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Roy Lichtenstein ou da reprodutibilidade técnica1 1 . Este artigo integra uma pesquisa sobre as relações entre fotografia e artes visuais na segunda metade do século XX.

Roy Lichtenstein or on mechanical reproduction

RESUMO

Na poética de Lichtenstein, estilo e iconografia são igualmente importantes. O pintor está menos interessado no objeto do que no estilo de seu tratamento a fim de conseguir uma imagem apresentada como uma totalidade. O uso de imagens provenientes da comunicação de massa pode ser considerado um teste com o clichê como tema e com as convenções da pintura moderna.

palavras-chave:
Lichtenstein; clichê; pintura; fotografia; citação

ABSTRACT

In Lichtenstein's poetics, style and iconography are both important. The painter is concerned less with the object than with the style of its treatment in order to obtain an image presented as a totality. The use of mass images can be considered a test on cliché as subject matter and on the conventions of modern painting.

keywords:
Lichtenstein; cliché; painting; photography; quotation


Num artigo intitulado "Morte (tecnológica) da arte?", Enrico Crispolti rejeita uma afirmação corriqueira na década de 1960: a de que a pop art representava a "rendição incondicional à tecnologia". Se existia na vertente um interesse evidente pela condição tecnológica, havia igualmente um componente dissociado da tecnologia. Este, longe de exaltar, desviava e dispersava os processos mecânicos, chegando a um resultado paradoxal, batizado por Gillo Dorfles de "ready-made hand made" [ready-made manufaturado], com o intuito de sublinhar o resgate de operações manuais por parte dos artistas dessa geração2 2 . CRISPOLTI, Enrico. Morte (tecnologica) dell'arte?. In: Ricerche dopo l'informale. Roma: Officina Edizioni, 1968, p. 149-150. .

Dorfles, que acreditava na importância da pop art para a configuração de uma visão antropológica do momento contemporâneo, era um atento observador da relação entre mecanização e universo artístico, chamando a atenção para a constituição de um novo repertório visual, alimentado por fontes como o desenho industrial, a gráfica, a fotografia, o cinema, a história em quadrinhos etc. Num ambiente que tanto depreciava quanto exaltava a capacidade compositiva da geração pop, o autor se distingue por uma visão singular. O que importava, a seu juízo, nas obras desses artistas, não era o elemento tradicionalmente pictórico, e sim o uso "ultrajante e irritante" dos objetos cotidianos, aos quais essa geração conferia uma determinada "beleza". Um dos artistas evocados pelo crítico italiano é Roy Lichtenstein, cujas histórias em quadrinhos ampliadas não são valorizadas por serem pintadas a mão, e sim pelo motivo contrário. O que as transformava em obras interessantes era o fato de o artista

ter ampliado, magnificado, tornando-os altamente expressivos, certos aspectos míticos (de terror, de dor, de brutalidade, de paixão) exibidos pelas histórias em quadrinhos habituais, e ter isolado, enquadrado, montado com habilidade alguns desses pormenores (lágrimas correndo pela face, carranca do gângster, jato do frasco spray) a ponto de dotá-los de uma eficácia verdadeiramente paradigmática e emblemática3 3 . DORFLES, Gillo. Nuovi riti nuovi miti. Torino: Einaudi, 1965, p. 186-188, 192. .

Enquanto Dorfles destaca nas operações de Lichtenstein a presença de uma "falsa realidade" deformada e emblemada pelos meios de comunicação de massa4 4 . Idem, p. 193. , Giulio Carlo Argan destaca nele a figura do "técnico da informação". A análise da banalidade de um dos principais vetores da cultura de massa - as histórias em quadrinhos - é "metodologicamente irrepreensível" no artista norte-americano. Lichtenstein isola uma imagem da tira, amplia-a e estuda cuidadosamente os processos (até mesmo tipográficos) que a tornam comunicável em milhares de exemplares; refazendo-o a mão, sob o microscópio, demonstra que aquele processo de produção industrial de imagens é correto, "um modelo de perfeição tecnológica". Sua pintura (mas não se deveria mais pensar nesses termos) é uma "prova de inteligência", mas isso não é um valor positivo para Argan. O que ele demonstra é que o artista "compreendeu o truque", estando apto a integrar "o truste dos cérebros". A arte faz sua última aparição no trabalho gráfico de Lichtenstein, que se vale de procedimentos pontilhistas, de derivação neoimpressionista, para destacar os efeitos de luz e sombra da retícula tipográfica. A reminiscência cultural não passa, no entanto, de um "puro expediente técnico", revelando a posição do artista como colaborador submisso do "poderoso sistema de informação e comunicação"5 5 . ARGAN, Giulio Carlo. L'arte moderna: 1770-1970. Firenze: Sansoni, 1978, p. 683-685. .

Uma visão substancialmente negativa da pop art permeia também o pensamento de Mário Pedrosa. Confrontado com os desdobramentos da vertente norte-americana, o crítico decreta o fim da arte moderna e o início de outro ciclo, não mais "puramente artístico, mas cultural, radicalmente diferente do anterior". Denominando esse novo momento de "pós-moderno", Pedrosa enumera suas características: absorção dos valores propriamente plásticos pela "plasticidade das estruturas perceptivas e situacionais"; fuga do subjetivismo individual hermético; objetividade; conformismo/otimismo; mergulho "num repertório heteróclito de recursos e de objetos que constituem verdadeiro subproduto cultural tipicamente americano"6 6 . PEDROSA, Mário. Arte ambiental, arte pós-moderna, Hélio Oiticica. In: Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília. São Paulo: Perspectiva, 1981, p. 205-206; Quinquilharia e pop'art. In: Mundo, homem, arte em crise. São Paulo: Perspectiva, 1975, p. 177-178. . Uma das características centrais da nova vertente é destrinchada acidamente:

Eles pertencem de corpo e alma ao meio de onde tiram seus assuntos, e têm pleno conhecimento do que fazem, porque todos foram ou são formados em arte comercial, ou na arte da publicidade. Não são artistas, porque são técnicos da produção de massa. São especialistas que trabalham (ou trabalharam) para a atividade decisiva da civilização americana: o consumo de massa. Warhol foi um desenhista de sapatos da moda; Lichtenstein é um desenhista e técnico na arrumação de vitrinas; Oldenburg é ilustrador de revistas. Nenhum deles, porém, vale acentuar, transpõe para sua "arte" os refinamentos obtidos nas escolas industriais, verdadeiros poncifs da iconografia do abstracionismo, da Bauhaus, de bom gosto etc. Eles procuram fugir a tudo que lembra as "belas-artes" tão em voga na publicidade acadêmica ou oficial ou generalizadamente aceita. [...] A poderosa civilização urbana os envolve a todos, como numa redoma. Quando reagiram ao expressionismo abstrato e deram os primeiros passos da arte "pós-moderna", sua atividade foi como a do quinquilheiro ou do fazedor de briquabraque. [...] Aqui a definição dada por Lévi-Strauss de bricoleur revela toda a paridade existente entre o bricoleur, com seus "projetos indefiníveis a priori, feitos de resíduos de construções e destruições antecedentes" e o artista ou antiartista ajuntador de coisas heteróclitas no espaço (o curioso é que de repente se formou uma coletividade de artistas irmanada pelo mesmo gosto de coletor de lixo, pela mesma sensibilidade envolvente e sobretudo pela mesma atitude ética)7 7 . PEDROSA, Mário. Quinquilharia e pop'art. Op. cit., p. 177-179. .

Outro aspecto negativo assinalado pelo crítico - o abandono das "velhas e nobres tradições artesanais da pintura e da escultura, a fim de alcançar o nível da história em quadrinhos, do cartaz, e de outros processos de comunicação de massa"8 8 . PEDROSA, Mário. Do pop americano ao sertanejo Dias. In: Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília. Op. cit., p. 218. - tem entre seus alvos Lichtenstein, de quem são destacadas as qualidades antiartísticas. O abandono de uma concepção de arte "extremamente romântica e irrealista, e utópica", cuja origem remonta a Paul Cézanne, e a admiração pelo mundo circundante alcançam seu apogeu na relação do artista com a tradição pictórica. Embora seduzido pelos matizes da "boa pintura", Lichtenstein, no momento das histórias em quadrinhos, teria confessado "ter sido muito difícil não mostrar tudo o que sabia sobre toda uma tradição"9 9 . PEDROSA, Mário. Quinquilharia e pop'art. Op. cit., p. 177-178. .

A dimensão pictórica da obra de Lichtenstein, obliterada por Dorfles em nome de valores antropológicos e negada tout court por Argan e Pedrosa, é, ao contrário, valorizada por Maurizio Calvesi. No momento em que corta as imagens para enquadrá-las em grandes pormenores, o artista não só realiza um ato analítico, tendente para uma síntese, mas propõe também uma volta ao "quadro". Embora seja evidente o predomínio do aspecto perceptivo, não se pode deixar de observar a busca de uma integração intelectual, que se expressa por uma atenção particular às relações de contiguidade entre os objetos. A diferença qualitativa entre o espaço exterior e o espaço do quadro é sublinhada pela projeção formal das imagens na superfície da tela. O espaço é subordinado ao objeto-imagem e a "seu caráter de integralidade plástica". A retícula tipográfica com a qual Lichtenstein preenche suas superfícies responde a uma intenção precisa: evitar os vazios, anulando e transformando em corporeidade plástica o sentido dos cheios, os quais "devem ser sempre e apenas superfícies cheias, em tensão". Antes do que criar uma imagem, o pintor parece perseguir o objetivo de configurar um "espaço visual" consistente para o olho, dotado de contornos incisivos e de densidade plástica10 10 . CALVESI, Maurizio. Le due avanguardie: informale, new dada, pop art. Roma/Bari: Laterza, 1975, v. II, p. 341-349. .

Lawrence Alloway propõe igualmente uma leitura em chave pictórica da obra de Lichtenstein, para quem a composição é resultado do "equilíbrio entre formas contrastantes, mas compatíveis, em que tamanho, direção e cor podem se relacionar entre si; em que cores quentes compensam as frias, em que as curvas aperfeiçoam os ângulos retos e em que os detalhes avivam os grandes espaços"11 11 . ALLOWAY, Lawrence. American Pop Art. New York/London: Macmillan Publishing Co.; New York: Whitney Museum of American Art, 1974, p. 80. .

A dimensão pictórica da obra de Lichtenstein foi enfatizada recentemente por Hal Foster, que detecta nela a presença do duplo compromisso com a natureza mediada da imagem e a unidade imediata da pintura tradicional. Interessado em testar o quadro a partir do uso da imagem de massa, o pintor constrói suas obras em camadas alternadas de reprodução mecânica e manualidade, tornando difícil qualquer distinção entre estas duas dimensões. Uma imagem preexistente é esboçada num desenho; com um epidiascópio, este é transposto para a tela, onde recebe um tratamento pictórico, cristalizando um paradoxo que é próprio da pop art: a produção de um ready-made manual. Estabelece-se, assim, um curto-circuito entre procedimentos mecânicos e manuais, repertórios provenientes da alta cultura e da comunicação de massa, formas figurativas e abstratas, aparência mediada da imagem impressa e efeito imediato da pintura moderna, que são transformados em duplas ambíguas ou repetições instáveis. A tradição pictórica é repensada pelo artista a partir do interior da cultura de massa, num movimento em que o valor clássico da unidade pictórica e o valor moderno da presença visual são afirmados e reposicionados para que ocorra uma mudança de sua natureza12 12 . FOSTER, Hal. The First Pop Age: Painting and Subjectivity in the Art of Hamilton, Lichtenstein, Warhol, Richter, and Ruscha. Princeton/Oxford: Princeton University Press, 2012, p. 62, 67, 72. .

Esse tipo de percepção não deriva apenas da relação do pintor com a arte do passado. Ele pode ser reportado também às aulas que Lichtenstein teve com o professor Hoyt L. Sherman13 13 . Idem, p. 73-74; LOBEL, Michael. Image Duplicator: Roy Lichtenstein and the Emergence of Pop Art. New Haven/London: Yale University Press, 2002, p. 77-81. na Escola de Belas-Artes da Universidade do Estado de Ohio, no começo da década de 1940. Defensor da "percepção organizada", Sherman introduzia os alunos a um modo idealizado de visão estética com a ajuda de um aparelho mecânico - o Tachitoscope -, que permitia controlar a duração da projeção de um diapositivo na fração de um segundo. Durante as aulas, o professor apresentava flashes de vinte diapositivos de imagens planas, quase sempre abstratas, da duração de um décimo de segundo, para mostrar o caráter artificial de vários componentes perceptivos, que impossibilitavam uma apreensão pura do campo visual. Depois dos vinte flashes, a sala mergulhava no escuro e os alunos tinham um minuto para desenhar a carvão ou crayon a configuração do que tinham entrevisto durante a projeção, baseada sobretudo na pós-imagem. O flash era necessário para evitar os movimentos rápidos dos olhos - que permitem aferir a profundidade - e produzir uma visão quase monocular. Esta era considerada desejável por Sherman no caso da arte, já que "facilitava a apreensão das imagens ou objetos como 'totalidades'", intensificava a apreciação do papel desempenhado pelo espaço negativo na formação da imagem e ajudava a transpor o que havia sido visto em termos tridimensionais para a bidimensionalidade da superfície pictórica.

Com esse procedimento, o docente pretendia sublinhar a ideia de que o desenho era o vestígio cinético da pós-imagem deixada pelos flashes na retina dos estudantes. O método, desenvolvido para permitir que os estes entrassem em contato com as habilidades perceptivas dos grandes mestres, não deixava de ser marcado pela tensão entre o individual e o mecânico. Se, de um lado, Sherman enfatizava as capacidades individuais da visão artística, de outro, pretendia que o estudante se tornasse uma máquina capaz de registrar o campo visual sem a intromissão da cognição ou da intelecção. O estudante, desse modo, era colocado na posição de um aparelho fotográfico, capaz de registrar o jogo formal num campo visual, sem a participação da subjetividade humana.

O processo desenvolvido por Sherman é aproximado por Michael Lobel do aparelho fotográfico: o aposento em que tem lugar a experiência é comparável a uma câmara escura; o estudante é exposto a um flash luminoso; é levado a crer que uma pós-imagem se fixou em sua retina (como numa chapa fotográfica); deve desenhar essa imagem de maneira automática. O resultado buscado pelo professor tinha um antecedente no uso da fotografia pelo médico Jean-Martin Charcot, na década de 1880. Este associava fotografia e flash em seus estudos sobre a histeria. Os pacientes eram colocados num cômodo escuro e expostos a um flash de luz, que congelava as poses a serem registradas por seus assistentes. Tendo em vista essa técnica, em que as poses congeladas imitavam o processo fotográfico, Lobel propõe um paralelo com a metodologia de Sherman, para quem o flash deveria provocar um movimento automático como resposta direta à recepção de um estímulo visual pelo olho. O flash desempenhava um papel duplo nesse processo: intensificava a recepção da imagem e impedia que o estudante visse o desenho no qual estava trabalhando, que não poderia sofrer nenhum tipo de correção posterior. No livro Drawing by Seeing: New Development in the Teaching of the Visual Arts throug the Training of Perception [Desenhar vendo: um novo desenvolvimento no ensino das artes visuais pelo treino da percepção, 1947], Sherman enfatizava que a primazia do processo óptico ajudava o indivíduo a esquecer as experiências anteriores, propiciando um estado de percepção pura. Tomando Paul Cézanne como parâmetro, o autor afirmava que este havia chegado a uma visão monocular, centrada concentricamente em volta de um único ponto focal, o que lhe permitia "desaprender" a aparência habitual dos objetos14 14 . LOBEL, Michael. Op. cit., p. 82-85. .

Se os ensinamentos de Sherman reverberam na primazia concedida por Lichtenstein à organização formal da composição, destituída de aspectos narrativos e emocionais, eles estão também presentes em alguns quadros do começo da década de 1960, baseados no princípio monocular. Uma das primeiras experiências, intitulada Posso ver toda a sala!... e não há ninguém nela (1961)15 15 . Esta e todas as obras do artista citadas no artigo podem ser visualizadas no site: www.lichtensteinfoundation.org , mostra a porção de um rosto masculino atrás de uma parede preta, dotada de um orifício com uma tampa circular. O fato de a figura estar espreitando pelo orifício não pode ser dissociado, segundo Lobel, da referência a um mecanismo fotográfico primitivo. Além de uma alusão à câmara escura, há no quadro uma segunda associação com a imagem técnica: o único olho exposto da figura responde ao formato monocular da lente do aparelho fotográfico. Outras estruturas monoculares podem ser localizadas em duas obras de 1963: Lente de aumento e Torpedo... fogo!. Na primeira, o pintor propõe a experiência virtual da visão monocular: joga com a tendência a ver os grandes pontos Benday dentro do limite circular da lente como ampliações dos pontos menores do plano de fundo. No segundo, o observador é confrontado com a representação do comandante de um submarino olhando por um periscópio. O ponto focal da composição - o olho aberto do militar - é uma modificação em relação à história original Batalha dos navios fantasmas, publicada em outubro de 1962; graças a ela, Lichtenstein configura uma estrutura ambígua, que sugere, mas não resolve a questão de um segundo olho oculto16 16 . LOBEL, Michael. Op. cit., p. 82, 90-91. .

Os quadros de tema monocular, que lidam com a problemática da relação do indivíduo com o automatismo da máquina, marcada, a um só tempo, pela intensificação da visão e pela perda da experiência visual encarnada17 17 . Idem, p. 103. , representam uma das possibilidades para analisar certos aspectos da produção de Lichtenstein à luz da fotografia. Da imagem técnica derivam outras estratégias compositivas, sobretudo o isolamento dos objetos de um contexto específico, sua apresentação como puras aparências, o uso da ampliação como recurso de estranhamento e de evidenciação da imagem ao mesmo tempo. O estranhamento é um dos efeitos principais perseguidos pelo pintor, que remete todo o seu repertório visual à ideia de representação e, logo, de manipulação, reorganização e reenquadramento das imagens selecionadas dentro do fluxo da comunicação de massa.

Um conjunto de objetos, derivados de anúncios publicitários e catálogos de venda por correspondência, mostram como Lichtenstein se apropria de imagens pré-existentes e as reconfigura de maneira a obter um resultado frio e objetivo, que nada mais faz do que acentuar a presença de um produto claramente comercial. Os mais diferentes objetos de consumo atraem sua atenção. Fio elétrico (1961), Grelhador giratório (1961), Máquina de lavar (1961), Pão no saquinho (1961), Patim de rodas (1961), Peru (1961), Sofá (1961), Meia (1962), Bola de golfe (1962), Pernil (1962), Pneu (1962), Costela levantada (1962), Queijo (1962), Refrigerador (1962), Grande novelo (1963), Joias (1963) entre outros, são manifestações de seu encantamento com uma "linguagem pública" dotada de determinadas simbologias. Atraído por suas características vigorosas e diretas e também por um tipo de invenção singular, baseada na repetição mecânica e no impacto perceptivo18 18 . SHAPIRO, David. Grande unificazione. In: CODOGNATO, Attilio (org.). Pop art: evoluzione di una generazione. Milano: Electa, 1980, p. 64. , o artista dedica-se a uma reinterpretação das imagens publicitárias a partir de um desenho definido por um traço forte, capaz de conferir uma presença imediata aos objetos de consumo que despertaram sua atenção. Segundo ele, a alteração da imagem-matriz não implica transformação. Transformação - como afirma em 1963 - "é uma palavra estranha para ser usada, pois quer implicar que a arte transforma. Ela não transforma: simplesmente forma. Os artistas na verdade nunca trabalharam com o modelo: somente com a tinta..."19 19 . Apud: WILSON, Simon. A arte pop. Rio de Janeiro: Editorial Labor do Brasil, 1975, p. 10. .

Arrancados do contexto originário e destituídos de qualquer mensagem publicitária, os objetos adquirem um aspecto estranho que, de certo modo, os aproxima da categoria surrealista do "maravilhoso". A presença incisiva dos objetos gigantescos, alicerçada na ideia de "visão organizada" postulada por Sherman, levou Foster a aproximar a apreensão global da imagem, inerente ao procedimento de Lichtenstein, da estratégia de identificação de produtos desenvolvida pela publicidade no segundo pós-guerra20 20 . FOSTER, Hal. Op. cit., p. 102. . Se é possível que exista uma semelhança entre os dois procedimentos, não se pode esquecer, no entanto, que o pintor realiza, não raro, um processo de abstração em relação à imagem que lhe serviu de ponto de partida. Na maioria das vezes, os objetos são apresentados como produtos genéricos, ou seja, destituídos de logomarcas e marcas de fábrica. Em alguns momentos, como Máquina de lavar e Spray (1962), uma mão feminina oculta o rótulo que parece ter sido simplificado e estilizado. Em outros, o processo de abstração é mais radical, remetendo ao léxico da arte moderna. É o que demonstra Bola de golfe, que parece dialogar com os quadros ovais de Piet Mondrian, realizados durante a década de 1910. Nicolas Calas condensa esse processo de maneira eficaz quando escreve que Lichtenstein "é um mestre do close-up invertido, porque, quanto mais nos aproximamos, mais a figura parece abstrata. Não raro, a imagem é tecnicamente incompleta, pois foi retirada do contexto. Ao contrário do ilustrador narrativo, que segue uma sequência temporal, Lichtenstein pensa em termos puramente espaciais"21 21 . LOBEL, Michael. Op. cit., p. 42; HENDRICKSON, Janis. Roy Lichtenstein. 1923-1997: a ironia do banal. Colônia: Taschen, 2011, p. 25; CALAS, Nicolas. Roy Lichtenstein: Insight through Irony. In: CALAS, Nicolas; CALAS, Elena. Icons and Images of the Sixties. New York: Dutton, 1971, p. 104. .

A aproximação entre Bola de golfe e algumas obras de Mondrian abre caminho para outro procedimento típico da poética de Lichtenstein na década de 1960, que também pode ser associado à fotografia pelo trâmite do conceito de "museu imaginário". Cunhado por André Malraux em 1947, o conceito de "museu imaginário" tem como substrato o reconhecimento do impacto da fotografia na percepção da arte e nas transformações que podem ocorrer na ideia de coleção e da própria história da arte. Dialogando, em parte, com o ensaio de Walter Benjamin "A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica" (1936), o escritor francês faz referência a um processo de intelectualização, que remonta ao surgimento da fotografia e graças ao qual se produz uma interrogação sobre as diferentes expressões do mundo enfeixadas no museu. Os conhecimentos de que a sociedade dispõe são, porém, mais extensos que os museus, os quais oferecem uma visão mutilada da história da arte, em virtude das lacunas de seus acervos. Ao colocar ao alcance do público a possibilidade de estabelecer um confronto direto entre obras que se encontram espalhadas em diversos lugares, a reprodução técnica oferece uma contribuição notável à memória óptica, a qual deixa de ter como parâmetros um quadro (visto ao vivo) e uma lembrança (uma tela fruída anteriormente a muitos quilômetros de distância). Por sua natureza aberta, o "museu imaginário" leva ao extremo "o confronto incompleto imposto pelos verdadeiros museus", além de gerar um "mundo fechado", representado pelos álbuns e pelos livros dedicados à obra de um artista. Graças à fotografia, o diálogo entre os artistas do presente e a obra-prima do passado ganha uma nova dimensão: esta deixa de ser o trabalho mais conforme à tradição, mais completo e mais "perfeito", para transformar-se na produção mais significativa do inventor de um estilo. A reprodução em grande escala da trajetória de um artista obriga a estabelecer um nexo entre estilo e significação22 22 . MALRAUX, André. Le musée imaginaire. Paris: Gallimard, 2006, p. 13, 15-16, 88-92, 94. .

Se a história da arte passa a ser a história do que pode ser fotografado, fazendo do ato criador uma "sequência de criações", e das formas um "mundo de estilos", Malraux não poderia deixar de interrogar-se sobre as transformações advindas da libertação do tempo e do espaço físico concreto, promovida pelo fenômeno da reprodução. O autor tem plena consciência de que a fotografia pode criar "artes fictícias" graças a recursos como enquadramento, iluminação, mudança de escala, exploração de detalhes, texturas, cores, valorização do fragmento, podendo haver casos em que a imagem "não é a reprodução do modelo". O "modernismo usurpado, mas virulento" de muitas obras fotografadas é decorrência da clivagem que se estabelece entre o mundo de uma técnica artística e o do museu23 23 . Idem, p. 94, 96, 98, 120-121, 123, 161, 176. .

O conceito de Malraux tem um desdobramento que transita das imagens para o imaginário. Como afirma Edson Rosa da Silva, em sua segunda acepção, o "museu imaginário" é um lugar mental, sem limites, alicerçado na metamorfose, isto é, na relação da obra presente com obras anteriores que se transmutam em outras obras. É das transformações que os artistas anteriores impuseram ao mundo que se gera outra transformação, cujo objetivo é criar novas relações e provocar novas tensões24 24 . SILVA, Edson Rosa. O museu imaginário e a difusão da cultura. Disponível em: ‹http://www.letras.puc-rio.br/unidades&nucleos/catedra/.../6Sem_14html›. Acesso em 21 jan. 2013. .

Lichtenstein, que se aproxima da obra de artistas famosos a partir de reproduções, responde ao conceito de "museu imaginário" nas duas acepções propostas por Malraux. Passeando livremente pela história da arte moderna, o artista elabora um repertório particular e não escamoteia, em nenhum momento, a natureza de suas fontes. Realça não só a origem tipográfica das imagens que serviram de ponto de partida, como faz questão de demonstrar que o "museu imaginário", transposto para o nível da cultura de massa, compõe-se de clichês, de valores adquiridos e consagrados. O fato de usar em quase todas as composições o pontilhado de Benday é mais uma maneira de fazer referência à ideia de fonte impressa.

Mesmo que Lichtenstein não conhecesse os bastidores da invenção de Benjamin Day, não é improvável que tenha sido atraído pelo nível de abstração inerente ao processo, norteado pela separação entre um objeto e o arranjo da superfície. O método de adaptação de uma imagem desenhada para o processo de impressão industrial, descoberto por Day por volta de 1878, lança mão dos princípios ópticos desenvolvidos ao longo do século XIX por teóricos da cor como Michel-Eugène Chevreul. É provável que Day conhecesse a Grammaire des arts du dessin [Gramática das artes do desenho, 1867], em que Charles Blanc apresentava uma mistura óptica possível de cores em forma de pontos e estrelas contra um fundo de luz. Em 1879, Ogden N. Rood lança Modern Chromatics: Student's Text-Book of Color [Cromáticas modernas: manual da cor para estudantes], em que descreve várias modalidades de misturas ópticas de cores, entre as quais o sistema de pontos desenvolvido pelo Dr. Jean Mile em 1839. O livro de Rood conhece um grande sucesso na França, tendo atraído as atenções de pintores como Georges Seurat e Paul Signac25 25 . Cf. HENDRICKSON, Janis. Op. cit., p. 41-44. .

Se a relação entre história da arte e técnicas de reprodução é parte fundamental do sistema de Lichtenstein, outro aspecto do "museu imaginário" está presente nas modificações inoculadas em obras consagradas de mestres modernos. Um dos primeiros trabalhos a evidenciar um processo de metamorfose é Femme au chapeau [Mulher com chapéu, 1962], que se inspira num quadro de Pablo Picasso da década de 1940, ao qual é adicionado um fundo feito com pontos Benday. Além disso, o pintor norte-americano elabora o peito da figura a partir dos códigos das histórias em quadrinhos. Embora estes sejam os traços mais evidentes da intervenção de Lichtenstein, as modificações não param por aí - as cores tornam-se mais claras e são reduzidas ao azul e amarelo, as sombras são simplificadas, os elementos da composição têm o mesmo peso -, demonstrando que ele havia adaptado as formas de Picasso a seus propósitos específicos. As palavras com as quais Janis Hendrickson qualifica a operação do artista estão bem próximas do conceito de "museu imaginário", alicerçado na metamorfose: "A alteração é análoga à forma como uma cultura desenvolvida pode recriar o conhecimento de uma cultura superior, fazendo assim nascer novos híbridos que têm tantas hipóteses de serem grotescos como maravilhosos"26 26 . Idem, p. 55-59. .

O processo adotado nessa obra demonstra que Lichtenstein mobiliza os dois significados de "museu imaginário". Com o primeiro, apropria-se de uma imagem que integra o repertório de um público mediano, por ser amplamente reproduzida. Isso leva Alloway27 27 . ALLOWAY, Lawrence. Roy Lichtenstein. New York/London/Paris: Abbeville Press, c. 1983, p. 46. a escrever que seu interesse se concentra em Picassos rotineiros, que demonstram a própria adequação a uma cultura da reprodução. Interpretado pelo autor como um ato crítico e questionador, esse gesto teria um alvo bem específico: os livros de arte publicados por editoras como Skira e Harry Abrams. Com o segundo, Lichtenstein introduz modificações na imagem, que remetem tanto ao estatuto de artista popular desfrutado por Picasso (o recurso ao clichê das histórias em quadrinhos), quanto à própria visão pessoal, baseada num diálogo irreverente com um mestre reconhecido.

Essa constatação encontra eco numa declaração do próprio Lichtenstein, que atribui a escolha de obras do "melhor artista" do século XX à simplicidade de sua estrutura, que as aproximava das histórias em quadrinhos: contornos pretos e cores chapadas simples. Essas qualidades levarão Henry Geldzahler a falar em interpretações "ásperas e agressivas, distantes e impassíveis" das obras do artista espanhol, "impiedosamente reduzidas a suas armações", despojadas de todo vestígio de toque ou de manipulação pictórica. O pintor norte-americano elimina de suas releituras um traço típico do comportamento de Picasso perante a tela, denominado "escaramuça" pelo crítico, além de não levar em conta que as inúmeras representações de mulheres eram um "diário tocante de sua vida emocional"28 28 . GELDZAHLER, Henry. Lichtenstein's Picassos: 1962-1964. In: Making it New: Essays, Interviews and Talks. New York: Turtle Point Press, 1994, p. 242-243. .

Outra obra de Picasso, As mulheres de Argel (1955), é retrabalhada por Lichtenstein. Intitulado Femme d'Alger [Mulher de Argel, 1963], o quadro propõe-se a demonstrar a existência de uma genealogia para o tema, já que a obra do pintor espanhol era uma releitura de Mulheres de Argel (1834), de Eugène Delacroix. As transformações introduzidas por Picasso na imagem-matriz - isolamento de uma das figuras, endireitamento da pose no plano de fundo e integração dos contornos esquemáticos nas formas abstratas do plano - são radicalizadas por Lichtenstein, o qual achata e confere o mesmo peso a todos os elementos da composição. A par disso, o artista destitui a apresentação de toda conotação erótica, chamando a atenção para uma forma pura29 29 . COLLINS, Bradford R. Pop Art. London: Phaidon Press, 2012, p. 96-98. , bem diferente do original que serviu de ponto de partida.

Picasso, que inspira outra releitura - La femme au chapeau fleuri [A mulher com chapéu florido, 1963]30 30 . CALAS (Op. cit., p. 104-105), que segue com atenção a relação de Lichtenstein com o "mito popular" emblemado em obras de pintores famosos, acredita que ele não foi muito feliz na transposição do cubismo para o próprio sistema. O alvo de sua crítica é justamente a interpretação de Mulher com chapéu florido, na qual detecta uma estrutura incerta, que não consegue dar conta da complexa fusão das duas poses de Picasso. -, parece confirmar duas questões centrais na pesquisa de Lichtenstein: a possibilidade de dobrar os estilos dos pintores anteriores à própria poética, como ele próprio havia feito não só com Delacroix, mas também com Diego Velázquez e Édouard Manet; a ideia de que a arte nasce da arte, não da natureza, ratificando, assim, uma possível leitura de Arte e ilusão (1960)31 31 . FOSTER, Hal. Op. cit., p. 71. , de Ernst Gombrich. Não admira, pois, que um dos próximos alvos da revisão da arte moderna empreendida pelo pintor norte-americano sejam duas séries de Claude Monet (1968-1969): as medas (1890-1891) e a catedral de Rouen (1892-1894). Consideradas nostálgicas por James H. Rubin, pois expressavam o amor de Monet pela França através de seus monumentos e tradições32 32 . RUBIN, James H. L'impressionisme. Paris: Phaidon, 2008, p. 279. , as duas séries receberam uma leitura bastante severa de Lionello Venturi. Na primeira série, o autor detecta um puro pretexto para estudar a luz, com uma irradiação molecular um tanto confusa. Se nas "Medas", Monet não conseguiu dar uma forma à natureza, esta aparece, de maneira peculiar, na série seguinte, marcada pela incapacidade de conservar o aspecto formal da composição e por uma tendência sentimental, próxima do simbolismo33 33 . VENTURI, Lionello. La via dell'impressionismo: da Manet a Cézanne. Torino: Einaudi, 1970, p. 194-195. .

O historiador italiano não é uma voz isolada na avaliação crítica das duas séries. Acusado por Werner Weisbach de ter levado ao absurdo o princípio impressionista, Monet é também alvo da crítica de seus próprios companheiros, que destacam a conversão do método em mera exibição técnica, destituída de todo senso de construção. No afã de perseguir as transformações sutis da luz, o pintor deixava de lado a percepção do conjunto e a ideia de forma em prol de uma imagem confusa de manchas de diferentes dimensões, justapostas e dotadas de densidade material34 34 . REWALD, John. Histoire de l'impressionisme. Paris: Le Livre de Poche, 1965, v. 2, p. 215-216; SERULLAZ, Maurice. L'impressionisme. Paris: Presses Universitaires de France, 1967, p. 62. .

A crítica às duas séries parece reverberar no tratamento dado a elas por Lichtenstein, que reconduz o conjunto das catedrais a "um impressionismo rápido, barato". Como ele próprio esclarece, não era sua intenção seguir o método de Monet, pois o que lhe interessava era observar o comportamento da cor na ausência da linha. Ao transpor as imagens do pintor francês para o sistema Benday, Lichtenstein retira delas toda dimensão sensorial e as sujeita a separações cromáticas quantificadas, construídas com camadas de pontos grossos e sobrepostos. Como afirma Lawrence Alloway em American Pop Art, o tratamento escolhido por ele sugere o uso de algumas mediações: o pontilhismo ampliado de Paul Signac e a série de medas pintada por Mondrian a partir de Monet, fonte do código dos desenhos reducionistas35 35 . ALLOWAY, Lawrence. Roy Lichtenstein. Op.cit., p. 47; ALLOWAY, Lawrence. American Pop Art. Op. cit., p. 84; HENDRICKSON, Janis. Op. cit., p. 70. CALAS (Op. cit., p. 106), ao contrário, afirma que as "reproduções" de Monet estão entre as melhores obras do pintor norte-americano. Graças a uma interação de pontos amarelos num fundo preto e de pontos pretos em telas amarelas, ele teria obtido uma mancha neoimpressionista, próxima da nebulosidade e da difusão luminosa que Monet conseguira com suas pinceladas. .

O fato de as releituras de Monet tenderem para a fórmula pode ser reportado não só à visão crítica de um método que despertara perplexidade, mas também à própria ideia de série. Lichtenstein escolhe os dois conjuntos quando é convidado por John Coplans a participar da exposição "Imagens seriais" (1969). Se não é improvável que tenha levado em conta as implicações industriais do conceito, é igualmente possível pensar que o aspecto repetitivo e estereotipado das composições tivesse como objetivo apontar para uma contradição que Monet não conseguiu eludir36 36 . RUBIN, James H. Op. cit., p. 347, 354. : as duas séries, que tendiam para a abstração e para uma concepção simbolista de arte, não estavam isentas de motivações comerciais. Depois da retrospectiva de 1889, em que os quadros com um mesmo tema foram expostos formando conjuntos, os preços das obras do pintor impressionista conheceram um incremento notável, sobretudo no caso da série da catedral, estabelecendo uma clara contradição entre mercadoria e imaterialidade.

Antes de Monet, Lichtenstein havia estabelecido um diálogo com a gramática elementar de Mondrian em obras como Não objetivo I (1964) e Não objetivo II (1964). Em busca de princípios universais, o artista holandês confere primazia a alguns aspectos elementares da composição: cores primárias, linha e plano. Na década de 1920, organiza as composições numa grade, o que lhe permite formar seções de diferentes tamanhos, preenchidas com cores primárias. A ortogonalidade da composição deveria garantir o dinamismo cromo-plástico dos planos, numa operação de caráter matemático. Em Não objetivo I, Lichtenstein mantém a estrutura rigorosa de Mondrian, limitando-se a introduzir a retícula Benday em algumas porções do quadro. A uniformidade do pontilhado cinza pode ser vista como a inversão da busca de uma proporção perfeita por Mondrian, na medida em que desequilibra a perfeição matemática, que se vê reduzida a um clichê fotomecânico37 37 . Alloway lembra que, neste mesmo período, Yves Saint-Laurent estava produzindo uma linha de roupas inspiradas em Mondrian e produzidas em escala industrial. Cf. ALLOWAY, Lawrence. Roy Lichtenstein. Op. cit., p. 46. .

A relação do pintor com a arte moderna abarca os principais movimentos de vanguarda. Além do cubismo e do neoplasticismo, Lichtenstein submete a seu crivo futurismo, expressionismo, purismo e surrealismo. Cria, desse modo, um "museu moderno", que se espraia também pela década de 1970, tendo como fio condutor uma visão, não raro, irônica da "vida das formas". A série dedicada ao futurismo entre 1974 e 1976 é bem profícua para uma análise de seu método de trabalho e de suas possíveis relações com a fotografia, se for levada em conta a afirmação de Jack Cowart de que as obras que a integravam lembram animações estroboscópicas, próximas das fotografias "superpostas e quantificadas" de Eadweard Muybridge38 38 . COWART, Jack. Futurism, 1974-76. In: Roy Lichtenstein, 1970-1980. Saint Louis: The Saint Louis Museum, 1981, p. 97. Para dados sobre Muybridge, ver: FABRIS, Annateresa. A fotografia e a crise da modernidade. Belo Horizonte: C/Arte, 2015, p. 32, nota 30. . Se este está na base de alguns quadros de Umberto Boccioni, caracterizados pela presença de repetições - O luto (1910) e A cidade que sobe (1910) -, a pintura futurista mantém uma relação mais próxima com as pesquisas de Étienne-Jules Marey39 39 . Para dados sobre Marey, ver: FABRIS, Annateresa . Op. cit., p. 32, nota 29. , que corroboram a ideia da sensação dinâmica, e com o fotodinamismo, interessado em definir uma nova realidade sintética e formas inéditas de percepção40 40 . Para dados ulteriores sobre o assunto, ver: FABRIS. O desafio do olhar: fotografia e artes visuais no período das vanguardas históricas. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011, v. I, p. 92-122. .

Embora Cavaleiro vermelho (1974), inspirado no quadro homônimo de Carlo Carrà, possa ser considerado a obra mais emblemática do conjunto, não se podem deixar de lado os demais diálogos que Lichtenstein trava com o movimento italiano, como lembra oportunamente Cowart. Vórtice e eclipse do sol I e Vórtice e eclipse do sol II (1975) podem ser reportados a Mercúrio passa diante do sol visto por um telescópio (1914), de Giacomo Balla. Este e o orfismo de Robert Delaunay e Franz Kupka estariam na base de O átomo (1975). As duas versões de O violino (1975 e 1976) teriam como ponto de partida outra obra de Balla, Ritmos do arco (1912). Planos de uma lâmpada (1976) desenvolver-se-ia a partir de Decomposição dos planos de uma lâmpada (1912), de Ardengo Soffici. O Autorretrato (1912-1913), de Gino Severini, seria a "fonte específica" do Autorretrato de 197641 41 . COWART, Jack. Op. cit., p. 97. .

As obras citadas por Cowart, se reportadas a possíveis diálogos com a fotografia, remetem antes à duplicação da forma concebida como dinamismo temporal e à trajetória do movimento, próprias das pesquisas de Marey, do que à multiplicidade simultânea dos pontos de vista, postulada por Muybridge. Se este poderia estar presente no Autorretrato de Severini, Ritmos do arco, por sua vez, evoca diretamente duas fotodinâmicas executadas em 1911 por Anton Giulio e Arturo Bragaglia42 42 . Teórico (Anton Giulio) e fotógrafo (Arturo) respectivamente, os irmãos Bragaglia se interessam pela cronofotografia de Marey em 1910, iniciando as pesquisas com o fotodinamismo no ano seguinte. Em 1912, entram em contato com o grupo futurista, conseguindo um apoio financeiro de F. T. Marinetti. Anton Giulio publica em 1913 o livro Fotodinamismo futurista, que marca o fim da aliança com o movimento de Marinetti. Apesar disso, os dois irmãos dão prosseguimento às próprias pesquisas, que se ampliam para abarcar a fotomontagem e a "fotografia espírita". Depois do término da Primeira Guerra Mundial, só Arturo continua a dedicar-se à fotografia, realizando novas fotodinâmicas e distinguindo-se como retratista do mundo artístico e cultural de Roma. : Datilógrafa e Violoncelista.

Longe de sublinhar o dinamismo e a interpenetração de formas geométricas, que eram diretrizes da poética futurista, Lichtenstein dá a impressão de buscar diagramas que lhe permitam subjugar e normalizar os desdobramentos espaciotemporais e os pontos de vista simultâneos. Essa tentativa de sistematização é particularmente evidente em Cavaleiro vermelho. Representação heroica da simbiose entre homem e cavalo, o quadro realizado por Carrà em 1913 impõe-se de imediato pela sensação dinâmica e pelo cromatismo centrado em tons vermelhos, azuis e amarelos. O mito da velocidade está condensado em dois aspectos: no tratamento mecânico do cavalo e na forma circular sobre a qual se apoia o pé do cavaleiro, que poderia sugerir o pedal de uma bicicleta. A interpretação proposta por Lichtenstein coloca-se na contramão da concepção futurista. A sensação dinâmica cede lugar a uma atitude analítica, denominada por Alloway43 43 . ALLOWAY, Lawrence. Roy Lichtenstein. Op. cit. , p. 95. de "cubismo esquemático"; esta decompõe o movimento sequencialmente, além de prendê-lo numa rede de linhas, que estruturam a composição. Reduzidos a brinquedos mecânicos, cavalo e cavaleiro mantêm o cromatismo original, que Lichtenstein concebe, porém, como cores primárias puras, cujos meios-tons são definidos pelos pontos de Benday. O que resta do quadro de Carrà? A "carapaça da imagem da qual se escapou o espírito do cavaleiro e do cavalo", como escreve Janis Hendrickson44 44 . HENDRICKSON, Janis. Op. cit., p. 71. .

Argan detecta nesse confronto entre as estruturas técnicas da pintura e as da tipografia uma operação analítica, cujo objetivo é demonstrar a passagem de uma categoria de valores para outra. Lichtenstein está interessado não no conteúdo da mensagem, mas no modo como esta é comunicada, antecipando, assim, a descoberta de Marshall McLuhan de que o meio nada mais faz do que comunicar a si mesmo. Esse tipo de constatação é provocado por O templo de Apolo (1964), em que o artista usa como matriz a fotografia de um cartaz turístico. Argan propõe uma leitura pontual da obra, a começar pela natureza da imagem que desencadeou o processo: uma fotografia para fins divulgativos, tratada com meios tecnológicos modernos. Em seguida, a imagem é adaptada manualmente à reprodução tipográfica. Esse mesmo processo de redução elimina todas as informações consideradas desnecessárias a fim de isolar e destacar aquelas que devem atrair o observador. Ao proceder desse modo, Lichtenstein produz uma imagem que pouco ou nada informa a respeito do templo, já que seu objetivo é outro: produzir um desenho passível de várias aplicações. Embora o historiador acabe por concluir que a obra do artista tem um valor estético relativo (desde que isolada do contexto e fruída como "objeto")45 45 . ARGAN, Giulio Carlo. Op. cit., p. 742-746. , é inegável que este elabora uma visão crítica de um clichê, destituído de toda relação com a realidade e apresentado como um logotipo46 46 . COKE, Van Deren. The Painter and the Photograph: from Delacroix to Warhol. Albuquerque: University of New Mexico Press, 1972, p. 224. . Nicolas Calas propõe outra avaliação do quadro, ao afirmar que sua estrutura "mata a cor local do romantismo que brilha em todos os cartazes dos templos gregos e romanos". O crítico elogia o tratamento dado ao céu - um campo azul com pontos Benday - em contraste com a representação do mar - um campo de pontos brancos a azuis. Contra esse fundo, destaca-se o templo, que apresenta um aspecto severo, por ser visto da perspectiva do ângulo formado pelas colunas47 47 . CALAS, Nicolas. Op. cit., p. 105-106. .

A constatação do tipo de fonte usada por Lichtenstein em Templo de Apolo contradiz a afirmação de Foster, de que este nunca usou uma fotografia como suporte48 48 . FOSTER, Hal. Op. cit., p. 275, n. 11. . Essa afirmação é posta em xeque por outras evidências do uso de fontes fotográficas por parte do artista. O estudo preparatório de Paisagem 3 (1967), por exemplo, é uma colagem, integrada por aquarela, tinta e uma impressão fotográfica. Esta é o elemento central da composição, já que o pintor dá realce à fotografia de um céu nublado, no qual se vê um pássaro solitário. Abaixo dela, está um pequeno desenho amarelo pontilhado de preto, que representa a terra. Uma evidência ainda mais direta, por tratar-se de fotografias feitas pelo próprio Lichtenstein, está em duas séries dos anos 1970: "Entablamentos" e "Espelhos". Se bem que Hendrickson encontre uma fonte direta para a série dos "Entablamentos" nos desenhos de pormenores arquitetônicos, feitos como exercício pelos estudantes de arquitetura e belas-artes durante o século XIX, os quais teriam atraído a atenção do artista por seu design abstrato e, sobretudo, pela repetição mecânica dos elementos decorativos49 49 . HENDRICKSON, Janis. Op. cit., p. 81-82. , as fotografias de edifícios nova-iorquinos, situados nas proximidades de Wall Street e da Rua 28, de autoria de Lichtenstein, abrem outras perspectivas de análise. Observando algumas dessas imagens, publicadas no catálogo da exposição "Roy Lichtenstein, 1970-1980" (1981), é possível perceber que o processo de abstração já estava em funcionamento no momento das tomadas fotográficas. A busca de sombras definidas, com uma distorção mínima, faz com que o artista dê preferência ao meio-dia para a realização de seus registros. A opção por um ângulo ligeiramente inferior num primeiro momento da série é atribuída por Cowart50 50 . COWART. Entablatures, 1971-72. In: Op. cit., p. 31-32. ao desígnio de que as obras fossem percebidas frontalmente, como quadros, e não como fragmentos arquitetônicos numa "reinstalação arqueológica".

Um processo de abstração está também na base das fotografias feitas para a série "Espelhos". Dando preferência a espelhos ovais e redondos, Lichtenstein busca traduzir nas fotos os efeitos de distorção e abstração que serão adotados nos quadros. Concentra-se, para tanto, na captação de linhas inclinadas, de detalhes fora de foco, de efeitos de pura luz, de uma profundidade de campo que não se choque com a bidimensionalidade da tela51 51 . COWART, Jack. Mirrors, 1970-72. In: Op. cit., p. 16. . O interesse do artista por essa temática desde a década de 1960 é reportado por Hendrickson à constatação de que existe uma similaridade no plano entre uma imagem refletida e uma imagem impressa (fotografia e desenho). A inversão que ocorre quando algo é refletido num espelho e o frio efeito prateado resultante afastam o objeto de seu verdadeiro eu. Isso teria um paralelo com o estilo de Lichtenstein, "que se empenhou em ser o menos emocional e o mais possível semelhante a uma máquina e que, com todo o cuidado se distanciou da experiência em primeira mão"52 52 . HENDRICKSON, Janis. Op. cit., p. 78. .

O tratamento dado pelo pintor ao tema - superfícies nas quais não se reflete nada, por serem monocromáticas ou por serem atravessadas por linhas e retículas de impressão - permite propor uma segunda hipótese. Se for lembrado que "a vocação ideológica da fotografia é a produção do reflexo especular"53 53 . MACHADO, Arlindo. A ilusão especular: introdução à fotografia. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 87. , poder-se-ia ver na série de Lichtenstein a negação do princípio fotográfico e de sua associação com as ideias de "indivíduo no espelho" ou de "espelho da sociedade". De maneira irônica, o artista parte de registros fotográficos para negar a ilusão especular, reafirmando sua concepção da arte como forma, não como imitação. Isso parece ficar evidente no Autorretrato de 1978, em que um espelho vazio ocupa o lugar da cabeça. Desse modo, o pintor põe em xeque a crença no retrato fotográfico como portador de informações sobre o modelo. Como escreve Pierre Sorlin54 54 . SORLIN, Pierre. I figli di Nadar: il "secolo" dell'immagine analogica. Torino: Einaudi, 2001, p. 21. a respeito desse uso social da imagem técnica, dizendo a cada um o que ele é efetivamente, o retrato obriga-o a perguntar-se "como se comporta, como sorri, com o que se parece". Na contramão dessa crença, o espelho vazio concebido por Lichtenstein não remete a nada. É apenas uma superfície abstrata, a demonstrar que a série dos "Espelhos", assim como a dos "Entablamentos", possuem elos significativos com a problemática da abstração geométrica e com o purismo minimalista das décadas de 1960 e 1970. Não por acaso, Robert Rosenblum55 55 . ROSENBLUM, Robert. Roy Lichtenstein: Past, Present, Future. In: Roy Lichtenstein. Liverpool: Tate Gallery, 1993, p. 11-12. detecta nos "Entablamentos" uma resposta à velocidade das listras paralelas de cor abstrata de Kenneth Noland, além de uma versão satírica e mecânica da beleza clássica reduzida a moldes ornamentais.

Afirmando que, na década de 1960, o artista "definiu claramente as atitudes retrospectivas que, na falta de um nome melhor, chamamos pós-modernismo", Rosenblum localiza nele o arauto de "uma época em que a história heroica da evolução da arte moderna, de Cézanne e Monet a Picasso e Mondrian, parecia finalmente um capítulo concluído". Por viver numa época nascida depois da morte do modernismo, o pintor enterra seus heróis e estilos, inclusive o expressionismo abstrato, demonstrando que eles estavam presentes nos meios de comunicação de massa com a "mesma abundância mecanizada" das histórias em quadrinhos56 56 . Idem, p. 11. . A referência ao expressionismo abstrato traz de imediato à mente a série de telas com pinceladas, que tiveram início em 1965. A primeira obra intitulada Pinceladas inspira-se na história em quadrinhos "A pintura", publicada na revista Strange Suspense Stories, em outubro de 1964. Tendo como ponto de partida a cena em que o protagonista da narrativa desenha um grande X no rosto do modelo que não conseguia retratar, Lichtenstein isola a pincelada, que concebe como "uma coisa estandardizada - uma estampa ou uma imagem" e cuja origem faz remontar a Mondrian e Picasso, os quais, "inevitavelmente, levaram à ideia de de Kooning"57 57 . COLLINS, Bradford R. Op. cit., p. 117; HENDRICKSON, Janis. Op. cit., p. 60-62. .

Mesmo sem trabalhar com imagens apropriadas, a não ser no início da série, em que mobiliza o princípio fotográfico do isolamento do objeto de seu contexto, o artista adota, em sua sequência, outro processo próprio da imagem técnica - a ampliação58 58 . Na monografia dedicada ao artista, Alloway faz referência a um estilo de "presença monumental" em virtude do uso de recursos como simplificação e ampliação. Cf. ALLOWAY, Lawrence. Roy Lichtenstein. Op. cit., p. 16. -, a fim de reproduzir a escala monumental do expressionismo abstrato. De maneira irônica, simula a espontaneidade do gesto dos acionistas com o uso de pincéis encharcados de tinta e aplicados num filme de acetato. Depois de secas, as pinceladas são projetadas na tela para serem desenhadas e pintadas. Falsamente espontâneas, as pinceladas gigantescas parecem levar ao extremo o gesto dos artistas da Escola de Nova York. Ao anteporem o desenho e a composição à ação e à urgência da criação, põem em xeque essa visão personalista, cuja crítica é ampliada pela aplicação de pontos Benday no plano de fundo. A sensualidade da matéria pictórica é, assim, congelada, dando a impressão de que Lichtenstein pretendia eliminar, de vez, a qualidade manual da pintura59 59 . HENDRICKSON, Janis. Op. cit., p. 62; HICKEY, Dave. Brushstrokes. In: Roy Lichtenstein. Brushstrokes: four Decades. New York: Mitchell-Innes & Nash, 2001, p. 10. .

A padronização voluntária e fria do gesto da pintura de ação desperta uma interrogação: o artista conhecia as fotografias executadas por Hans Namuth60 60 . Morando em Paris desde 1933, Namuth começa a trabalhar como fotógrafo dois anos mais tarde. Integra a agência Alliance Photo e colabora com as revistas Vu e Life. Entre 1936 e 1937, faz a cobertura da Guerra Civil Espanhola, em colaboração com Georg Reisner. Emigra para os Estados Unidos em 1941 e trabalha para o serviço de inteligência do exército entre 1943 e 1945. Depois do fim da guerra, estuda na Nova Escola de Pesquisas Sociais (1946-1947), de Nova York, e colabora com as revistas Vogue, Harper's Bazaar, Life, Look, Fortune, Time, entre outras. Em 1950, realiza dois filmes e um conjunto de quase quinhentas fotos sobre o processo de trabalho de Jackson Pollock, que ajudam a divulgar a obra do artista, além de convertê-lo em mito. A fama adquirida com esse trabalho, transforma-o num fotógrafo requisitado por artistas e intelectuais (1950-1989). Além disso, fotografa, ao longo de quarenta anos, os habitantes de Todos Santos (Guatemala), cujo resultado será o livro Los Todos Santeros (1988). Em colaboração com Barbara Rose, publica Pollock Painting [A pintura de Pollock, 1980]. Cf. ÉCOTAIS, Emmanuelle de l'. Namuth Hans. In: Dictionnaire de la photo. Paris: Larousse, 1996, p. 444-445; Hans Namuth - Center for Creative Photography Online Gallery. Disponível em:‹ ccp.arizona.edu/item/31929›. Acesso em: 7 fev. 2014 em 1950, que conferiam uma visão heroica ao processo de trabalho de Jackson Pollock? A resposta deverá ser positiva, se for lembrado que as fotografias de Namuth, divulgadas em 1951 pelas revistas Portfolio e ArtNews, tornam conhecido do grande público um pintor solitário. Fotografado durante o processo de trabalho, Pollock é a própria encarnação da pintura de ação: parece dançar enquanto pinta em volta da tela estendida no chão, na qual não pode entrar. Como escreve Francis V. O'Connor, há uma tensão contínua entre as margens e o centro do quadro e os gestos de "curvar-se, ajoelhar-se, estirar-se e andar de pernas abertas", feitos pelo artista, "constituem uma luta intensa e desajeitada contra limites inexoráveis e autoimpostos"61 61 . O'CONNOR, Francis V. Hans Namuth's Photographs of Jackson Pollock as Art-Historical Documentation. In: HOFFMANN, Jens (org.). The Studio. London: Whitechapel Gallery; Cambridge: The MIT Press, 2012, p. 125. . Se tais imagens ajudam a compreender melhor sua técnica, desmistificando o caráter espontâneo do gotejamento, é porque elas se configuram como uma verdadeira interpretação da atitude de Pollock perante a tela. Namuth retoma algumas características centrais de seu processo de trabalho, notadamente o ângulo de visão, a ambiguidade espacial e a impressão de corpos flutuantes que emana das obras61 61 . O'CONNOR, Francis V. Hans Namuth's Photographs of Jackson Pollock as Art-Historical Documentation. In: HOFFMANN, Jens (org.). The Studio. London: Whitechapel Gallery; Cambridge: The MIT Press, 2012, p. 125. . Se essa hipótese for válida, a série das "Pinceladas" ganharia um viés não apenas irônico, mas também crítico, por colocar em pauta o mito que se construiu em volta de uma poética, que acabou sendo assimilada pelos meios de comunicação de massa graças à figura do artista solitário e rebelde.

Quer lide com objetos do cotidiano, quer recorra às histórias em quadrinhos, quer dialogue com a história da arte por meio do "museu imaginário", é inegável que a relação de Lichtenstein com o mundo é mediada pelas imagens técnicas. É nelas que encontra estímulos para sua poética sintética, baseada em formas essenciais, numa paleta enxuta, em áreas de cor chapadas e simples. É nelas também que encontra um repertório de signos compartilhados, provenientes da indústria cultural e de uma história da arte transformada em clichês pelos processos da reprodutibilidade técnica. Longe de ver no museu sem paredes "um mundo de arte cartácea, sobre o qual se eleva a épica oratória de Malraux, a proclamar, com voz de pregoeiro na praça do mercado que toda a arte é composta numa única chave"62 62 . KRAUSS, Rosalind. Le cas Namuth/Pollock. In: Le photographique: pour une théorie des écarts. Paris: Macula, 1990, p. 89-99; Hans Namuth. Disponível em: ‹en.wikipedia.org/wiki/Hans_Namuth›. Acesso em: 7 fev. 2014. , Lichtenstein mobiliza a problemática da reprodutibilidade técnica para configurar uma visão própria da história da arte, feita de releituras crítico-irônicas, nas quais prevalecem questões puramente formais. Num universo em que imagens geram imagens, a fotografia é quase sempre uma presença oculta. Mas é dela que provêm algumas das estratégias fundamentais do pintor, numa demonstração de que o universo da arte contemporânea não pode prescindir da mediação da imagem técnica e de uma interrogação constante sobre os mecanismos da percepção.


  • 64
    Poema visual de Wlademir Dias-Pino, publicado em 1973.
  • 65
    Wlademir Dias-Pino exposição em 1957.
  • 1
    . Este artigo integra uma pesquisa sobre as relações entre fotografia e artes visuais na segunda metade do século XX.
  • 2
    . CRISPOLTI, Enrico. Morte (tecnologica) dell'arte?. In: Ricerche dopo l'informale. Roma: Officina Edizioni, 1968, p. 149-150.
  • 3
    . DORFLES, Gillo. Nuovi riti nuovi miti. Torino: Einaudi, 1965, p. 186-188, 192.
  • 4
    . Idem, p. 193.
  • 5
    . ARGAN, Giulio Carlo. L'arte moderna: 1770-1970. Firenze: Sansoni, 1978, p. 683-685.
  • 6
    . PEDROSA, Mário. Arte ambiental, arte pós-moderna, Hélio Oiticica. In: Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília. São Paulo: Perspectiva, 1981, p. 205-206; Quinquilharia e pop'art. In: Mundo, homem, arte em crise. São Paulo: Perspectiva, 1975, p. 177-178.
  • 7
    . PEDROSA, Mário. Quinquilharia e pop'art. Op. cit., p. 177-179.
  • 8
    . PEDROSA, Mário. Do pop americano ao sertanejo Dias. In: Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília. Op. cit., p. 218.
  • 9
    . PEDROSA, Mário. Quinquilharia e pop'art. Op. cit., p. 177-178.
  • 10
    . CALVESI, Maurizio. Le due avanguardie: informale, new dada, pop art. Roma/Bari: Laterza, 1975, v. II, p. 341-349.
  • 11
    . ALLOWAY, Lawrence. American Pop Art. New York/London: Macmillan Publishing Co.; New York: Whitney Museum of American Art, 1974, p. 80.
  • 12
    . FOSTER, Hal. The First Pop Age: Painting and Subjectivity in the Art of Hamilton, Lichtenstein, Warhol, Richter, and Ruscha. Princeton/Oxford: Princeton University Press, 2012, p. 62, 67, 72.
  • 13
    . Idem, p. 73-74; LOBEL, Michael. Image Duplicator: Roy Lichtenstein and the Emergence of Pop Art. New Haven/London: Yale University Press, 2002, p. 77-81.
  • 14
    . LOBEL, Michael. Op. cit., p. 82-85.
  • 15
    . Esta e todas as obras do artista citadas no artigo podem ser visualizadas no site: www.lichtensteinfoundation.org
  • 16
    . LOBEL, Michael. Op. cit., p. 82, 90-91.
  • 17
    . Idem, p. 103.
  • 18
    . SHAPIRO, David. Grande unificazione. In: CODOGNATO, Attilio (org.). Pop art: evoluzione di una generazione. Milano: Electa, 1980, p. 64.
  • 19
    . Apud: WILSON, Simon. A arte pop. Rio de Janeiro: Editorial Labor do Brasil, 1975, p. 10.
  • 20
    . FOSTER, Hal. Op. cit., p. 102.
  • 21
    . LOBEL, Michael. Op. cit., p. 42; HENDRICKSON, Janis. Roy Lichtenstein. 1923-1997: a ironia do banal. Colônia: Taschen, 2011, p. 25; CALAS, Nicolas. Roy Lichtenstein: Insight through Irony. In: CALAS, Nicolas; CALAS, Elena. Icons and Images of the Sixties. New York: Dutton, 1971, p. 104.
  • 22
    . MALRAUX, André. Le musée imaginaire. Paris: Gallimard, 2006, p. 13, 15-16, 88-92, 94.
  • 23
    . Idem, p. 94, 96, 98, 120-121, 123, 161, 176.
  • 24
    . SILVA, Edson Rosa. O museu imaginário e a difusão da cultura. Disponível em: ‹http://www.letras.puc-rio.br/unidades&nucleos/catedra/.../6Sem_14html›. Acesso em 21 jan. 2013.
  • 25
    . Cf. HENDRICKSON, Janis. Op. cit., p. 41-44.
  • 26
    . Idem, p. 55-59.
  • 27
    . ALLOWAY, Lawrence. Roy Lichtenstein. New York/London/Paris: Abbeville Press, c. 1983, p. 46.
  • 28
    . GELDZAHLER, Henry. Lichtenstein's Picassos: 1962-1964. In: Making it New: Essays, Interviews and Talks. New York: Turtle Point Press, 1994, p. 242-243.
  • 29
    . COLLINS, Bradford R. Pop Art. London: Phaidon Press, 2012, p. 96-98.
  • 30
    . CALAS (Op. cit., p. 104-105), que segue com atenção a relação de Lichtenstein com o "mito popular" emblemado em obras de pintores famosos, acredita que ele não foi muito feliz na transposição do cubismo para o próprio sistema. O alvo de sua crítica é justamente a interpretação de Mulher com chapéu florido, na qual detecta uma estrutura incerta, que não consegue dar conta da complexa fusão das duas poses de Picasso.
  • 31
    . FOSTER, Hal. Op. cit., p. 71.
  • 32
    . RUBIN, James H. L'impressionisme. Paris: Phaidon, 2008, p. 279.
  • 33
    . VENTURI, Lionello. La via dell'impressionismo: da Manet a Cézanne. Torino: Einaudi, 1970, p. 194-195.
  • 34
    . REWALD, John. Histoire de l'impressionisme. Paris: Le Livre de Poche, 1965, v. 2, p. 215-216; SERULLAZ, Maurice. L'impressionisme. Paris: Presses Universitaires de France, 1967, p. 62.
  • 35
    . ALLOWAY, Lawrence. Roy Lichtenstein. Op.cit., p. 47; ALLOWAY, Lawrence. American Pop Art. Op. cit., p. 84; HENDRICKSON, Janis. Op. cit., p. 70. CALAS (Op. cit., p. 106), ao contrário, afirma que as "reproduções" de Monet estão entre as melhores obras do pintor norte-americano. Graças a uma interação de pontos amarelos num fundo preto e de pontos pretos em telas amarelas, ele teria obtido uma mancha neoimpressionista, próxima da nebulosidade e da difusão luminosa que Monet conseguira com suas pinceladas.
  • 36
    . RUBIN, James H. Op. cit., p. 347, 354.
  • 37
    . Alloway lembra que, neste mesmo período, Yves Saint-Laurent estava produzindo uma linha de roupas inspiradas em Mondrian e produzidas em escala industrial. Cf. ALLOWAY, Lawrence. Roy Lichtenstein. Op. cit., p. 46.
  • 38
    . COWART, Jack. Futurism, 1974-76. In: Roy Lichtenstein, 1970-1980. Saint Louis: The Saint Louis Museum, 1981, p. 97. Para dados sobre Muybridge, ver: FABRIS, Annateresa. A fotografia e a crise da modernidade. Belo Horizonte: C/Arte, 2015, p. 32, nota 30.
  • 39
    . Para dados sobre Marey, ver: FABRIS, Annateresa . Op. cit., p. 32, nota 29.
  • 40
    . Para dados ulteriores sobre o assunto, ver: FABRIS. O desafio do olhar: fotografia e artes visuais no período das vanguardas históricas. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011, v. I, p. 92-122.
  • 41
    . COWART, Jack. Op. cit., p. 97.
  • 42
    . Teórico (Anton Giulio) e fotógrafo (Arturo) respectivamente, os irmãos Bragaglia se interessam pela cronofotografia de Marey em 1910, iniciando as pesquisas com o fotodinamismo no ano seguinte. Em 1912, entram em contato com o grupo futurista, conseguindo um apoio financeiro de F. T. Marinetti. Anton Giulio publica em 1913 o livro Fotodinamismo futurista, que marca o fim da aliança com o movimento de Marinetti. Apesar disso, os dois irmãos dão prosseguimento às próprias pesquisas, que se ampliam para abarcar a fotomontagem e a "fotografia espírita". Depois do término da Primeira Guerra Mundial, só Arturo continua a dedicar-se à fotografia, realizando novas fotodinâmicas e distinguindo-se como retratista do mundo artístico e cultural de Roma.
  • 43
    . ALLOWAY, Lawrence. Roy Lichtenstein. Op. cit. , p. 95.
  • 44
    . HENDRICKSON, Janis. Op. cit., p. 71.
  • 45
    . ARGAN, Giulio Carlo. Op. cit., p. 742-746.
  • 46
    . COKE, Van Deren. The Painter and the Photograph: from Delacroix to Warhol. Albuquerque: University of New Mexico Press, 1972, p. 224.
  • 47
    . CALAS, Nicolas. Op. cit., p. 105-106.
  • 48
    . FOSTER, Hal. Op. cit., p. 275, n. 11.
  • 49
    . HENDRICKSON, Janis. Op. cit., p. 81-82.
  • 50
    . COWART. Entablatures, 1971-72. In: Op. cit., p. 31-32.
  • 51
    . COWART, Jack. Mirrors, 1970-72. In: Op. cit., p. 16.
  • 52
    . HENDRICKSON, Janis. Op. cit., p. 78.
  • 53
    . MACHADO, Arlindo. A ilusão especular: introdução à fotografia. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 87.
  • 54
    . SORLIN, Pierre. I figli di Nadar: il "secolo" dell'immagine analogica. Torino: Einaudi, 2001, p. 21.
  • 55
    . ROSENBLUM, Robert. Roy Lichtenstein: Past, Present, Future. In: Roy Lichtenstein. Liverpool: Tate Gallery, 1993, p. 11-12.
  • 56
    . Idem, p. 11.
  • 57
    . COLLINS, Bradford R. Op. cit., p. 117; HENDRICKSON, Janis. Op. cit., p. 60-62.
  • 58
    . Na monografia dedicada ao artista, Alloway faz referência a um estilo de "presença monumental" em virtude do uso de recursos como simplificação e ampliação. Cf. ALLOWAY, Lawrence. Roy Lichtenstein. Op. cit., p. 16.
  • 59
    . HENDRICKSON, Janis. Op. cit., p. 62; HICKEY, Dave. Brushstrokes. In: Roy Lichtenstein. Brushstrokes: four Decades. New York: Mitchell-Innes & Nash, 2001, p. 10.
  • 60
    . Morando em Paris desde 1933, Namuth começa a trabalhar como fotógrafo dois anos mais tarde. Integra a agência Alliance Photo e colabora com as revistas Vu e Life. Entre 1936 e 1937, faz a cobertura da Guerra Civil Espanhola, em colaboração com Georg Reisner. Emigra para os Estados Unidos em 1941 e trabalha para o serviço de inteligência do exército entre 1943 e 1945. Depois do fim da guerra, estuda na Nova Escola de Pesquisas Sociais (1946-1947), de Nova York, e colabora com as revistas Vogue, Harper's Bazaar, Life, Look, Fortune, Time, entre outras. Em 1950, realiza dois filmes e um conjunto de quase quinhentas fotos sobre o processo de trabalho de Jackson Pollock, que ajudam a divulgar a obra do artista, além de convertê-lo em mito. A fama adquirida com esse trabalho, transforma-o num fotógrafo requisitado por artistas e intelectuais (1950-1989). Além disso, fotografa, ao longo de quarenta anos, os habitantes de Todos Santos (Guatemala), cujo resultado será o livro Los Todos Santeros (1988). Em colaboração com Barbara Rose, publica Pollock Painting [A pintura de Pollock, 1980]. Cf. ÉCOTAIS, Emmanuelle de l'. Namuth Hans. In: Dictionnaire de la photo. Paris: Larousse, 1996, p. 444-445; Hans Namuth - Center for Creative Photography Online Gallery. Disponível em:‹ ccp.arizona.edu/item/31929›. Acesso em: 7 fev. 2014
  • 61
    . O'CONNOR, Francis V. Hans Namuth's Photographs of Jackson Pollock as Art-Historical Documentation. In: HOFFMANN, Jens (org.). The Studio. London: Whitechapel Gallery; Cambridge: The MIT Press, 2012, p. 125.
  • 62
    . KRAUSS, Rosalind. Le cas Namuth/Pollock. In: Le photographique: pour une théorie des écarts. Paris: Macula, 1990, p. 89-99; Hans Namuth. Disponível em: ‹en.wikipedia.org/wiki/Hans_Namuth›. Acesso em: 7 fev. 2014.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    18 Jul 2015
  • Aceito
    10 Ago 2015
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