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As águas subterrâneas e o direito à água em um contexto de crise

Resumo

A crise hídrica tende a intensificar o uso das águas subterrâneas, as quais garantem o abastecimento de quase metade da população brasileira. Apesar disso, sua gestão deixa a desejar. O artigo analisa o papel das águas subterrâneas e de sua gestão no atual contexto de crise hídrica e frente à necessidade de garantir o direito humano à água. A metodologia empregada é a análise documental da literatura especializada, legislação, documentos internacionais e relatórios governamentais. As fragilidades da gestão e a apropriação privada das águas subterrâneas à revelia das exigências legais ameaça a segurança hídrica. O foco da crise hídrica na ideia de escassez incentiva a busca de novas fontes, porém não combate as falhas estruturais do modelo de gestão. Assim, o uso dos aquíferos reflete os mesmos problemas que permitiram a degradação das águas superficiais, sendo agravado pelo seu caráter oculto e pela exploração clandestina.

Palavras Chave:
Crise hídrica; Águas subterrâneas; Direito humano à água; Gestão dos aquíferos; Abastecimento público

Abstract

The water crisis tends to intensify the use of groundwater, which supplies almost half of Brazilian population. Despite that, its management is precarious. The article analyses the role of groundwater and its management in the current context of water crisis and forward the need to ensure the human right to water. The methodology used is the documentary analysis of literature, legislation, international documents and governmental reports. The fragilities over management and the private appropriation of groundwater threaten water security. The water crises focus in the idea of scarcity stimulates the quest for new sources but does not face the structural flaws of the management models. So the use of aquifers reflects the same problems that have allowed the degradation of surface waters, which is aggravated by the hidden character and the irregular exploration.

Key words:
water crises, groundwater; human right to water; aquifer management; public water supply

Resumen

La crisis hídrica intensifica el uso de las aguas subterráneas, que garantizan el abastecimiento de casi mitad de la población brasileña. A pesar de eso su gestión deja a desear. El articulo analiza el rol de esas aguas y de su gestión en el actual contexto de crisis hídrica y frente la necesidad de garantizar el derecho humano al agua. La metodología utilizada es la análisis documental de la literatura especializada, legislación, documentos internacionales y informes gubernamentales. La fragilidad de la gestión y la apropiación privada à despecho de la ley amenaza la seguridad hídrica. El foco de la crisis hídrica centrado en la idea de escasez incentiva la búsqueda por nuevas fuentes, pero no combate las fallas estructurales del modelo de gestión. Así el uso de los acuíferos refleja los problemas que permitieron la degradación de las aguas superficiales, siendo agravados por su carácter oculto y la exploración clandestina.

Palabras clave:
crisis del agua; aguas subterráneas; derecho humano al agua; gestión de acuíferos; abastecimiento público

Introdução

As águas subterrâneas são fundamentais para o abastecimento público no Brasil (ANA, 2010ANA. Atlas Brasil. Abastecimento Urbano de Água. Brasília: ANA, 2010. Available at: http://atlas.ana.gov.br/Atlas/forms/Home.aspx. Consulted on: 29/04/2015.
http://atlas.ana.gov.br/Atlas/forms/Home...
). Apesar disso, a gestão ignorou seu caráter estratégico e priorizou os recursos superficiais. A crise de abastecimento dos últimos anos, marcada pelas imagens de reservatórios em níveis alarmantes e lançamento de esgotos contribuiu para trazer o tema do uso dos aquíferos.

O potencial subterrâneo se caracteriza por 181 aquíferos e sistemas aquíferos aflorantesi i Notas Para visualizar um mapa com todos esses aquíferos, consultar ANA, 2013, p. 55. , que se dividem em três domínios: fraturado, sedimentar e cárstico. Há 151 aquíferos sedimentares, que representam os maiores potências de exploração, por exemplo, pertencem a esse grupo: o Guarani, o Bauru-Caiuá, o Barreiras, o Urucaia/Areado, o Solimões, o Alter do Chão, o Açu, o Barreiras e o Beberibe. O domínio cárstico é formado por 26 aquíferos, dos quais se destaca o Bambuí e o Jandaíra. O domínio fraturado possui potencial hídrico reduzido e foi aglutinado em quatro grandes blocos: Sistema Aquífero Fraturado Semiárido, Sistema Aquífero Fraturado Norte, Sistema Aquífero Fraturado Centro-Sul e o Aquífero Serra Geral (ANA, 2013ANA. Conjuntura dos Recursos Hídricos no Brasil: 2013. Brasília: ANA, 2013. Available at: http://conjuntura.ana.gov.br/docs/conj2013_rel.pdf. Consulted on: 29/04/2015.
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, pp. 54-56).

A Figura 1 demonstra um mapa com as áreas de recarga dos principais aquíferos brasileiros (ANA, 2005ANA. Cadernos de Recursos Hídricos. Disponibilidade e Demandas de Recursos Hídricos no Brasil. Brasília: ANA, 2005. Available at: http://arquivos.ana.gov.br /planejamento/planos/pnrh/VF DisponibilidadeDemanda.pdf. Consulted on: 27/10/2014.
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). Essas zonas possuem maior vulnerabilidade à contaminação e permitem o reabastecimento do manancial.

Figura 1
Mapa ilustrativo da área de recarga dos principais sistemas aquíferos do país

O uso dos aquíferos se intensificou a partir da década de setenta e segue crescendo por diversos fatores: a) avanços da hidrogeologia e das técnicas de perfuração de poços; b) redução dos custos de extração; c) menor suscetibilidade climática; d) a qualidade das águas subterrâneas; e) o aumento da demanda; e f) a degradação das águas superficiais, (REBOUÇAS, 2006REBOUÇAS, A. C. Águas Subterrâneas. In: REBOUÇAS, A. C; BRAGA, B; TUNDISI, J.G. (Orgs). Águas doces no Brasil: Capital ecológico, uso e conservação. 3. ed. São Paulo: Escrituras editora, 2006.).

Apesar de décadas de exploração, sua governança é precária. A gestão dos aquíferos enfrenta dificuldades, o que os expõe à superexploração e à poluição, bem como faltam redes de monitoramento e dados sobre os limites, litologia, qualidade das águas, volume das reservas, taxas de uso, usuários e vulnerabilidade (GOETTEN, 2015GOETTEN, W. J. Avaliação da Governança da Água Subterrânea nos Estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Blumenau. 2015. 317f. Dissertação (Mestrado em Engenharia Ambiental) - Engenharia Ambiental, Fundação Universidade Regional de Blumenau.). A situação se agrava diante da percepção privada da água subterrânea, o que fomenta a perfuração de poços à revelia das exigências legais, compromete os direitos outorgados e aumenta o risco de escassez.

A ideia de crise hídrica vai além do problema da escassez de água (TROTIER, 2008) e abarca a convergência de falhas de sustentabilidade, de governança, de iniquidade no acesso e de instituições democráticas (AGUDO, 2010AGUDO, P. A. Crisis Global del Agua: valores y derechos en juego. Cuadernos nº 168. Barcelona: Centre d'estudis Cristianisme i Justícia, 2010. Available at: https://www.cristianismeijusticia.net/es/crisis-global-del-agua-valores-y-derechos-en-juego. Consulted on: 25/10/2015.
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). O comprometimento das reservas hídricas gera conflitos e prejudica o acesso à água, especialmente das populações mais pobres (AGUDO, 2010AGUDO, P. A. Crisis Global del Agua: valores y derechos en juego. Cuadernos nº 168. Barcelona: Centre d'estudis Cristianisme i Justícia, 2010. Available at: https://www.cristianismeijusticia.net/es/crisis-global-del-agua-valores-y-derechos-en-juego. Consulted on: 25/10/2015.
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). Por isso, diversos atores sociais defendem o direito humano à água com o objetivo de: a) garantir a prioridade do abastecimento humano em detrimento dos usos econômicos; b) criar obrigações para os Estados de forma a assegurá-lo; e c) impedir a privatização dos serviços de abastecimento de água (CASTRO, 2007CASTRO, J. E. Water Governance in the twentieth-first century. Ambiente e sociedade, v. 10, n 2, 2007.).

Dito isso, o artigo analisa o papel das águas subterrâneas e de sua gestão no atual contexto de crise hídrica e frente à necessidade de garantir o direito à água. Sua estrutura se divide em quatro partes. Na primeira se examina a ideia da crise hídrica e o progressivo reconhecimento do direito humano à água; na segunda se discute o papel das águas subterrâneas no abastecimento público e as deficiências de sua gestão; na terceira se analisam as implicações do uso irregular; por fim, têm-se as conclusões. A metodologia empregada foi a análise qualitativa da literatura, de relatórios governamentais, da legislação e de documentos internacionais.

Da crise hídrica à construção do ideal de direito humano à água

A noção de crise hídrica surge no início dos anos noventa (POSTEL, 1992POSTEL, S. Last Oasis, W.W. Norton & Co., London & New York. 1992.; GLEICK, 1993GLEICK, P. Water in Crisis: A Guide to the World's Fresh Water Resources. Oxford University Press, New York. 1993.) e, desde então, ganha força na literatura científica, nas organizações internacionais e na concepção das políticas de gestão hídrica. De forma geral, essa discussão abarca uma coleção de crises localizadas territorialmente, que se relacionam: a) ao acesso e uso da água; b) à disponibilidade de reservas hídricas; e c) à degradação das águas (LALL et al., 2008LALL, U et al. Water: A Global Challenge : Water in the 21st Century: Defining the Elements of Global Crises and Poten-tial Solutions. Journal of International Affairs, v. 61, n. 2, p. 1-17, 2008.). Essas dimensões estão vinculadas e se interconectam com outros problemas ambientais, que podem deflagrar ou influenciar outras crises (alimentar, energética, ecológica e produtiva) com consequências sociais, políticas e econômicas distintas e imprevisíveis (VILLAR, 2015VILLAR, P. C. Aquíferos Transfronteiriços: Governança das Águas e o Aquífero Guarani. Curitiba: Juruá, 2015.).

A construção social da ideia de crise hídrica se fortalece na medida em que a água é vista como recurso escasso, incapaz de atender as múltiplas demandas e por isso capaz de gerar conflitos (TROTTIER, 2008TROTTIER, J. Water crises: political construction or physical reality. Contemporary Politics, v. 14, n. 2, p. 197-214, 2008.). A falta de saneamento adequado, a poluição industrial e agrícola, o rápido processo de urbanização, a desigualdade na distribuição da água, as mudanças climáticas, o aumento da população e do consumo contribuem para essa percepção, pois são as principais causas de sua degradação (OHRE et al, 2007OHRE; AAAS; SDC; UN-HABITAT. Manual on the Right to Water and Sanitation. Geneva: 2007. Available at: http://www.worldwatercouncil.org/fileadmin/wwc/ Programs/Right_to_Water/Pdf_doct/RTWP__20Manual_RTWS_Final.pdf. Consulted on: 23/10/2015.
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). Apesar de comprometer as águas, esses fatores são incentivados pela irresponsabilidade dos governos, pela falta de democracia no processo de decisão e pela lógica de livre mercado. Além dos danos ambientais, essa postura gera perdas sociais, como a iniquidade no acesso aos recursos e a pobreza (AGUDO, 2010AGUDO, P. A. Crisis Global del Agua: valores y derechos en juego. Cuadernos nº 168. Barcelona: Centre d'estudis Cristianisme i Justícia, 2010. Available at: https://www.cristianismeijusticia.net/es/crisis-global-del-agua-valores-y-derechos-en-juego. Consulted on: 25/10/2015.
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).

A racionalidade econômica e científica apostou em um modelo de produção excludente que ignora limites naturais, persegue o crescimento contínuo e permite a degradação das águas, independente das consequências ao ambiente, à sociedade e às futuras gerações. A degradação das reservas hídricas se caracteriza por um "processo de depreciação na quantidade ou qualidade dos recursos hídricos provocado pela ação do homem, por meio da modificação de fatores climáticos ou ambientais, pela poluição ou ainda pelo uso insustentável" (VILLAR, 2015VILLAR, P. C. Aquíferos Transfronteiriços: Governança das Águas e o Aquífero Guarani. Curitiba: Juruá, 2015., pp. 29-30). As reservas locais se exaurem ou se tornam insuficientes para atender a demanda, exigindo novos mananciais ou a transposição de água de outras bacias.

As populações mais pobres são as mais vulneráveis nesse processo, pois a falta de capital e técnica limita sua capacidade de atuar no plano político e de enfrentar as transformações ambientais (AGUDO, 2010AGUDO, P. A. Crisis Global del Agua: valores y derechos en juego. Cuadernos nº 168. Barcelona: Centre d'estudis Cristianisme i Justícia, 2010. Available at: https://www.cristianismeijusticia.net/es/crisis-global-del-agua-valores-y-derechos-en-juego. Consulted on: 25/10/2015.
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; ALIER, 2007ALIER, J. M. O ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e linguagens de valoração. São Paulo: Contexto, 2007.). Seu sustento depende diretamente dos recursos ambientais, portanto a degradação das águas significa a desestruturação das condições materiais de sua existência (ALIER, 2007ALIER, J. M. O ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e linguagens de valoração. São Paulo: Contexto, 2007.).

Os aquíferos assumem um papel fundamental na segurança hídrica mundial, pois representam a principal fonte disponível para a humanidade (SHIKLOMANOV; RODDA, 2003SHIKLOMANOV, I. A.; RODDA, J. C. (Eds.). World water resources at the be-ginning of the 21st centuryCambridge, UK: UNESCO International Hydrology Series, 2003.). Sua superexploração e contaminação comprometem os ecossistemas e o abastecimento humano. Esse cenário dificulta a meta de conseguir água potável e garantir a universalização do acesso, o que é um desafio reconhecido pela comunidade internacional desde a década de setenta (CASTRO, 2007CASTRO, J. E. Water Governance in the twentieth-first century. Ambiente e sociedade, v. 10, n 2, 2007.). Apesar dos esforços internacionais, estima-se que 750 milhões de pessoas continuam sem acesso à água, o que repercute negativamente nas condições de saúde, desenvolvimento e dignidade (WHO; UNICEF, 2014WHO; UNICEF. Progress on Drinking Water and Sanitation 2014 Update. Geneva: WHO, 2014.).

O agravamento da crise hídrica tende a prejudicar os avanços obtidos no acesso à água e aumentar o número de excluídos hídricos ou os conflitos entre usuários. Além disso, estimula a privatização dos serviços de abastecimento sob o argumento da eficiência do mercado, ainda que a prática não o corrobore (BUDDS; MCGRANAHAN, 2003BUDDS, J.; MCGRANAHAN, G. 2003. Are the Debates on Water Privatization Missing the Point? Experiences from Africa, Asia and Latin America. Environment and Urbanization, v. 15, n. 2, oct. 2003. p. 87-113.). Como reação a esse quadro surge a mobilização de diversos atores nacionais e internacionais que buscam o reconhecimento do acesso à água e ao saneamento como um direito humano (CASTRO, 2007CASTRO, J. E. Water Governance in the twentieth-first century. Ambiente e sociedade, v. 10, n 2, 2007.).

As conferências internacionais e seus documentos corroboram a intrínseca relação entre água, meio ambiente e saúde, o que ajudou a fortalecer a conexão entre o acesso à água e os Direitos Humanos (MCCAFFREY, 2004MCCAFFREY, S. C. The Human Right to Water Revisited. Water and International Economic: Oxford University Press, 2004.). Essa ideia foi reafirmada por movimentos sociais contrários à privatização dos serviços de abastecimento e pelo seu reconhecimento como direito fundamental em diversos países (BUDDS; MCGRANAHAN, 2003BUDDS, J.; MCGRANAHAN, G. 2003. Are the Debates on Water Privatization Missing the Point? Experiences from Africa, Asia and Latin America. Environment and Urbanization, v. 15, n. 2, oct. 2003. p. 87-113.).

O direito humano a água não foi explicitamente reconhecido na Carta Internacional de Direitos Humanos, contudo ele pode ser interpretado como parte integrante do direito à vida, o de desfrutar de um nível de vida adequado à saúde e ao bem estar humano, o da proteção contra doenças e do acesso a uma alimentação adequada (DUPUY, 2006DUPUY, P. M. Le droit à l'eau, um droit international. European University Institute. Working Paper. Law n° 2006/06. Italy: European University Institute, 2006. Available at: http://www.iue.it/PUB/LawWPs/law2006-06.pdf. Consulted on: 20/01/2009.
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). Suas bases históricas se encontram no direito humanitário, que buscava garanti-lo aos grupos considerados vulneráveis, tais como, mulheres, crianças e prisioneiros (DUPUY, 2006DUPUY, P. M. Le droit à l'eau, um droit international. European University Institute. Working Paper. Law n° 2006/06. Italy: European University Institute, 2006. Available at: http://www.iue.it/PUB/LawWPs/law2006-06.pdf. Consulted on: 20/01/2009.
http://www.iue.it/PUB/LawWPs/law2006-06....
).

Sua conformação como um direito humano no plano internacional ganhou força graças a três documentos: a Observação Geral nº 15 (2002) do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; a Resolução nº 64/292 (2010) da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU), que contou com o voto favorável do Brasil; e a Resolução nº 15/9 (2010) aprovada pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (CDHNU) (WOLKMER; MELO, 2013WOLKMER, M. F. S; MELO, M. P. O Direito Fundamental à água: convergências no plano internacional constitucional. In: MORAES, G. O.; MARQUES JÚNIOR; W. P; MELO, A. J. M. As águas da UNASUL na Rio+20. Curitiba: CRV, 2013. p. 11-24.). Desde então, o CDHNU e a AGNU reafirmam o dever dos Estados na realização progressiva desse direitoii ii Ver Res. AGNU 68/157 (18/12/2013) e Res. CDH nº: 15/9 (30/09/2010); 16/2 (24/03/2011); 18/1 (28/09/2011); 21/2 (27/09/2012); 24/18 (27/09/2013); e 27/7 (25/09/2014). Disponível em: http://www. ohchr.org/EN/Issues/WaterAndSanitation/SRWater/Pages/Resolutions.aspx. Acesso: 03/10/2015. .

Tais instrumentos não são vinculantes e há distinções em como esse direito é entendido ou detalhado, porém eles convergem no sentido de: a) estimular ações governamentais para a universalização do acesso à água potável; b) buscar transformar o acesso à água em uma obrigação jurídica; e c) fortalecer a gestão das águas como forma de garantir esse direito (GUPTA, AHLERS, AHMED, 2010GUPTA, J; AHLERS, R; AHMED, L. The Human Right to Water: Moving Towards Consensus in a Fragmented World. RECIEL, 19, n.3, 2010. p. 294-305.; WOLKMER; MELO, 2013WOLKMER, M. F. S; MELO, M. P. O Direito Fundamental à água: convergências no plano internacional constitucional. In: MORAES, G. O.; MARQUES JÚNIOR; W. P; MELO, A. J. M. As águas da UNASUL na Rio+20. Curitiba: CRV, 2013. p. 11-24.). Por sua vez, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito dos Usos dos Cursos de Água Internacionais para Fins Distintos da Navegação ressalva a necessidade de se prestar especial atenção às necessidades humanas vitais (art. 10, § 2º).

O Brasil não o reconheceu expressamente no plano nacional, porém o art. 1º, inciso III da Lei Federal nº 9.433/1997 prevê que o consumo humano e a dessedentação de animais detêm o uso prioritário em situações de escassez. Vários estudos consideram o acesso à água potável e ao saneamento como um direito fundamental incluso na cláusula pétrea da dignidade humana (art. 1°, III da Constituição Federal) (MIRANDOLA; SAITO, 2006MIRANDOLA, C. M. S.; SAMPAIO, L. S. Universalização do direito à água. In: BARRAL, W.; PIMENTEL, L. O. (orgs.). Direito Ambiental e desenvolvimento. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006.; FACHIN, SILVA, 2011FACHIN, Z; SILVA, D. M. Acesso à Água Potável: Direito Fundamental de Sexta Dimensão. Campinas: Millennium. 2011.; FLORES, 2011FLORES, K. M. O Reconhecimento da Água como Direito Fundamental e suas Implicações. Revista da Faculdade de Direito da UERJ, v.1, n. 19, jun./dez 2011.; WOLKMER; MELO, 2013WOLKMER, M. F. S; MELO, M. P. O Direito Fundamental à água: convergências no plano internacional constitucional. In: MORAES, G. O.; MARQUES JÚNIOR; W. P; MELO, A. J. M. As águas da UNASUL na Rio+20. Curitiba: CRV, 2013. p. 11-24.; VILLAR, 2013VILLAR, P. C. Conflitos pela água e o Direito Humano à água e ao saneamento. In: Wagner Costa Ribeiro. (Org.). Conflitos e cooperação pela água na América Latina. 1ed.São Paulo: Annablume/PPGH, 2013, v. 1, p. 21-34).

O Brasil alcançou o Objetivo de Desenvolvimento do Milênio (ODM) para a redução do número de pessoas sem acesso à água (WHO; UNICEF, 2014WHO; UNICEF. Progress on Drinking Water and Sanitation 2014 Update. Geneva: WHO, 2014.), porém a qualidade da água distribuída preocupa. Segundo o Plano Nacional de Saneamento Básico, "aproximadamente 38 milhões de brasileiros receberam água em suas residências [...] que não atendiam plenamente ao padrão de potabilidade estabelecido pela Portaria nº 2.914/11 do Ministério da Saúde" (BRASIL, 2013, p. 32).

A Pesquisa Nacional de Saneamento Básico revelou que apenas 52,2% dos municípios possui rede geral de esgoto e somente 28,5% faz tratamento do seu esgoto, bem como falta rede coletora de esgoto em 2.495 municípios (IBGE, 2010IBGE. Pesquisa Nacional de Saneamento Básico. Rio de Janeio: IBGE, 2010., p. 47). Segundo a WHO e UNICEF (2014)WHO; UNICEF. Progress on Drinking Water and Sanitation 2014 Update. Geneva: WHO, 2014., em 2014, 19% da população brasileira não tinha acesso a sistemas adequados de saneamento, o que coloca o país entre os piores no ranking.

A deterioração das fontes hídricas ameaça as conquistas no acesso à água e reforça a necessidade de investir em saneamento. A maioria das regiões hidrográficas federais apresenta algum trecho com criticidade qualitativa e/ou quantitativa (Portaria ANA nº 62/2013), o mesmo ocorre com as bacias estaduais. A degradação das águas superficiais e as mudanças climáticas tendem a aumentar a extração das águas subterrâneas (ANA, 2015ANA. Conjuntura dos Recursos Hídricos: Informe 2014. Brasília: ANA, 2015. Available at: http://conjuntura.ana.gov.br/docs/conj2014_inf.pdf. Consulted on: 29/04/2015.
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).

Os aquíferos são reservas de água constituídas em tempos passados que amenizam a percepção de crise hídrica nos territórios, pois dão a ilusão de fartura a um sistema produtivo perverso. Ao mesmo tempo que se aumenta a demanda por água, se permite a degradação de um patrimônio ambiental construído ao longo de anos, séculos e milênios. A extração acima da taxa de recarga ou de reservas fósseisiii iii Nos aquíferos fósseis, a extração equivale a sua mineração pois a recarga é prejudicada pela estrutura geológica ou pelas condições climáticas. provoca um déficit hídrico futuro local, já a contaminação causa um passivo que inviabilizará recursos escassos para as gerações presentes e futuras (VILLAR, 2015VILLAR, P. C. Aquíferos Transfronteiriços: Governança das Águas e o Aquífero Guarani. Curitiba: Juruá, 2015.).

O reconhecimento do direito humano à água contribui para o enfrentamento da crise hídrica pois priorizaria o uso dessas reservas sensíveis e de melhor qualidade para o atendimento das necessidades humanas vitais, ou seja, aquelas que se destinam a sobrevivência, higiene pessoal, saúde e alimentação (AGUDO, 2010AGUDO, P. A. Crisis Global del Agua: valores y derechos en juego. Cuadernos nº 168. Barcelona: Centre d'estudis Cristianisme i Justícia, 2010. Available at: https://www.cristianismeijusticia.net/es/crisis-global-del-agua-valores-y-derechos-en-juego. Consulted on: 25/10/2015.
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). Além disso, esse direito gera responsabilidades para os Estados que devem promover uma melhor gestão como meio de garantir o acesso universal à água potável, principalmente das populações pobres (AGUDO, 2010AGUDO, P. A. Crisis Global del Agua: valores y derechos en juego. Cuadernos nº 168. Barcelona: Centre d'estudis Cristianisme i Justícia, 2010. Available at: https://www.cristianismeijusticia.net/es/crisis-global-del-agua-valores-y-derechos-en-juego. Consulted on: 25/10/2015.
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). Infelizmente, os instrumentos de gestão das políticas nacional e estaduais não tem conseguido incluir os aquíferos a contento e falta transparência no seu uso (GOETTEN, 2015GOETTEN, W. J. Avaliação da Governança da Água Subterrânea nos Estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Blumenau. 2015. 317f. Dissertação (Mestrado em Engenharia Ambiental) - Engenharia Ambiental, Fundação Universidade Regional de Blumenau.).

A hidroesquizofrenia da gestão e o uso das águas subterrâneas

As águas subterrâneas se tornaram um recurso fundamental para o abastecimento e outros usos no Brasil (ANA, 2012ANA. Conjuntura dos Recursos Hídricos no Brasil. Informe 2012. Ed. Especial. Brasília: ANA. 2012. Available at: http://www2.ana.gov.br/Paginas/default.aspx. Consulted on: 4 fev. 2013.
http://www2.ana.gov.br/Paginas/default.a...
). Apesar disso, as políticas públicas e o direito ignoraram essa fonte hídrica e sua conexão com as águas superficiais. Esse descaso é denominado na literatura de hidroesquizofrenia (JARVIS et al., 2005JARVIS, T. W. et al. International borders, groundwater flow and hydroschizophrenia. Ground water, v. 43, n. 5, p. 764-770, 2005.), pois o principal recurso hídrico disponível para a humanidade foi excluído ou não foi contemplado adequadamente pelos governos, gestores e atores sociais.

As reservas subterrâneas brasileiras se encontram em avaliação. Sua disponibilidade estimada é de 11.430 m³/s (reserva explotável), número consideravelmente inferior à disponibilidade superficial de 91.300 m³/s (ANA, 2015ANA. Conjuntura dos Recursos Hídricos: Informe 2014. Brasília: ANA, 2015. Available at: http://conjuntura.ana.gov.br/docs/conj2014_inf.pdf. Consulted on: 29/04/2015.
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, p.29). Elas não representam a solução da crise hídrica, mas são uma fonte importante, principalmente para o abastecimento público e consumo humano (BERTOLO et al., 2015BERTOLO R. et al. Água subterrânea para abastecimento público na Região Metropolitana de São Paulo: é possível utilizá-la em larga escala? Revista DAE, v. 63, maio-agosto, 2015, p. 6-18.).

Apesar da carência de dados, se considera que a maioria dos aquíferos mantêm suas características preservadas (ANA, 2007aANA. Panorama de Qualidade das Águas Subterrâneas. Brasília: ANA, 2007a. Available at: http://pnqa.ana.gov.br/Publicacao/PANORAMA_DO_ ENQUADRAMENTO.pdf. Consulted on: 29/04/2015.
http://pnqa.ana.gov.br/Publicacao/PANORA...
). Porém, falta muito para uma exploração segura ou uma gestão eficiente que os proteja da superexploração, poluição, intrusão salina e impermeabilização das áreas de recarga.

A superexploração rebaixa os níveis hídricos; diminui a capacidade de armazenamento do aquífero; compromete a qualidade da água pela intrusão salina ou de contaminantes presentes em aquíferos rasos; causa subsidência; reduz a disponibilidade hídrica superficial e provoca a perda de ecossistemas. No Brasil, ela ocorre principalmente em aquíferos com baixas reservas explotáveis como o Beberibe, Inajá, Exu e Missão Velha, que não têm como atender a demanda imposta no longo prazo (ANA, 2007bANA. Disponibilidade e Demandas de Recursos Hídricos no Brasil. Brasília: ANA, 2007b. Available at: http://arquivos.ana.gov.br/planejamento/estudos/ sprtew/2/2-ANA.swf. Consulted on: 3/03/2013.
http://arquivos.ana.gov.br/planejamento/...
). Porém, também atinge grandes aquíferos, esse é o caso do município de Ribeirão Preto que explora o aquífero Guarani e criou uma zona de restrição à perfuração de novos poços (VILLAR; RIBEIRO, 2009VILLAR, P. C; RIBEIRO, W. C. Sociedade e gestão do risco: o aquífero Guarani em Ribeirão Preto-SP, Brasil. Revista de Geografía Norte Grande, p. 51-64, 2009.).

A contaminação dos aquíferos é causada por diversas atividades antrópicasiv iv Informações sobre fontes de contaminação ver Foster e Hirata (1991). As principais são: perdas na rede de esgoto; represas de resíduos industriais; aterros e lixões; fossas sépticas; despejo de lodo de esgoto; poços de despejo por injeção; agroquímicos, mineração e vazamentos de tanques. e é agravada por não ser prontamente detectada. A despoluição é um processo caro, complexo e na maioria dos casos não é capaz de reverter os danos (ZEKTSER; EVERETT, 2004ZEKTSER, I. S.; EVERETT, L. Groundwater Resources of the world and their use. IHP-VI, Series on Groundwater. UNESCO, n. 6, 2004.). A poluição impõe medidas de restrição à captação de águas subterrâneas, como é o caso da região do Jurubatuba (Bacia do Alto Tietê) (ANA, 2007aANA. Panorama de Qualidade das Águas Subterrâneas. Brasília: ANA, 2007a. Available at: http://pnqa.ana.gov.br/Publicacao/PANORAMA_DO_ ENQUADRAMENTO.pdf. Consulted on: 29/04/2015.
http://pnqa.ana.gov.br/Publicacao/PANORA...
; SÃO PAULO, 2009SÃO PAULO. Secretaria de Estado do Meio Ambiente. Secretaria de Estado de Saneamento e Energia. Projeto Jurubatuba: restrição e controle de uso de água subterrânea / Departamento de Águas e Energia Elétrica, Instituto Geológico, Secretaria de Estado do Meio Ambiente. Secretaria de Estado de Saneamento e Energia. - São Paulo : DAEE/IG, 2009.). Apesar dessa situação, os aquíferos paulistas apresentam boas condições de potabilidade, porém se percebe uma queda gradual nos índices de qualidade (CETESB, 2013CETESB. Qualidade das águas subterrâneas do estado de São Paulo 2010-2012. São Paulo: CETESB, 2013.). Ou seja, apesar do quadro de crise regional, se permite a degradação de uma fonte hídrica.

No Brasil, a União é a responsável por editar as normas gerais de aplicação nacional sobre águas, enquanto cabe aos Estados a sua regulamentação de forma a permitir a aplicação no âmbito estadual. As águas subterrâneas, independentemente de seus limites, estão sob o domínio exclusivo dos Estados (art. 26, I da Constituição Federal). Portanto, cabe aos estados colocar em prática a gestão integrada das águas subterrâneas (CAMARGO; RIBEIRO, 2009CAMARGO, E.; RIBEIRO, E. A proteção jurídica das águas subterrâneas no Brasil. In: RIBEIRO, W. C. Governança da água no Brasil: uma visão interdisciplinar. São Paulo: Annablume, FAPESP, CNPq. 2009.).

No plano federal foram editados diversos atos normativos para incluir as águas subterrâneas na gestãov v Pode-se destacar as Resoluções do Conselho Nacional de Recursos Hídricos nsº 15/2001, 17/2001; 22/2002, 76/2007; 91/2008; 92/2008; 107/2010; e 126/2011 e a Resolução CONAMA 396/2008. e programas específicos, como a Agenda Nacional de Águas Subterrâneasvi vi Trata-se de uma iniciativa da Agência Nacional de Águas para fomentar o conhecimento hidrogeológico, técnico-gerencial e de capacitação específica em águas subterrâneas. Informações em: http://www2.ana.gov.br/Paginas/projetos/AguasSubterraneas.aspx. Acesso: 23/03/2015. e o Programa Nacional de Águas Subterrâneasvii vii O programa se divide em 3 subprogramas: Ampliação do Conhecimento Hidrogeológico; Desenvolvimento dos Aspectos Institucionais e Legais; e Capacitação, Comunicação e Mobilização Social. Disponível em: http://www.mma.gov.br/index.php/agua/recursos-hidricos. Acesso: 23/05/2015. . Porém, falta uma atuação mais presente da esfera federal para apoiar e capacitar os Estados no tocante às águas subterrâneas (CAMARGO; RIBEIRO, 2009CAMARGO, E.; RIBEIRO, E. A proteção jurídica das águas subterrâneas no Brasil. In: RIBEIRO, W. C. Governança da água no Brasil: uma visão interdisciplinar. São Paulo: Annablume, FAPESP, CNPq. 2009.).

No plano estadual, a aplicação dos instrumentos previstos na Lei Federal nº 9.433/1997 enfrenta problemas. O enquadramento das águas subterrâneas em classes segundo os usos preponderantes (art. 9º e 10 da Lei Federal nº 9.433/1997 e Resolução CONAMA nº 396/2008) não saiu do papel. Os planos de recursos hídricos (art. 7º, 8º e 9º) têm dificuldades para incluir as águas subterrâneas diante da falta de: a) redes de monitoramento piezométrico, b) redes de monitoramento de qualidade da água, c) bases de dados de prospecção geofísica e geológicas, d) aplicação de modelos numéricos para a gestão dos aquíferos, e) estatísticas confiáveis sobre uso da água (GOETTEN, 2015GOETTEN, W. J. Avaliação da Governança da Água Subterrânea nos Estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Blumenau. 2015. 317f. Dissertação (Mestrado em Engenharia Ambiental) - Engenharia Ambiental, Fundação Universidade Regional de Blumenau.). Sem esses dados dificilmente os planos de bacia poderão propor estratégias para a gestão dos aquíferos e nortear o seu uso. Esse cenário prejudica a aplicação de outros instrumentos, como a outorga, que é emitida sem a dimensão dos volumes existentes ou o monitoramento dos impactos da extração.

A exploração das águas subterrâneas está sujeita à obtenção de outorga de uso de recursos hídricos perante o órgão competente (art. 12). Por meio desse instrumento, o Poder Público atribui ao interessado, público ou privado, o direito de utilizar o recurso hídrico por um período pré-determinado e segundo as condições estabelecidas (ANA, 2015ANA. Conjuntura dos Recursos Hídricos: Informe 2014. Brasília: ANA, 2015. Available at: http://conjuntura.ana.gov.br/docs/conj2014_inf.pdf. Consulted on: 29/04/2015.
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). No caso de usos isentos de outorga (art. 12, § 1º da Lei 9.433/1997), de forma geral, a legislação estadual exige que o proprietário cadastre seu poço no órgão competente, o qual certifica o uso isento (SILVA et al, 2008SILVA, M. M. A; HOLZ, J. FAIÃO, D.; FREIRE, C.C. A outorga de direito do uso da água subterrânea nos estados brasileiros. IN: Congresso Brasileiro de Águas Subterrâneas XV, 2008. Natal. Anais... São Paulo: ABAS. 2008, CD.).

Apesar dessas exigências, as estatísticas sobre a extração das águas subterrâneas são precárias. Segundo a ANA (2013) há 225.868 poços cadastrados, porém se estima que existam pelo menos 476.960. A maioria dos usuários das águas subterrâneas está em condição irregular, pois não possui outorga de recursos hídricos ou declaração de uso isento. A diferença entre os poços cadastrados e a realidade é significativa e implica reconhecer que o Brasil não sabe quanta água subterrânea extrai, nem os efeitos desse uso para os usuários outorgados, para os mananciais superficiais ou subterrâneos e nos ecossistemas.

A cobrança pelo uso dos recursos hídricos depende de regulamentação na maioria das bacias hidrográficas estaduais (ANA, 2015ANA. Conjuntura dos Recursos Hídricos: Informe 2014. Brasília: ANA, 2015. Available at: http://conjuntura.ana.gov.br/docs/conj2014_inf.pdf. Consulted on: 29/04/2015.
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), ou seja, os usuários se apropriam de um recurso de domínio público sem prestar qualquer contrapartida social. Quando existe, a cobrança é prejudicada pelo número de poços clandestinos. Sua efetiva aplicação permitiria obter recursos para investir na produção de dados ou obras de infraestrutura relacionadas às águas, como por exemplo melhorias no sistema de saneamento.

Por fim, na esfera federal se construíram sistemas de informação distintos para as águas superficiais (Sistema Nacional de Informações sobre Recursos Hídricos - SNIRH) e subterrâneas (Sistema de Informações de Águas Subterrâneas, SIAGAS). O SIAGAS, controlado pelo Serviço Geológico do Brasil (CPRM), tem uma interface complexa e não há muitos dados disponíveisviii viii Informações em: http://siagasweb.cprm.gov.br/layout/. Acesso: 23/03/2015. . Destaca-se ainda a necessidade de integrar esses dois sistemas, bem como coordená-los com os outros sistemas de informação ambientais.

Além da falta de conhecimento e das dificuldades para aplicar os instrumentos previstos na Lei nº 9.433/1997, a gestão das águas subterrâneas enfrenta dois desafios: a falta de mobilização social em grande parte justificada pelo caráter oculto e técnico dos aquíferos; e a naturalidade que se trata sua apropriação à revelia das exigências legais (BOHN; GOETTEN; PRIMO, 2014BOHN, N; GOETTEN, W. J.; PRIMO, A. P. Governança da água subterrânea no Estado do Rio Grande do Sul. REGA, Vol. 11, no. 1, p. 33-43, jan./jun. 2014.; VILLAR, 2015VILLAR, P. C. Aquíferos Transfronteiriços: Governança das Águas e o Aquífero Guarani. Curitiba: Juruá, 2015.). Se esses problemas não forem enfrentados ter-se-á a degradação de mananciais essenciais para o cumprimento do direito humano à água e o agravamento da crise hídrica.

Os aquíferos são utilizados no abastecimento público inclusive em estados com alta disponibilidade superficial, como mostra a Tabela 1, que expõe a participação dos mananciais no abastecimento urbano municipal (ANA, 2010ANA. Atlas Brasil. Abastecimento Urbano de Água. Brasília: ANA, 2010. Available at: http://atlas.ana.gov.br/Atlas/forms/Home.aspx. Consulted on: 29/04/2015.
http://atlas.ana.gov.br/Atlas/forms/Home...
). Os dados foram obtidos no Atlas Brasil Abastecimento Urbano de Água (ANA, 2010ANA. Atlas Brasil. Abastecimento Urbano de Água. Brasília: ANA, 2010. Available at: http://atlas.ana.gov.br/Atlas/forms/Home.aspx. Consulted on: 29/04/2015.
http://atlas.ana.gov.br/Atlas/forms/Home...
), mediante a consulta dos "dados completos" por Estado no critério de busca "Avaliação Oferta/Demanda". Utilizaram-se os dados dos municípios que identificavam a população, demanda, manancial e tipo de manancialix ix Dos dados apresentados, 22 municípios não identificavam o tipo de manancial e foram ignorados. . No caso da população e demanda são fornecidos três cenários 2010, 2015 e 2025, dos quais se adotou a projeção de 2015.

A tabela se estruturou em três colunas relacionadas a cada uma das Unidades de Federação (UF) brasileiras. A primeira quantifica os municípios abastecidos por mananciais do tipo superficial (SUP), subterrâneo (SUB) e misto (MIS). A segunda e a terceira trazem o número de pessoas abastecidas por cada tipo de sistema e a demanda estimada segundo à projeção de 2015. Nos sistemas mistos (águas subterrâneas e superficiais), os dados originais não distinguem a porcentagem de pessoas ou demanda atendida pelas águas superficiais e subterrâneas, apresentando apenas os valores totais.

Tabela 1:
Participação dos mananciais no abastecimento público brasileiro.

A análise dos dados demonstra que as águas subterrâneas constituem a única fonte para o abastecimento em quase 40% dos municípios. Seu uso se destaca nos municípios de pequeno porte, pois garantem uma água segura e com baixo custo de tratamento. Porém, também são utilizadas em cidades de médio e grande porte. Portanto, elas beneficiam de forma direta e indireta 87.214.502 habitantes em 2.917 municípios, seja como fonte exclusiva ou pela composição dos volumes nos sistemas mistos. Além disso, na área rural, elas abastecem 55,3% dos domicílios particulares (IBGE, 2009).

A demanda subterrânea é destacada em termos de volume, número de municípios atendidos ou população atendida nos estados do Amazonas, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Maranhão, Pará, Paraná, Piauí, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Roraima, São Paulo e Tocantins. Sendo que em alguns casos sua demanda supera os volumes superficiais considerados isoladamente. Infelizmente, não foi possível determinar sua participação nos sistemas mistos.

A exploração dos aquíferos tende a aumentar como forma de complementar a demanda por água. Em 2010, a maioria dos municípios já enfrentava dificuldades de abastecimento, pois 2.551 necessitavam ampliar o sistema e 472 requeriam um novo manancial (ANA, 2010ANA. Atlas Brasil. Abastecimento Urbano de Água. Brasília: ANA, 2010. Available at: http://atlas.ana.gov.br/Atlas/forms/Home.aspx. Consulted on: 29/04/2015.
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). Esse cenário revela o desafio de garantir água potável em um cenário de crise hídrica, no qual a escassez e a degradação fazem com que a alocação de um uso exclua o outro. Na perspectiva do direito humano à água e do art. 1º, I da Lei Federal 9.433/1997, o atendimento das necessidades humanas tem prioridade sobre os outros usos, porém como garantir essa preferência se o Estado desconhece a maioria dos usuários de águas subterrâneas?

O acesso à água subterrânea versus o direito à água subterrânea

O caráter oculto das águas subterrâneas e sua relação com o solo e o direito de propriedade dificultam a exclusão de usuários, o controle de sua extração e a visualização dos impactos (VILLAR, 2015VILLAR, P. C. Aquíferos Transfronteiriços: Governança das Águas e o Aquífero Guarani. Curitiba: Juruá, 2015.). O aquífero está acessível a todos os proprietários do solo por onde ele se estende, ao contrário das águas superficiais que correm por um leito visível e definido, cujo acesso pressupõe proximidade aos limites do curso de água (PURI; STRUCKMEIER, 2010PURI, S.; STRUCKMEIER, W. Aquifer Resources in a Transboundary Context: A hidden resource? Enabling the practitioner to 'see it and bank it' for good use. In: EARLE, A.; JÄGERSKOG, A.; ÖJENDAL, J. Transboundary Water Management: Principles and Practice. London: Earthscan, 2010. p. 73-90). Por isso, os aquíferos se enquadram como recursos de natureza comum (FEITELSON, 2006FEITELSON, E. Impediments to the management of shared aquifers: A political economy perspective. Hydrogeology Journal, v. 14, n. 3, p. 319-329, 2006.; GUNN, 2009GUNN, E. L. Governing shared groundwater: the controversy over private regula-tion. The Geographical Journal, v. 15, n. 1, p. 39-51, 2009.; JARVIS, 2010JARVIS, T. W. Water Wars, War of the Well, and Guerilla Well-fare. Ground Water, v. 48, n. 3, p. 346-350, 2010.). Esse termo se aplica para os recursos naturais cujas características dificultam "a exclusão dos potenciais beneficiários que possam obter ganhos pelo seu uso", bem como a extração por um desses beneficiários acarreta a diminuição da quantidade disponível para os demais (OSTROM, 1990OSTROM, E. Governing the Commons: The Evolution of Institutions for Collective Action. New York: Cambridge University Press, 1990, p. 30).

Desde 2012, o Brasil experimenta uma diminuição na oferta de água superficial, o que levou o Poder Público, ainda que timidamente, a buscar formas de reduzir o consumo e restringir o acesso às águas (ANA, 2015ANA. Conjuntura dos Recursos Hídricos: Informe 2014. Brasília: ANA, 2015. Available at: http://conjuntura.ana.gov.br/docs/conj2014_inf.pdf. Consulted on: 29/04/2015.
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). Nesse tipo de situação, os usuários buscam garantir o acesso à água, optando por soluções individuais, como a perfuração de um poço. Bertolo et al. (2015BERTOLO R. et al. Água subterrânea para abastecimento público na Região Metropolitana de São Paulo: é possível utilizá-la em larga escala? Revista DAE, v. 63, maio-agosto, 2015, p. 6-18.) alertam que a última estimativa de poços em operação na Bacia Hidrográfica do Alto Tiete catalogou 12 mil poços profundos, porém só 4.931 eram cadastrados no DAEE. Estima-se que o número de poços irregulares tenha aumentado em decorrência da estiagem de 2013, 2014 e 2015.

O caráter oculto, a natureza de recurso comum e a ausência de ações de gestão e fiscalização por parte do Poder Público explicam o descompasso entre o número de poços cadastrados e as estimativas sobre o seu número real. Mais da metade deles está em condição irregular (ANA, 2013ANA. Conjuntura dos Recursos Hídricos no Brasil: 2013. Brasília: ANA, 2013. Available at: http://conjuntura.ana.gov.br/docs/conj2013_rel.pdf. Consulted on: 29/04/2015.
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), o que gera uma pressão desconhecida sobre as reservas e prejudica a todos os usuários que compartilham o aquífero, seja pela incerteza sobre a quantidade de água extraída ou pelo risco de contaminação pontual se o poço não for corretamente perfurado ou lacrado.

A Lei nº 9.433/1997 relativiza os deveres jurídicos no caso da perfuração de poços que se prestem para a satisfação das necessidades de pequenos núcleos populacionais rurais e para os usos considerados insignificantes (art 12 § 1º), caso em que se dispensa a outorga, embora se exijam outros processos administrativos, conforme a lei estadual. Contudo, como demonstra a situação dos poços profundos da Bacia Hidrográfica do Alto Tiete, boa parte dos poços clandestinos não se enquadra na definição de uso isento e deliberadamente descumpre a obrigação jurídica da obtenção de outorga. A perfuração de poços para extração de água subterrânea ou sua operação sem a devida autorização é considerada infração administrativa (art. 49, V da Lei Federal 9.433/1997). Contudo, dificilmente esses usuários são penalizados, pois falta fiscalização.

A exploração clandestina das águas subterrâneas se dá de forma alheia à disponibilidade hídrica local, desrespeita o direito de uso de terceiros e impede que se arbitrem os seus impactos sobre o abastecimento público, os usuários outorgados e os donos de poços de uso isento. A ideia de direito humano à água não ampara essa apropriação irregular, muito menos o uso sem controle, ainda mais em um contexto de crise hídrica. Pelo contrário, esse direito pressupõe o fortalecimento e transparência da gestão de forma a garantir o acesso de água de qualidade e quantidade para o abastecimento dos seres humanos.

A maioria dessas extrações não visa a garantia dos direitos humanos ou representa interesses públicos, se trata de uma apropriação privada para fins produtivos que geram lucros a partir da dilapidação de um patrimônio comum (AGUDO, 2010AGUDO, P. A. Crisis Global del Agua: valores y derechos en juego. Cuadernos nº 168. Barcelona: Centre d'estudis Cristianisme i Justícia, 2010. Available at: https://www.cristianismeijusticia.net/es/crisis-global-del-agua-valores-y-derechos-en-juego. Consulted on: 25/10/2015.
https://www.cristianismeijusticia.net/es...
). Os usuários clandestinos não veem razões para legalizar seu uso, pois falta fiscalização e monitoramento, a sociedade não percebe a diminuição dos níveis do aquífero e o poço se encontra oculto pelos muros da propriedade. A regularização traria o ônus de realizar análises de qualidade de água, sofrer a cobrança no caso das bacias que a implementaram ou ainda correr o risco do poço ser fechado em caso de escassez ou pela existência de rede de água encanadax x Vide art. 45, § 1º da Lei Federal n. 11.445/2007. Maiores informações consultar Viegas (2007). .

Nesse tipo de situação, aqueles que dispõem dos meios financeiros ou técnicos são incentivados a explorar as águas subterrâneas desde que "o valor do produto obtido com a água seja maior ou igual aos custos de extração" (FEITELSON, 2006FEITELSON, E. Impediments to the management of shared aquifers: A political economy perspective. Hydrogeology Journal, v. 14, n. 3, p. 319-329, 2006., p. 320) sem se preocupar com as questões legais ou outros usuários.

Dessa forma, ocorre uma apropriação privada sem regulamentação das águas subterrâneas, o que corresponde a uma forma de usurpação da água (KLINK; MORIANA; GARCIA, 2000KLINK, F. A; MORIANA, E. P; GARCIA, J. S. The social construction of scarcity. The case of water in Tenerife (Canary Islands). Social Process of Environmental Valuation. Ecological Economics, v. 34, n. 2, p. 233-245, ago. 2000.). Os donos de poços fora do sistema de licenças governamentais ao se apropriarem das águas subterrâneas de forma irregular lesam a sociedade, os usuários e o ambiente e agravam o cenário de crise hídrica (VILLAR, 2015VILLAR, P. C. Aquíferos Transfronteiriços: Governança das Águas e o Aquífero Guarani. Curitiba: Juruá, 2015.). A exploração irregular permite a apropriação de um bem de uso comum do povo e desvia os recursos hídricos de seus legítimos usuários, alterando o regime de propriedade da água e causando diversos impactos ambientais e sociais. Essa conduta pode inclusive se enquadrar no crime de usurpação de águas previsto no art. 161, inciso I do Código Penalxi xi Para as águas minerais tem-se o crime de usurpação de água previsto no art. 2º da Lei 8.176/1991. .

Essa situação apresenta o problema sobre a percepção da natureza e titularidade da água subterrânea. Sua intrínseca relação com o solo faz com que elas sejam percebidas pelos usuários como inclusas no direito de propriedade (VILLAR, 2015VILLAR, P. C. Aquíferos Transfronteiriços: Governança das Águas e o Aquífero Guarani. Curitiba: Juruá, 2015.). Antes da Constituição Federal de 1988, as águas subterrâneas pertenciam ao proprietário do terreno por acessão (art. 526 do Código Civil de 1916), o que permitia sua livre apropriação, salvo prejuízos aos aproveitamentos anteriores ou às águas públicas (art. 96 do Decreto Federal nº 24.643/1934). Com o advento da Constituição Federal de 1988, as águas subterrâneas, como parte integrante do meio ambiente, se tornaram bem de uso comum do povo (art. 225) e integram o domínio eminente dos Estados (art. 26, I). Dessa forma, ocorre sua publicização, entendimento que foi corroborado pelo art. 1º, inciso I da Lei Federal 9.433/1997 (CAMARGO; RIBEIRO, 2009CAMARGO, E.; RIBEIRO, E. A proteção jurídica das águas subterrâneas no Brasil. In: RIBEIRO, W. C. Governança da água no Brasil: uma visão interdisciplinar. São Paulo: Annablume, FAPESP, CNPq. 2009.).

Ao que pese essa transformação jurídica, a realidade demonstra que na prática as águas subterrâneas ainda são utilizadas como se fossem um recurso privado, que pode ser livremente utilizado pelo dono do terreno. Decorridos mais de 18 anos da Lei Federal nº 9.433/1997, o número de poços irregulares é superior aos outorgados e continua a crescer, seja por conta da estiagem, economia na conta de água ou pela autonomia de possuir uma fonte exclusiva (BERTOLO et al., 2015BERTOLO R. et al. Água subterrânea para abastecimento público na Região Metropolitana de São Paulo: é possível utilizá-la em larga escala? Revista DAE, v. 63, maio-agosto, 2015, p. 6-18.).

A falta de ações para conter essa expansão silenciosa dá indícios que há uma aceitação ou tolerância social frente a esse fenômeno. Pode-se especular que, por um lado, a Administração Pública aceita que não tem como controlar essa expansão, e por outro, a sociedade não enxerga a perfuração de poços como um problema, mas como uma consequência natural diante da necessidade de aumentar a disponibilidade de água ou cortar custos.

Com o aumento do número de atores que decide recorrer aos aquíferos de forma ilegal, crescem os prejuízos para o recurso, o ecossistema, os usuários legítimos e a sociedade. A soma dessas perfurações gera repercussões importantes na dinâmica hídrica, que podem causar a superexploração do aquífero, intrusão salina ou sua contaminação, bem como a perda do poço ou de sua produção e o aumento nos custos de extração da água devido à necessidade de poços cada vez mais profundos e bombas mais potentes (CUSTODIO, 2002CUSTODIO, E. Aquifer Overexplotation: what does it mean. Hydrogeology journal, v. 10, n. 2, p. 257-277, 2002).

A perda de um poço é assumida pelo proprietário como um dado natural, quando em muitos casos foi provocada pela falta de gestão dos usos legalizados ou irregulares. Nessa situação os usos isentos e pequenos usuários são os mais prejudicados, pois diante dos custos de perfuração e sua capacidade financeira limitada, possuem poços menos profundos e mais suscetíveis ao rebaixamento ou contaminação do aquífero. O uso descontrolado das águas subterrâneas também impacta a disponibilidade superficialxii xii A superexploração contribui para a diminuição ou seca dos leitos de rios, do fluxo hídrico das nascentes ou das áreas alagadas. , prejudicando os usuários das águas superficiais, que não farão uma correlação entre diminuição dos recursos hídricos superficiais e superexploração do aquífero (CUSTODIO, 2002CUSTODIO, E. Aquifer Overexplotation: what does it mean. Hydrogeology journal, v. 10, n. 2, p. 257-277, 2002; VILLAR 2015VILLAR, P. C. Aquíferos Transfronteiriços: Governança das Águas e o Aquífero Guarani. Curitiba: Juruá, 2015.).

Outros prejuízos se relacionam a manutenção do sistema de água e esgoto nas áreas urbanas. A análise conjunta do art. 45 e de seu § 1º da Lei Federal n. 11.445/2007 indica que se houver redes públicas de saneamento básico, não se permite a utilização de soluções individuais de abastecimento de água e de afastamento e destinação final dos esgotos sanitários (VIEGAS, 2007VIEGAS, E. C. . Nova lei restringe uso de poços artesianos. Revista do Ministério Público (Rio Grande do Sul), v. 59, p. 9-24, 2007.). No caso dos poços irregulares, a cobrança pela água não será aplicada, o que incentiva a sua perfuração para fugir das taxas de serviço das companhias de abastecimento. Como a remuneração do serviço de esgoto sanitário é atrelada à quantidade de água consumida, o usuário clandestino embora gere esgoto, tampouco pagaria por ele (VIEGAS, 2007VIEGAS, E. C. . Nova lei restringe uso de poços artesianos. Revista do Ministério Público (Rio Grande do Sul), v. 59, p. 9-24, 2007.). Os tribunais têm recebido diversas ações das companhias de água solicitando o fechamento de poços em diversos estados, com destaque ao Rio Grande do Sulxiii xiii Busca realizada no Portal de Busca Unificada de Jurisprudência JusBrasil, nos Tribunais Estaduais, em 03/05/2015 utilizando os termos "fechamento de poço" e "rede de água pública" sem aspas. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/. Acesso: 3/5/2015. .

Por fim, a crença na qualidade superior das águas subterrâneas desestimula os usuários a fazerem análises de qualidade da água ou se restringem aos testes de coliformes fecais. A água subterrânea também apresenta problemas de qualidade seja pela contaminação antrópica, biológica ou natural (proveniente da interação rocha e água), portanto sua ingestão pode acarretar problemas de saúde pública (REBOUÇAS, 2006REBOUÇAS, A. C. Águas Subterrâneas. In: REBOUÇAS, A. C; BRAGA, B; TUNDISI, J.G. (Orgs). Águas doces no Brasil: Capital ecológico, uso e conservação. 3. ed. São Paulo: Escrituras editora, 2006.).

As águas subterrâneas representam a última fronteira das águas, pois em muitos casos as taxas de exploração impedem sua renovação ou suas reservas não são renováveis. O uso irregular burla a discussão sobre qual a prioridade de uso prejudica as ações de gestão e pode desviar recursos importantes do abastecimento público, que deveria ter prioridade, ou dos usuários legitimados.

Conclusões

A falta de governança e o uso irregular das água subterrâneas constituem uma ameaça real para a segurança hídrica do abastecimento público, podendo colocar em risco os avanços do país na universalização do acesso à água potável. Apesar da disponibilidade hídrica subterrânea ser consideravelmente inferior, seu papel no abastecimento é comparável ao das águas superficiais, quando se vislumbra o número de municípios abastecidos e a população atendida por poços. As águas subterrâneas se apresentam cada vez mais como parte da solução para a restrição hídrica, especialmente diante da necessidade de ampliar a disponibilidade e de enfrentar a variabilidade climática. Contudo sua utilização e gestão refletem as mesmas falhas que levaram a degradação das águas superficiais. Porém sua degradação é agravada pelo seu caráter oculto, pela irreversibilidade dos danos causados e pela exploração clandestina, que permite a apropriação privada dessas águas. A atual crise hídrica pode até ser amenizada no curto prazo pelos aquíferos, porém sua superação vai além do problema de escassez e da busca por novas fontes. Seu enfrentamento exige que se supere a visão restrita de "demanda versus disponibilidade" e se busque uma mudança na racionalidade que embasa a apropriação dos recursos hídricos.

O direito humano à água e ao saneamento podem contribuir nessa reflexão na medida que priorizam o uso dos aquíferos para o atendimento das necessidades básicas humanas e focam na universalização do acesso, empoderando as comunidades mais vulneráveis. Além disso, esse direito impõem a responsabilidade dos Estados em melhorar a gestão das águas como forma de garanti-lo. Seu reconhecimento também contribuiria para acabar com a tolerância do Poder Público frente aos usuários irregulares e obrigá-los a respeitar o sistema de outorgas.

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  • i
    Notas Para visualizar um mapa com todos esses aquíferos, consultar ANA, 2013, p. 55.
  • ii
    Ver Res. AGNU 68/157 (18/12/2013) e Res. CDH nº: 15/9 (30/09/2010); 16/2 (24/03/2011); 18/1 (28/09/2011); 21/2 (27/09/2012); 24/18 (27/09/2013); e 27/7 (25/09/2014). Disponível em: http://www. ohchr.org/EN/Issues/WaterAndSanitation/SRWater/Pages/Resolutions.aspx. Acesso: 03/10/2015.
  • iii
    Nos aquíferos fósseis, a extração equivale a sua mineração pois a recarga é prejudicada pela estrutura geológica ou pelas condições climáticas.
  • iv
    Informações sobre fontes de contaminação ver Foster e Hirata (1991). As principais são: perdas na rede de esgoto; represas de resíduos industriais; aterros e lixões; fossas sépticas; despejo de lodo de esgoto; poços de despejo por injeção; agroquímicos, mineração e vazamentos de tanques.
  • v
    Pode-se destacar as Resoluções do Conselho Nacional de Recursos Hídricos nsº 15/2001, 17/2001; 22/2002, 76/2007; 91/2008; 92/2008; 107/2010; e 126/2011 e a Resolução CONAMA 396/2008.
  • vi
    Trata-se de uma iniciativa da Agência Nacional de Águas para fomentar o conhecimento hidrogeológico, técnico-gerencial e de capacitação específica em águas subterrâneas. Informações em: http://www2.ana.gov.br/Paginas/projetos/AguasSubterraneas.aspx. Acesso: 23/03/2015.
  • vii
    O programa se divide em 3 subprogramas: Ampliação do Conhecimento Hidrogeológico; Desenvolvimento dos Aspectos Institucionais e Legais; e Capacitação, Comunicação e Mobilização Social. Disponível em: http://www.mma.gov.br/index.php/agua/recursos-hidricos. Acesso: 23/05/2015.
  • viii

    Informações em: http://siagasweb.cprm.gov.br/layout/. Acesso: 23/03/2015.
  • ix
    Dos dados apresentados, 22 municípios não identificavam o tipo de manancial e foram ignorados.
  • x
    Vide art. 45, § 1º da Lei Federal n. 11.445/2007. Maiores informações consultar Viegas (2007).
  • xi
    Para as águas minerais tem-se o crime de usurpação de água previsto no art. 2º da Lei 8.176/1991.
  • xii
    A superexploração contribui para a diminuição ou seca dos leitos de rios, do fluxo hídrico das nascentes ou das áreas alagadas.
  • xiii

    Busca realizada no Portal de Busca Unificada de Jurisprudência JusBrasil, nos Tribunais Estaduais, em 03/05/2015 utilizando os termos "fechamento de poço" e "rede de água pública" sem aspas. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/. Acesso: 3/5/2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar 2016

Histórico

  • Recebido
    30 Maio 2015
  • Aceito
    19 Dez 2015
ANPPAS - Revista Ambiente e Sociedade Anppas / Revista Ambiente e Sociedade - São Paulo - SP - Brazil
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