Acessibilidade / Reportar erro

Do Efeito ao Paradigma: Narciso, Medusa e Pigmalião1

From de Effect to the Paradigm: Narcissus, Medusa and Pygmalion

resumo

O artigo pretende caracterizar a relação entre espectadores e imagens e, para tanto, utiliza as figuras paradigmáticas de Narciso, Medusa e Pigmalião, que são, rotineiramente, utilizadas para falar de imagens. Frequentemente, Narciso é associado à autorrepresentação; Medusa à fotografia e à morte, e Pigmalião ao simulacro. No entanto, numa breve nota de rodapé, W. J. T. Mitchell associa essas figuras mitológicas aos "efeitos" que as imagens provocam nos espectadores, acepção que denuncia uma dada relação entre espectadores e imagens. É esse o ângulo adoptado nesta análise, que procura, então, expandir a referência de Mitchell e assumir que os três mitos contêm os elementos principais que caracterizam a relação entre espectadores e imagens.

palavras-chave:
espectador; imagem; Narciso; Medusa; Pigmalião

abstract

The paper aims to characterize the relation between spectators and images and, therefore, uses the mythological figures of Narcissus, Pygmalion and Medusa, routinely used to talk about pictures. Often, Narcissus is associated with self-representation; Medusa with photography and death and Pygmalion with the simulacrum. However, in a brief footnote, W.J.T. Mitchell talks about the "effects" that images provoke in viewers, establishing a relationship between spectators, images and these three paradigmatic figures. This paper proposes to expand Mitchell´s view and assume that the three myths contain the main elements to follow the relationship between spectators and images.

keywords:
spectator; image; Narcissus; Medusa; Pygmalion


Imagens vivas

A resposta à questão formulada no título do texto de Mitchell, What do Pictures Want?2 2 . C.f.: MITCHELL, W. J. T. What do Pictures Want? The lives and Loves of Images. Chicago: The University of Chicago Press, 2005. , depende de aceitar a personificação das imagens, de aceitar tratá-las como pessoas. A tarefa não parece difícil, uma vez que as imagens exibem quase todas as características das pessoas: "(...) um corpo físico e um corpo virtual; falam connosco, por vezes literalmente, outras vezes figurativamente. Apresentam, não apenas uma superfície mas uma face que encara o espectador"3 3 . "Pictures are things that have been marked with all the stigmata of personhood: they exhibit both physical and virtual bodies; they speak to us, sometimes literally, sometimes figuratively. They present, not just a surface, but a face that faces the beholder". Idem. What do Pictures "Really" Want? In: October 77, 1996. Disponível em: http://digitalhistory.concordia.ca/courses/hist403w08/wp-content/uploads/2008/02/mitchell.pdf. Acesso em 2011.09.13. . Mitchell observa que, apesar dos indivíduos saberem que as imagens não são seres vivos e que não querem, de facto, coisas, comportam-se muitas vezes como se as imagens fossem seres animados e tivessem desejos, fenómeno que designa de "dupla consciência"4 4 . MITCHELL, W. J. T. What do Pictures Want? The lives and Loves of Images. Op. Cit., p. 7. . Nessa análise, o autor socorre-se de exemplos como a idolatria, o fetichismo, o totemismo ou, contemporaneamente, dos amores e ódios em torno de imagens como a da ovelha Dolly (símbolo da controvérsia em torno da clonagem) ou da queda das Twin Towers no 11 de Setembro (símbolo do capitalismo ocidental).

Mitchell afirma que, mais do que expressar o desejo do autor ou despertar desejos nos espectadores (ou nos espectadores-consumidores porque integrados no mercado de massas), as imagens também têm desejos, o desejo pertence-lhes. O enfoque na questão do desejo é consequência da crítica que Mitchell faz à teoria da cultura visual que, por norma, argumenta a favor da existência de um poder político associado às imagens, um poder suficientemente forte, para ser capaz de determinar as acções dos espectadores; nesse capítulo, recusa aceitar que, por exemplo, os vídeo-jogos violentos sejam a causa da violência juvenil e, apesar de reconhecer parte da justiça do argumento, afirma que o poder das imagens é bastante menor do que aquele que lhe é atribuído, e que as imagens podem confrontar ou sustentar o poder político sem que, "(...) no fim do dia, nada se altere"5 5 . "Pictures are a popular political antagonist because one can take a tough stand of them, and yet, at the end of the day, everything remains pretty much the same". Idem, p. 33. . Assim, considera necessário reformular o ponto de vista da análise que, em lugar de perguntar pelo que as imagens fazem, deve questionar aquilo que elas querem, trocando a acção pelo desejo.

O título da obra remete para questões anteriormente levantadas - What does the black man want?, por Franz Fanon, ou What do woman want?, por Freud -, nas quais o sujeito da frase se identifica com as designadas minorias e que justificam o facto da análise de Mitchell partir da identificação entre a imagem e a mulher, a imagem como mulher. "O que é que as imagens querem?" é, então, inseparável de "o que é que as mulheres querem?", e, para o saber, Mitchell socorre-se da narrativa de Geoffrey Chaucer, que, no século XIV, escreveu Wife of Bath Tale: no conto, um cavaleiro é acusado de violentar uma donzela e, para escapar à pena de morte, tem que conseguir esclarecer a rainha relativamente ao que as mulheres querem acima de tudo. A resposta correcta é maistrye, um termo complexo que tanto evoca o poder legal e consentido, como o adquirido através da astúcia. Como as mulheres, as imagens desejariam, acima de tudo, ter poder sobre o espectador, trocar de posição com ele, transformando-o numa imagem, acção que remete para a figura de Medusa, o que, por isso, leva Mitchell a caracterizar esse desejo como o "efeito Medusa", a criatura que transforma em pedra quem quer que encontre o seu olhar.

No mito narrado por Ovídio, Medusa é uma mulher bela que é castigada pela deusa Atena por se ter envolvido com Poseidon, deus do mar, no templo da deusa. Atena faz de Medusa um monstro com a cabeça coberta de víboras, e Perseu é o herói incumbido de a matar. Para realizar o seu objectivo sem ser petrificado, Perseu utiliza um escudo de bronze que reflecte a criatura, para, enquanto ela dorme, cortar-lhe a cabeça. A decapitação permite que Pegasus e Chrysaor, filhos da união entre Medusa e Poseidon, nasçam. Perseu apodera-se da cabeça da górgona para obter o poder de transformar os seus inimigos em pedra e, mais tarde, oferece-a a Atena, que a coloca no centro do seu escudo.

Mitchell afirma que as imagens se encontram intimamente ligadas ao desejo, porque expressam desejos e, simultaneamente, ensinam a desejar.

Substituir a pessoa pela imagem é aquilo que Medusa não cessa de fazer, acção que é nuclear, ainda, aos outros mitos que Mitchell cita, o de Narciso e o de Pigmalião. Ovídio conta que Narciso é um adolescente belo, filho de uma ninfa, que, desde cedo, sabe que apenas viverá se não se conhecer. Jovens e donzelas apaixonam-se por ele sem serem correspondidos, uma delas a ninfa Eco, condenada a repetir apenas as últimas palavras que ouve. Um dia, ao passear pela floresta, Narciso pára para beber água numa fonte e apaixona-se pelo seu reflexo nas águas. Narciso acredita estar em frente a um outro indivíduo e, quando percebe que este é apenas um reflexo, deseja separar-se do seu próprio corpo; Narciso não consegue abandonar a imagem e acaba por morrer. Em Pigmalião, conta-se a história de um escultor exímio que decidiu nunca se apaixonar por uma mulher. Pigmalião esculpe no marfim a figura de Galateia, de beleza superior à de qualquer mortal e, ao terminar, fascinado pela sua beleza quase carnal, Pigmalião apaixona-se pela sua criação, abraça-a e beija-a. Ao observar a cena, a deusa Vénus decide transformar a escultura numa mulher e Pigmalião casa com Galateia.

Nos três mitos, encontra-se a passagem da pessoa à imagem e da imagem à pessoa: ao petrificar os indivíduos, Medusa retira-os do espaço da vida, da mudança contínua, e torna-os estáticos, atributo da imagem parada; em Pigmalião ocorre o inverso, a passagem do estatismo da imagem ao movimento da vida; e, em Narciso, o mesmo indivíduo é real e imagem, e, em virtude da paixão, o indivíduo real torna-se estático a ponto de morrer, e a imagem, que apesar de parada se move com as águas, adquire atributos humanos através da voz que Eco lhe empresta. Ao identificar estes "efeitos", Mitchell descreve o caso de Narciso como uma ilusão ou engodo que captura o espectador; Medusa como o charme endereçado pela imagem que transforma em pedra o espectador, e Pigmalião como a fantasia que coincide com o desejo do espectador6 6 . "This 'Pygmalion effect' might be contrasted with the 'Medusa effect' and the familiar symptomatology of the 'Narcissus effect' as a survey of the basic possibilities in the beholder-image relation: the image as a deadly lure that swallows or drowns the beholder; as a mimetic charm that turns the beholder into a paralyzed image; as a fulfilled fantasy that mates with the beholder". Idem, p. 58. .

Quando responde à pergunta What do Pictures Want?, Mitchell afirma que aquilo que as imagens desejam é diferente daquilo que comunicam ou do efeito que produzem, e que, como as pessoas, as imagens não sabem o que querem e esperam encontrá-lo através do diálogo. Esta afirmação não descarta o papel do espectador e conta com a reciprocidade entre ver e ser visto, facto sublinhado pela sensibilidade ao raciocínio tradicional, em que o poder das imagens tem implicações sociais. Ainda assim, ao descrever os "efeitos", centra-se nos resultados que as imagens produzem no espectador, quando é possível, em cada mito, encontrar relações de dependência mútua entre espectadores e imagens.

Inicialmente, Narciso desconhece estar diante de uma imagem, mas, quando o descobre ["Oh! Mas ele sou eu! Percebi! O meu reflexo já não me engana!"7 7 . OVÍDIO. Metamorfoses. Trad. de Paulo Farmhouse Alberto. Lisboa: Livros Cotovia, 2007, p. 97 (Livro III, 460). ], decide permanecer diante do reflexo, e é apenas o seu amor pela imagem que a mantém viva, tendo em consideração a relação analógica entre referente e imagem - a imagem apenas existe porque Narciso se faz reflectir. Narciso transita da posição daquele cujo olho é enganado, como o olho inocente dos pássaros de Zeuxis8 8 . Episódio relatado por Plínio O Velho em que se narra o concurso entre dois pintores, Zeuxis e Parrásios. Zeuxis pinta umas uvas que conseguem enganar o olho dos pássaros e Parrásios, o vencedor, uma cortina que engana o olho humano. , para a posição do humano, que, em liberdade e em consciência, decide permanecer junto da imagem e morrer por ela (e com ela). Por este motivo - e à semelhança de Zeuxis -, Narciso conforma-se com a impossibilidade de tocar na imagem ["Ao menos que eu possa ver o que eu não posso tocar"9 9 . OVÍDIO, Op. Cit, p. 98 (Livro III, 475). ], acção que determinaria o desvanecimento do reflexo na água. A consciência do carácter ilusório da imagem é ainda mais evidente na versão do mito de Pausânias10 10 . GRIMAL, Pierre. Dicionário de Mitologia Grega e Romana. Lisboa: Difel, 1992, p. 322-23. , onde Narciso tem uma irmã gémea por quem se apaixona. Quando a irmã morre, Narciso fica inconsolável, e, quando um dia se vê reflectido numa fonte, julga ver a irmã morta. Embora consciente do desaparecimento da irmã e do facto de se estar a ver a si mesmo reflectido, Narciso adquire o hábito de se mirar nas fontes para se consolar da perda, utilizando a imagem como meio para aliviar a dor.

No mito de Medusa, o exercício do poder da górgona depende directamente do olhar deliberado do espectador, é ele quem olha Medusa ("por olharem"), e, por isso se transforma em pedra: "Por toda a parte, pelos campos e pelos caminhos, ela vira estátuas de homens e de animais, mudados de seres vivos em pedra por olharem para Medusa"11 11 . OVÍDIO, Op. Cit, p. 127 (Livro IV, 775-780). . No mito, Perseu é a figura que centraliza a possibilidade dos humanos rodearem, fugirem e domesticarem o olhar de Medusa, e o afastamento de Perseu relativamente aos animais, referidos na narrativa ["Por toda a parte, pelos campos e pelos caminhos, ele vira estátuas de homens e de animais, mudados de seres vivos em pedra por olharem para Medusa. Ele, porém, apenas vira a imagem da arrepiante Medusa reflectida no escudo de bronze"12 12 . OVÍDIO, Op. Cit, p. 127 (Livro IV, 780). ], é enfatizado pela sua proximidade aos deuses. O herói é filho de Zeus e da mortal Danae, e é a ordem do tirano Polidectes e o conselho da deusa Atena que, conjugados, o levam a partir em busca de Medusa; simultaneamente, são os deuses que concorrem para o sucesso de Perseu, oferecendo-lhe atributos mágicos. Louis Marin13 relaciona os ardis utilizados por Perseu com o triunfo da razão humana e sua consagração na representação visual através da perspectiva, e enfatiza esse triunfo quando nota que, se Medusa dormia quando Perseu a decapita, o escudo seria desnecessário, e serve apenas como símbolo da vitória da distância e da vigilância, como numa estrutura panóptica; no papel de vigilante do panóptico, o poder de Perseu depende de ver e não ser visto. Marin enumera os momentos desta vitória: o roubo do ponto de vista, o domínio da distância e a utilização da representação. No caminho, Perseu encontra-se com as três górgonas que partilham um único olho, passado de mão em mão; num dos momentos de alternância, Perseu consegue roubar esse único olho e chantagear os monstros de forma a conseguir a morada das ninfas, figuras que o auxiliam. Segundo Marin, este é o momento em que Perseu se apodera do "ponto de vista" (quem vê derrota os cegos) e, consequentemente, adopta a posição do espectador ou do pintor no dispositivo perspético. A este momento, segue-se a conquista da distância de observação e do poder exercido a partir de uma posição privilegiada, a do espectador/ pintor, que permite a Perseu tornar-se num fazedor de imagens através da utilização dos raios visuais emanados pela cabeça da górgona, agora decapitada. Finalmente, Perseu utiliza a representação - o reflexo - como forma de retaliação da razão, colocando Medusa frente ao seu próprio olhar imobilizador e voltando esse olhar contra si.

Sobre o mito de Pigmalião, a descrição de Mitchell fala de uma "fantasia que coincide com os desejos do espectador", pelo que, mais que um "efeito" da imagem sobre o espectador, existe um "efeito" do espectador e dos seus desejos sobre a imagem: são os desejos do espectador que criam e dão vida à imagem. No entanto, como aponta Victor Stoichita, é Galateia que "prega uma partida" ao escultor e, em vez de cumprir a função de protecção da libido, resguardando Pigmalião da paixão por qualquer mulher, provoca a acção do desejo e faz com que o artista duvide de si próprio e da condição da sua criação: "A tal ponto a arte não se vê na arte! Pigmalião extasia-se a olhá-la e sorve no peito chamas pelo corpo de imitação. Muitas vezes toca com as mãos na sua obra para testar se é corpo ou marfim, e nem admite que é ainda marfim"14 14 . OVÍDIO, Op. Cit, p. 252 (Livro X, 250-255). . Pigmalião é ultrapassado pela imagem, prefere-a a qualquer ser vivo, e Stoichita considera que "Pigmalião não cria intencionalmente a forma perfeita de uma mulher virtual, mas é, por assim dizer, a arte que a cria para ele e apesar dele"15 15 . STOICHITA, Victor I. The Pygmalion Effect. From Ovid to Hitchcock. Chicago; Londres: The Univesity of Chicago Press, 2008, p.13-14. .

A dependência entre os desejos do espectador e os desejos da imagem é central no mito de Pigmalião, de tal forma que Galateia responde e corresponde ao desejo de Pigmalião - o desejo que, partindo de Lacan, Bernard Baas designa de "plano de gozo". Baas considera que a imagem protege o sujeito do irrepresentável - o gozo em si -, e que, frente a uma imagem, o olhar do espectador é capturado por "algo" que o incita a procurar esse irrepresentável que está para lá da imagem. A mediar está o ecrã, que é o que separa e ao mesmo tempo aproxima o "(...) o plano do sujeito ou o plano visual e o plano do Outro ou o plano do gozo"16 16 . BAAS, Bernard. Pygmalion´s Gaze. 2008, p. 6. Disponível em: ‹www.lineofbeauty.org/index.php/s/article/view/9/43›. Acesso em 2011.07.29. . Assim, para além do marfim, Pigmalião teria sido capturado por esse gozo que não se pode ver mas permite que algo de essencial do sujeito se mostre, análise que retoma a ideia freudiana de uma "verdade particular" velada pela imagem.

Galateia pode ser a figura que responde à questão What do Pictures Want? e proferir uma das respostas avançadas por Mitchell, "querem ser amadas e ser "reais"17 17 . MITCHELL, W. J. T. What do Pictures Want? The lives and Loves of Images. Op., cit., p. 309. . A passagem da escultura à vida inicia-se com a aceitação de uma ilusão por parte de Pigmalião. Stoichita fala de uma "alucinação" mas, se se considerar a alucinação uma falsa percepção, ou seja, a percepção de um objecto inexistente18 18 . COSTA, J. Almeida; MELO, A. Sampaio. Dicionário da Língua Portuguesa. Porto: Porto Editora, 1999, p. 79. , pode tomar-se o caso de Pigmalião não como alucinação mas, antes, como a aceitação consciente de uma ilusão. É certo que a excelência da escultura ilude a vida (a tal ponto que "prega uma partida" ao escultor) mas, simultaneamente, Pigmalião sabe tratar-se de marfim - o material dos sonhos19 19 . STOICHITA, Victor I. Op. cit., p.7. - e quando se dirige à deusa Vénus rogando pela vida da estátua, inibe-se de falar de Galateia como de uma mulher real e prefere pedir uma mulher semelhante a Galateia: "Deuses, se tendes o poder de outorgar tudo, desejo que me concedeis (não ousando Pigmalião dizer 'a rapariga de marfim')... esposa semelhante à de marfim"20 20 . OVÍDIO, Op. cit., p. 253(Livro X, 270-275). . Este desejo é atendido e o marfim torna-se carne, processo paralelo à substituição de um amor que se inicia com o prazer visual por um amor carnal, suportado pelo toque. Várias são as referências ao toque, que se inicia com beijos, carícias e ofertas à estátua e que, num momento posterior ao pedido endereçado a Vénus, suscita reacções físicas na estátua: o beijo que torna tépida a sua face, o toque nos seios que torna mole o marfim, as mãos que agora sentem um corpo humano com veias a latejar, os beijos que fazem Galateia corar; Stoichita enfatiza o paralelo entre o par ver/ tocar e a passagem do branco do marfim ao vermelho da carne, do frio da estátua ao calor da vida.

É a relação directa entre ver e desejar que se encontra, também, no mito de Narciso onde o jovem confunde aquilo que é uma superfície - o reflexo na água - com uma profundidade, tornando evidente, numa primeira ocasião, a possibilidade de, em determinadas circunstâncias, os humanos serem iludidos pelas características das imagens e serem por elas cativados. No momento que procede a tomada de consciência, quando Narciso reconhece estar perante o seu reflexo, inicia-se a escolha da imagem em detrimento de qualquer amante vivo, a escolha da imagem sobre a Natureza. Narciso, que antes negara o toque de Eco ["Tira as tuas mãos de cima de mim! Antes morrer do que entregar-me a ti!"21 21 . Idem, p. 95 (Livro III, 390). ], continua a preferir o prazer obtido através do olhar e prescinde, agora, de tocar no seu reflexo sob pena de o perder. A imagem preenche os desejos e expectativas de Narciso, a tal ponto que lhe resta a identificação total com a própria imagem: ser simultaneamente aquele que deseja e o objecto desejado, condição que decorre da sentença que o condena a nunca ter aquilo que ama pois, o que ama, é um reflexo, como é um reflexo aquela que o ama, Eco, uma voz que perdeu o corpo e que apenas copia o discurso dos outros. Narciso ama-se sem a existência de um outro que possa mediar esse amor e, ao anular a mediação, faz coincidir a sua imagem com o desejo ele mesmo e apaga a distância que separa sujeito e objecto. Por outro lado, aquilo com que Narciso vê - o olho - é feito do mesmo líquido onde a imagem se projecta, existindo uma espécie de fusão entre a matéria daquele que observa e a do objecto e, como adianta Gaston Bachelard, é a água a matéria capaz de manter o sonho e conservar o desejo, pois o seu movimento contínuo permite ao sujeito idealizar sobre a beleza do reflexo: "a água é também um tipo de destino, não mais apenas o vão destino de um sonho que não se acaba, mas um destino essencial que metamorfoseia incessantemente a substância do ser"22 22 . BACHELARD, Gaston. A Água e os Sonhos. Ensaio sobre a Linguagem e Matéria. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 13. .

O destino de Narciso foi aceitar ser uma imagem e juntar-se ao estatismo da imagem parada, ficando "imóvel, incapaz de se mexer, o olhar fixo, qual estátua esculpida em mármore"23 23 . OVÍDIO, Op. cit., p. 96 (Livro III, 415). . Antes da morte, descrita como uma "dissolução", expressão que aproxima Narciso de uma substância quase imaterial, Narciso ganha vida - real, carnal - e "(...) fustiga o peito com as mãos da cor do mármore. O peito fustigado cobre-se de uma vermelhidão rósea"24 24 . Idem, p. 98 (Livro III, 480) , episódio que atesta a decisão de Narciso em morrer sendo que, como aconteceu a Galateia, o jovem poderia ter aproveitado o calor da corrente sanguínea (por oposição à frieza da pedra ou do marfim) para afastar o estatismo do mármore e da morte.

A identificação entre o que vê e quem é visto existe, também, no mito de Medusa. Craig Owens25 25 . OWENS, Craig. The Medusa Effect, or, The Specular Ruse. In: Beyond Recognition. Representation, Power and Culture. California: University of California Press, 1994. descreve o mito como "proto-fotográfico" e distingue o momento em que Medusa vê o seu reflexo no espelho do da sua transformação em pedra; o segundo que separa os dois momentos, o split second, é o instante em que a visão se vira contra si mesma. De notar que Owens recorre à tese lacaniana do olho como falha ou como o que falta, o objecto a para sempre perdido pelo sujeito. Por objecto a, Lacan entende aquilo - um órgão, o falo - do qual o sujeito teve que se separar na sua constituição e que agora, como objecto, existe fazendo falta. E, no olhar, a substituição do objecto a faz-se por via do desejo: "De maneira geral, a relação do olhar com o que queremos ver é uma relação de logro. O sujeito se apresenta como o que ele não é e o que se dá para ver não é o que ele quer ver. É por isso que o olho pode funcionar como objecto a, quer dizer, ao nível da falta"26 26 . LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 11. Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993, p. 102. . Ao ver-se, Medusa seria obrigada a encarar a falta.

Perseu encerra Medusa num sistema fechado, forçando-a a identificar-se com aquilo que agora vê e, desse modo, transformando-a numa imagem. É esta dinâmica que Owens encontra no acto fotográfico quando, ao posar, o modelo se identifica com o olhar e com o gozo do espectador, apresentando-se já como se estivesse imobilizado ou transformado em imagem. Nas narrativas de Ovídio e de Apolodoro não existe referência à transformação de Medusa em pedra e a afirmação de Ovídio é de que Perseu decapita a górgona com o auxílio do escudo enquanto ela dorme; Apolodoro confirma o sono e refere que Atena guiou o braço de Perseu enquanto este evitava o olhar de Medusa através do escudo. Jean-Pierre Vernant procura perceber como acontece a decapitação e avança três hipóteses: é Atena que guia o braço de Perseu e o herói nada vê; Perseu desvia o seu olhar e não olha Medusa enquanto a mata; Perseu olha para o reflexo de Medusa no escudo. Nesta última, o escudo permite-lhe ver Medusa como imagem, evitando o frente-a-frente e Vernant observa que o reflexo funciona como "se a imagem fosse ela, mas também como se ela estivesse ausente na presença do seu reflexo"27 27 . VERNANT, Jean-Pierre. In the Mirror of Medusa. In: Mortals and Immortals. Princeton: Princeton University Press, 1992, p. 147. . A imagem de Medusa é diversa de Medusa mas é mais que uma apresentação, mantém determinadas qualidades e poderes da górgona e, por esse motivo, terá sido incorporada no escudo de Atena (e, por tradição, no de outros guerreiros gregos) como forma de intimidar e derrotar os inimigos. Vernant denomina esta capacidade de "simpática", no sentido da imagem incorporar parte dos poderes de Medusa e poder "medusar". Seguindo Tomás Maia, "(...) o reflexo impresso da Medusa já não era a Medusa; a sua imagem por si só, já não podia matar mas apenas medusar. A imagem da Górgona tinha encarnado algo do seu olhar sem poder incorporar o seu ser"28 28 . MAIA, Tomás. Assombra. Ensaio sobre a Origem da Imagem. Lisboa: Assírio &Alvim, 2009, p. 69-70. .

Nesta acepção - e apesar de não ser Medusa -, a identificação entre a górgona e a imagem é de tal ordem que existe uma continuidade entre as duas, conservando-se alguns dos efeitos que ambas produzem nos espectadores. Ainda assim, mantém-se a evidência de Medusa apenas poder ser vista por intermédio do reflexo e de, pelo menos para os espectadores, a górgona apenas poder existir como imagem, visto ser essa a única forma de a ela acederem, questão que é valorizada por Owens que assume a petrificação - ou a transformação em imagem - de Medusa e adere à interpretação que faz do mito um exemplo de um fazedor de imagens transformado em imagem, de um criador que é simultaneamente espectador e de um outro espectador, Perseu, transformado em fazedor de imagens. Acresce notar que é apenas no momento da decapitação de Medusa, agora uma cabeça separada do corpo, que se realiza o nascimento dos dois filhos, Pégaso e Chrysaor, episódio que releva o facto do cumprimento das potencialidades de Medusa dependerem da sua transformação em imagem e de, nessa condição, ter poderes próprios, independentes do corpo que ela é em vida.

O facto de, nos três mitos, verificar-se a existência de responsabilidade ou de liberdade de escolha dos espectadores, mas, também, a capacidade de projectarem desejos e aspirações na imagem, ou, noutros casos, de existir identificação entre ambos, espectador e imagem (sendo Medusa um caso particular em que Medusa e Perseu assumem, embora em diferentes momentos, a posição de espectadores), faz com que seja possível encontrar uma relação entre imagem e espectador que excede a designação de "efeito" e ambicione determinar um modo de relacionamento entre indivíduo e imagem.

Do efeito ao paradigma

Numa secção do Timeu29 29 . PLATÃO. Timeu. In: Diálogos IV. Trad. de Emile Chambry. Mem-Martins: Europa-América, 1969, p. 260-78. , Platão ocupa-se das realidades que nascem e se transformam em qualquer coisa ou de todas as realidades que, por terem existência sensível, tiveram necessariamente que ter um início e um desenvolvimento, como o mundo. O que aparece deve, então, ter uma causa, uma origem e se se considerar que o mundo é bom, a causa deve ser eterna, de forma semelhante às coisas produzidas por um artesão que serão melhores quando o modelo é o eterno e menos boas quando o modelo é sensível. O mundo teria sido criado e copiado das Formas imutáveis e William Prior30 30 . PRIOR, William J.The Forms as Paradigm. In: Unity and Development. Dorset: Biddles, Ltd., 1985, p. 102. aponta o facto de Timeu ser o único diálogo em que Platão trata explicitamente as Formas como paradigmas e ser, simultaneamente, o diálogo onde o termo paradigma (παράδειγμα) mais vezes aparece, para designar as realidades eternas que serviram de modelo ao Demiurgo na feitura do mundo.

A palavra "paradigma" é utilizada por Platão como sinónimo de modelo, acepção confirmada pela definição avançada por vários dicionários e pelo historiador Thomas Kuhn31 31 . KUHN, Thomas S.. The Priority of Paradigms. In: The Structure of Scientific Revolutions. Chicago: The University of Chicago Press, 1970. Vol. II, p. 43. , que cunhou o entendimento contemporâneo do termo, descrevendo-o como um conjunto de regras recorrentes e até ilustrativas, usadas pela comunidade científica numa determinada época. Os paradigmas são, então, modelos que tanto se referem a problemas tipo, como a soluções e contêm a estrutura seguida por uma comunidade de investigadores, bem como respostas prováveis aos problemas em causa.

Na tradição filosófica da Grécia antiga, paradigma era também utilizado para designar a forma de construção de um pensamento, realizado através de um fluxo de ideias que culminam numa conclusão, metodologia que estrutura os diálogos de Platão. Como fluxo, implica a existência de pelo menos duas partes em confronto - estratégia igualmente presente na confrontação de hipóteses e respectiva experimentação no domínio das ciências exactas -, ou seja, o paradigma é um modelo que implica uma relação entre partes.

Nas narrativas estudadas por Mitchell, observa-se um fluxo cuja origem é, ora a imagem, ora o espectador e onde, de forma paradigmática, se apresentam as formas de relacionamento entre espectador e imagem, pelo que é viável propor a extensão dos "efeitos" a "paradigmas". Nestes "paradigmas" está coberta, nos termos de Belting32 32 . BELTING, Hans. A Verdadeira Imagem. Porto: Dafne Editora, 2011, p. 143. , a "parte delas" e a "nossa parte", sendo a "parte delas" as características das imagens: a ilusão de vida no reflexo de Narciso, o poder do olhar de Medusa, a excelência da escultura de Galateia. Na "parte" do espectador, a relação varia entre a projecção de desejos e a identificação, supondo ambos a escolha consciente ou a liberdade em acreditar nas propostas da imagem. O desejo de Pigmalião cria Galateia; o desejo de Narciso faz do reflexo um objecto de amor; mas, em Narciso e Medusa, a relação supõe o colapso da distância que separa espectador e imagem, sujeito e objecto. Narciso identifica-se com o objecto do seu desejo no sentido da continuidade entre ambos - a substancia líquida une-os e, posteriormente, a morte entrega o seu corpo à imagem unindo as duas partes, sujeito e imagem que, afinal, pertenceram sempre a Narciso; Medusa, a imagem que transforma os espectadores em imagens e os obriga à identificação, integra, ela mesma, a capacidade de ser imagem e espectadora. É imagem quando apenas pode ser vista por terceiros através do reflexo, quando é apenas uma cabeça privada de corpo e, ainda, quando mantém a capacidade de medusar no escudo de Atena; é espectadora quando é capturada pelo seu olhar através do escudo de Perseu e se vê vendo-se, vê o seu olhar.

Marie-José Mondzain fala de um reflexo que mata quando espectador e imagem se identificam, "A imagem olha-nos e pode engolir-nos. (...) Tornarmo-nos unos com aquilo que vemos é mortal"33 33 . MONDZAIN, Marie-José. A Imagem pode Matar? Lisboa: Nova Veja, 2009, p. 23. . O perigo de identificação com uma imagem não é a única ameaça presente nestes mitos, cujo final é trágico: existe o perigo de olhar, o olhar em si mesmo de Medusa (o olhar da morte, o olhar fatal) ou o perigo de, como Narciso, ser arrebatado por um amor do olhar, um amor que nasce da beleza da imagem. A beleza, historicamente valorizada através da sua ligação ao Bem e, simultaneamente denegrida por ser parente do pecado da carne e poder contribuir para esconder uma "má alma" é, nos mitos, a causa da fixação de Narciso e é a beleza de Medusa que seduz Poseidon e leva Atena a transformar a górgona em monstro, os belos cabelos em serpentes.

Stephen Wilk34 34 . WILK, Stephen R. Medusa. Solving the Mystery of the Gorgon. Oxford: Oxford University Press, 2000. nota que a representação da górgona oscilou entre a monstruosidade e a aparência de uma mulher bela. Na primeira fase, entre os séculos VIII e V a.C., surge com olhos muito abertos e arregalados, uma boca grande e aberta, com dentes afiados e língua pendente; depois do IV século a. C. é suavizada e, em vez de ser representada de frente, como até aí, passa a ser tratada com a maioria das figuras e mostrada a três quartos ou de perfil. Nesse momento e pela primeira vez, é representada de olhos fechados e transforma-se numa mulher jovem e bela, sendo que o regresso da Medusa monstruosa só é feito na Renascença. Jean Clair35 35 . CLAIR, Jean. Méduse: Contribution à une Anthropologie des Arts du Visuel. Paris: Gallimard, 1989, p. 68-69. - cuja análise do sucesso de Perseu como uma vitória da cultura se harmoniza com a relação que Louis Marin estabelece entre as estratégias do herói e a racionalidade da perspectiva - sugere que as representações mais perturbadoras coincidem com épocas de revolução, em que a confiança na razão está a ser posta em causa quando, por oposição, as representações em que Medusa é humanizada e figurada como uma mulher bela correspondem a períodos de estabilidade. A monstruosidade de Medusa apoia-se no facto desta ser uma figura caótica ou marginal, encontrando-se sempre entre duas realidades: a beleza e a monstruosidade mas, também, o humano e o monstro, o divino e o mortal (é a única, de entre as górgonas, que é mortal), o homem e a mulher (considerando as serpentes como falos e, também, o masculino como género do artista criador de imagens), o criador e a imagem, o espectador e a imagem. Esta instabilidade obriga os espectadores a tomarem uma posição, decidindo acerca do sentido daquilo que vêem - Tsili Doleve-Gandelman e Claude Gandelman36 36 . DOLEVE-GANDELMAN, Tsili; GANDELMAN, Claude. The Metastability of Primitive Artefacts. In: Semiotica, vol. 75, 1989. Disponível em ‹http://www.deepdyve.com/lp/de-gruyter/the-metastability-oionaremf-primitive-artefacts-nQCIn8cy2U›. Acesso em 2011.10.12. tornam efectiva, em termos perceptivos, a possibilidade dos espectadores verem isto ou aquilo pois, socorrendo-se dos escritos de Freud37 37 . Cf.: FREUD, Sigmund. Medusa's Head. In: Writings on Art and Literature. Ed. James Strachey. Standford: Standford University Press, 1997 , referem que a boca de Medusa pode ser vista como boca ou como genitais femininos. Os autores, para além de considerarem a duplicidade de sentidos da imagem de Medusa, integram-na na família das "imagens metaestáveis" (metastabily images), sendo "metaestável um termo proveniente da gestalt que aponta para a reversibilidade permanente dos signos, podendo uma coisa tornar-se outra, ou até o seu exacto contrário, em momentos sucessivos. Seguindo os autores, muitos dos artefactos das sociedades ditas "primitivas" (máscaras, escudos etc.) apresentam esta característica ao juntarem formas animais e humanas, vistas de perfil e vistas frontais, faces e símbolos sexuais mas, ao exemplificar o fenómeno, utilizam a imagem que consideram paradigmática, a do duck-rabitt, introduzida por Ludwig Wittgenstein no contexto da reflexão teórica em 1953, a propósito do estudo acerca da univocidade da visão. O filósofo nota que esta imagem (este tipo de imagens reversíveis) resiste à interpretação e mantém o espectador cativo, sendo-lhe impossível sair da imagem pois, ao abandonar a interpretação de que a figura é um coelho, passa imediatamente a ficar cativo da imagem do pato. Ainda assim, Wittgenstein38 38 . WITTGENSTEIN, Ludwing. Philosophical Investigations. Trad. de G.E.M. Ascombe, P.M.S. Hacken, Joachim Schulte. U.K.: Blackwell Publishing, 2009, p. 167. acredita ser possível ver um híbrido, uma figura coelho-pato, enquanto Gombrich39 39 . GOMBRICH, E. H. Arte e Ilusão. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 4-5. considera impossível percepcionar uma fusão, afirmando que é viável passar rapidamente de uma interpretação para a outra sem, no entanto, ser exequível experimentar as duas opções de forma simultânea. Mitchell40 40 . MITCHELL, W. J. T. Picture Theory. Chicago: The University of Chicago Press, 1995, p. 45-57; 172-76. adopta o ponto de vista de Wittgenstein mas Tsili Doleve-Gandelman e Claude Gandelman41 41 . DOLEVE-GANDELMAN, Tsili; GANDELMAN, Claude. Op. cit., p. 191. encontram uma solução de compromisso: do ponto de vista da percepção a simultaneidade não existe, embora a sucessão de interpretações possa ser extremamente rápida; do ponto de vista da cognição sim, é possível a coexistência de interpretações.

Neste sentido - e para além de Medusa poder ser uma "imagem metaestável" no sentido efectivo, ver-se uma boca ou um genital - Medusa pode ser encarada como um caso de alargamento do campo da "metaestabilidade" pois, apesar de nem sempre coincidirem ou se sucederem quase instantaneamente as interpretações que a tomam como monstro ou humana, mortal ou imortal, etc., existe, no campo da cognição, uma necessidade de a interpretar como sendo x. Se Medusa estabelece, por vezes, a reversibilidade perceptual do signo, determina sempre uma reversibilidade dos significados, tornando polimórfica a relação entre significante e significado e apresentando-se como uma imagem resistente à interpretação.

Mitchell42 42 . MITCHELL, W. J. T. Picture Theory. Op. cit. aponta esta resistência como uma das qualidades que definem a imagem que, ao invés de se diluir ou apagar ao serviço de uma representação transparente de qualquer coisa, é uma entidade para observar e examinar. Daqui decorre que o espectador se desvende a si mesmo na experiência da descoberta da imagem.

A imagem de Narciso é a de um outro, a de uma figura de alteridade e é o reflexo de Narciso; Galateia é uma escultura e, ao mesmo tempo, parece feita de carne e Medusa é múltipla - como fazedora de imagens e imagem, como espectadora e imagem, bela e monstruosa, mortal e imortal, feminina e masculina e, ainda, na relação entre um espectador e a sua face. Esta alternância da imagem convida a uma tomada de posição do sujeito que diz, então, algo acerca do que ele é: aceitar a imagem como sendo x (um reflexo, uma estátua) ou aderir, projectar-se e identificar-se com a imagem.

A imagem existe e pode seduzir ou "tocar" o espectador - esse primeiro movimento origina a resposta do indivíduo, a que se segue a possibilidade da imagem devolver o olhar, agora contaminado pelo olhar do sujeito. Este modo de relação entre espectador e imagem é o que permite à própria imagem ser um modelo a seguir. Mas esta imagem modelo é, ela própria, um dado em segunda mão, diferido, que faz retornar ao espectador uma parte daquilo que ele é, tal como a voz que o reflexo de Narciso lhe devolve é a voz de Narciso repetida por Eco.

No "paradigma Narciso" abre-se a possibilidade do indivíduo se deixar seduzir pela imagem, desejando-a e identificando-se com ela, no sentido da adesão entre a expectativa e a imagem ser perfeita; no "paradigma Medusa" está em causa a identificação entre espectador e imagem, podendo os indivíduos transformar-se em imagens e, simultaneamente, serem obrigados a um posicionamento activo que defina o sentido do visível; finalmente, no "paradigma Pigmalião" encontra-se a oportunidade dos espectadores criarem imagens de acordo com os seus desejos e, simultaneamente, a capacidade das imagens se autonomizarem face ao criador.

O que querem, então, as imagens? Querem ser autónomas e fazer dos espectadores seus semelhantes.

Considerações finais

A relação entre espectador e imagem integra liberdade e responsabilidade na aceitação, por parte dos indivíduos, das propostas das imagens mas, também, a possibilidade dos indivíduos projectarem os seus desejos nas imagens e poderem, até, identificar-se com elas. Este modo de relacionamento encontra-se presente naquilo que Mitchell designa de "efeitos" e que caracteriza com recurso aos mitos de Narciso, Medusa e Pigmalião. Porém, nas três narrativas, encontra-se um modo de relacionamento que não dispensa o papel do espectador e distribui em partes mais ou menos equivalentes a relevância dos papéis da imagem e do espectador. Nos três mitos, encontra-se a permuta entre pessoa e imagem e é possível, através das narrativas, enunciar determinados critérios que são constituintes da relação entre espectador e imagem: a) a liberdade dos espectadores aderirem às imagens; b) a identificação entre sujeito e imagem; c) a projecção dos desejos do espectador na imagem e a capacidade das imagens ensinarem a desejar fazendo-se desejadas; d) o poder/ desejo exercido pelas imagens sobre o espectador. Neste contexto, é possível pensar estes modos de relacionamento como paradigmas - ao invés de os designar de "efeitos" - e deduzir uma sequência em que, ao desejar e utilizarem o seu poder, as imagens determinam uma resposta por parte dos espectadores; seguidamente, os espectadores devolvem às imagens um olhar contaminado - assim, mesmo que se instituam como modelos (modelos de corpos, em especial) as imagens são sempre modelos manchados pelo olhar particular de cada indivíduo.

  • 44
    Poema visual de Wlademir Dias-Pino, publicado em 1971.
  • 1
    . O artigo resulta da tese de Doutoramento de título O Corpo como Imagem e as Imagens do Corpo na Contemporaneidade, 2013.
  • 2
    . C.f.: MITCHELL, W. J. T. What do Pictures Want? The lives and Loves of Images. Chicago: The University of Chicago Press, 2005.
  • 3
    . "Pictures are things that have been marked with all the stigmata of personhood: they exhibit both physical and virtual bodies; they speak to us, sometimes literally, sometimes figuratively. They present, not just a surface, but a face that faces the beholder". Idem. What do Pictures "Really" Want? In: October 77, 1996. Disponível em: http://digitalhistory.concordia.ca/courses/hist403w08/wp-content/uploads/2008/02/mitchell.pdf. Acesso em 2011.09.13.
  • 4
    . MITCHELL, W. J. T. What do Pictures Want? The lives and Loves of Images. Op. Cit., p. 7.
  • 5
    . "Pictures are a popular political antagonist because one can take a tough stand of them, and yet, at the end of the day, everything remains pretty much the same". Idem, p. 33.
  • 6
    . "This 'Pygmalion effect' might be contrasted with the 'Medusa effect' and the familiar symptomatology of the 'Narcissus effect' as a survey of the basic possibilities in the beholder-image relation: the image as a deadly lure that swallows or drowns the beholder; as a mimetic charm that turns the beholder into a paralyzed image; as a fulfilled fantasy that mates with the beholder". Idem, p. 58.
  • 7
    . OVÍDIO. Metamorfoses. Trad. de Paulo Farmhouse Alberto. Lisboa: Livros Cotovia, 2007, p. 97 (Livro III, 460).
  • 8
    . Episódio relatado por Plínio O Velho em que se narra o concurso entre dois pintores, Zeuxis e Parrásios. Zeuxis pinta umas uvas que conseguem enganar o olho dos pássaros e Parrásios, o vencedor, uma cortina que engana o olho humano.
  • 9
    . OVÍDIO, Op. Cit, p. 98 (Livro III, 475).
  • 10
    . GRIMAL, Pierre. Dicionário de Mitologia Grega e Romana. Lisboa: Difel, 1992, p. 322-23.
  • 11
    . OVÍDIO, Op. Cit, p. 127 (Livro IV, 775-780).
  • 12
    . OVÍDIO, Op. Cit, p. 127 (Livro IV, 780).
  • 13
    . MARIN, Louis. Caravaggio´s "Head of Medusa". A Theoretical Perspective. In: GARBER, Marjorie; VICKERS, Nancy J. (ed.). The Medusa Reader. Nova York; Londres: Routledge, 2003, p. 142-43.
  • 14
    . OVÍDIO, Op. Cit, p. 252 (Livro X, 250-255).
  • 15
    . STOICHITA, Victor I. The Pygmalion Effect. From Ovid to Hitchcock. Chicago; Londres: The Univesity of Chicago Press, 2008, p.13-14.
  • 16
    . BAAS, Bernard. Pygmalion´s Gaze. 2008, p. 6. Disponível em: ‹www.lineofbeauty.org/index.php/s/article/view/9/43›. Acesso em 2011.07.29.
  • 17
    . MITCHELL, W. J. T. What do Pictures Want? The lives and Loves of Images. Op., cit., p. 309.
  • 18
    . COSTA, J. Almeida; MELO, A. Sampaio. Dicionário da Língua Portuguesa. Porto: Porto Editora, 1999, p. 79.
  • 19
    . STOICHITA, Victor I. Op. cit., p.7.
  • 20
    . OVÍDIO, Op. cit., p. 253(Livro X, 270-275).
  • 21
    . Idem, p. 95 (Livro III, 390).
  • 22
    . BACHELARD, Gaston. A Água e os Sonhos. Ensaio sobre a Linguagem e Matéria. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 13.
  • 23
    . OVÍDIO, Op. cit., p. 96 (Livro III, 415).
  • 24
    . Idem, p. 98 (Livro III, 480)
  • 25
    . OWENS, Craig. The Medusa Effect, or, The Specular Ruse. In: Beyond Recognition. Representation, Power and Culture. California: University of California Press, 1994.
  • 26
    . LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 11. Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993, p. 102.
  • 27
    . VERNANT, Jean-Pierre. In the Mirror of Medusa. In: Mortals and Immortals. Princeton: Princeton University Press, 1992, p. 147.
  • 28
    . MAIA, Tomás. Assombra. Ensaio sobre a Origem da Imagem. Lisboa: Assírio &Alvim, 2009, p. 69-70.
  • 29
    . PLATÃO. Timeu. In: Diálogos IV. Trad. de Emile Chambry. Mem-Martins: Europa-América, 1969, p. 260-78.
  • 30
    . PRIOR, William J.The Forms as Paradigm. In: Unity and Development. Dorset: Biddles, Ltd., 1985, p. 102.
  • 31
    . KUHN, Thomas S.. The Priority of Paradigms. In: The Structure of Scientific Revolutions. Chicago: The University of Chicago Press, 1970. Vol. II, p. 43.
  • 32
    . BELTING, Hans. A Verdadeira Imagem. Porto: Dafne Editora, 2011, p. 143.
  • 33
    . MONDZAIN, Marie-José. A Imagem pode Matar? Lisboa: Nova Veja, 2009, p. 23.
  • 34
    . WILK, Stephen R. Medusa. Solving the Mystery of the Gorgon. Oxford: Oxford University Press, 2000.
  • 35
    . CLAIR, Jean. Méduse: Contribution à une Anthropologie des Arts du Visuel. Paris: Gallimard, 1989, p. 68-69.
  • 36
    . DOLEVE-GANDELMAN, Tsili; GANDELMAN, Claude. The Metastability of Primitive Artefacts. In: Semiotica, vol. 75, 1989. Disponível em ‹http://www.deepdyve.com/lp/de-gruyter/the-metastability-oionaremf-primitive-artefacts-nQCIn8cy2U›. Acesso em 2011.10.12.
  • 37
    . Cf.: FREUD, Sigmund. Medusa's Head. In: Writings on Art and Literature. Ed. James Strachey. Standford: Standford University Press, 1997
  • 38
    . WITTGENSTEIN, Ludwing. Philosophical Investigations. Trad. de G.E.M. Ascombe, P.M.S. Hacken, Joachim Schulte. U.K.: Blackwell Publishing, 2009, p. 167.
  • 39
    . GOMBRICH, E. H. Arte e Ilusão. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 4-5.
  • 40
    . MITCHELL, W. J. T. Picture Theory. Chicago: The University of Chicago Press, 1995, p. 45-57; 172-76.
  • 41
    . DOLEVE-GANDELMAN, Tsili; GANDELMAN, Claude. Op. cit., p. 191.
  • 42
    . MITCHELL, W. J. T. Picture Theory. Op. cit.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    16 Jul 2015
  • Aceito
    10 Ago 2015
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo Depto. De Artes Plásticas / ARS, Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, 05508-900 - São Paulo - SP, Tel. (11) 3091-4430 / Fax. (11) 3091-4323 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: ars@usp.br