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RISCOS E GOVERNANÇA AMBIENTAL NA BAIXADA SANTISTA: POLÍTICAS CLIMÁTICAS OU GESTÃO DE DESASTRES?1 1 . O autor agradece o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.

BARBI, F. Environmental changes and political responses in the cities: The risks in Baixada Santista. Campinas: Editora da Unicamp, 2015

Em Mudanças Climáticas e respostas políticas nas cidades: os riscos na Baixada Santista, Fabiana Barbi apresenta uma proposta teórico-metodológica de análise do processo de internalização dos riscos das mudanças climáticas em termos de respostas políticas dos governos locais de cidades costeiras. O livro é resultado de sua pesquisa de doutorado - defendida em 2013 no programa Ambiente & Sociedade (NEPAM/UNICAMP) -, na qual a autora empreendeu um estudo de profundidade acerca das políticas de mitigação e adaptação às mudanças climáticas dos municípios da Região Metropolitana da Baixada Santista (RMBS), nas gestões realizadas entre 2004 e 2012.

A pesquisa orientou-se por um esforço interdisciplinar referenciado na “sociologia do risco”, nas ciências ambientais e na análise de políticas públicas. Do ponto de vista metodológico, a autora fundamentou seus argumentos numa articulação de dados primários e secundários que abrangeram a análise documental de políticas institucionais, entrevistas semiestruturadas com gestores públicos da RMBS e material bibliográfico sobre governança e mudanças climáticas. Os resultados desse trabalho confluíram para uma avaliação crítica das respostas políticas às mudanças climáticas que pode ser encarada tanto como uma contribuição aos estudos de sociologia ambiental quanto um relevante subsídio para o planejamento dos gestores públicos responsáveis pela formulação de políticas socioambientais.

O diagnóstico do problema toma por base o Quinto Relatório de Avaliação, publicado pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, que reforçou a conclusão de que o aquecimento global é inequívoco e a influência humana no sistema climático é evidente. Os impactos cumulativos da civilização teriam inaugurado o antropoceno como uma nova era geológica, na qual os subprodutos da atividade industrial passaram a colidir com os limites biofísicos do planeta (IPCC, 2013). Em síntese, o aumento do volume de emissões dos gases responsáveis pelo efeito estufa (GEE) - vinculado ao predomínio dos combustíveis fósseis nas matrizes energéticas, ao desmatamento florestal e à atividade agropecuária - tem provocado alterações na dinâmica atmosférica que podem ocasionar mudanças ecossistêmicas irreversíveis, caso não sejam realizadas transformações estruturais no atual paradigma de desenvolvimento.

Nesse sentido, a constatação de que as mudanças climáticas são consequências indesejáveis do processo de desenvolvimento da sociedade industrial e da dinâmica característica da globalização econômica está intimamente vinculada à estratégia delineada por Fabiana Barbi de enquadrar teoricamente sua investigação segundo os pressupostos da “sociologia do risco”. Por um lado, a autora apoia-se nas análises de Ülrich Beck (1992BECK, U. Risk Society: Towards a new modernity. Beverly Hills, Sage, 1992.) a respeito da ubiquidade dos riscos e dos dilemas que eles representam para a ação política, uma vez que o nível de complexidade da atividade humana não permite que a ciência esclareça de maneira unívoca todos os elos causais da interação entre sociedade e meio ambiente. Por outro lado, retoma-se a ideia de “mundo em descontrole”, formulada por Anthony Giddens (1991GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo, Ed. Unesp, 1991., 2005), segundo a qual os seres humanos desencadearam processos mais poderosos do que suas tentativas para controlá-los. Dessa forma, trata-se de discutir o posicionamento dos atores sociais frente às ameaças e incertezas dos riscos socialmente fabricados.

No plano da análise empírica, Fabiana Barbi decidiu ter a RMBS como foco de sua pesquisa em razão do alto grau de vulnerabilidade dessa região às mudanças climáticas. Por sua configuração geomorfológica de reentrância acentuada no domínio da Serra do Mar, suas características socioeconômicas peculiares e elevada densidade populacional, a RMBS apresenta grande exposição e suscetibilidade a riscos ambientais decorrentes ou intensificados pelas mudanças climáticas, como aumento do nível do mar, tempestades, enchentes, desmoronamentos e proliferação de doenças contagiosas associadas às alterações nos padrões de chuvas.

De acordo com estudos que projetam os cenários de aumento do nível do mar na região até 2100, o município de Santos aparece completamente alagado (inclusive a área portuária), exceto pelos morros e a área central da cidade, no cenário mais crítico de 1,5 m de elevação. As consequências seriam drásticas, prejudicando seriamente o sistema de drenagem de águas pluviais e o sistema de coleta de esgotos, além de comprometer as fontes de água doce, devido à intrusão salina em estuários e aquíferos (Berzin; Ribeiro, 2010BERZIN, G. & RIBEIRO, R. B. “O que os engenheiros precisam saber sobre a elevação do nível do mar e seus efeitos na Baixada Santista”. Trabalho apresentado no XXI Encontro Técnico Aesabesp, São Paulo, 10-12 de agosto de 2010.).

Além disso, a opção por centrar o eixo da investigação nas políticas públicas socioambientais em nível metropolitano está relacionada com o interesse teórico da autora pela investigação dos nexos entre democracia e governança climática. Na realidade, Fabiana Barbi sublinha que a eficácia das medidas de mitigação e adaptação às mudanças climáticas depende fundamentalmente da articulação “multinível” e “transetorial” das políticas públicas. Por essas razões, sua análise documental abrange desde a participação das cidades brasileiras em redes transnacionais de cooperação ambiental, a internalização da questão climática nos planos nacional (Política Nacional de Mudanças Climáticas) e estadual (Política Estadual de Mudanças Climáticas), bem como as soluções formuladas no nível local. Paralelamente, argumenta-se que o sucesso dessas políticas depende ainda da articulação horizontal entre os diferentes departamentos e secretarias para evitar que as políticas climáticas fiquem reduzidas a ações pontuais e insuficientes.

A perspectiva de governança multinível também diz respeito ao fato de que, apesar de os Estados nacionais permanecerem como atores relevantes em decorrência de suas atribuições concernentes ao planejamento energético e às negociações internacionais, as cidades possuem autonomia para promover reestruturações locais capazes de diminuir o volume de emissões de gases responsáveis pelo efeito estufa e, ao mesmo tempo, planejar o desenvolvimento urbano de maneira a aumentar sua resiliência frente aos riscos associados às mudanças climáticas. Exemplos concretos mencionados pela autora são as políticas de incentivo ao uso do transporte público e a construção de ciclofaixas, visto que, no Brasil, a maior parte da energia consumida pelo setor de transportes (71%) ainda é proveniente de combustíveis fósseis. Dessa forma, “um Estado centralizado torna-se cada vez menos necessário, uma vez que as populações dos núcleos urbanos podem resolver localmente muitos de seus problemas” (p. 81).

Segundo a definição da autora, as respostas políticas às mudanças climáticas devem ser entendidas como “qualquer ação tomada por qualquer ator governamental nos diversos níveis e setores de atuação para enfrentar as mudanças climáticas” (p. 52). Essas ações compreendem tanto as políticas de mitigação, que visam a reduzir o volume de emissões de GEE e, consequentemente, o ritmo e a magnitude dessas mudanças, quanto as ações de adaptação, que buscam tornar as cidades menos vulneráveis aos seus impactos. Assim, as distinções entre estratégias de mitigação e estratégias de adaptação possuem valor enquanto referenciais analíticos. No entanto, considerando-se que as mudanças climáticas já estão em curso, ambas são essenciais para a redução dos riscos das mudanças climáticas, e sua eficácia prática depende, em grande medida, da sinergia institucional que criam entre si.

As entrevistas realizadas por Fabiana Barbi com os representantes da prefeitura de Santos demonstraram que, em sua maioria, os agentes públicos percebem os efeitos das mudanças climáticas na região, sobretudo quanto aos riscos vinculados ao aumento do nível do mar e às mudanças no regime de chuvas. Por outro lado, a análise das estruturas político-institucionais revelou que, embora a cidade de Santos não possua um órgão específico para tratar a questão climática, o conjunto das secretarias e departamentos apresenta estruturas que contemplam todos os setores relevantes para a mitigação e adaptação às mudanças climáticas.

Com base nos dados levantados, realizou-se um mapeamento sistemático das políticas climáticas no município de Santos. Entre as medidas que podem ser classificadas como “mitigatórias”, foram elencadas a expansão de 21 km de ciclovias para 31 km entre 2009 e 2012, os programas de inspeção dos veículos de transporte coletivo (Programa ConscientizAR) e o Programa de Manutenção e Inspeção Ambiental Veicular para a Frota Municipal (2010), a instituição de incentivos para os chamados “edifícios verdes” (2011), o uso de painéis solares em uma escola municipal (2011), a determinação do novo Plano Diretor de 86% da área continental do município como espaço de proteção ambiental (2011), um Plano Municipal de Arborização que prevê o aumento do índice de área verde e a triplicação do volume da coleta seletiva entre 2001 e 2011. A autora ressalta, no entanto, os aspectos contraditórios dessas políticas, pois a expansão da atividade portuária implicou objetivamente a redução das áreas de preservação e proteção ambiental. Além disso, o sucesso da política de gerenciamento de resíduos sólidos pode ser relativizada, dado que em 2011 apenas 1,74% era destinado à coleta seletiva.

No que se refere às respostas “adaptativas”, destacaram-se o Programa Santos Novos Tempos e o Plano Municipal de Redução de Riscos (PMRR). O primeiro abrange uma série de obras de infraestrutura que têm como objetivo investir no desenvolvimento socioeconômico de algumas regiões de alta vulnerabilidade às mudanças climáticas. A zona noroeste, por exemplo, abrange 120 mil pessoas e possui um histórico de enchentes e alagamentos, mesmo quando não há chuvas intensas, por se tratar de uma área que se encontra abaixo do nível do mar. Já o PMRR foi concebido como uma ferramenta de diagnóstico e planejamento, que aponta medidas de intervenção para aumentar a segurança nas áreas de risco mapeadas.

Ao avaliar o teor dessas políticas, Fabiana Barbi reconhece que “o governo local de Santos apresenta esforços importantes [...] em direção à internalização da temática política das mudanças climáticas em sua agenda” (p. 190). Apesar disso, tais avanços ainda se mostrariam por demais incipientes, dado que o município não possui um inventário de emissões de GEE, nem tampouco um plano estratégico de ações para mitigá-las. No que tange às políticas adaptativas, a autora salienta que, embora o trabalho desenvolvido pela Defesa Civil de Santos seja referência para os demais municípios da região, há poucas medidas relativas à drenagem urbana e erosão costeira. Suas ações estão destinadas a lidar com os problemas urbanos já existentes e são orientadas, sobretudo, por um modelo de gestão dos desastres.

A fragilidade das respostas políticas às mudanças climáticas na RMBS refletiria a falta de um plano integrado de ação entre os municípios da região e de uma intervenção coordenada entre os diversos setores e esferas de poder. Dessa forma, as políticas locais abordariam os riscos climáticos de maneira apenas tangencial e sem reconhecer os cobenefícios das políticas mitigatórias e adaptativas para a reestruturação do atual modelo de desenvolvimento. Esses argumentos ganham contornos ainda mais nítidos quando se tem em mente a centralidade conferida à exploração das reservas de pré-sal da Bacia Tupi para o desenvolvimento futuro da região (GREENPEACE, 2013).

[...] os riscos das mudanças climáticas são produtos dos próprios processos de desenvolvimento das sociedades contemporâneas, o que implica questionar esses processos - coisa que as políticas climáticas ou relacionadas às mudanças climáticas nesta obra estão longe de lograr, ou seja, elas não vão ao cerne do problema, configurando-se apenas como paliativos que permitem manter os mesmos padrões de desenvolvimento conhecidos até aqui: poluidores e emissores de GEE (p. 215).

Por essas razões, Fabiana Barbi conclui que a política climática não é precisamente sobre o clima, mas sobre a transformação dos conceitos básicos e as instituições da sociedade contemporânea. Os resultados empíricos dessa investigação são interpretados à luz do “paradoxo de Giddens”, segundo o qual os governos pouco fazem de concreto em relação aos perigos trazidos pelo aquecimento global porque estes não são perceptíveis no curso da vida cotidiana, mas esperar até que os riscos se tornem tangíveis configura uma postura temerária que pode tornar as providências inócuas (GIDDENS, 2005).

De qualquer forma, o livro de Fabiana Barbi escapa à desesperança catastrofista e nos lembra de que os riscos também significam que podemos interferir nos nossos destinos. Estudos futuros que investiguem os nexos entre democracia e governança climática poderiam complementar o trabalho da autora, problematizando em que medida o aquecimento global tem sido pauta das eleições municipais. Isso seria relevante para definir se as políticas climáticas em nível local são minimamente ratificadas pelos eleitores ou mero fruto da decisão de gestores técnicos que prestam contas a políticos que venceram o pleito sem apresentar compromissos nítidos com a agenda climática. Dada a importância das eleições para a legitimação e consequente fortalecimento de um programa de ação coletivo, trata-se de investigar se é possível o desenvolvimento de políticas públicas que não se resumam à gestão dos desastres numa configuração em que as mudanças climáticas permanecem invisíveis ou marginais no debate eleitoral.

Bibliography:

  • BARBI, F . & FERREIRA, L. C. “Climate change in Brazilian cities: Policy strategies and responses to global warming”. International Journal of Environmental Science and Development, 4 (1), 49-51, 2013.
  • BECK, U. Risk Society: Towards a new modernity. Beverly Hills, Sage, 1992.
  • BERZIN, G. & RIBEIRO, R. B. “O que os engenheiros precisam saber sobre a elevação do nível do mar e seus efeitos na Baixada Santista”. Trabalho apresentado no XXI Encontro Técnico Aesabesp, São Paulo, 10-12 de agosto de 2010.
  • GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo, Ed. Unesp, 1991.
  • ________. Mundo em descontrole: O que é a globalização está fazendo de nós. Rio de Janeiro, Record, 2005.
  • GREENPEACE. “Point of no return: The massive climate threats we must avoid”. Available at <http://www.greenpeace.org/international/Global/international/publications/climate/2013/PointOfNoReturn.pdf>; acesso em 18/7/2013.
    » http://www.greenpeace.org/international/Global/international/publications/climate/2013/PointOfNoReturn.pdf
  • IPCC - International Panel on Climate Change. “Summary for policymakers”. Working Group I Contribution to the Fifth Assessment Report. Climate Change 2013: The Physical Science Basis, 2013.
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    . O autor agradece o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    01 Jul 2016
  • Aceito
    15 Mar 2017
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