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Editorial

EDITORIAL

O mês de junho de 2013 no Brasil ficou marcado pelos protestos que ocorreram na maioria das capitais e grandes cidades do país. O que se iniciou como manifestações contra o aumento da tarifa dos transportes públicos em São Paulo, encabeçadas pelo movimento Passe Livre, transformou-se em um intenso debate sobre as expectativas da qualidade de vida no país. Ao mesmo tempo, seu caráter midiático, o uso das redes sociais para promover a mobilização, o emprego de mídias alternativas, combinado à falta de liderança única ou centralizada, conferiram um caráter distinto a essas manifestações quando comparadas a outros protestos que ocorreram até agora.

Para vários analistas, compreender as manifestações de junho implica, além de reconhecer suas especificidades, identificar suas motivações, uma das quais a diminuição dos espaços de diálogo entre o governo, nas suas diferentes esferas de poder, e a sociedade civil.

No contexto ambiental, esse fato se revela, por exemplo, pelo enfraquecimento dos conselhos de meio ambiente e de recursos hídricos, principalmente nos últimos dois anos. Apenas para citar dois exemplos marcantes: em 2012, as atribuições do Conselho Estadual de Meio Ambiente (CONSEMA) de São Paulo foram reduzidas com base em um decreto do governador Geraldo Alckmin, que limitou o poder deliberativo dessa instituição. O decreto, além de retirar a atribuição de avaliar os relatórios de impacto ambiental, modificou a composição do Conselho. No âmbito federal, o Conselho Nacional de Recursos Hídricos reuniu-se uma única vez em 2013, convocado pela Ministra do Meio Ambiente, Isabela Teixeira. Não é demais lembrar que nos últimos cinco anos, essas reuniões ocorreram, em média, cinco vezes por ano. Estes conselhos foram criados como parte das instituições participativas, definidas por lei. Embora muitas vezes tenham sido considerados ineficientes e de alto custo, consolidaram as práticas democráticas e a participação de diferentes setores da sociedade na discussão das questões ambientais.

Mas será que para a maioria dos manifestantes a redução do diálogo e dos espaços de negociação foram um dos fatores motivadores dos protestos? Talvez esta não tenha sido a questão central. Os protestos evidenciaram uma crítica às formas tradicionais da política, sobretudo aos partidos políticos. Não residirá neste aspecto também uma crítica - e até desconhecimento, por que não? - aos instrumentos institucionalizados de participação na gestão pública? Com efeito, as demandas não se referiram a uma maior participação com base no modelo institucional existente, para apresentar e negociar suas agendas, mas sim seu objetivo foi indicar a direção que o Estado deveria adotar para concentrar suas ações; independente de reconhecer os avanços ou as possibilidades de realização de mudanças no sistema.

Em certo sentido, é interessante notar que a agenda ambiental não esteve presente nas manifestações. Houve a adesão pontual de movimentos sociais e ONGs com histórico de atuação no campo das questões socioambientais. No entanto, a questão ambiental perpassou os protestos muito mais referida à valorização da qualidade de vida e, nesse caso, como qualidade de vida urbana, temáticas até então secundárias ao movimento ambientalista.

Nesse contexto, cabe uma reflexão sobre o sistema de gestão ambiental existente e sobre a importância e relevância das questões ambientais diante do conjunto difuso de temas presentes nas manifestações de junho e seus novos atores.

A motivação das manifestações indica que sem o fortalecimento do diálogo e negociação entre os diferentes setores da sociedade civil e o Estado, haverá um descontentamento crescente, que, em última instância, poderá comprometer as instituições participativas criadas desde o início do processo de democratização do país. As mobilizações também indicaram a necessidade de rever as práticas de gestão do governo, nas diferentes esferas de poder.

Outro desafio está colocado: as manifestações não negaram o Estado, mas exigiram um Estado mais eficiente e, portanto, uma gestão pública mais eficiente. Ao mesmo tempo, também indicaram que os manifestantes acreditam que a sua contribuição se concentra em expor suas ideias e demandas publicamente, que assim se tornam legítimas por si só. Tal estratégia para influenciar as ações do Estado reflete, por um lado, uma frustração como sistema político atual, que não se transforma e mantém as mesmas práticas políticas de troca de favores, que reforça as estruturas de privilégio e desrespeito às leis. Por outro lado, os protestos encerram uma desconfiança combinada ao desconhecimento das instituições e do seu funcionamento enquanto espaço para negociação consequente. O risco presente nessa situação é de uma perda da confiança nos sistemas participativos, o que poderia levar a um confronto sem mediações institucionais.

A partir dos protestos, observamos uma mudança com relação aos atores sociais e suas práticas de mobilização. São reconhecidos os novos mecanismos de articulação e ação coletiva que agrupam indivíduos no espaço virtual e se concretizam nos espaços públicos, entretanto, sem definir claramente os canais de diálogo e negociação. Com isso nos perguntamos sobre quais serão os desdobramentos dessas mobilizações sociais e qual será seu impacto sobre as práticas da governança ambiental. Essas são questões a serem observadas em futuros estudos e que continuarão a contribuir no entendimento das múltiplas interfaces que compõem a área socioambiental.

Assim como nas manifestações de junho, os estudos sobre as relações entre o ambiente e a sociedade amplificam críticas e demandas sobre os arranjos institucionais consolidados e acentuam expectativas em relação aos resultados da aplicação eficiente de políticas públicas. Neste volume da Revista A&S, composto por sete artigos e duas resenhas, temas como mudanças climáticas, gestão das áreas de conservação e práticas agrícolas trazem uma reflexão acerca das relações entre os mecanismos propostos por leis e políticas públicas e o modo como são aplicados, considerando as consequências das novas dinâmicas ambientais e seus impactos na sociedade.

O volume 16-3 da Revista A&S inicia-se com dois artigos que abordam temas ligados à agricultura, revelando entendimentos diferentes quanto à experiência e percepções de agricultores face às tecnologias agrícolas e seu impacto sobre o ambiente. No artigo O que pensam os pequenos agricultores da Argentina sobre os cultivos geneticamente modificados?, de Luisa Massarani, Carmelo Polino, Carina Cortassa, Maria Eugenia Fazio e Ana María Vara, o foco da análise recai sobre os pequenos agricultores da Argentina e sua posição em relação aos cultivos com Organismos Geneticamente Modificados (OGMs). Este estudo evidencia como as decisões desses agricultores são influenciadas pela expectativa de lucro e pela fácil adoção das práticas de cultivo de transgênicos. Entretanto, os autores ressaltam que o desconhecimento por parte dos agricultores sobre as possíveis implicações do cultivo de OGMs à saúde e ao ambiente faz com que tais questões não se tornem parte da argumentação desses produtores rurais. Na mesma direção, o artigo Trabalho rural, saúde e ambiente: as narrativas dos produtores de flor frente aos riscos socioambientais, escrito por Marina Favrim Gasparini e Carlos Machado de Freitas, discute o entendimento acerca do risco da atividade agrícola pelas lentes dos produtores de flores. Os autores argumentam que os ganhos econômicos da produção justificam a escolha desta atividade e recriam um discurso que minimiza, ou nega, o impacto negativo do uso de agrotóxicos nas práticas agrícolas sobre o ambiente e a saúde humana. A discussão contribui para o entendimento de como o risco é percebido, desconstruído e muitas vezes negado pelos atores em suas práticas produtivas.

Outros dois artigos que integram este volume abordam o tema do risco na perspectiva dos desastres naturais e resiliência e da adoção do Princípio de Precaução nas análises de impacto sobre a saúde humana. No artigo Impactos dos desastres naturais nos sistemas ambiental e socioeconômico: o que faz a diferença os autores Herlander Mata-Lima, Andreilcy Alvino-Borba, Adilson Pinheiro, Abel Mata-Lima e José Antônio Almeida argumentam que o capital social é fator-chave na redução da vulnerabilidade das comunidades afetadas por desastres naturais. Os autores ressaltam que políticas de redução da pobreza, melhoria do ensino e oportunidades de trabalho exercem impacto positivo no aumento da resiliência de comunidades frente aos desastres naturais.

O artigo Princípio da Precaução no Brasil após a Rio -92: impacto ambiental e saúde humana, de autoria de Guilherme Farias Cunha, Catia Regina Carvalho Pinto, Sergio Roberto Martins e Armando Borges de Castilhos Jr, discute a importância de aplicar o Princípio da Precaução nos estudos de impacto à saúde que integram os Estudos de Impacto Ambiental (EIA). Os autores argumentam que essa prática possibilita aos tomadores de decisão fazer uma avaliação precavida e qualitativa do risco de ocorrência de novas doenças no ambiente alterado pela instalação de empreendimentos causadores de impacto ambiental.

Os três artigos que encerram este volume da Revista A&S seguem na perspectiva de avaliar os mecanismos institucionais existentes com o objetivo de conferir maior eficiência na aplicação das políticas ambientais. O artigo de Veronica Korber Gonçalves, A inclusão da aviação no Esquema Europeu de Comércio de Carbono analisa o conflito decorrente da imposição de obrigações legais a companhias aéreas de países não membros da União Europeia. A autora argumenta que por um lado, essa decisão reflete o maior comprometimento da União Europeia e a resistência de países com uma agenda menos propositiva em relação às mudanças climáticas. Por outro lado, mostra como compromissos assumidos por uma região exercem impacto que ultrapassam suas fronteiras políticas, podendo levar a uma cenário de conflitos jurídicos causados pela falta de um acordo específico sobre esse tema.

O artigo Conservation polices and control of habitat fragmentation in the Brazilian Cerrado biome, de autoria de Roseli Ganem, José Augusto Drummond e José Luiz de Andrade Franco discute estratégias de conservação da biodiversidade do Cerrado e analisa o processo de fragmentação de seus habitats. Ao analisar a realidade das unidades de conservação existentes neste bioma, os autores argumentam que a falta de articulação de projetos desenvolvidos em um mesmo território resultam em desperdício de recursos e falta de efetividade das políticas públicas. Os autores sugerem que o Cerrado seja objeto de uma política de conservação específica, que integre diferentes setores da sociedade e poder público e fomente a conectividade de remanescentes de vegetação nativa desse bioma.

Por fim, o artigo A Construção de uma Arena Ambiental para a Conservação da Biodiversidade Marinha no Chile, escrito por Francisco Araos e Lucia da Costa Ferreira, aborda a importância da esfera local na criação de arranjos institucionais para a conservação da biodiversidade marinha, com repercussão em escala nacional. Os autores, a partir da perspectiva do conceito de arena ambiental, realizam uma análise histórica das instituições para identificarem como novas formas de atuação política descentralizadas levaram à construção de uma política que possibilitou a coexistência entre a conservação marinha e alternativas de desenvolvimento econômico.

Este volume também inclui duas resenhas. A primeira, de Manuela Kirschner do Amaral, analisa as contribuições do livro Sistema internacional de hegemonia conservadora: governança global e democracia na era da crise climática, de autoria de Eduardo Viola, Matías Franchini e Thaís Lemos. O livro discute a tensão entre a interdependência dos estados nacionais para lidar com as questões da mudança climática e a falta de cooperação entre eles, ao sobrepor a soberania às questões ambientais globais. A resenha de Alan Ainer Boccato-Franco versa sobre o livro Decrescimento em dez perguntas: perspectivas para o de bate social, econômico e ambiental. O conceito de decrescimento é apresentado como uma alternativa à discussão sobre sustentabilidade, inserindo ao debate novos entendimentos de como transformar as relações entre a sociedade e o ambiente.

Boa leitura a todos!

Pedro Roberto Jacobi e Vanessa Empinotti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2013
  • Data do Fascículo
    Set 2013
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