Acessibilidade / Reportar erro

Agripina é Roma-Manhattan, um belo quase-filme de HO1 1 . O presente texto é versão expandida e modificada do artigo: MACHADO JÚNIOR, Rubens. The resonant time of Hélio Oiticica quasi-film. In: LERNER, Jesse; PIAZZA, Luciano (orgs.). Ism, ism, ism – ismo, ismo, ismo: experimental cinema in Latin America. Oakland: University of California Press, 2017. Sua elaboração teve o apoio do projeto “PST: LA/LA: Pacific Standard Time: Latin America in Los Angeles”, coordenado por Los Angeles Filmforum e Getty Foundation (2014-2017). .

Agripina é Roma-Manhattan, beautiful quasi-movie of HO.

Resumo

Não faz maior sentido perder-se em discussões sobre ser ou não inacabada a realização de Hélio Oiticica rodada na Wall Street de 1972 levando-se em conta o filme que temos visto desde 1992 (em quase todas as retrospectivas do artista mundo afora) enquanto uma obra experimental concebida a partir da prática superoitista brasileira daquele início de década. Consideramos nesta análise sua relação com essa matriz de experiência, além do diálogo profícuo do artista não só com o cinema anterior de seu país como também sua cultura, política, arte e literatura reativadas desde o século pregresso.

palavras-chave:
Hélio Oiticica; cinema udigrudi; superoitismo brasileiro; arte-vida; neoconcretismo; Estética do Sonho

Abstract

It doesn’t make any sense to waste time with discussions about the work shot in Wall Street, 1972, being or not being unfinished, considering the film we have been seeing since 1992 (in almost all the artist’s retrospectives around the world) as an experimental oeuvre conceived from the supereightist practice of that decade beginning. We consider in this analysis its relation with this experience matrix, and the artist’s fruitful dialogue not only with his country’s previous cinema but also with his culture, politics, art and literature reactivated from the previous century.

keywords:
Hélio Oiticica; udigrudi cinema; Brazilian supereightism; art-life; neo-concretism; Aesthetic of Dream

“Vinde a New-York, onde ha logar p’ra todos,
Patria, se não esquecimento, - crença,
Descanso, e o perdoar da dor immensa”
SOUSÂNDRADE, 1873-188..., O Guesa.

Há uma história a ser escrita sobre a adesão dos artistas brasileiros ao uso do cinema, com câmeras leves e acessíveis, muito ao modo “amadorístico”, produções concentradas bem no período que corresponde ao agravamento da ditadura militar depois do AI-5, em 1968, e se prolongando até a abertura política. Sua concentração na década de 1970 precede os estertores do regime militar, desde os seus momentos mais negros, na primeira metade da década. A tensão da pesquisa estética desse experimentalismo se dá clara e forçosamente em espaço por vezes evasivo, outras vezes recluso, e por fim numa prática de corpo a corpo com o espaço público algo enviesada, irônica, características que parecem encontrar-se em filmes e vídeos de diferentes poetas, artistas plásticos e uma geração nova de cineastas radicais.

Além da proximidade verificável entre a experimentação de cineastas e de artistas plásticos, um paralelo pertinente contemplaria ainda o cotejo deste cinema com a jovem produção poética dos anos 1970, ou a chamada literatura de mimeógrafo. Por exemplo, uma mesma atração pelo aqui-e-agora vividos na circulação cotidiana, numa diversificada inclinação localista que se revela ora sutil, ora explosiva, em verve telúrica, ironizante, cifrada e estranha. Tanto romântica como realista, se recuamos mais (coisa rara na pesquisa crítica), seu discurso pode nos fazer pensar no romantismo de um remoto passado literário do país, com mais de um século; e no realismo, certas tradições regionalistas radicalizadas pelo nosso maior arrojo moderno na música, mesmo no cinema. Ou na recentíssima tradição poética e visual concreta, neoconcreta, pop, tropicalista, contracultural... Poderiam (ou não) fazer a contrapartida mais ou menos consciente àqueles deslocamentos hegemônicos da modernização conservadora expressa agora a cores, em cada domicílio, na telinha da TV. Esta provocante confluência tripla de poetas, artistas e a inquietude jovial empunhando câmeras talvez nos ajude a explicar tanto cineasta em flor equiparando a fala dos seus filmes à melhor poesia marginal; artista a decupar e ritmar suas fitas melhor que muito cineasta de carreira; ou poeta convertido a bom praticante da plástica cinematográfica. Enfim uma poética inquieta que reverbera e precipita um novo olhar, em comparável inchaço do presente, levando à raia da consciência física dos corpos, do mundo e também do meio específico de expressão, em auto-reflexividades várias.

As novas gerações de cineastas, sob a égide reconhecida do manifesto de Glauber Rocha, “Estética da Fome” (1965), ou da palavra de ordem dos inícios do Cinema Novo, “Uma ideia na cabeça e uma câmara na mão”, convergiam na década de 1970 em seus primeiros Super-8 ou 16mm para padrões diferentes, incluindo uma voluntária informalidade. Enquanto já os artistas em seus filmes frequentemente surpreendiam parecendo “profissionais”, seja pela consciência do domínio cênico das imagens, os enquadres da câmara, uso da decupagem - porque não dizer, frequentavam com inesperada facilidade os efeitos de mise en scène ou da forma fílmica. É o caso de quase todos os artistas ou poetas, Marcello Nitsche, Lygia Pape, Torquato Neto, Anna Maria Maiolino, Nelson Leirner, Ismênia Coaracy, Jomard Muniz de Britto, Analívia Cordeiro. É verdade que de fato os artistas se dividiam claramente nesta direção quando queriam e, quando não, mimetizavam não o bom cinema, mas ao contrário, uma informalidade bastante amadora: basta lembrar dos filmes de Artur Barrio. É claro que se mimetizavam procedimentos do mais espontâneo amadorismo convencional mas com um controle formal dele; por exemplo nota-se a conjugação dessa trivialidade amadorística com uma sensibilidade do timing cênico nada banal, ou melhor, de uma banalidade um tanto especial. Veja-se o Super-8 RITUAL (1971), ou o ABERTURA I (1972) de Artur Barrio, câmara de Renô, que parece compor os movimentos espontâneos com grande exatidão ao filmar. Em gestos alegres vem o próprio Barrio, uma coca-cola litro é aberta e servida como champanhe, em perfeita ambiguidade entre a comemoração frugalmente solene e o tom de uma aberta caçoada bêbada - o líquido ferruginoso aspergido pelo gramado abaixo inocula alvuras de um monte de faixas de papel higiênico jogadas há pouco como serpentinas: conviva do evento, nosso olhar é convidado a brindar, obra de gestos fortuitos precisamente construídos.

A primeira vez que vi AGRIPPINA É ROMA-MANHATTAN (1972), de Hélio Oiticica (1937-1980), não sabia o que estava vendo. Entrei ao acaso numa sessão e ele já estava passando, eram curtas do Cinema Marginal brasileiro numa mostra no Jeu de Paume, Paris, em 1992. Só soube que filme era depois, revendo a sessão com o programa em mãos, o que me tinha me deixado uns dias curioso com aquela lembrança, tanto por ignorar seu nome, ou do realizador, mas sobretudo pela evolução daquelas figuras meio fantasiadas pelas ruas de Nova York, indo de postura tão rígida e estacada quanto os prédios ao redor, até à mais livre e solta, que a inquietude da câmera dispersou pelo ar. Não sabia tampouco que estava diante da maior mostra jamais realizada sobre o Cinema Marginal, do qual eu já era fã e bom conhecedor desde os anos 70, quando editava a revista Cine-Olho. Pude ver naquele panorama, mesmo para um ex-cineclubista “especializado” como eu, vários filmes brasileiros inacessíveis, ou ignorados, para sucessivas gerações, em consequência tanto do período repressivo, ditatorial (1964-1985), quanto do surto mercadológico próprio dos anos 80; além da proverbial relação dificultosa do país com a memória.

Mas fiquei algum tempo me perguntando o que seria aquilo que vi, aguardando os impressos semanais do programa de filmes no quadro daquela que foi a primeira retrospectiva de um artista brasileiro no exterior, Hélio Oiticica2 2 . Além dos Parangolés, Metaesquemas, Ninhos e Cosmococas, instalações de slides do quasi-cinema, programou-se uma imensa mostra de Cinema Marginal organizada pelos cineastas Neville d’Almeida e Júlio Bressane, sob o comando da curadora Catherine David, sem, no entanto, integrar seu catálogo: Hélio Oiticica. Paris: Galerie Nationale du Jeu de Paume, 1992. A pedido de dois de seus poucos frequentadores, Denis Chevalier e Jean-Marc Manach, organizei um dossiê sobre a mostra “Brésil: Les ombres oubliées d’un cinéma inassouvi”, L’Armateur, Paris, n. 3, p.43-46, 1992. , sem suspeitar que fosse justamente o único filme dele, do qual se tinha incerta notícia. Foi talvez a primeira projeção pública daquele ignoradíssimo Super-8 feito em Nova York havia vinte anos. Graças, segundo Bressane, ao boicote internacional sistemático do Cinema Novo ao Marginal, liderado pelo “tenebroso xerife” Glauber Rocha, a grande maioria das fitas dessa mostra parisiense igualmente nunca fora vista fora do país; boa parte deles nem mesmo lá. A verdade é que, temerosos de confiar cópias únicas ao precário circuito alternativo nacional, vários realizadores vieram a abrir exceção para o endereço da Place de la Concorde.

Uma vez que muitos brasileiros passaram pelos EUA nos anos 70, o que eu buscava rememorando aquele filme não-identificado era, como tentaria algum perito, intuir meios para identificar o estilo daquela ignota mise en scène, tão tensionada assim entre espontaneidade e rigor compositivo. Mas para quem conhece os filmes do Ciclo Marginal, por exemplo Rogério Sganzerla, Neville d’Almeida, Luiz Rosemberg Filho, essa obra, mesmo inesperada não deixa muita dúvida sobre seu parentesco no plano do estilo ou atmosfera. A câmera é talvez um pouco discrepante da soltura desenvolta dessa tradição, discrepa apenas naquilo que sugerirá estruturações maiores ou mais sistemáticas do olhar. Neste sentido particular de sistema talvez só possa ser aproximada de certos momentos do experimentalismo superoitista - Lygia Pape, Marcello Nitsche, Mario Cravo Neto, Ruy Vezzaro, Paulo Bruscky - ou então antes, de Glauber Rocha e do Júlio Bressane de O ANJO NASCEU (1969), CUIDADO MADAME (1970) ou O REI DO BARALHO (1973).

O que quero dizer aqui é que tive a impressão, com o olhar treinado de cinéfilo ou pretenso crítico, de que aquilo poderia ser perfeitamente um curta do Neville, como do Bressane ou algum inopinado superoitista metido a besta. Tratava-se de um jeito de filmar conhecido, mise en scène manjada, embora de um especial frescor, e estruturação bem curiosa, talvez aí a sua mais desafiadora singularidade. Com notável força mínima de evidência, seu minimalismo muito particular, aquela espacialidade unitária de AGRIPPINA É ROMA-MANHATTAN nos vai configurar em três partes distintas, e cada uma com sua própria coordenada de tempo, um tríptico da onipresente protagonista. Em apenas dezesseis minutos silenciosos desenvolve variantes derivadas do “Inferno de Wall Street”, poema escrito cem anos antes por Sousândrade (1832-1902), poeta maranhense do qual Oiticica retira o motivo, inscrito num de seus versos, “Agrippina é Roma-Manhattan”. Inferno de Wall Street é passagem famosa do poema romântico (tido ainda como pré-simbolista e proto-modernista) em que o Guesa Errante, ou Sem Lar, figura lendária dos índios colombianos “muíscas” (dos quais origina-se também da lenda de Eldorado), menino raptado e destinado à peregrinação e ao sacrifício em tributo a Bochica, o deus do sol, faz “um périplo transcontinental”, como um Candide selvagem do Século XIX3 3 . Cf. os poemas de Sousândrade: SOUSÂNDRADE, Joaquim de. Canto décimo. In: ______. O Guesa. São Paulo: Annablume, 2009, p. 202-288. Prefácio de Augusto de Campos; The Wall Street inferno. Tradução Robert E. Brown. In: ROTHENBERG, Jerome; ROBINSON, Jeffrey (eds.). Poems for the millennium: the University of California book of romantic & postromantic poetry. Berkeley: University of California Press, 2009, v. 3, p. 655-663. . Work in progress de Sousândrade, O Guesa foi escrito entre 1868 e 1902, tendo o poeta ele próprio peregrinado pelo seu país e o mundo, vivido em Nova York durante a década de 70, como aliás Oiticica, passado um século. Não há na fita propriamente um enredo em cada um dos três blocos de ação, mas o pouco que acontece seria da ordem de uma imagem movente em tableaux dotados de uma só ação em cada parte, e uma possível ação proposta para o conjunto do tríptico, esta sim, ainda mais enigmática que cada uma das três. Oiticica recusava o rótulo de artista plástico, podemos constatar o que mobiliza de um conjunto aberto de diferentes artes em cada obra. Tentaremos mostrar o quanto a parte do cinema participa vivamente de AGRIPINA, para além da mudez das diferentes críticas (arte, cinema, literatura etc.), já que até hoje nenhuma chegou a ingressar no terreno da análise fílmica, permanecendo só no comentário simpático e/ou metafísico, sob a alegação pouco sustentável de que se trataria de uma obra inconclusa - ao lado, diga-se, de um conjunto maior de obras inconclusas analisadas. Sua presença incontornável em inúmeras mostras do artista nas últimas décadas - projeção contínua em loopings, mais parecendo takes reunidos ao acaso - a fita vem silenciosamente aludindo a alguma gestação ignorada de sua estada nova-iorquina.

Figura unificadora destes míticos centros imperiais, a Agrippina histórica, mãe de Nero, tiranizadora de tiranos, femme fatale em mais de um sentido, no 1º movimento desse tríptico circula como alma penada por uma Roma transfigurada na paisagem neoclássica de Wall Street, como em visitação metafísica à Bolsa de Valores. No 2º movimento, Agrippina saltaria dos tempos romanos para os daquela Manhattan contemporânea. Se na 1ª parte sua figura solene e algo funesta em face daqueles paredões abissais, se deixava conduzir por um tipo latino de discreto garbo (mero chofer, ou seria Sousândrade mesmo, em cicerone; talvez seu personagem, o Guesa?), na 2ª parte ela circulará desnorteada. Vestida como a baliza que, em festejos públicos, guia o desfile à frente da banda, aqui ao contrário, num desalento nada acrobático, extravia-se num mesmo ponto vagueando pelo cruzamento - dir-se-ia que perdeu de vista os seguidores. Perdida, como se esperasse acasos nesse zanzar, um ir e vir horizontal na calçada, pareceria mesmo fazer o trottoir na esquina da metrópole: seu corpo deixa o espectro tirânico original para se deixar tiranizar pela interação de uma lógica, por assim dizer, desenhada na circulação urbana ali designada.

Da anterior eminência tirânica à banalidade do trottoir, se translada a blonde de Roma a Manhattan. Estamos ainda, em todo caso, no Império. No império americano sempre, se tomamos a encenação hierática do começo como momento igualmente pop, num sentido ampliado para a indústria hollywoodiana, a blonde star de cinema, “Vênus vulgar”, a mulher reificada como figura máxima dos mass media, o fator de sedução de que fala Haroldo de Campos, então amigo e interlocutor de HO, ao versificar Marilyn Monroe no seu work in progress, já editado em parte nos anos 60, Galáxias. O poeta concretista tomava a figura de Marilyn, igualmente de grande presença no romance PanAmérica (1967) de José Agrippino de Paula, relato pop lembrado como precursor do Tropicalismo. Neste romance plástico de Agrippino - ressonância inevitável com o argumento de HO - um narrador vive os EUA de Hollywood como se numa superação onírica do fetiche que acomete a população global; sintomático, em obra coetânea e constelada não só a este trabalho de Haroldo como, também naquele mesmo ano, o lançamento do TERRA EM TRANSE, de Glauber Rocha, para não falarmos ainda por outro viés d’A sociedade do espetáculo, de Guy Debord - obras com as quais configuraria fortes relações de contraste substancial.

Marilyn mesmo possui aparições notáveis nas calçadas de Nova York para além das saias alçadas no vento, soprado pelo respiradouro do metrô. Já em PÁGINAS DA VIDA (O. HENRY’S FULL HOUSE, 1952) faz uma ponta brilhante como uma prostituta na esquina, recatadamente esfuziante ao acolher como se a um grande conhecido a abordagem pretensiosa dum vagabundo (Charles Laughton), sob o olhar do guarda em patrulha. A figura metropolitana mítica e mundana na tradição dramática ocidental de personagens-prostituta exprime o caráter daquela vida subjugando-se à função de troca mercadológica em metáfora crítica da vida moderna. Vinte anos antes dessa Vênus vulgar de Cristiny Nazareth que encontramos na Wall Street de 1972, também se precedeu de dois ou três anos pelas de Helena Ignês, que criou figuras bastante aproximáveis em filmes de Rogério Sganzerla, MULHER DE TODOS (1969), e sobretudo em COPACABANA MON AMOUR (1970). Nesse último, a blonde-ícone do moderno cinema de vanguarda brasileiro faz uma profissional do trottoir em esquinas de Copacabana. O ideal feminino nestas Vênus de celulóide, entre o sublime e o vulgar, o mito e o real, o empostado e o espontâneo, o ideal e o sensual, o transcendido e o mundano, se faz presente nesta Agripina-Cristiny de Oiticica. Sua matriz mais próxima vem das “ivamps” de Ivan Cardoso, que desde NOSFERATO NO BRASIL (1971) encarnavam essa dualidade de garotas da turminha do convívio carioca e pin-ups auráticas da ribalta4 4 . Cf. MACHADO JÚNIOR, Rubens; CAMPOS, Marina. Protagonismos experimentais femininos no surto superoitista dos anos 1970. In: HOLANDA, Karla; TEDESCO, Marina (orgs.). Feminino e plural: mulheres no cinema brasileiro. Campinas: Papirus, 2017. , que HO relê por sua ótica arte-vida.

Essa blonde Agripina-Cristiny na 3ª parte se eclipsará. Mesmo assim talvez ainda nos guie, magnetize nosso olhar. É como se estivéssemos diante de um seu possível vislumbre, sem que a vislumbrássemos no entanto? Sua tirania não mais precisaria corporificar-se, cedendo lugar a um jogo de dados, porventura metafórico do circunstante espírito especulativo da Stock Exchange, atividade local, a potência financeira transfigurada em seu caráter essencial, nova síntese da tiranizadora de tiranos? Para tanto, a paisagem vertical de Wall Street é trabalhada num entrecruzar totêmico que afirma uma nova ordem cosmológica particular. As circunvoluções da câmera não deixam de se articular com a verticalidade monumental dos prédios - o Flatiron Building raramente se afigurou tão fálico. Os dados são jogados a céu aberto, sobre chapas de aço de algum canteiro de obras, no qual os jogadores não parecem exatamente trabalhadores. Com o aspecto de migrantes latinos, como boa parte da mão-de-obra nova-iorquina, mais parecem artistas que operários.

Modulam-se diferentemente o tom, o compasso e a temporalidade das três cenas. O timing da primeira cena parece apresentar-nos os personagens tanto quanto a arquitetura de Manhattan. Erguem-se de dentro de um automóvel, o condutor abre a porta, peremptório. Acompanhará Agripina, que pouco antes alinhava-se aos arranha-céus, percorridos de modo comparável aos corpos em movimentos panorâmicos verticais da câmera, enquadres fechados erigindo uma distinção algo totêmica das figuras. Esse enxergar por verticais de corpo e edifícios vai estabelecendo uma matriz de visibilidade importante ao longo do 1º Bloco, não indiferente para a apreciação dos Blocos seguintes. Uma primeira consequência desse olhar seria certa distinção mais isolada dos personagens, que resistiria também nos restantes Blocos. Há nesta sugestiva matriz um componente típico de Nova York. Os primeiros movimentos do filme alternam-se em verticais entre Agripina e arranha-céus, começando pela torre neogótica da Trinity Church, das igrejas mais antigas e ricas dos EUA, ponto culminante de Manhattan até meados do século XIX, massa escura integrada à refulgente massa de concreto nova-iorquina. Esta simbiose de torres modernas com a celeste vocação ascensional da torre gótica, arquétipo histórico da arquitetura de elevação vertical, resquício aqui pontuado na paisagem quase como ruína ao pé dos arranha-céus, sementes caducas de um porvir herético, topos que se dissemina em imaginário mais amplo de Nova York, perpassando o cinema. Este topos metagótico de Manhattan retomou-se na paisagem art-déco do METROPOLIS (1926), de Fritz Lang, que concebera sua ficção após visita à cidade.

Nos caminhos verticais do olhar pedestre, Hélio desenha o skyline abissal da metrópole, cujas ruas demarcam-se desde o alto por vertiginosas nesgas de céu, rasgadas em agudos triângulos invertidos, imprimindo recortes de ofuscante grafismo, fazendo pender pontiagudas ao chão como estalagmites diáfanas, largos relâmpagos paralisados. Irmanada ao abismo luminoso surge não mais seu inverso escuro, o contratipo da torre neogótica, mas Agripina ereta, quase estática, percorrida pela câmera como um recorte de forma humana que responde aos recortes e contra-recortes do monumental que espera integrar - a Wall Street que percorrerá entre abismada e impávida, hierática. Compenetrada de alguma transcendência move-se, como entidade solene e majestática, conduzindo-se por escadarias. A força gráfica da cenografia, calcada nas fachadas neoclássicas - em lugar de palácios e panteões romanos, edificações bancárias assemelhadas - é construída pela câmera que percorre conjunções de arquitraves e capitéis, severas vibrações no paralelismo horizontal de degraus, conjugados às ranhuras verticais no fuste das colunas. Tais enquadres conduzem nosso olhar pela força tectônica das estruturas, afirmativas duma ordem ancestral reativada. Não há como não lembrar alguma sugestão remota de figurino hollywoodiano, populares filmes históricos italianos, chanchada carioca ou desfile carnavalesco. Rediviva, um século depois, Agripina é Roma-Manhattan. E algo mais: como corpos sem vida, ela e seu condutor figuram algo que aquele Espaço Público dominado por atividade financeira parece secretamente almejar como se tais corpos fossem mesmo as almas inusitadas porém legítimas deste mundo pétreo. O cavalheiro latino que a acompanha nada tem dos Césares que ela encantou avassaladoramente. Nem de Nero, tirano-mor incendiário de Roma, que, além de filho, foi seu projeto “demoníaco” de poder - e finalmente assassino matricida, criatura superando criador (Optima mater, “a melhor mãe”, como ele a chamava). Nem súdito nem senhor, esse acompanhante de Agripina timbra aqui mais como um cândido inca, ou atual imigração contingente ao Gigante do Norte, conveniente e discretíssimo migrante, novos guesas errantes restituídos desde o poema visionário.

As figuras aqui delineadas por Hélio, no que toca ao aspecto arte-vida, central em seu percurso, a imersão no ambiente norte-americano, seus projetos recentes, o lugar do cinema entre eles, fazem-nos repensar a inscrição deste filme num arco pouco linear, que Celso Favaretto expôs em cada fase desde o concretismo, o caminho que leva o artista da bidimensionalidade ao salto no espaço5 5 . FAVARETTO, Celso. A invenção de Hélio Oiticica. São Paulo: Edusp, 1992. . Rodrigo Naves observa entretanto naquela espacialização crescente tendência progressiva à “intimidade do mundo ou do corpo” em “dinâmica formal introvertida”, interiorização problemática dum “sensorialismo radical”, quando seus contemporâneos voltavam-se ao embate, estranhamento com o espaço público6 6 . NAVES, Rodrigo. A forma difícil: ensaios sobre arte brasileira. São Paulo: Ática, 1996, p. 243-246. ; essa paradoxal “supressão de toda alteridade” referia-se, claro, ao Hélio pré-NY. O crítico sugere-nos ainda compreender sua progressão arte-vida enquanto resposta histórica, mais de viés político que estético7 7 . Idem. O vento e o moinho: ensaios sobre arte moderna e contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 208. .

No quadro de figuras do filme, seus atores-personagens implicam repercussão simbólica: Cristiny Nazareth8 8 . Produzirá e dirigirá nos Estados Unidos o filme A visit to Eros Volusia (1980) sobre a célebre dançarina e coreógrafa carioca. (Agripina) era uma das “ivamps” dos Super-8 de Ivan Cardoso, a série Quotidianas Kodak (Rio, 1970-1975), a primeira vampira em NOSFERATO NO BRASIL (1971), vítima-vitimadora em ritmo de “terrir”, ironia de Ivan reativando a Chanchada carioca em tempo de trevas; o paraibano Antonio Dias (o jogador de óculos), artista de projeção comparável à de Hélio, pioneiro do pop no Brasil e autor da série em Super-8 THE ILLUSTRATION OF ART - I-X (1970-1980); e Mario Montez (o outro jogador), criatura do underground local, mítico travestimento performático da homônima star do cinema mexicano em seu apogeu (ou decadência?), alcunhada “Rainha do Technicolor”.

Sganzerla e Bressane, lembramos, assim como Neville, Miguel Rio Branco e Jorge Mourão, rodaram também alguns títulos em NY nessa época; quando a barra pesou, não foi só para a esquerda radical, uma diáspora de artistas aconteceu. Além do cenário nova-iorquino de AGRIPINA algo da sua mise en scène, da fisionomia e gestualidade presentes naquelas figuras que vemos, não destoa desse continuum formidável de situações que esses poucos realizadores brasileiros legaram ao contemporâneo imaginário nacional. São ademais figuras de um espectro latino carregado, a começar dos traços nordestinos, tanto do Cavalheiro que no início acompanha Agripina (David Starfish seria mesmo o seu nome?), como no fim o Antonio Dias. A presença latina se potencializa com Mario Montez, que opera também uma simbiose da participação masculina com a feminina da personagem título, espécie de síntese escancarada dessas diversas aparições. A este lado moreno se junta a excelsa e sobranceira Cristiny. Aliás, o que fazem mesmo esses tipos tão marcados neste cenário nova-iorquino? Para cada bloco de ação mudam não apenas os personagens presentes mas o estatuto da ação e os parâmetros da mise en scène. Estamos sempre em Manhattan, a céu aberto, nas ruas de Wall Street. A dupla latina Dias & Montez, o Artista e a Travesti, personagens do último bloco, não aparecem antes. O mesmo acontece com o Cavalheiro latino do primeiro bloco, que não ressurge. Cristiny, ao contrário, domina o primeiro e o segundo bloco, ausentando-se do último, deixando-o aos artistas latinos. São todos tipos curiosos, dominam a cena sem manifestar qualquer curiosidade com o entorno, com o qual não interagem, imbuídos de sua mínima atividade, parecem nada buscar do convívio dos poucos circunstantes ou de seus eventuais afazeres. A exceção fica por conta da postura de Agrippina no segundo bloco, solitária e altiva, perambula por uma larga esquina sugerindo alguma disponibilidade, num ir e vir ligeiramente sôfrego ao vento.

Tendo estudado cinema a sério na estada nova-iorquina, por esta mesma época Hélio andou dizendo que as virtudes da montagem não lhe interessavam. Diremos no entanto que o seu tríptico articula-se por montagem. Não tanto entre planos mas entre blocos. Há vínculo entre os três blocos de ação, se os rememoramos em seus elementos de unidade própria, delineando diálogo fundamental das sínteses formais de cada um: o sentido resultante do tríptico muito se conjugaria de suas similitudes e diferenças. O modo pelo qual se evitam cortes e decupagem em favor do plano longo, composto, articulado a movimentos de câmera, indicam afinidade não só com o superoitismo experimental, mas o moderno dos Marginais, o bazinismo extremado da produtora Belair de Bressane9 9 . Em filmes de Bressane como O anjo nasceu (1969) e O rei do baralho (1973) se desenvolve uma sintaxe que foi pensada numa primeira recepção como montagem não entre planos, mas entre sequências (ou plano-sequências), como se elas fossem concebidas para se associar enquanto cartas de um jogo de baralho, em liberdade paratática, um pouco no sentido proposto por Theodor Adorno. Cf. ADORNO, Theodor. Parataxis: a lírica tardia de Hölderlin. In: ______. Notas de literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973, p. 73-122. (Coleção Biblioteca tempo universitário); MACHADO JÚNIOR, Rubens. Observação sobre O anjo nasceu. Cine-Olho, São Paulo, n. 5-6, p. 52-53, 1979; MESQUITA, Fernando. A solidão lunar. Cine-Olho, São Paulo, n. 5-6, p. 62-74, 1979. , Sganzerla e Helena Ignês, como também de boa parte dos cinemanovistas.

O Cinema Novo, epicentro estético no quadro da cinematografia brasileira, traz com desígnio vanguardista a radicalidade do modernismo que havia transformado a literatura, música e artes plásticas desde 1922. O teatro e a arquitetura modernizam-se duas ou três décadas depois, juntando-se em seguida a canção popular, com a bossa nova, só depois o cinema, no início dos anos 1960. Por dois decênios pelo menos, fortes reverberações até hoje, a invenção de formas cinematográficas no país liga-se ou confronta-se com este movimento, que teve na Estética da Fome seu manifesto principal. Três ou quatro fases marcaram seu desenvolvimento estético, sua relação com a sociedade: o Golpe de 64, seu recrudescimento repressivo no final de 1968, e a lenta abertura política a partir de meados dos anos 1970. O pós-68 dos cinemanovistas cinde-se, tenta combinar duas tendências principais com a proposta Mercado é Cultura, justificando o apoio à estatal Embrafilme, e Estética do Sonho (1971), em que Glauber atualiza e tenta contemplar sobrevidas daquele radicalismo dentro das adversidades repressivas, exílio e limites da via estatal, dialogando com o surrealismo (pensemos no manifesto Breton-Trotski), tropicalismo (Buñuel no México inicia para Glauber o cinema tropicalista), contracultura e estéticas tardo-sessentistas. O pós-68 cinemanovista fermenta ainda outra dissidência crítica, experimental e vanguardista, chamada depois Cinema Marginal, confundido às vezes com o movimento tropicalista, seu estrondo musical e teatral em eclosão simultânea. O superoitismo experimental começa em 1970 com boa participação de artistas plásticos, chegando com vitalidade aos inícios da década seguinte, em multiplicidade estética dialogante com tradições diversas, entretanto mais aproximável ao cinema marginal e às estéticas da fome e do sonho.

O singular em AGRIPINA se constrói pelo timing entre corpos e espaço. No contraste entre a matriz vertical dominante nos movimentos da câmera no 1º Bloco, e a horizontal do 2º Bloco, levando-nos de personagem hierático a mundano, do mítico ao ocasional, de espírito pétreo a presença carnal, da transcendência ao acaso, de Roma a Manhattan. Nesse diferir, a ressonância do termo “bloco” com seu sentido próprio dos desfiles de Carnaval não parece aqui destoar, se pensamos na liberdade ou na autonomia de funcionamento dos grupos de foliões entre si. Cada Bloco de AGRIPINA não configuraria exatamente uma síntese, embora algo de sintético traga, seria mais uma qualidade do esquema. Mais que isso, um esquema problemático, espécie de metaesquema que se reinventa distante do concretismo originário. Essa quase forma, em paradoxal coagulação de forma acabada, metaesquema invertido, pós-neoconcreto, ao figurar as coisas do mundo, observáveis e constituídas no real, trabalha com Blocos articulantes gerando outra unidade, apresentando relações dialéticas e processos de outro equilíbrio. O tríptico reconfigura seus elementos levando-os “até ao seu oposto e induz o retorno à sua configuração inicial, estabelecendo um ciclo sem fim”10 10 . CONDURU, Roberto. Metaesquema, metaforma, metaobra. In: ENCONTRO NACIONAL DA ANPAP, 17., Florianópolis, 2008. Anais… Florianópolis: ANPAP: Udesc, 2008, p. 687. .

No caráter desse metaesquema construído em tableaux moventes se revelam apenas alusões a algo, não seu convencional desenvolver-se narrativo; um arremedo determinado da cena, não sua trama desenvolvida: só interessará certo conjugar-se de um momento da ação, seu aceno de primeiro esboço, enredo que se telegrafa por pinceladas iniciais. É algo que já se patenteava, embora distintamente, nas Quotidianas Kodak de Ivan Cardoso, aliás uma constante rastreável em todo o superoitismo, porventura uma de suas características mais amadurecidas - a arte do arremedo como alusão. Sua origem remonta à notória inclinação no cinema nacional ciente de seus limites, o carioca em particular, a tendência ao pragmatismo e à irrisão, de que a Chanchada é desde os anos 30 a principal inventora11 11 . Cf. meu artigo: MACHADO JÚNIOR, Rubens. Passos e descompassos à margem. Alceu: Revista de Comunicação, Cultura e Política, Rio de Janeiro, v. 8, n. 15, p. 164-172, 2007. Disponível em: <http://bit.ly/2u4RHqr>. Acesso em: 4 ago. 2017. Edição Raízes e Veredas do Cinema Brasileiro, organizada por Miguel Pereira e Gian Luigi de Rosa. ; pelo menos até sua reinterpretação pel’O BANDIDO DA LUZ VERMELHA (1968). Nessa tradição falar em arremedo supõe incorporar à elaboração artística mesmo o sentido mais pejorativo, seja nos necessários filmecos de que falam Glauber e Sganzerla, feios e pobres mas ricos esteticamente; seja pelo protominimalismo modernista do telegráfico e do telefonema de Oswald de Andrade; seja no viés identitário da preguiça explorado sobretudo na literatura, em Macunaíma, na figura do caipira que lhe antecede e sobrevive. O arremedo esquemático de Hélio mobilizaria com rigor construtivo um inventário de formas dispersas em larga gestação histórica na cultura brasileira.

Assim como os desígnios expressos nos corpos, digamos que as solicitações gestálticas presentes no espaço urbano implicam coordenadas gestuais do nosso olhar, incorporadas no movimento da câmera dotando o filme de coreografia própria. Principiamos pela loquacidade visual das varreduras totêmicas, a verticalidade do olhar solicitada no 1º Bloco, em Roma (onde originalmente verticalidades serviam para horizontalizar espirais narrativas, Coluna de Trajano). Impõe-se depois, no 2º Bloco, o deslocamento horizontal do passeio público, liberdade do ir-e-vir em mesmo nível, fundante da metrópole moderna12 12 . Modelos antigos imbricam-se na cidade moderna, a pólis grega e a civitas romana: conceito dinâmico de cidade, a Roma mobilis expandiu-se almejando concórdia estratégica entre diferentes, sem as matrizes étnicas da primeira. Cf. CACCIARI, Massimo. A cidade. São Paulo: Gustavo Gili, 2010, p. 9-23. , vertida aqui numa amarra quimérica de Manhattan. O acúmulo dos dois sistemas de registro até aqui dominantes extrapola-se, diversifica-se reativamente no 3º Bloco, numa arrematada simbiose. A verticalidade sucedida pela horizontalidade do olhar acumulou-se em filigrana num quase sinal-da-cruz, já configurado em meio ao 2º Bloco, quando alternam-se por instantes a dominante horizontal por novas verticais que religam-nos espacialmente à Manhattan específica. Forma mais sintética que as contrapostas antes, a novidade do 3º Bloco é um curvar-se combinado às matrizes anteriores propondo circulações da câmera em ciclos que descrevem o jogar de dados na chapa de aço enferrujada. De Roma a Manhattan sobrepunha-se em cruz um olhar esquematizado em prumos-planuras, aqui finalmente articulado a redondas circunvoluções. A mesma cruz que, com o cristianismo, engoliu aquela Roma13 13 . “Roma es la ciudad donde Dios ha desposado la Iglesia con el Imperio, o si se quiere, el ‘Imperio del más allá’ con el ‘Imperio del más acá’, la Urbe con el Orbe”. D’ORS, Eugenio. Mis ciudades. Madrid: Libertarias, 1990, p. 130. , suplantou-a por um ir-e-vir moderno da nova Agrippina estadunidense (que era introduzida na abertura pela Trinity Church), se entrecruzaria agora com Wall Street, mas em ciclo infernal.

Em semelhante Roma ianque, como tirânica entidade antiga-contemporânea, essa Ultra-Agrippina não se apresentará na cena final. Não é necessário que se apresente, foi suplantada em suas atribuições. Aliás, apresentava-se já desterrada desde o 1º Bloco, espectro-do-além, ainda que viçosa assombração cinematográfica, figuração transcendental, antes símbolo que alegoria; ou no 2º, quando cai na vida e, libertando-se, submerge na circulação de quem se joga na metrópole, paradoxo do deslocar-se fazendo ponto, enjaulada na dissipação das ruas, antes alegoria que símbolo - seu devir Agripina já tem algo de caduco a partir das aparições iniciais14 14 . Desafio solicitado pela obra: futuros esforços aproximarem dela formulações de Walter Benjamin, como a imagem dialética, a mônada e a alegoria, esta última em especial seguindo trilha aberta por Ismail Xavier, cf. XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. São Paulo: Cosac Naify, 2012. . Mas persiste essa quintessência do imperialismo a que alude, e da colonização como seu jogo. Mesmo no desterro, parece em busca do seu lugar. Persistirá ademais, no discurso autointerpretativo de Hélio, povoando seus textos e entrevistas de atenção relativa ao local-universal, no seu modo de tratar, sempre com alguma “ambivalência crítica”15 15 . OITICICA, Hélio. Brasil diarréia. In: OITICICA FILHO, César; COHN, Sergio; VIEIRA, Ingrid (orgs.). Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Azougue, 2009, p. 116-117. (Série Encontros). , o que o debate em curso, não só no Brasil, vinha contemplando na atualização da conjuntura geopolítica e da oposição Periferia-Centro16 16 . WALLERSTEIN, Immanuel. O capitalismo histórico. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 27. (Coleção Primeiros voos). , imperialismo e condição colonizada. Aqui se faz por braços de nova população de trabalhadores ou artistas latinos de NY o jogo de dados como ritual imperioso - tirania transfigurada?

A caligrafia de Hélio descrevendo com a câmera-gesto a verticalidade do olhar articulada ao circular envolvente das ruas poderia lembrar o percurso do enxergar forasteiro, de quem chega à cidade grande e dá com a altura dos arranha-céus em meio às atrações rasteiras dos transeuntes. A sensibilidade pedestre do provinciano estatelado com essa imponência das alturas - que parecem incólumes ao torvelinho da circulação terrena - está no clichê de incontáveis contre-plongées de arranha-céus. O caso popular de um caipira chegando a São Paulo, no contraplano de Mazzaropi em close no CANDINHO (1953): o movimento de seus olhos girando em ansiedade exorbitante face ao ruidoso tráfego e a altura que avulta naqueles prédios do Centro, como o do emblemático Banespa (flagrante emulação do Empire State Building). No 3º Bloco de AGRIPINA, derivando dos blocos anteriores a construção do olhar pelo ângulo-movimento da câmera se esquematizará num timing diferente. Em ciclo contínuo, gestos circulares do nosso olhar indo de um a outro jogador, o reiterado giro trocando de corpos reproduz-se indefinidamente, como se especulasse no jogo do capital financeiro ali sediado. As reiteradas horizontais do 2º Bloco, nesse 3º resolvem-se no curso linear em círculo da câmera, multiplicado, descrevendo o gesto de lançar dados; ele pareceria voltar por vezes em sentido inverso, proliferando, fazendo que lembremos um entrelaçado de círculos perfazendo oitos deitados, sinal de infinito17 17 . Nos créditos das Quotidianas Kodak, de Ivan Cardoso, um símbolo do oito deitado vem como “logomarca” especialmente criada por Óscar Ramos, acumulando referência ao infinito e à liberdade do superoitismo. .

Articular tais círculos aos edifícios percorridos em sua alta extensão vertical traduz no filme determinado localismo de Manhattan, “vanguarda da reprodução territorial”18 18 . KOOLHAAS, Rem. Nova York delirante. São Paulo: Cosac Naify, 2008, p. 115. . Basta acompanhar a história, tanto antes como depois do atentado às Torres Gêmeas19 19 . As “Torres Gêmeas constituem uma metáfora perfeita. Elas apontavam para aspirações ilimitadas; anunciavam grandes feitos tecnológicos; eram um luzeiro para o mundo”. Cf. WALLERSTEIN, Immanuel. Os Estados Unidos e o mundo: as Torres Gêmeas como metáfora. Estudos Avançados, São Paulo, v. 16, n. 46, p. 23, 2002. . Traduzida artisticamente em livros como Bartleby, o escriturário: uma história de Wall Street (1853), de Herman Melville, uma cultura urbana da edificação que o mundo financeiro produziu, se já está anunciada em meados do século XIX, o arranha-céu propriamente dito só nascerá em Manhattan por etapas, entre 1900-1910, corrida para o alto de que um primeiro arquétipo seria o Flatiron20 20 . “Em 1902, o edifício Flatiron é um modelo” do processo urbano em curso, por “sete anos ‘o edifício mais famoso do mundo’, ele é o primeiro ícone” nesse ramo do “imóvel utópico”, em que a arte de construir é esta elevação brutal rumo ao céu “de qualquer terreno que o incorporador consiga reunir” KOOLHAAS, Rem. Op. cit., p. 112. , desde então emblemático de NY, no estilo Beaux-Arts, tardio neoclassicismo eclético refundindo influências gregas e romanas com ideias renascentistas; contemporâneo do Theatro Municipal do Rio. No seu conhecido estudo de Nova York, Rem Koolhaas nos explica que otimizando o custo do terreno numa área da cidade, para além do controle do arquiteto, “o arranha-céu é o instrumento de uma nova forma de urbanismo incognoscível. Apesar de sua solidez física, ele é o grande desestabilizador metropolitano: promete uma instabilidade programática perpétua”21 21 . “A partir das demandas supostamente insaciáveis dos ‘negócios’ e do fato de que Manhattan é uma ilha (…) com rios de ambos os lados proibindo uma expansão lateral”, é como se a cidade não tivesse escolha a não ser esse erigir-se inarredável rumo ao alto: “apenas o arranha-céu oferece aos negócios os amplos espaços de um faroeste criado pelo homem, uma fronteira no céu”. KOOLHAAS, Rem. Op. cit., p. 109-111. .

Com a multiplicação de círculos entrelaçados nesse 3º Bloco, ligados continuamente ao movimento vertical que busca a massa fálica dos arranha-céus, produz-se embaixo a acumulação dos trajetos em roda descrevendo os jogadores. Como esquema dessa caligrafia memorável do olhar desenhar-se-á cabalmente a completa genitália masculina em riste. Outros registros rodados por Hélio na época, recentemente exibidos, confirmam seu interesse pela figura do Flatiron. A pesquisa da silhueta por vários pontos-de-vista permite diferenciar o apuro desse ângulo escolhido em AGRIPINA, seu escorço delineando melhor a figura da ereção peniana sugere-nos determinada latência simbólica freudiana do fálico enquanto signo, e reforça o que o circuito do olhar fílmico induzia em sua escritura. Se há rigor compositivo nesta construção fálica filigranada, tratamos de um retour-à-l’ordre que pode ser criticado ou glosado como um desenlace despirocado sob a égide da piroca. O fálico como lei, princípio ordenador que integra e comanda um universo dado, propõe uma cosmologia singular deste jogo a céu aberto, cosmos ungido de enigmática significação política.

Mas o que, afinal, restaria de Agrippina ao cabo do filme? O que significaria aqui, e como dialogaria com a personagem original? Que questões podem ser postas e que formulação requerem? Se esse esquema final se aparenta ao que se insinuava nos anteriores do tríptico, é como se víssemos por olhos agrippinianos a ação de seus sucessores? Sua presença tirânica viu-se incorporada na nova situação? Que tirania é essa que se deixa tiranizar, depois se deixa substituir? Espécie de esquema decorrente dos dois Blocos anteriores, configurados como tese e antítese desta conseguida síntese? Ou sua ausência final livra-nos por completo da forma tirânica, como se nos libertasse de um jugo histórico por intermédio de um novo jogo especulativo? A irrupção do movimento circular como invenção diante de uma tradição de verticais-horizontais não contraria o que nesta vinha se estabelecendo? Conjugar à imponência da reta círculos derivantes sugere-nos, como nas metáforas reprodutoras (da vida, do capital, do poder), uma reescrita da ordem tirânica em termos novos, de superação, emancipatórios - ou simplesmente completam a compreensão de um único processo integrado, inescapável? A ruptura substancial entre os Blocos de Roma e Manhattan contempla a Agripina que depois se transfigura numa segunda ruptura neste 3º Bloco, negação da negação; superação da superação? Se no 1º Bloco Agripina é Roma e no 2º Manhattan, no 3º é ela mesma, uma Roma-Manhattan como pulverização, sublimação da tirania imperialista? Que significação propor ao jogar dados, gesto arremate-arremedo: quê auguraria este Alea jacta est? Inscrito no “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”, da escrita poética de Mallarmé, a ambiguidade atroz do jogo de dados em Wall Street, entre o fazer artístico e o fazer financeiro pode contar com alguma significação política? Diante disso o que fazer? O que mesmo é, neste quadro, o próprio fazer? E que sorte poderá ter a arte dos latino-americanos22 22 . Posteriormente Hélio disse que a arte latino-americana poderia ser identificada em duas partes: “(a) a arte colonizada (na qual eu incluo a assim chamada arte primitiva e o pseudoexpressionismo), uma diluição total de modelos europeus, com uma implicação indígena, como a do artista regional; (b) a tentativa de estabelecer um tipo de experimentação que se relaciona com as tendências da arquitetura e arte experimental de vanguarda, com perspectivas progressivas: ela coloca problemas e é mais ambiciosa (penso em algumas experiências da arte mexicana, argentina e brasileira)”. OITICICA, Hélio. Entrevista para Journal. In: OITICICA FILHO, César; COHN, Sergio; VIEIRA, Ingrid (orgs.). Op. cit., p. 222. nesse logradouro de men at work, chapa de aço na rua em obras, inesperado Magic Square? Praça pública pós-provincial ou metropolitana, pedestal de bolsas de valores cativos ou futuros alicerces escrotais virtualizando libertações, criações novas? Até que ponto poderíamos ignorar as determinações projetuais “heliocêntricas”, auto-interpretações de Hélio, que ao não ter exibido a obra em vida reforçaria a assertiva de obra inacabada?

Tal como vem sendo exibido o filme sugere sentidos históricos exigentes, dialoga com a vida e a obra do artista; carrega reverberações que não podem calar diante da experiência que temos da obra, e da liberdade necessária da crítica imanente. AGRIPINA é insinuante em múltiplas direções. Tal imersão no universo estadunidense corresponde a um recalque histórico ao qual cinema, arte, cultura brasileira intensificavam atenções naqueles anos de crispação conjuntural. Seria preciso aproximar desta linha de tensão o paulista José Agrippino de Paula, que no romance PanAmérica (1967, capa de Antonio Dias) trazia, em curiosa narrativa pop, uma viagem pelo imaginário mundano da indústria cultural estadunidense, como num desrecalque “onírico” da subjetividade encantada por Hollywood; incorpore-se aqui a ambivalência sessentista da capitulação ao canto-da-sereia imperialista, no livro subvertida em revelação estética. Seu romance anterior, Lugar público (1965), era sintomático da atração pelo mergulho nas neuroses da vida urbana que se modernizava ruidosamente no país. Recalcava-se de fato nas criações artísticas libertárias, justo pela modernização conservadora que trazia, uma nova cidade consumista, sobretudo depois do Golpe de 64, já atravessada pelos media, tráfego, poluição. O Cinema Novo resistiu em penetrar neste universo, assim como a nossa melhor música resistiu ao pop e ao rock. Caso contrário não explicamos a explosão musical do Tropicalismo, bem como a urbe convulsa do Cinema Marginal, ou a irônica filigrana do espaço público no experimentalismo superoitista - dissonantes todos com a ordem posta, dando voz a certa vivência descalibrada do Progresso23 23 . Cf. meus textos: MACHADO JÚNIOR, Rubens. Das vagas de experimentação desde o tropicalismo: cinema e crítica. In: IKEDA, Marcelo; LIMA, Dellani (orgs.). Cinema de garagem 2014. Rio de Janeiro: Wset, 2014, p. 79-93; As representações urbanas: eclipses e desrecalques do Brasil urbano em filmes dos anos 1960. In: GABRIELAN, Cecília; HALLAK, Fernanda; HALLAK, Raquel (orgs.). CineOP – 8ª mostra de cinema de Ouro Preto: cinema patrimônio. Belo Horizonte: Universo, 2013, p. 46-49. .

Em seu experimento cosmopolita, em suas ancoragens latino-americanas ou brasileiras, AGRIPINA traz algo de comparável a Glauber em seu terceiro-mundismo, seu filmar no desterro - DER LEONE HAVE SEPT CABEÇAS (1970), realizado no Congo, e CLARO! (1974), em Roma. Este último, tratando a cidade em que se expatriava especula num filme de anotações, como em diário do exílio, sobre o cenário contemporâneo do antigo Centro do Império, perscrutando em sua ruína histórica alguma luz emancipatória para o enfrentamento dos reveses políticos e tarefas do degredo. Seu filme mais próximo do manifesto que escrevera em 1971, Estética do Sonho, CLARO! conecta o período glauberiano do “Cinema Tricontinental” aos seus filmes posteriores. Uma sessão única com o filme de Hélio nos atiçaria o sentimento dessa força comum de criações que parecem lidar em seu tempo, e de angulações periféricas, com semelhante gravitação em torno dos polos de progresso, uma recalcada e (re)motivada atração da metrópole. O contraponto paradigmático dessas manifestações na história do cinema teria que recuar meio século, encontrando SOMENTE AS HORAS (RIEN QUE LES HEURES, 1926), o brasileiro Alberto Cavalcanti em Paris, revertendo em vivência difícil a decantada aura da Cidade Luz, desmitificada junto à visão simultânea dos excluídos, os párias da pulsação metropolitana. Nessa obra seminal do cinema de vanguarda exprime-se “instintivamente”, segundo Cavalcanti, a percepção decepcionada de um olhar migrante porventura inflacionado pela promessa cosmopolita.

Tal simultaneísmo contraditório de Cavalcanti soará antípoda ao cosmopolitismo quimérico praticado no seu país em contemporâneas chef d’oeuvres locais, como SÃO PAULO, A SINFONIA DA METRÓPOLE (1929), de Adalberto Kemeny e Rodolfo Rex Lustig24 24 . Cf. Idem. Cinema alemão e sinfonias urbanas do entreguerras. In: ALMEIDA, Jorge; BADER, Wolfgang (orgs.). Pensamento alemão no século XX: grandes protagonistas e recepção das obras no Brasil. São Paulo: Cosac Naify; Goethe Institut, 2013, v. 3, p. 23-48. , calcada na BERLIM de Walther Ruttmann; ou FRAGMENTOS DA VIDA (1929), em que José Medina adapta conto da Manhattan de O. Henry. Em estilos consolidados, lapidados na prática local, os parâmetros nova-iorquinos ou berlinenses do entreguerras são adotados sem reconhecimento algum do viés ilusório desse gesto, mas com entusiasmo característico do humor eufórico. E o fervor desta idealidade metropolitana engendra uma cidade que mal repara em seus aspectos mais específicos, sem o tempo de destilar qualquer vivência de espaços mal inaugurados: urbe ideológica - revelando porém aspiração verdadeira. Metrópole essa que atraía desde os confins da Amazônia um Macunaíma, o herói sem nenhum caráter (1928), da literatura modernista de Mário de Andrade; ou o caipira representado por Mazzaropi em CANDINHO, adaptado do Cândido de Voltaire por Abílio Pereira de Almeida. A peregrinação desses anti-heróis brasileiros ganha um desenvolvimento multifacetado no cinema, chegando à apoteótica romaria desmilinguida de ORGIA, OU O HOMEM QUE DEU CRIA (1970), de João Silvério Trevisan, e às raias do sublime nos filmes virulentos de Ozualdo Candeias como A OPÇÃO, OU AS ROSAS DA ESTRADA (1981), ZÉZERO (1974) e O CANDINHO (1976) - esse último homenageando Mazzaropi em glosa corroída. Todos esses personagens sugados pela gravitação da metrópole, seu mito e economia, no caso São Paulo, mesmo quando nela chegam, de fato, não chegam. O que dela esperam esvanece. É bem verdade que não os inspirou a nenhum deles a mesma formação douta do antigo errante de Voltaire, ou de Sousândrade.

A aventura fracassada de uma Hollywood brasileira, que trouxe Cavalcanti ao Brasil como produtor na Vera Cruz, veio gerar duas obras suas prospectivas de um folclore urbano paulistano, SIMÃO, O CAOLHO (1952) e MULHER DE VERDADE (1954), elogiadas por Sganzerla. Gerou também O CANTO DO MAR (1953), que têm, por sua vez, fonte de inspiração na mesma história sua, de atração pela metrópole que sofre a mais distante província, para além do horizonte do mar, no EN RADE (1927), que filmou na França logo após SOMENTE AS HORAS. Semelhante argumento sobre o mal-estar da vida periférica faminta de oportunidades, pode conectar estas películas à estreia de Glauber, O PÁTIO (1959), seu casal de namorados prostrado em náusea diante do oceano. Desterrados no meio do nada, numa bonança do fim do mundo, como em LIMITE (1931), de Mario Peixoto, se cotejam a outros tipos de párias, os desterrados orbitários da metrópole, seja no abandono da distância insondável, ou morando em sua periferia, mesmo em seu próprio centro. Juntamente ao discurso ideológico da Metrópole teremos sua ausência, sua negação, ou mesmo seu lado obscuro, as refutações diversas daquela sua mensagem de civilidade.

Dos primeiros flertes longínquos da remota metrópole até a ressaca convulsa da violenta imersão em sua dura realidade, um cataclismo urbano vai anunciar-se cada vez mais áspero a partir da década de 60. Eclodirá com os marginais. Ao longo da década seguinte vai exprimir-se nos lugares públicos determinada cifra histórica da opressão - tal como se distingue na produção independente ou no experimentalismo superoitista. Neste, desde o momento da captação das imagens registram-se parâmetros sensíveis de motivação no acionamento da câmera e comportamento de quem filma. Pode ser acompanhada ao longo da década sua evolução circunstanciada pelo que seria mais empiricamente filmável nestas condições, sobretudo na apropriação dos espaços abertos, a descoberta de seu teor cotidiano-existencial, público, político. Recorrente na produção mais radical, uma expressividade se constrói em glosa, ironia ou ataque simbólico aos monumentos culturais dispostos no espaço urbano. Verificam-se em provocações diversamente, da celebração crítica ao pesadelo poético, da execração distanciada à esculhambação ditirâmbica, em filminhos Super-8 como: SUPERFÍCIES HABITÁVEIS - MEMORIAL 2 (São Paulo, 1974), Flávio Motta & Marcello Nitsche; ESPLENDOR DO MARTÍRIO (Rio, 1974), Sérgio Péo; RELAX MÍSTICO (Rio, 1977), Giorgio Croce & Ragnar Lagerblad; O PALHAÇO DEGOLADO (Recife, 1977), e INVENTÁRIO DE UM FEUDALISMO CULTURAL (Recife, 1978), Jomard Muniz de Britto; VITRINES (Curitiba, 1978), Rui Vezzaro; EXPOSED (Salvador, 1978), Edgard Navarro; GATO / CAPOEIRA (Salvador, 1979), Mário Cravo Neto; FABULÁRIO TROPICAL (Recife, 1979), e A ESPERANÇA É UM ANIMAL NÔMADE (Paris, 1980-1981), Geneton Moraes Neto; AMSTERDÃ ERÓTICA (Amsterdã, 1982), Paulo Bruscky25 25 . Cf. a propósito meus trabalhos: MACHADO JÚNIOR, Rubens. Marginália 70: o experimentalismo no super-8 brasileiro. São Paulo: Itaú Cultural, 2001; O pátio e o cinema experimental no Brasil: apontamentos para uma história. In: CASTELO BRANCO, Edwar (org.). História, cinema e outras imagens juvenis. Teresina: EDUFPI, 2009, p. 11-24; A experimentação cinematográfica superoitista no Brasil: espontaneidade e ironia como resistência à modernização conservadora em tempos de ditadura. In: AMORIM, Lara; FALCONE, Fernando (orgs.). Cinema e memória: O super-8 na Paraíba nos anos 1970 e 1980. João Pessoa: UFPB, 2013, p. 34-55. Disponível em: <http://bit.ly/2u95hJs>. Acesso em: 4 ago. 2017. .

A cidade que cintila nestes filmes risonhamente difíceis negaria algo de um espaço-tempo existente, lugares de pseudo-cidadania, urbanidade administrada pela ditadura e meios de comunicação. Ampla gama de experimentos começa a pipocar ironicamente na forma controversa de agit-props obscuros. AGRIPINA É ROMA-MANHATTAN os antecipa, resume e ultrapassa. Fala provocativamente de um Novo Centro do Império com recursos mínimos, pertinência visionária máxima, mobilizando passado, prefigurando futuro - reescreve a seu modo a Estética da Fome, como se por intermédio da Estética do Sonho. De diferentes gerações de reflexão periférica sobre o centro, seus personagens circunstanciados insinuam-se por tradições que atravessam o esforço “coletivo”, tenaz busca de Hélio na ideia sartreana que ele carregava para um mundo em latente irrupção. Sua obra parece elevar-se contudo para além do universo que a formou.

  • 1
    . O presente texto é versão expandida e modificada do artigo: MACHADO JÚNIOR, Rubens. The resonant time of Hélio Oiticica quasi-film. In: LERNER, Jesse; PIAZZA, Luciano (orgs.). Ism, ism, ism – ismo, ismo, ismo: experimental cinema in Latin America. Oakland: University of California Press, 2017. Sua elaboração teve o apoio do projeto “PST: LA/LA: Pacific Standard Time: Latin America in Los Angeles”, coordenado por Los Angeles Filmforum e Getty Foundation (2014-2017).
  • 2
    . Além dos Parangolés, Metaesquemas, Ninhos e Cosmococas, instalações de slides do quasi-cinema, programou-se uma imensa mostra de Cinema Marginal organizada pelos cineastas Neville d’Almeida e Júlio Bressane, sob o comando da curadora Catherine David, sem, no entanto, integrar seu catálogo: Hélio Oiticica. Paris: Galerie Nationale du Jeu de Paume, 1992. A pedido de dois de seus poucos frequentadores, Denis Chevalier e Jean-Marc Manach, organizei um dossiê sobre a mostra “Brésil: Les ombres oubliées d’un cinéma inassouvi”, L’Armateur, Paris, n. 3, p.43-46, 1992.
  • 3
    . Cf. os poemas de Sousândrade: SOUSÂNDRADE, Joaquim de. Canto décimo. In: ______. O Guesa. São Paulo: Annablume, 2009, p. 202-288. Prefácio de Augusto de Campos; The Wall Street inferno. Tradução Robert E. Brown. In: ROTHENBERG, Jerome; ROBINSON, Jeffrey (eds.). Poems for the millennium: the University of California book of romantic & postromantic poetry. Berkeley: University of California Press, 2009, v. 3, p. 655-663.
  • 4
    . Cf. MACHADO JÚNIOR, Rubens; CAMPOS, Marina. Protagonismos experimentais femininos no surto superoitista dos anos 1970. In: HOLANDA, Karla; TEDESCO, Marina (orgs.). Feminino e plural: mulheres no cinema brasileiro. Campinas: Papirus, 2017.
  • 5
    . FAVARETTO, Celso. A invenção de Hélio Oiticica. São Paulo: Edusp, 1992.
  • 6
    . NAVES, Rodrigo. A forma difícil: ensaios sobre arte brasileira. São Paulo: Ática, 1996, p. 243-246.
  • 7
    . Idem. O vento e o moinho: ensaios sobre arte moderna e contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 208.
  • 8
    . Produzirá e dirigirá nos Estados Unidos o filme A visit to Eros Volusia (1980) sobre a célebre dançarina e coreógrafa carioca.
  • 9
    . Em filmes de Bressane como O anjo nasceu (1969) e O rei do baralho (1973) se desenvolve uma sintaxe que foi pensada numa primeira recepção como montagem não entre planos, mas entre sequências (ou plano-sequências), como se elas fossem concebidas para se associar enquanto cartas de um jogo de baralho, em liberdade paratática, um pouco no sentido proposto por Theodor Adorno. Cf. ADORNO, Theodor. Parataxis: a lírica tardia de Hölderlin. In: ______. Notas de literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973, p. 73-122. (Coleção Biblioteca tempo universitário); MACHADO JÚNIOR, Rubens. Observação sobre O anjo nasceu. Cine-Olho, São Paulo, n. 5-6, p. 52-53, 1979; MESQUITA, Fernando. A solidão lunar. Cine-Olho, São Paulo, n. 5-6, p. 62-74, 1979.
  • 10
    . CONDURU, Roberto. Metaesquema, metaforma, metaobra. In: ENCONTRO NACIONAL DA ANPAP, 17., Florianópolis, 2008. Anais… Florianópolis: ANPAP: Udesc, 2008, p. 687.
  • 11
    . Cf. meu artigo: MACHADO JÚNIOR, Rubens. Passos e descompassos à margem. Alceu: Revista de Comunicação, Cultura e Política, Rio de Janeiro, v. 8, n. 15, p. 164-172, 2007. Disponível em: <http://bit.ly/2u4RHqr>. Acesso em: 4 ago. 2017. Edição Raízes e Veredas do Cinema Brasileiro, organizada por Miguel Pereira e Gian Luigi de Rosa.
  • 12
    . Modelos antigos imbricam-se na cidade moderna, a pólis grega e a civitas romana: conceito dinâmico de cidade, a Roma mobilis expandiu-se almejando concórdia estratégica entre diferentes, sem as matrizes étnicas da primeira. Cf. CACCIARI, Massimo. A cidade. São Paulo: Gustavo Gili, 2010, p. 9-23.
  • 13
    . “Roma es la ciudad donde Dios ha desposado la Iglesia con el Imperio, o si se quiere, el ‘Imperio del más allá’ con el ‘Imperio del más acá’, la Urbe con el Orbe”. D’ORS, Eugenio. Mis ciudades. Madrid: Libertarias, 1990, p. 130.
  • 14
    . Desafio solicitado pela obra: futuros esforços aproximarem dela formulações de Walter Benjamin, como a imagem dialética, a mônada e a alegoria, esta última em especial seguindo trilha aberta por Ismail Xavier, cf. XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
  • 15
    . OITICICA, Hélio. Brasil diarréia. In: OITICICA FILHO, César; COHN, Sergio; VIEIRA, Ingrid (orgs.). Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Azougue, 2009, p. 116-117. (Série Encontros).
  • 16
    . WALLERSTEIN, Immanuel. O capitalismo histórico. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 27. (Coleção Primeiros voos).
  • 17
    . Nos créditos das Quotidianas Kodak, de Ivan Cardoso, um símbolo do oito deitado vem como “logomarca” especialmente criada por Óscar Ramos, acumulando referência ao infinito e à liberdade do superoitismo.
  • 18
    . KOOLHAAS, Rem. Nova York delirante. São Paulo: Cosac Naify, 2008, p. 115.
  • 19
    . As “Torres Gêmeas constituem uma metáfora perfeita. Elas apontavam para aspirações ilimitadas; anunciavam grandes feitos tecnológicos; eram um luzeiro para o mundo”. Cf. WALLERSTEIN, Immanuel. Os Estados Unidos e o mundo: as Torres Gêmeas como metáfora. Estudos Avançados, São Paulo, v. 16, n. 46, p. 23, 2002.
  • 20
    . “Em 1902, o edifício Flatiron é um modelo” do processo urbano em curso, por “sete anos ‘o edifício mais famoso do mundo’, ele é o primeiro ícone” nesse ramo do “imóvel utópico”, em que a arte de construir é esta elevação brutal rumo ao céu “de qualquer terreno que o incorporador consiga reunir” KOOLHAAS, Rem. Op. cit., p. 112.
  • 21
    . “A partir das demandas supostamente insaciáveis dos ‘negócios’ e do fato de que Manhattan é uma ilha (…) com rios de ambos os lados proibindo uma expansão lateral”, é como se a cidade não tivesse escolha a não ser esse erigir-se inarredável rumo ao alto: “apenas o arranha-céu oferece aos negócios os amplos espaços de um faroeste criado pelo homem, uma fronteira no céu”. KOOLHAAS, Rem. Op. cit., p. 109-111.
  • 22
    . Posteriormente Hélio disse que a arte latino-americana poderia ser identificada em duas partes: “(a) a arte colonizada (na qual eu incluo a assim chamada arte primitiva e o pseudoexpressionismo), uma diluição total de modelos europeus, com uma implicação indígena, como a do artista regional; (b) a tentativa de estabelecer um tipo de experimentação que se relaciona com as tendências da arquitetura e arte experimental de vanguarda, com perspectivas progressivas: ela coloca problemas e é mais ambiciosa (penso em algumas experiências da arte mexicana, argentina e brasileira)”. OITICICA, Hélio. Entrevista para Journal. In: OITICICA FILHO, César; COHN, Sergio; VIEIRA, Ingrid (orgs.). Op. cit., p. 222.
  • 23
    . Cf. meus textos: MACHADO JÚNIOR, Rubens. Das vagas de experimentação desde o tropicalismo: cinema e crítica. In: IKEDA, Marcelo; LIMA, Dellani (orgs.). Cinema de garagem 2014. Rio de Janeiro: Wset, 2014, p. 79-93; As representações urbanas: eclipses e desrecalques do Brasil urbano em filmes dos anos 1960. In: GABRIELAN, Cecília; HALLAK, Fernanda; HALLAK, Raquel (orgs.). CineOP – 8ª mostra de cinema de Ouro Preto: cinema patrimônio. Belo Horizonte: Universo, 2013, p. 46-49.
  • 24
    . Cf. Idem. Cinema alemão e sinfonias urbanas do entreguerras. In: ALMEIDA, Jorge; BADER, Wolfgang (orgs.). Pensamento alemão no século XX: grandes protagonistas e recepção das obras no Brasil. São Paulo: Cosac Naify; Goethe Institut, 2013, v. 3, p. 23-48.
  • 25
    . Cf. a propósito meus trabalhos: MACHADO JÚNIOR, Rubens. Marginália 70: o experimentalismo no super-8 brasileiro. São Paulo: Itaú Cultural, 2001; O pátio e o cinema experimental no Brasil: apontamentos para uma história. In: CASTELO BRANCO, Edwar (org.). História, cinema e outras imagens juvenis. Teresina: EDUFPI, 2009, p. 11-24; A experimentação cinematográfica superoitista no Brasil: espontaneidade e ironia como resistência à modernização conservadora em tempos de ditadura. In: AMORIM, Lara; FALCONE, Fernando (orgs.). Cinema e memória: O super-8 na Paraíba nos anos 1970 e 1980. João Pessoa: UFPB, 2013, p. 34-55. Disponível em: <http://bit.ly/2u95hJs>. Acesso em: 4 ago. 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    01 Ago 2017
  • Aceito
    02 Ago 2017
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo Depto. De Artes Plásticas / ARS, Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, 05508-900 - São Paulo - SP, Tel. (11) 3091-4430 / Fax. (11) 3091-4323 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: ars@usp.br