uma abordagem, qualquer que seja ela; e, portanto, de que permanece em uma obra ou uma arte algo inominável e intraduzível que resiste à análise e garante a re-visão e a re-leitura da obra ou da arte. A abordagem de uma obra de arte se assemelha – nesse ponto – à filosofia, na medida em que esta é amor pela sabedoria, mas não sua posse; senão, ela seria dogmática e, por conseguinte, antifilosófica; do mesmo modo, uma abordagem que pretendesse possuir uma obra de arte e explicá-la totalmente seria dogmática e, por conseguinte, deveria ser rejeitada. Essa pretensão à posse e à explicação total é uma tentação à qual o pesquisador deve resistir na medida em que, de pesquisador crítico, ele se transformaria num ideólogo não-crítico, ou seja, sem grande interesse pela pesquisa científica. A criação deve resistir a esse dogmatismo sufocante. A obra de arte não é (nada mais do que) um signo.

A abordagem sensível

Cronologicamente, essa é a primeira abordagem que temos de uma obra, quando a defrontamos pela primeira vez. A abordagem por nossos sentidos.

Mas não sejamos ingênuos. O homem que recebe pela primeira vez uma obra de arte não é virgem nem de todo passado, nem de toda sensação, nem de todo pensamento. O imediato não existe em sua radicalidade; a obra é sempre recebida por um sujeito que tem uma história, história de seus sentidos e de seu corpo, de seu espírito e de seu pensamento, de seu inconsciente e de sua consciência etc. Esse homem não é neutro. Mas insistamos no fato de que no começo existe a experiência por meio dos sentidos da obra, mesmo no caso de uma obra conceitual, diante da qual os sentidos não são inexistentes, mas algumas vezes frustrados em relação a sua expectativa e, por isso mesmo, tão presentes, por sua frustração.

Aparentemente, nosso pressuposto antropológico é que o homem é antes de tudo um ser sensível. Na realidade, as coisas são mais complexas, bem como nosso pressuposto: o homem é o ser do sentido; mais explicitamente, o ser do sentido e do sentido – entenda-se, da sensação e da significação, do corpo e do espírito etc. E a palavra mais importante nessas fórmulas antropológicas precedentes é, obviamente, a palavra “e”. O homem é o ser do “ao mesmo tempo” – cf. nossa estética do “ao mesmo tempo”, correlativa, em última instância, a essa proposição antropológica –, ao mesmo tempo receptor de sensação e fornecedor de significação, experimentador de sensação e interrogador de significação.

Vive-se esse “ao mesmo tempo” na oscilação e na tensão. E, perante uma obra de arte, o homem experimenta essa tensão oscilante entre sensação recebida e significação requerida, entre ruído e linguagem. É certo que essa oscilação é vivida de modo diferente pelas diferentes artes e diferentes obras: por exemplo, o mesmo não se dá com a dança e com a literatura; porém, em todos os casos, quando a pessoa está diante da obra recebida como uma obra – o que já acarreta um problema –, ela é tomada por essa oscilação, porque o próprio do ser humano é ser um ser que, diante do ser do mundo, é tragado por essa oscilação entre sentido e sentido, sensação e significação, traço e traçado – cf. nossa estética do traço e do traçado, correlativa, também ela, em última instância, a nosso pressuposto antropológico.

Mas essa abordagem sensível da obra não é única. Ela pode ter modalidades diferentes. Pode ir da recepção sensível aparentemente total à criação sensível e intelectual de novas obras: no primeiro caso, falaremos de abordagem acolhedora, no outro, de abordagem criadora. Existem, sem dúvida, numerosos intermediários entre esses dois limites, em especial, a abordagem poética.

A abordagem teórica

Quanto mais a abordagem sensível aproxima intimamente o homem e a obra, a ponto, às vezes, de engendrar uma emoção e uma vibração que dão a ilusão de fusão e de imediaticidade, tanto mais a abordagem teórica impõe uma distância entre o homem e a obra, recusando qualquer risco de confusão e sentimentalismo e abordando a obra como se fosse o objeto de uma análise fria, precisa e rigorosa; por razões metodológicas, a abordagem teórica faz a epoché da dimensão artística da obra ou da arte estudadas. O sujeito sensível, pessoal, carnal e particular é solicitado a dar lugar ao sujeito científico, impessoal, espiritual e público: o “nós” universal e geral substitui o “eu” singular e particular.

Essa abordagem é absolutamente necessária se não quisermos que o enunciado sobre o objeto seja maculado de subjetivismo e portanto invalidado, considerando seu relativismo. É praticada pela filosofia, pelas ciências humanas – história, antropologia, sociologia, etnologia, psicologia, psicanálise, mediologia, semiologia, ciências da informação e da comunicação, economia etc. – e as ciências experimentais – biologia, física etc. Oferece, assim, pontos de vista novos e originais sobre o objeto, que permitem concebê-lo de diferentes maneiras. “E assim como uma mesma cidade, observada de diferentes lados, parece outra e se multiplica em perspectivas, assim também ocorre que, pela quantidade infinita de substâncias simples, parece haver outros tantos universos diferentes, os quais não são, todavia, senão perspectivas de um só, segundo os diferentes pontos de vista de cada Mônada”4 4 . Leibniz. La Monadologie. Paris: Delagrave, 1956, § 57 [Utiliza-se, aqui, da tradução de Fernando L. B. Gallas de Souza: LEIBNIZ. A monadologia e outros textos. São Paulo: Hedra, 2009] . Essa observação de Leibniz mostra por que a pluralidade dos pontos de vista impõe-se e por que é enriquecedora. Ter vários pontos de vista sobre o mesmo objeto é um elemento fundamental de toda pesquisa.

Essa abordagem teórica tem quatro interesses. Primeiro, oferece novas representações do objeto estudado. Em seguida, permite ter uma melhor compreensão, objetiva e calculada, desse objeto; ela se liberta de uma parte das projeções do sujeito sobre a obra. Depois, torna possível o estudo de uma obra ou de uma arte colocando entre parênteses – no sentido husserliano do termo – a própria questão da arte, o que permite pensar diversamente essa obra ou essa arte. Por fim, ela pode ser um fundamento necessário para a abordagem estética.

A abordagem estética

Esta última abordagem baseia-se nas duas primeiras. Na realidade, aquele que faz pesquisa em estética deve primeiro ter uma relação sensível com seu objeto. Esse tipo de relação alimenta a dimensão existencial da estética e pode desenvolver-se na abordagem criadora. O pesquisador é, então, criador. Ele pode, como diz Husserl, fazer a epoché da pesquisa, colocá-la entre parênteses, ou seja, engavetá-la para retomá-la depois, enriquecida por sua criação; pode também pôr em prática sua criação, experimentando-a em ligação com a pesquisa, e mesmo em função desta.

Mas o pesquisador deve saber agir, por algum tempo, como se estivesse separado existencialmente de seu objeto. Deve operar sobre ele uma reflexão crítica e conceitual e adotar uma abordagem teórica. Esse movimento é o oposto do anterior. Tal é a necessidade da dialética da pesquisa.

Mas, depois dessa antítese teórica oposta à tese sensível, pode advir o terceiro momento da dialética, ou seja, a síntese estética que, mediante uma Aufhebung, reúne o que foi separado e ultrapassa o que foi negado; sem esses dois momentos anteriores, a síntese estética seria desprovida de carne – momento do sensível – e de pensamento – momento do teórico.

A dialética sensível/teórica/estética prossegue ao infinito no interior do próprio momento estético: a estética, que deve sempre se apoiar nas obras e partir das obras para pensá-las e julgá-las, opera uma interação incessante entre a instância do sensível e a instância do teórico.

Se, cronologicamente, tudo começa pelo sensível, não esqueçamos que esse sensível é desde o princípio habitado pela questão da significação. Por conseguinte, tampouco se pode entender os três momentos da dialética como três momentos temporais que obedeçam a uma lógica cronológica. Sem dúvida, em certos casos – para a pesquisa, para a exposição da pesquisa e para o ensino –, esses momento podem ser cronológicos; mas são antes de tudo três instâncias dessa pesquisa – a terceira articulando as duas primeiras. Em outros termos, correlativamente à proposição antropológica que nos descreve o homem como o ser da oscilação tensionada entre a sensação e a significação, a estética opera uma oscilação tensionada entre o sensível e o teórico. Há, então, não um movimento pendular repetitivo e impotente – “a repetição é a morte”, escreve Freud –, mas uma dialética ascendente entre a abordagem sensível e a abordagem teórica, que conduz então à e na abordagem científica. Enfim, o pesquisador em estética não pode esquecer nem seu corpo – abordagem sensível –, nem seu espírito – abordagem teórica –, nem a união do corpo e do espírito – abordagem estética. Daí o que chamo a estética do “ao mesmo tempo”.

Lembremos que o momento teórico pode tanto fornecer problematizações, elucidações e conceituações úteis para a estética, quanto constituir seu fundamento. Isso esclarece melhor as relações da estética com a filosofia e as ciências humanas. A primeira se serve das últimas para se fundar, alimentar e desenvolver.

A pesquisa em estética

As qualidades da pesquisa em estética

Quanto a sua relação com a abordagem teórica, a abordagem estética compõe-se antes de tudo em seu fundamento de uma estética primeira, que é resultante direta das conquistas teóricas. Ela constitui o fundamento de todo o edifício estético. Sobre essa base estética, podem ocorrer e adquirir sentido estéticas secundárias.

Considerando sua natureza e suas relações com as abordagens sensível e teórica, a estética é existencial, crítica e conceitual. De fato, a estética é existencial5 5 . E não “existencialista”. , porque uma obra de arte em sua criação e recepção chega o mais perto possível da existência do sujeito; é crítica6 6 . E não se reduz a ser “crítica de arte”. , porque vai além das representações pré-formadas e dos pretensos imediatos; é conceitual, porque visa a estabelecer uma teoria por meio de conceitos especificados com rigor e mutuamente articulados.

Se não mantiver unidas essas três características, ela não pode ser ela mesma: como não ser existencial e ter uma relação existencial com as obras? Nesse caso, a estética seria um saber mecânico e frio, sem relação real com a própria arte, e passaria ao largo dela; seria tão somente uma teoria. Como não ser crítica? Nesse caso, a estética seria uma espécie de pathos pseudoteórico, escrava das modas e das ilusões. Como não ser conceitual? Nesse caso, a estética seria, na melhor das hipóteses, tão somente uma poética. Mais do que qualquer outra abordagem teórica, a estética é existencial, crítica e conceitual, pois se apoia em permanência na abordagem sensível e na abordagem teórica da obra de arte.

Como mostrou Bachelard para a pesquisa em ciências físicas, a pesquisa em estética deve primeiro incidir sobre um setor estreito, preciso e circunscrito, uma “região” determinada; a estética deve primeiro ser regional. Feito esse estudo setorial, duas perspectivas podem apresentar-se: um aprofundamento da pesquisa ou seu alargamento. É verdade que o pesquisador pode querer ou ter de aprofundar sua pesquisa. É possível, então, que um estudo ainda mais setorial se revele útil, e mesmo necessário. Mas o movimento inverso de pesquisa pode também produzir-se e resultar num alargamento do setor estudado. Assim, a estética regional tem um objeto preciso concreto; não deve ser confundida com a estética geral, que pode tomar como objeto uma arte em geral ou até a arte em geral.

A estética geral pode ter duas origens. Pode ser uma generalização de uma ou várias estéticas regionais: ela é, então, o fruto de uma indução generalizante posta em prática a partir de uma ou de várias estéticas regionais.

Essa estética indutiva distingue-se de uma estética dedutiva geral, que seria fruto de uma dedução efetuada a partir de uma filosofia. A estética geral é, portanto, uma ponte possível entre a estética regional e a filosofia. Essa ponte pode ser transposta nos dois sentidos: ou se parte das obras para induzir uma e mesmo várias estéticas regionais, para, depois, elaborar uma estética geral, e para, a partir daí, abrir-se à filosofia geral, considerando as questões filosóficas que estão em jogo em toda obra de arte; ou se parte da filosofia geral para dirigir-se a uma estética geral (e, depois, a uma ou várias estéticas regionais), e, por fim, a obras de arte. Em todos os casos, a obra e a arte devem estar no cerne do processo. Mas se pode também, livremente, não transpor a ponte.

A estética, para se desdobrar, preenche três funções: a descrição, a problematização e o juízo de valor. A descrição só adquire sentido quando articulada a uma problematização. Estas, descrição e problematização, são adotadas em função de juízos de valor: os juízos de valor preliminares incitam o pesquisador a tomar por objeto tal elemento e não outro, tal obra e não outra; o pesquisador não confia no puro acaso e no aleatório para escolher seus objetos. No momento da análise e da pesquisa, ele tem que ser crítico: ele pode, deve recolocar em causa esses juízos de valor, seja para nuançá-los, seja para invalidá-los totalmente. O resultado de sua pesquisa pode conduzir a novos juízos. O que não é obrigatório, mas pode constituir o horizonte ao qual o pesquisador pode visar. Levar em consideração o juízo de valor é tanto mais necessário quando se abordam os problemas essenciais da passagem da não-arte à arte e das fronteiras estéticas da arte, bem como quando se reflete sobre o estatuto da obra de arte no século XX a partir de Duchamp.

Qualificaremos de “axiológica”7 7 . Do grego “axios”, que significa “digno, de grande valor”, sendo a axiologia a ciência ou a teoria dos valores. essa orientação da estética que leva em conta a questão do juízo de valor. Afirmar a existência dessa possível dimensão da estética é duplamente necessário: de um lado, ela é de jure uma tarefa ideal a cumprir, mesmo se é de facto difícil e, talvez, às vezes impossível; de outro, é a condição de possibilidade de uma crítica de arte que quer algo além da imprecação ou do anátema, da simplificação ou do arbitrário, da ideologia ou da moda – ideologia e moda não passam de conformismo, são radicalmente opostas ao pensamento que é sempre (auto)crítico.

Quando o pesquisador estabelece seus primeiros objetos de análise, deve estar consciente desses problemas, senão, do mesmo modo como Althusser8 8 . ALTHUSSER, Louis. Philosophie et Philosophie spontanée des savants. Paris : François Maspéro, 1974. falava da filosofia espontânea dos cientistas, poderíamos falar da estética espontânea do pesquisador; mas esta estética, supondo a ausência de consciência crítica do pesquisador, seria de facto uma simples opinião, ou até mesmo uma ideologia. O pesquisador encontra-se então na situação de Descartes no Discurso do método9 9 . Terceira parte, §1. , na medida em que está diante de juízos axiológicos de cuja validade não pode estar seguro; também, como Descartes, deve, consciente e racionalmente, qualificar seus juízos como provisórios e saber e dar a saber que possui uma estética axiológica provisória, ou seja, hipóteses, e não teses. Sabe-se que Descartes nunca passou da moral provisória à moral definitiva, talvez porque tenha morrido cedo demais, talvez porque uma moral cartesiana definitiva fosse impossível: Descartes não era Kant. Do mesmo modo, é possível que uma estética axiológica não possa ser mais do que provisória; mas, ainda assim, é preciso reconhecê-lo, para não (se) enganar a respeito dessa estética mesma – o provisório é algo que o pesquisador propõe para avançar prática e teoricamente (em sua pesquisa).

O tempo da pesquisa

A pesquisa em estética desenrola-se segundo uma série aberta de etapas:

  1. Confronto com realidades, temáticas, noções, problemas, problemáticas, teses, teorias e até mesmo sistemas.

  2. Avaliação crítica de todos esses elementos em função, por um lado, das realidades percebidas e representadas sob outros pontos de vista, e, por outro, do exercício efetivo da razão em ato.

  3. Formulação de hipóteses relativas a esses elementos ou a novos elementos – novas realidades, novas temáticas, novas noções, novos problemas, novas problemáticas, novas teses, novas teorias.

  4. Confronto dessas hipóteses com as realidades e com o exercício da razão.

  5. Estabelecimento de novas representações de realidades, de novas temáticas, novos conceitos, novos problemas, novas problemáticas, novas teses, novas teorias e mesmo de um novo sistema aberto.

  6. Novo confronto de todos esses elementos com realidades novas e com o exercício da razão.

  7. Etc...

A problemática e o problema; o conceito, a hipótese, a tese e a teoria.

Podemos tirar, daí, quatro consequências.

Em primeiro lugar, a pesquisa opera por meio de certo número de instrumentos, particularmente por meio de conceitos. A passagem da etapa 1 à etapa 5 caracteriza-se justamente pela passagem das noções aos conceitos: as noções são de fato pouco precisas, provêm frequentemente de um domínio não refletido em razão – inclusive da ideologia –, colocam-se às vezes como designadoras de realidades fixas, não históricas, e até mesmo eternas e absolutas; o conceito, por sua vez, deve ser precisamente definido e circunscrito, deve provir da pesquisa científica e, desta forma, ter uma função tão somente operatória, em um setor determinado e por um tempo determinado, e assim estar destinado a ser novamente precisado, e até substituído. Produzir conceitos é a tarefa primeira do pesquisador; essa produção permite oferecer aos outros e a si mesmo instrumentos de pesquisa, de análise e de pensamento. Produzir teses é decerto necessário também; mas, por um lado, depende da produção de conceitos – pois uma tese é uma articulação de conceitos –, e, por outro lado, uma tese descontextualizada, isto é, separada de seu fundamento ou de sua demonstração, pode sempre ser confundida com uma proposição ideológica. Por isso, o trabalho sobre os conceitos é essencial.

Segunda consequência: também capital para a pesquisa é a construção de problemas; por um lado, porque depende do necessário espírito crítico; por outro, porque os problemas são fruto de uma elaboração do pensamento. Problemas prontos não são encontráveis como cogumelos nos bosques; eles são postos em prática. Por isso, uma vez que esses problemas são postos em prática, sua resolução às vezes não está longe. Um problema só adquire seu sentido no seio de um conjunto mais vasto, ou seja, em uma problemática – conjunto articulado de problemas. Estabelecer problemáticas novas é uma tarefa decisiva e bastante fecunda para a pesquisa: Cristóvão Colombo descobriu a América justamente porque tinha uma outra problemática da viagem. Enfim, do mesmo modo que os conceitos, também as problemáticas e os problemas são decisivos para a pesquisa: constituem a base sobre a qual podem ser construídas teses e teorias; uma teoria é uma articulação racional de teses; uma teoria é, para as teses, o que uma problemática é para os problemas.

Terceira consequência: só depois de um tempo relativamente longo de pesquisa é que se pode propor um sistema. Um sistema não pode ser seriamente apresentado antes da etapa 5. Se é feito com muita rapidez, ele corre o risco de ser um efeito de retórica ou de habilidade sofística comunicacional, inclusive midiática. Não esqueçamos que Sócrates, no final de muitos diálogos, terminava numa aporia, ao passo que os sofistas podiam sistematicamente responder a tudo. Os ideólogos e os dogmáticos também têm resposta a tudo. É preciso, portanto, visar não ao brilhante, e, sim, ao profundo; é preciso, portanto, basear seu sistema em razão e não lhe dar uma aparência irrefutável. O irrefutável não é científico, como mostrou Popper. Um sistema deve ser aberto: é preciso substituir o espírito do sistema pela exigência de sistematicidade.

Daí, deduz-se a quarta consequência: a pesquisa nunca acaba. Um sistema posto em prática está destinado também a ser completado e até ultrapassado.

  • 1
    . SOULAGES, François (org.). Recherche & Bibliothèque. Paris: PUV, 2004.
  • 2
    . Platon, Phèdre, 29 b-c, trad. L. Robin, Paris, Les Belles Lettres, 1970. [Utiliza-se, aqui da tradução de Carlos Alberto Nunes: PLATÃO. Fedro. Belém: Editora da UFPA, 2007, p. 75].
  • 3
    . Platon, Théétète, 189 e, Paris, Les Belles Lettres, 1976. [Utiliza-se, aqui, da tradução de Carlos Alberto Nunes: PLATÃO. Teeteto. Belém: Editora da UFPA, 2001, p. 108].
  • 4
    . Leibniz. La Monadologie. Paris: Delagrave, 1956, § 57 [Utiliza-se, aqui, da tradução de Fernando L. B. Gallas de Souza: LEIBNIZ. A monadologia e outros textos. São Paulo: Hedra, 2009]
  • 5
    . E não “existencialista”.
  • 6
    . E não se reduz a ser “crítica de arte”.
  • 7
    . Do grego “axios”, que significa “digno, de grande valor”, sendo a axiologia a ciência ou a teoria dos valores.
  • 8
    . ALTHUSSER, Louis. Philosophie et Philosophie spontanée des savants. Paris : François Maspéro, 1974.
  • 9
    . Terceira parte, §1.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2012

Histórico

  • Recebido
    10 Out 2012
  • Aceito
    26 Out 2012
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