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As batalhas de Araújo Porto Alegre

Araújo-Porto Alegre's Battlefield

Resumo

O texto retoma conferência apresentada pelo autor na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1997, e apresenta aspecto central do pensamento de Manuel de Araújo Porto Alegre - a envergadura política e cultural dessa obra, que Zilio reputa como a de um verdadeiro intelectual público no Brasil dezenovista. Nesses termos, é, sobretudo, em tal dimensão pública que para o autor residiria a modernidade da obra; ele sublinha, ainda, o papel político que Porto Alegre divisava a uma escola de arte nacional, e a correspondente concepção iluminista que o inspirava nessa tarefa, associando motivos éticos e estéticos.

palavras-chave:
Manuel de Araújo Porto Alegre; modernidade; Academia Imperial de Belas Artes; arte brasileira; crítica de arte

Abstract

The text reexamines issues the author approached in a lecture done at Escola de Belas Artes of Universidade Federal do Rio de Janeiro, in 1997, and draws attention to a crucial topic in Araujo Porto Alegre's thought - the political and cultural scope of this work, whose author Zilio reputes a very public intelectual in Nineteenth-Century Brazil. In this manner, the modernity of the work would reside, for Zilio, above all in its public scope; he still enphasizes the political role Porto Alegre assigned to a national school of fine arts, as well as the iluminist conception inspiring him in this task, as it interlaced ethical and aesthetic motifs.

keywords:
Manuel de Araújo Porto Alegre; modernity; Imperial Academy of Fine Arts; Brazilian art; art criticism


Para Mario Barata, in memoriam

Nossa análise inicia-se por um fato significativo na História da Arte Brasileira, a chamada questão artística de 1879, polêmica gerada pela inauguração da 25ª Exposição Geral da Academia Imperial de Belas Artes (mostra que recebeu a impressionante visitação de 1.286 pessoas, acontecimento único até então e um dos relativamente maiores públicos que já fluíram a uma exposição no Brasil). Esse debate travava-se a propósito das duas grandes telas expostas: A Batalha do Avaí, criada por Pedro Américo, e a Batalha dos Guararapes, de Vítor Meireles. Para pensarmos a razão que levou a tamanha receptividade em torno dessas obras, algumas questões específicas à estrutura delas precisam ser colocadas.

Segundo Louis Marin, a coexistência num único trabalho de arte de dois modos aparentemente incompatíveis de pintura, ou seja, a pintura vista como janela e a pintura vista como espelho, é a fundação básica na qual o sistema clássico de representação foi erigido. A representação como janela, ou seja, como uma janela transparente através da qual o espectador contempla a cena representada na tela, como se estivesse diante da cena real, seria aquela que teria dado, inclusive, sentido para a palavra perspectiva, que literalmente significa perspecere ou seja, trans-parência, sentido original dado por Alberti no seu Della Pittura. A outra possibilidade que esse sistema representativo propõe, além da janela, é a de refletir, ou seja, de funcionar como uma espécie de espelho. A descrição dessa operação é realizada por Marin do seguinte modo: " Nós podemos compreender esse processo como sendo aquele pelo qual um objeto se inscreve como centro do mundo e transforma a si em coisas transformando coisas em sua representação. Tal objeto tem o direito de possuir legitimamente coisas porque ele substituiu coisas pelos seus signos, que o representam adequadamente, isto é, de tal modo que a realidade é exatamente equivalente ao seu discurso." A representação é, assim, definida como apropriação, o que lhe confere um aparato de poder.1 1 . MARIN, Louis. Toward a theory of reading in visual arts: Poussin's the Arcadian Shepherds. In: SULEIMAN, Susan R. & CROSMAN, Inge (eds.). The Reader in the text. Princeton: Princeton University Press, 1980. (Tradução do autor)

Tanto a Batalha dos Guararapes quanto a do Avaí adquirem uma posição extremamente significativa do ponto de vista da constituição da cultura brasileira, na medida em que ambas funcionam exemplarmente como janela e como espelho. Dez anos depois de concluída a guerra do Paraguai, que provocou uma mobilização nacional, havia ali a possibilidade real do espectador de ver a si mesmo simultaneamente como espectador e como protagonista. Ou seja, aqueles quadros históricos já dispunham de um afastamento necessário para que fossem vistos externamente como janela, mas ao mesmo tempo tinham a capacidade de produzir de imediato junto ao espectador um efeito de espelho, fazendo com que se sentisse participante daqueles eventos. Portanto, a mobilização que essas obras provocaram em termos de afluência pública demonstra a eficácia desse processo de institucionalização de imagens. Houve um ritual preparatório. A expectativa provocada pelo longo tempo de execução das telas, a ida de Pedro Américo a Florença, o ateliê especial no Convento de Santo Antônio para Vítor Meireles, foram fatos que consagraram um projeto engendrado no início da segunda parte do século XIX: o da Escola de Pintura Brasileira.

Na realidade, essa disputa entre Pedro Américo e Vítor Meireles é um pouco fictícia. Tanto um quanto outro cumpriram exemplarmente a missão para a qual foram preparados. As divergências de gosto, se é que se pode dizer assim, com raras exceções não passaram de simpatias de grupos. Poucas foram realmente as apreciações críticas um pouco mais profundas. Tanto uma obra quanto a outra, enquanto ideia, enquanto reflexão sobre arte, partiram da mente de Araújo Porto Alegre. Assim há, evidentemente, na execução de uma e da outra, uma certa divergência, digamos, de temperamento dos artistas, mas mesmo essa possibilidade estava compreendida no projeto de Porto Alegre. Se não fosse um exagero literal, poderíamos dizer que o pintor de fato (retomando a expressão de Leonardo, da "arte como coisa mental", ou pensando ainda na escultura Neoclássica projetada pelo escultor e executada por artífices) foi Araújo Porto Alegre, e que os executores foram Pedro Américo e Vítor Meireles.

Quanto à gênese dessas pinturas, em última análise, diríamos que A Batalha dos Guararapes está mais próxima de uma concepção de arte ligada a Winckelmann, ou seja, "a nobre simplicidade e serena grandeza"2 2 . A afirmação encontra-se no texto Reflexões sobre a natureza da pintura e da escultura, publicado na Alemanha em 1755. (Nota do editor) , enquanto a Batalha do Avaí liga-se à proposição de Lessing3 3 . LESSING, Gotthold Ephraim. Laocoonte ou Sobre as fronteiras da pintura e da poesia. São Paulo: Editora Iluminuras, 2011. (Nota do editor) de que a pintura "só pode utilizar um único momento de uma ação e portanto deve escolher o mais significativo entre o momento anterior e o que se seguirá". Se essas são as origens, não se pode esquecer que estamos mais para o final do século XIX, marcado não só pela tradição do Neoclássico mas também pelo Romantismo, pela chamada pintura abstrata, a pintura do justo meio termo4 4 . "Justo meio-termo" ou juste milieu: termo designando o gosto corrente na pintura francesa da primeira metade do século XIX, consolidando-se como reação conservadora às correntes contemporâneas mais inquietas, do Romantismo e do Realismo, e que associa elementos desses movimentos a uma fórmula neoclássica; aplica-se, igualmente, à política conservadora e à cultura em geral que dominou a França no período, marcado pela Restauração. (Nota do editor) , a pintura de paisagem e as pinturas monumentais. Isso para não falar de tendências como o Realismo e aquelas que, a partir de Manet, começavam a se fazer presentes, como o Impressionismo. No Brasil, depois do Neoclássico vão se incorporando diversas tendências mas, seguindo o exemplo dominante na arte oficial francesa, a pintura do chamado justo meio termo me parece dominante na Academia após a nomeação de Porto Alegre para a sua direção.

Para compreendermos a proposta de arte brasileira desse período é preciso antes de mais nada entender a importância da ação de Araújo Porto Alegre. Como discípulo da Missão Francesa e mais particularmente de Debret, Porto Alegre estava necessariamente vinculado à tradição direta dos ensinamentos de [Jacques-Louis] David, do qual Debret foi aluno, auxiliar e parente. Em 1775, David conquista o prêmio de viagem a Roma, para onde parte junto com Debret. Nesse momento, Roma vive ainda sob a influência das ideias de Winckelmann, que havia morrido em 1768, e de Lessing, que tem o seu Laocoonte escrito em 1763. David é o responsável pela transmissão desses conceitos para a arte francesa.

Para Winckelmann, tratava-se de realizar um retorno da arte à arte grega. É determinante nesse sentido a influência da Grécia na sua formação e a presença da antiguidade na sua ida para a Itália. A centralidade da estética do Neoclássico, quer dizer, essa relação entre estética e ética, sendo a estética a emissora da possibilidade da virtude social, se dá pelo retorno à arte grega, mas não no sentido naturalista. O caminho proposto por Winckelmann estava no eidos, na ideia, na forma universal, ou seja, no seu sentido mais platônico. Não se tratava, portanto, de copiar o grego, mas de pensar como os gregos, retomando as virtudes da civilização grega. Não é outra a posição de David quando, com membro do Comitê de Instrução Pública da Revolução Francesa, fala à Convenção sobre a arte e sobre a direção que deveria ser dada à arte na sociedade francesa5 5 . Sobre Winckelmann, ver BORHEIM, Gerd A. Introdução à leitura de Winckelmann. In: Revista Gávea, n. 8, PUC-Rio, dez. 1990. .

"A arte é imitação da natureza naquilo que ela tem de mais belo e de mais perfeito. Um sentimento natural ao homem o encaminha em direção ao mesmo objeto. Não é apenas encantando os olhos que os monumentos das artes atingiram o seu fim, é penetrando na alma, é fazendo sobre o espírito uma impressão profunda, semelhante à realidade. É então que os traços de heroísmo, de virtudes cívicas oferecidas aos olhos do povo, eletrizarão sua alma e farão germinar nele todas as paixões da glória, do devotamento por sua pátria. É necessário que o artista tenha estudado todas as forças do coração humano. É preciso que ele tenha um grande conhecimento da natureza. É preciso, em uma palavra, que ele seja filósofo"6 6 . DELÉCLUZE, E. J. Louis David, son école et son temps. Paris: Macula, 1983. (Tradução do autor) . Esse seria, em última análise, o espírito que a Missão, e particularmente Debret, trazem para o Brasil: o sentimento cívico, a crença no poder da arte e a concepção messiânica na relação com a sociedade7 7 . É importante ter em mente a diferença de pensamento de David e Debret entre a época que estavam em Roma e a chegada de Debret ao Brasil, período no qual as teorias de Winckelmann vão sofrer um processo de romanização pela influência política. .

Debret teve no Brasil, portanto, a importância de ter sido o criador do sistema de arte moderna, no sentido da formulação das instituições básicas que norteiam a circulação da obra de arte na sociedade moderna. O fundamento desse sistema encontra-se na escola de arte. Na fundação da Academia de Belas Artes, Debret investiu todas as suas forças, superou todas as resistências, e no período compreendido entre 1816 e 1831 conseguiu efetivar um projeto de formação de artistas. Além disso, ao mesmo tempo em que lança as bases da Academia, ele organiza outros componentes do circuito, como a primeira exposição de alunos, dando-lhe um caráter de Salão, acompanhado pela edição do primeiro catálogo. Ao voltar para a França, em 1831, buscando dar prosseguimento a essa sua missão, leva consigo o seu discípulo Araújo Porto Alegre.

Em 3 de novembro de 1830, [Antoine-Jean] Gros escreve para Debret: "Terei muito prazer em receber em meu atelier os alunos brasileiros que já tenham entendido por seu intermédio os conselhos que nos deu nosso ilustre mestre, pois eu não sei de outra maneira ensinar daquele que nos foi comum e insubstituível"8 8 . Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (29/40):575, 1930, transcrito em MACEDO, Francisco Riopardense de (ed.). Arquitetura no Brasil e Araújo Porto Alegre. Porto Alegre: UFRGS, 1984. . Após a morte de David e mesmo antes dela, com seu exílio na Bélgica, seus discípulos buscam manter um espírito de coesão que vai se perpetuar, inclusive, com reuniões anuais. Com o crescimento de outras tendências na arte, particularmente do Romantismo, a escola de David, até pelo menos 1830, não renuncia à luta. Com a morte de [Pierre-Narcisse] Guérin e a falta de estímulo que se abate sobre [François Pascal Simon] Gérard, até mesmo de aparecer nos Salões, a defesa da escola de David recai sobre os ombros de Gros.

Entre os discípulos de David, Gros seria aquele que mais teria sido tocado pelas influências do Romantismo. Essa relação entre a fidelidade aos princípios de David e a responsabilidade crescente de ser seu continuador fez com que Gros, depois de 1830, entrasse numa espécie de conflito entre as suas tendências naturais e aquelas sistematizadas por Quatremère de Quincy (uma espécie de oráculo dos ensinamentos de David, particularmente a defesa intransigente do desenho).

Angustiado, Gros acaba se suicidando em 1835. A escola de David vive um paradoxo singular. A antiguidade, tida como modelo do belo ideal, desapareceu dos Salões.

Aluno de Gros durante algum tempo após sua chegada a Paris, em 1831, Porto Alegre sem dúvida deve ter sentido no seu mestre toda a angústia de manter-se fiel aos ensinamentos de David. Após estudar com Gros, Porto Alegre trabalha com o irmão de Debret, François Debret, arquiteto especialista na construção de teatros. Entre as suas principais influências no campo da arquitetura destacam-se Percier e Fontaine, os verdadeiros animadores do estilo Império, caracterizado principalmente pela ostentação das glórias militares, mas que também volta a dar importância aos ofícios e às técnicas ociosas desde a Revolução. Porto Alegre prepara-se para cumprir as expectativas de Jean Baptiste Debret em relação a ele: ser capaz de formular uma imagem para um estado moderno.

Sua missão, portanto, é a do civilizador ou a do humanista, segundo o entendimento do século XIX: aquele que detém o conhecimento da antiguidade e a visão do progresso. Contudo, ao contrário de David e Debret, ele já recebe a influência do Romantismo e ao mesmo tempo sofre o impacto transformador da ciência. Civilizar significa para Porto Alegre incorporar as tendências dominantes da arte europeia, adaptando-as às particularidades brasileiras, não havendo nenhum tipo de incompatibilidade entre a formulação de um projeto de arte brasileira e a utilização de uma imagem que seria importada da Europa, porque essa imagem é a da civilização. Ser um civilizador implicava ainda atuar nesse contexto brasileiro do século XIX em diversas frentes. Porto Alegre é pintor, arquiteto, urbanista, poeta, diretor de instituição de ensino, professor, historiador, político, diplomata. Seria, assim, uma espécie de síntese do intelectual brasileiro do século XIX.

Fazer uma pintura brasileira não significava apenas criar as possibilidades de registro dos fatos históricos. Era necessário, também, dar ao Brasil um passado, uma origem, enfim, uma História. Porto Alegre elabora um texto sobre a História da Arte brasileira que denomina "Sobre a antiga Escola de Pintura Fluminense", no qual faz um levantamento da produção colonial fluminense. Esse seu resgate da história da pintura transcende o caráter eminentemente regional, na medida em que ele supera os preconceitos sociais existentes em relação à profissão do artista e reconhece os valores da arte colonial, o que não era desprezível para o discípulo da Missão Francesa.

Em seu texto intitulado "Iconografia brasileira", Porto Alegre diz que sua tentativa "levava em mira um pensamento nacional, qual o de fazer com que estes exemplos frutificarem no ânimo da mocidade..."9 9 . Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, nº 23, tomo XIX, 3, 3º trimestre de 1856. . A maior parte dos jovens brasileiros, segundo ele, conhece as riquezas naturais e tradições alheias mais do que suas próprias. Conhecem mais os indivíduos estranhos que os nacionais. Ele fica indignado com a ignorância que os jovens tinham a respeito de José Bonifácio de Andrada, Visconde de Cairu, Padre Caldas e José Maurício, por exemplo.

Sem dúvida, ele carregava em si essa certeza de redimensionar as possibilidades da sociedade brasileira. No seu regresso ao Brasil, ele vê a cidade e a arte em decadência. Para ele, a Academia não corresponde mais ao antigo e bom mestre brasileiro colonial, nem ao mestre da Missão, mas a uma academia corrompida. Seu projeto civilizador necessariamente vai entrar em choque com a Academia quando ingressa no seu corpo docente em 1837, sendo o único professor de origem brasileira. Não seria de espantar, alguns anos depois, o inevitável conflito com o diretor da Academia, Felix Émile Taunay.

É importante assinalar que, em 1843, além das suas atividades como professor, Porto Alegre faz a decoração do trono para a cerimônia de posse do Imperador e funda com Gonçalves de Magalhães e Torres Homem a revista Minerva Brasiliense. Em 1844, começa a redigir o poema de inspiração romântica Brasilianas. Em 1849, funda a revista Guanabara com Joaquim Manuel de Araújo Macedo e Antônio Gonçalves Dias. Está, portanto, em pleno movimento de formulação de um pensamento que envolve crescentemente o compromisso com a cultura brasileira. Em 1852, faz parte, como vereador suplente, da Câmara Municipal e destaca-se como urbanista, com um projeto que ligava o centro cívico do Rio de Janeiro a atual Praça XV, ao centro cultural, a atual Praça Tiradentes e à nova área de lazer que planeja, a atual Praça da República. Além disso, projeta a urbanização do mangue. É preciso tomar Porto Alegre nessa sua dimensão mais ampla de pensador da cultura brasileira, aliada à de um político que tem a crença na estética como centro de sua ação.

Em 1854, depois de uma grande polêmica com Taunay, propõe a reforma da Academia Imperial de Belas Artes e toma posse como seu diretor. A reforma que defende aponta para a formação de um outro artista. No seu discurso de posse declara: "Tudo vai em progresso, tudo se agita, tudo se aduna para preparar o terreno às artes: há no espírito público a efervescência, uma desinquietação para romper de uma vez com as talas do passado e acabar com essas tradições de uma imobilidade destruidora de todo o progresso, e com essa rotina que é âncora dos povos madraços e egoístas. Os três fatos que acabam de realizar devem ser correspondidos por esta Academia. O fio elétrico, o mensageiro mais veloz da velocidade do pensamento, o que leva a palavra pelos ares, pelas profundas do mar e da terra, foi seguido pela nova luz do gás e pela velocidade da locomotiva..."10 10 . Discurso de posse de Porto Alegre na Academia Imperial de Belas Artes, citado por GALVÃO, Alfredo. Manuel de Araújo Porto Alegre. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, vol. 14, Rio de Janeiro, 1959. .

Essa admiração pelo progresso impõe uma renovação na Academia, de modo a colocá-la coerente com esse ritmo. Há no seu projeto uma fusão paradoxal entre Winckelmann (o belo), Romantismo (nacionalismo) e produtivismo (arte voltada para a utilidade pública). Para tornar esse projeto viável, divide os alunos em duas categorias (o artista e o artífice) e a Academia em quatro sessões: Arquitetura, Pintura, Ciências Acessórias e Música, dando ênfase especial ao ensino das ciências acessórias: Geometria, Geometria Descritiva, Estereotomia, Trigonometria, Mecânica Elementar, Ótica, Arquitetura, a Teoria das Sombras, a Perspectiva e o Desenho Topográfico.

Com esse equipamento é possível um artista estar apto tanto a ser um dia arquiteto, cenógrafo, servir como auxiliar para a engenharia civil, quanto a conceber as grandes "máquinas" dos quadros históricos. O aluno artífice contribuirá para a realização de ornatos e poderá participar decisivamente com a forma para os objetos industriais. Finalmente, para tornar tudo isso exequível, é necessário aparelhar as instalações da Academia com a organização de uma biblioteca e de uma pinacoteca, o que resulta na reforma do prédio da Academia. Sua breve administração não impede que vislumbre a realização do seu sonho: o Brasil entre as nações civilizadas..., "o mensageiro que leva à praia de Albion as efemérides do universo já saturou-se com as águas do Tâmisa, e bateu às portas do parlamento inglês, para dizer ao mundo: - o Brasil é uma nação livre, e caminha à perfectibilidade".11 11 . Ibidem. Paralelamente, propõe o aperfeiçoamento do sistema de arte, no sentido de viabilizar profissionalmente o artista através de encomendas feitas por repartições públicas, da construção de uma nova necrópole e da criação de uma comissão artística para a compra de obras e construções arquitetônicas. Enfim, adota a postura de buscar, através da maior presença estética no Rio de Janeiro, civilizar a cidade e criar uma rotina em que a arte fosse incorporada definitivamente à vida.

A atenção que Porto Alegre dava aos seus alunos, sobretudo a Vítor Meireles e Pedro Américo (este último acaba inclusive casando-se com uma filha do mestre) pode ser percebida por uma carta que escreve para Vítor Meireles, então na Europa, em 6 de agosto de 1855: "Os seus últimos painéis nos enchem de grande satisfação porque neles vimos um saliente progresso tanto na parte técnica como na teórica. Pela maneira que procedeu a Academia, verá Vossa Senhoria a atenção prestada aos seus esforços e como se encaram seriamente a produção daqueles que virão um dia vir a dar um novo lustre a esta Academia". Em seguida, Porto Alegre começa a tratar de uma série de detalhes da produção enviada por Vítor Meireles, e pode-se constatar a minúcia com que desce aos critérios extremamente naturalistas da sua crítica: "A figura do Algoz tem uma boa cabeça. O pescoço, o tórax, o abdômen estão sofrivelmente modelados e melhor coloridos, porque não têm tons sujos. Porém, parece-me que há uma falhazinha miológica na região intercostal. O braço direito, no que toca ao antebraço, não está mal, porém não está acentuado com energia nem tem clareza na musculação. O deltóide deveria ser mais fibroso, assim como mais marcado o tríceps braquial. Quanto ao antebraço, punho e mão, esses não foram estudados com tanto amor como o tórax e o abdômen".

Depois de outras observações do gênero, prossegue dizendo: "Há estudo, há gosto, há inteligência e aquela fineza que denota uma alma predestinada pela percepção do belo. Antes de compor, veja a ação em geral. Veja depois cada uma das suas personagens. Estude-as moral e fisiologicamente para que elas possam cada uma de per si compor um todo harmônico e verdadeiro." Em seguida, acrescenta: "Estude bem a teoria da sombra e a perspectiva, porque sem essas bases muito terá de lutar. A elas deverá o perfeito conhecimento das modificações da luz, dos planos, dos relevos, copie desenhos cenográficos, porque nesse estudo está o dos fundos dos painéis etc., etc.".

Após fazer a cobrança do envio de uma cópia do Louvre, ele acrescenta: "Estude o nu. Estude anatomia, estude bem o desenho e veja se toma Mr. Delaroche por mestre, que é o pintor mais filosófico e o mais estético que eu conheço. Estude cavalos, porque as nossas batalhas exigem esse estudo, e lá achará belíssimos modelos já como pinturas nas obras de meu mestre, o Barão Gros, já nas de Monsieur H. Vernet, que conhece as raças de um animal mais que ninguém. Faça cópias de cabeças de cavalos em ponto grande e vá mandando todos os seus estudos porque serão algo visto por Sua majestade"12 12 . Idem. Ver também Victor Meirelles de Lima 1832-1903 (Rio de Janeiro: Ed. Pinakotheke, 1982). .

Esse texto, além de esclarecer bem a concepção naturalista de Porto Alegre (seu compromisso com a formulação de uma estética clássica baseada no desenho, na anatomia, na sombra e na perspectiva), mostra a sua preocupação com o bolsista, para que se detenha em determinados mestres e temas que trarão uma particular contribuição para a possibilidade de uma pintura histórica brasileira. Seria o caso então de perguntar: quem eram esses mestres tão aconselhados por Porto Alegre, como [Paul] Delaroche e Horace Vernet?

Segundo Léon Rosenthal, na sua definição de "o justo meio termo", "os românticos e pintores abstratos ligavam as suas doutrinas a um pequeno número de artistas e foram objeto do sarcasmo da parte de um bando de ignorantes. No entanto, o reconhecimento que lhes foi recusado foi dado a artistas menos capazes que se tornaram os favoritos do público, como por exemplo Paul Delaroche, Horace Vernet, Schnetz, Léon Cogniet e Robert Fleury." Esses pintores, segundo Rosenthal, "imaginam que a natureza contém nela tudo aquilo que o pintor executa no seu quadro: concordância de cor e de linhas, não tendo o artista o que fazer além de registrar. Não é do seu domínio especular sobre a técnica. Uma longa tradição lhe fornece as regras para bem desenhar e bem pintar: não há aqui criadores e artistas no sentido mais específico do termo, mas práticos, mais ou menos hábeis. Alguns mais hábeis e com maiores prestígios, outros mais pretensiosos. Por falta de estilo, o justo meio termo procura a aparência da grande arte. Ela se orientou em grandes máquinas. Isso quer dizer que ela cobriu vastas telas de grandes composições onde figuram personagens de tamanho natural e que retomou as dimensões dos pintores de história da escola de David..."13 13 . ROSENTHAL, Léon. Du Romantisme au Réalisme. Paris: Macula, 1987. . Foi justamente essa concepção que predominou sob a orientação de Porto Alegre.

É difícil ter uma visão de Porto Alegre enquanto especialista numa determinada área. Manuel Bandeira, por exemplo, ao falar sobre ele em seu livro Poesia do Brasil, situando-o no movimento romântico, diz o seguinte: "As qualidades melhores de Porto Alegre não são de poeta no fundo frio, mas sim de desenhista e pintor vigoroso nas descrições e no domínio da métrica e da língua. A verdade é que tanto Magalhães como Porto Alegre não eram românticos de natureza, nem tinham em si real imaginação e sensibilidade poéticas. Quem as teve, e em grau eminente, foi Antônio Gonçalves Dias"14 14 . BANDEIRA, Manuel. Poesia do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1963. . Ora, se como poeta é difícil aceitar a obra de Porto Alegre, como desenhista e pintor, como quer Manuel Bandeira, ele era também pouco significativo. De fato, sua obra não se limita à de um especialista. Ele compõe a figura híbrida do humanista e da síntese do intelectual brasileiro do século XIX capaz de atuar com certa eficiência em vários campos do saber.

Apesar dos conflitos programáticos que Porto Alegre teve no interior da Academia, sua principal intransigência estava em sua recusa a transgredir regulamentos e leis. Os impasses profissionais que teve foram sempre marcados por razões éticas. Defender princípios de conduta representava para ele a coerência necessária para seu desempenho civilizador. Ao mesmo tempo que protestou e foi prejudicado pelo oportunismo de favorecimentos pessoais (como a saída da direção da Academia, provocada pela nomeação de um professor sem concurso). Esses fatos não foram suficientes para que tivesse uma visão crítica do sistema de favorecimentos Imperiais, que implicava sempre na dependência dos artistas ao poder.

Sua atitude como intelectual foi sempre diretamente ou indiretamente amparada pela monarquia e há nisso, sem dúvida, uma clarividência do Estado brasileiro, na medida em que Porto Alegre realiza um projeto que oferece uma imagem ao poder identificada com a do país. Talvez Porto Alegre acreditasse na autonomia e capacidade transformadora da estética sobre os regimes políticos, assim como os artistas Neoclássicos, mas é mais provável que, a exemplo do Neoclássico romanizado, tivesse fé nas possibilidades da monarquia como condutora de um projeto de arte. Por ser uma imagem do poder não há o que olhar nas batalhas (no sentido de uma reflexão visual). Elas não se apresentam ao olhar, são impositivas, seu funcionamento está alicerçado na evidência da janela e na sedução do espelho, mais máquinas de grandes dimensões do que grandes obras de arte.

O projeto civilizador de Porto Alegre acaba delimitado pelas possibilidades estruturais brasileiras. Ele acredita no belo mas se compraz com o naturalismo; é romântico mas não permite a presença transgressora da emoção; admira o progresso mas não dimensiona o conservadorismo escravocrata do Segundo Reinado. Sua única possibilidade estava no meio-termo.

  • 16
    Poema visual de Wlademir Dias-Pino, publicado em 1973.
  • 1
    . MARIN, Louis. Toward a theory of reading in visual arts: Poussin's the Arcadian Shepherds. In: SULEIMAN, Susan R. & CROSMAN, Inge (eds.). The Reader in the text. Princeton: Princeton University Press, 1980. (Tradução do autor)
  • 2
    . A afirmação encontra-se no texto Reflexões sobre a natureza da pintura e da escultura, publicado na Alemanha em 1755. (Nota do editor)
  • 3
    . LESSING, Gotthold Ephraim. Laocoonte ou Sobre as fronteiras da pintura e da poesia. São Paulo: Editora Iluminuras, 2011. (Nota do editor)
  • 4
    . "Justo meio-termo" ou juste milieu: termo designando o gosto corrente na pintura francesa da primeira metade do século XIX, consolidando-se como reação conservadora às correntes contemporâneas mais inquietas, do Romantismo e do Realismo, e que associa elementos desses movimentos a uma fórmula neoclássica; aplica-se, igualmente, à política conservadora e à cultura em geral que dominou a França no período, marcado pela Restauração. (Nota do editor)
  • 5
    . Sobre Winckelmann, ver BORHEIM, Gerd A. Introdução à leitura de Winckelmann. In: Revista Gávea, n. 8, PUC-Rio, dez. 1990.
  • 6
    . DELÉCLUZE, E. J. Louis David, son école et son temps. Paris: Macula, 1983. (Tradução do autor)
  • 7
    . É importante ter em mente a diferença de pensamento de David e Debret entre a época que estavam em Roma e a chegada de Debret ao Brasil, período no qual as teorias de Winckelmann vão sofrer um processo de romanização pela influência política.
  • 8
    . Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (29/40):575, 1930, transcrito em MACEDO, Francisco Riopardense de (ed.). Arquitetura no Brasil e Araújo Porto Alegre. Porto Alegre: UFRGS, 1984.
  • 9
    . Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, nº 23, tomo XIX, 3, 3º trimestre de 1856.
  • 10
    . Discurso de posse de Porto Alegre na Academia Imperial de Belas Artes, citado por GALVÃO, Alfredo. Manuel de Araújo Porto Alegre. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, vol. 14, Rio de Janeiro, 1959.
  • 11
    . Ibidem.
  • 12
    . Idem. Ver também Victor Meirelles de Lima 1832-1903 (Rio de Janeiro: Ed. Pinakotheke, 1982).
  • 13
    . ROSENTHAL, Léon. Du Romantisme au Réalisme. Paris: Macula, 1987.
  • 14
    . BANDEIRA, Manuel. Poesia do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1963.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2015
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