Acessibilidade / Reportar erro

Intertextualidade verbo-visual: como os textos multissemióticos dialogam?

Resumos

O objetivo deste trabalho é compreender como os textos multissemióticos dialogam entre si para produzir sentidos, observando-se as complexas relações intertextuais instauradas entre gêneros dos diversos campos artísticos e/ou audiovisuais. Para tanto, apresento inicialmente uma breve revisão bibliográfica sobre a intertextualidade, discutindo criticamente como os principais estudiosos abordam esse tema. Em seguida, defendo que é necessário entendermos a intertextualidade de forma integral e não-discretizada através de um continuum tipológico das relações entre textos verbo-visuais. Assim, desenvolvo um modelo de compreensão desse fenômeno por meio de um gráfico em que dois contínuos se entrecruzam: a representação da intertextualidade por meio da forma (Implicitude/Explicitude) e da função (Aproximação/Distanciamento da voz citada) assumidas em situações comunicativas. Para testar o modelo, foram selecionados quatro videoclipes da cantora norte-americana Madonna, tendo por fim constatarmos de que modo os textos videoclípticos se apoiam em outros textos para construção de seus discursos e das identidades evocadas.

Intertextualidade; Dialogismo; Textos verbo-visuais; Videoclipe


The objective of this work is to understand how multisemiotic texts interact with each other to produce meanings, observing the complex intertextual relations among genres from various artistic and/or audiovisual fields. Therefore, I initially present a brief review of the literature on intertextuality, critically discussing how leading scholars address this issue. Then I argue that it is necessary to understand intertextuality in an integral and non-discretized way through a typological continuum of relationships between verbal-visual texts. Thus, I develop a model for understanding this phenomenon by means of a graph in which two continua intertwine: the representation of intertextuality through form (Implicitness/ Explicitness) and function (Approach/ Distance of the quoted voice) assumed in communicative situations. To test the model, four music video clips of American singer Madonna were selected so we can verify how music video texts rely on other texts to build their discourses and evoked identities.

Intertextuality; Dialogism; Verbal-Visual Texts; Music Video


ARTIGOS

Intertextualidade verbo-visual: como os textos multissemióticos dialogam?

Leonardo Mozdzenski

Universidade Federal de Pernambuco, UFPE, Recife, Pernambuco, Brasil; leo_moz@yahoo.com.br

RESUMO

O objetivo deste trabalho é compreender como os textos multissemióticos dialogam entre si para produzir sentidos, observando-se as complexas relações intertextuais instauradas entre gêneros dos diversos campos artísticos e/ou audiovisuais. Para tanto, apresento inicialmente uma breve revisão bibliográfica sobre a intertextualidade, discutindo criticamente como os principais estudiosos abordam esse tema. Em seguida, defendo que é necessário entendermos a intertextualidade de forma integral e não-discretizada através de um continuum tipológico das relações entre textos verbo-visuais. Assim, desenvolvo um modelo de compreensão desse fenômeno por meio de um gráfico em que dois contínuos se entrecruzam: a representação da intertextualidade por meio da forma (Implicitude/Explicitude) e da função (Aproximação/Distanciamento da voz citada) assumidas em situações comunicativas. Para testar o modelo, foram selecionados quatro videoclipes da cantora norte-americana Madonna, tendo por fim constatarmos de que modo os textos videoclípticos se apoiam em outros textos para construção de seus discursos e das identidades evocadas.

Palavras-chave: Intertextualidade; Dialogismo; Textos verbo-visuais; Videoclipe

Introdução

Embora hoje seja consensual a constatação de que a "cultura contemporânea é sobretudo visual" (PELLEGRINI, 2003, p.15), a incorporação da imagem e de outros recursos semióticos às pesquisas linguísticas ainda encontra muita resistência em certas abordagens mais tradicionais. Como ressaltam Kress, Leite-García e Van Leeuwen (2000), historicamente a análise do discurso se concentrou em textos linguisticamente realizados, valorizando-se a linguagem verbal nas modalidades oral e escrita, em detrimento de outros modos semióticos.

É possível perceber, pois, que a elevação de status dos gêneros multissemióticos como objeto dos estudos linguísticos só aconteceu recentemente. Apesar de, em outras disciplinas, o exame dos signos já ocorrer desde os anos 1950/60, somente nos últimos anos é que vem sendo realizada no campo da Linguística uma pesquisa mais sistemática e integralizada sobre o texto multimodal, abarcando conjuntamente todos os recursos semióticos que o compõem e considerando a sua inserção na chamada sociedade da imagem (KRESS e VAN LEEUWEN, 2001).

O presente trabalho insere-se, portanto, entre essas novas propostas de análise, ao considerar que o processamento textual das informações só pode se dar com a leitura integrada do texto verbal, do material visual (fotografias, infográficos, desenhos, cores, layout), do material sonoro (música, ruídos, entonação, ritmo) e assim por diante. Caso contrário, a leitura lacunosa poderá afetar significativamente a compreensão da unidade global do texto.

Em particular, interessa-me aqui compreender como os textos multissemióticos dialogam entre si para produzir sentidos. Isto é, meu propósito consiste em observar as complexas relações intertextuais instauradas entre gêneros dos vários campos artísticos e/ou audiovisuais. Para tanto, apresento a seguir uma breve revisão bibliográfica sobre a intertextualidade, discutindo criticamente como os principais estudiosos abordam esse tema. Em seguida, defendo que é necessário entendermos a intertextualidade de forma integral e não-discretizada através de um continuum tipológico das relações entre textos verbo-visuais.

Para avaliar a operacionalização do modelo que irei desenvolver mais adiante, foram selecionados quatro videoclipes da cantora norte-americana Madonna, tendo por fim investigarmos de que modo os textos videoclípticos se apoiam em outros textos para construção de seus discursos e das identidades evocadas. A escolha pelo videoclipe se deu pelo fato de que ele constitui um gênero audiovisual multifacetado, que revela uma tendência atual de integração de um grande número de estratégias multissemióticas, tendo por fim captar e manter a atenção do espectador. Além disso, os estudiosos desse gênero há muito enfatizam a importância da intertextualidade nos clipes musicais:

[Parto da] suposição de que o sentido dos videoclipes advém da análise dos textos que os precedem e que a intertextualidade, em vez de indicar a 'origem' do sentido, compreende textos a partir de uma múltipla variedade de sentidos, baseados tanto no contexto do clipe quanto no do espectador (STOCKBRIDGE, 1987, p.158).

1 Revisando a noção de intertextualidade

Relacionado a princípio ao estudo da literatura, o conceito de intertextualidade foi cunhado por Julia Kristeva (1974), ao defender que a obra literária redistribui textos anteriores em um só texto, sendo necessário pensá-la como um 'intertexto'. A autora, no entanto, a partir da noção bakhtiniana de dialogismo, ainda vai mais longe ao considerar que todo texto constitui um intertexto numa sucessão de textos já escritos ou que ainda serão escritos.

Assim, uma leitura eficiente jamais poderá ser realizada de maneira isolada, tornando-se importante perceber como as origens, as formas, a temática, etc. de um texto dialogam com vários outros textos (CHARAUDEAU e MAINGUENEAU, 2004, p.288). É nesse sentido que Dominique Maingueneau (2005, p.21) sustenta o primado do interdiscurso sobre o discurso, argumentando que "a unidade de análise pertinente não é o discurso, mas um espaço de trocas entre vários discursos convenientemente escolhidos". De fato, a ideia de que todo enunciado é constitutivamente dialógico já está presente desde Bakhtin/ Voloshinov (2004). Nessa perspectiva, a orientação dialógica consiste em uma marca característica de qualquer discurso, o qual sempre se encontra atravessado pelo discurso de outrem.

Para Mikhail Bakhtin (2003, p.272), cada "enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados". Em outras palavras, nenhum enunciado do discurso concreto (enunciação) é dito a partir de um 'zero' ou de um 'vácuo' comunicativo. Ele sempre se encontra em constante diálogo com tudo o que já foi dito acerca de determinado tema, bem como com tudo o que lhe seguir nessa "corrente evolutiva ininterrupta" da comunicação verbal (BAKHTIN/ VOLOSHINOV, 2004, p.90). Tal como esclarece Cunha (2003, p.168), todo "enunciado é uma resposta a um já-dito, seja numa situação imediata, seja num contexto mais amplo".

Retomando mais propriamente a noção de intertextualidade, Bazerman (2006) salienta a importância do estudo desse fenômeno – isto é, da relação que cada texto estabelece com os textos que o cercam –, argumentando que essa análise possibilita compreender, entre outras coisas, como os escritores/produtores de textos concebem as personagens em suas histórias e como eles próprios se posicionam nesse universo de múltiplos textos. Importante salientar que a intertextualidade não é apenas uma questão relacionada "a que outros textos você se refere, e sim como você os usa, para que você os usa e, por fim, como você se posiciona enquanto escritor diante deles para elaborar seus próprios argumentos" (BAZERMAN, 2006, p.103).

Muitos pesquisadores vêm sugerindo diversas formas de classificar a intertextualidade1 1 Não cabe detalhar neste trabalho toda a profusão taxionômica de classificação dos tipos de intertextualidade. Mencionarei aqui apenas alguns autores mais citados nos trabalhos brasileiros. Para uma análise bem mais extensiva sobre o tema, consultar Bazerman (2007), Fairclough (2001) e Koch, Bentes e Cavalcante (2007). . Inicialmente, ainda no âmbito da literatura, Genette (1979) propôs uma análise concreta de como a intertextualidade opera dentro de textos específicos, delineando metodicamente os arranjos das possíveis relações entre textos, o que o autor chamou de "transtextualidade": intertextualidade (presença efetiva de um texto em outro, como na citação explícita, alusão ou plágio); paratextualidade (relação entre o texto em si e os paratextos que o circundam, tais como títulos, prefácios, epígrafes, figuras, etc.); metatextualidade (relação de comentário, crítica); hipertextualidade (relação de derivação entre certo texto [hipotexto] e outro dele originado [hipertexto], e.g., paródia e pastiche); e arquitextualidade (relação do texto com o gênero discursivo em que se enquadra).

Piègay-Gros (1996) divide as relações intertextuais em dois tipos: relações de copresença entre dois ou mais textos e relações de derivação de um ou mais textos a partir de um texto-matriz. No primeiro grupo, a autora elenca a citação (o texto é inserido expressamente em outro); a referência (similar à citação, mas sem transcrição literal do texto-fonte); a alusão (o texto-matriz é retomado de forma sutil, por indicações que o leitor deve perceber); e o plágio (a citação não vem marcada). Já no segundo grupo, encontram-se a paródia (a estrutura e o assunto do texto são retomados em outras situações com efeitos de carnavalização e de ludismo); o travestismo burlesco (reescritura de um estilo a partir de uma obra cujo conteúdo é conservado); e o pastiche (imitação de um estilo com utilização da mesma forma do texto imitado).

Koch (2004), por seu turno, postula a distinção entre intertextualidade e/ou polifonia em sentido amplo e intertextualidade e/ou polifonia stricto sensu. Enquanto a primeira é constitutiva de todo discurso, a última ocorre quando, em um texto, encontra-se inserido outro texto (intertexto) anteriormente produzido, fazendo parte da memória social de uma coletividade ou da memória discursiva dos interlocutores. A estudiosa também afirma que a intertextualidade pode ser explícita ou implícita. Nesta, o produtor do texto não menciona a fonte do intertexto introduzido, esperando que o seu leitor/ouvinte reconheça a sua presença através da ativação do texto-fonte em sua memória discursiva; já naquela, menciona-se no próprio texto a fonte do intertexto.

Em um trabalho posterior, Koch, Bentes e Cavalcante (2007) retomam essas categorias propostas por Koch (2004), acrescentando-lhes uma extensa lista de outras possíveis – e, não raro, confusas – classificações de intertextualidade, agrupadas sob os mais diferentes critérios: intertextualidade implícita x intertextualidade explícita (PIÈGAY-GROS, 1996); intertextualidade das semelhanças x intertextualidade das diferenças (SANT'ANNA, 1985); intertextualidade por captação x intertextualidade por subversão (MAINGUENEAU, 1997); heterogeneidade mostrada x heterogeneidade constitutiva (MAINGUENEAU, 1997); heterogeneidade mostrada marcada x não-marcada (AUTHIER-REVUZ, 1990); etc.2 2 De particular interesse para esta investigação dentro dessa miríade de terminologias, resta tão-somente o fato de que Koch, Bentes e Cavalcante (2007, p. 130), ao criticarem as propostas dicotômicas de Piègay-Gros e de Authier-Revuz, sugerem que seria "mais adequado considerar variados graus de explicitude". As autoras, no entanto, não chegam a propor um modelo desse tipo de análise nem sistematizam como se daria um estudo da intertextualidade realizado a partir desses "graus de explicitude". Seria, na verdade, uma mescla daquilo que Bazerman (2006) denomina de "níveis de intertextualidade", "técnicas de representação intertextual" e "alcance intertextual".

Algumas críticas podem ser feitas a essas propostas precedentes de compreender o fenômeno. Em primeiro lugar, é importante ressaltar que o principal problema das classificações anteriormente expostas reside no fato de que todas tendem a 'discretizar' a intertextualidade, agrupando-a em categorias que parecem ser constituídas por unidades distintas, estanques e bem delimitadas. Ou seja, consoante essas classificações tradicionais, a intertextualidade só pode aparentemente ser considerada ou uma 'citação' ou uma 'referência' ou um 'plágio' ou uma 'alusão', e assim por diante. Não parece existir uma gradação ou continuidade entre esses tipos categoriais. Tem-se a impressão de que o texto é visto como um 'monobloco semântico', que deve ser taxativamente enquadrado em uma das possíveis classes discretizadas e não-integralizadas de intertextualidade.

Em segundo lugar, uma grande parte dessas propostas de classificação também recorre a categorias, em tese, dicotômicas ao explicar o fenômeno: intertextualidade das semelhanças x das diferenças; intertextualidade implícita x explícita; intertextualidade manifesta x constitutiva; captação x subversão; heterogeneidade mostrada x constitutiva; heterogeneidade marcada x não-marcada; e assim por diante. É claro que nas nossas práticas discursivas cotidianas não percebemos os textos como se estivessem divididos e agrupados intertextualmente em duas categorias à primeira vista antagônicas. Antes, percebemos como se eles estivessem em um contínuo em que todas essas possibilidades de ocorrência da intertextualidade se dão concomitantemente.

Finalmente, em terceiro lugar, é possível constatar a ausência de critérios mais consistentes e coerentes para o agrupamento de cada tipo de intertextualidade em uma mesma categoria. Em outras palavras, fenômenos como a citação e a paráfrase (ligados fundamentalmente à forma da intertextualidade) são equiparados a fenômenos como a paródia e o pastiche (relacionados sobretudo aos efeitos de sentido produzidos a partir da intertextualidade).

É a partir dessas reflexões que apresento o modelo de análise a seguir, como uma proposta de compreender e analisar a intertextualidade de modo mais sistemático, buscando avançar o estado da arte dos estudos discursivos acerca desse tema.

2 Um novo olhar sobre a intertextualidade: propondo um modelo de análise

Para apresentar um novo modelo de análise das relações intertextuais, recorro inicialmente à noção de explicitude, assim elaborada por Marcuschi (2007, p.40): "explicitar é oferecer uma formulação discursiva de tal modo que contenha em si as condições de interpretabilidade adequada ou pretendida". Dessa forma, explicitar significa promover meios de tornar o texto interpretável em contextos de uso a partir da criação de condições de acesso.

Dentro de uma perspectiva intertextual, isso implica afirmar que cabe ao falante/escritor gradativamente oferecer (ou se recusar a oferecer) pistas discursivo-cognitivas que viabilizem a interpretação do seu texto. Tais pistas são dadas conforme os contextos dos interlocutores, isto é, os seus conhecimentos partilhados, as suas interpretações (inter)subjetivas da situação comunicativa, os seus propósitos, etc.3 3 Assumo a noção de contexto sob o paradigma sociocognitivista. Em linhas gerais, contextos são definidos como as interpretações subjetivas (sociocognitivamente construídas) dos interlocutores sobre as propriedades relevantes da situação social, interacional ou comunicativa da qual participam (VAN DIJK, 2008). Em síntese, quanto à forma que a intertextualidade pode assumir em um texto, proponho o continuum tipológico exposto no Gráfico 1.


Desse modo, como se observa no Gráfico 1, em termos da explicitude do texto-fonte, o texto pode variar idealmente desde o plágio (apresentação fraudulenta de obra alheia como se fosse própria), em que propositadamente não há marcas explícitas de identificação do texto-fonte nem de sua autoria, até a cópia autorizada (reprodução integral, legalmente permitida, de uma obra já existente), como no caso de uma coletânea de artigos científicos que já haviam sido anteriormente publicados em revistas acadêmicas distintas.

É fundamental enfatizar que as categorias tradicionais listadas nesse contínuo (plágio, alusão, menção indireta, etc.) são meramente ilustrativas e não-discretizadas. Em outras palavras, um mesmo texto pode apresentar, de maneira simultânea, uma ou mais ocorrências de quaisquer desses tipos de intertextualidade ou ainda qualquer combinação entre essas categorias já mais ou menos estabilizadas e outras classes 'intermediárias'.

O outro critério para observarmos as relações intertextuais diz respeito à função desempenhada por cada ocorrência de intertextualidade4 4 Adoto aqui o termo função (tomado em seu sentido lato) para caracterizar o critério de organização desse contínuo ( Gráfico 2), embora reconheça a carga semântica dessa expressão já associada a alguns referenciais teóricos bastante distintos daqueles que são utilizados neste trabalho. . Mais especificamente, esse critério está relacionado ao posicionamento da voz do autor citante diante da voz do autor citado para construir seu próprio discurso.

Essa ideia de diferentes vozes que habitam o discurso é tomada de empréstimo à noção de polifonia em Bakhtin (2002), referindo-se à existência de diversas vozes polêmicas em gêneros dialógicos polifônicos, as quais são a todo momento retomadas, ressignificadas, ratificadas, confrontadas, ironizadas, etc. Para usar uma metáfora de Bakhtin/ Voloshinov (2004), o discurso é concebido como arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam essas vozes de diversas orientações (concordantes, contraditórias, satíricas, etc.). Podemos dispor, através do continuum tipológico do Gráfico 2, o modo como os enunciadores operam com essas vozes de outrem para produzir determinados efeitos de sentido.


Assim, como advém do Gráfico 2, o texto citante pode variar idealmente desde a situação em que a voz alheia é desqualificada até o momento em que ela é usada com a função de autoridade para garantir a validade do novo enunciado. O primeiro caso (desqualificação) ocorre tipicamente em debates políticos, científicos, etc.; como também nos julgamentos em tribunais onde o discurso do réu é retomado pelo advogado de acusação para defender a vítima; ou ainda em matérias jornalísticas, em que a fala dos menos favorecidos é deslegitimada através de estratégias de acesso – ou ausência de acesso – ao espaço discursivo (FALCONE, 2005).

Por outro lado, a citação de autoridade se dá, por exemplo, quando se menciona um provérbio de forma a invocar a 'sabedoria popular' como um recurso retórico de persuasão. Ou quando as vozes dos grupos de poder são introduzidas objetivando conferir credibilidade ao enunciado: "O governo afirma...", "Segundo a opinião de especialistas...", etc.

Nunca é demais ressaltar que, em todos esses casos do Gráfico 2, o que está sob análise é a 'função' da intertextualidade, ou seja, são os efeitos de sentido construídos a partir do momento em que a voz alheia é incorporada ao novo discurso, e não necessariamente a forma como esse fenômeno ocorreu (objeto do Gráfico 1). Ademais, ratifico o meu entendimento de que as já clássicas categorias expostas no Gráfico 2 (citação 'negativa', paráfrase 'negativa', paródia, ironia, pastiche, etc.) encontram-se elencadas apenas a título de ilustração e jamais são tomadas como classes rígidas não intercambiáveis.

A partir desses dois contínuos (Gráficos 1 e 2), proponho enfim o Gráfico 3:


O Gráfico 3 sintetiza, dentro da ótica discursivo-sociocognitiva ora adotada, a representação da intertextualidade tanto por meio da forma (Implicitude ↔ Explicitude) quanto da função (Aproximação ↔ Distanciamento da voz citada) assumidas por esse fenômeno em situações comunicativas.

3 A intertextualidade nos clipes femininos: testando o modelo

Uma vez compreendido o modo como são travadas as relações intertextuais entre os diversos discursos que circulam socialmente, é preciso aprofundarmos um pouco mais a discussão sobre como as imagens especificamente dialogam entre si, antes de aplicarmos o modelo proposto à análise dos videoclipes.

A respeito da maneira como ocorre esse dialogismo imagético, o pensador francês Jean-Jacques Courtine propõe a noção de intericonicidade. Segundo Milanez (2004), Courtine parte do princípio de que quaisquer imagens podem fazer parte da memória visual de um sujeito – e as relações estabelecidas entre elas são denominadas de 'intericonicidade'. Para Courtine (2006), mais do que uma concepção meramente sincrônica e técnica da análise das imagens, o estudo desse fenômeno visa mostrar que, assim como os textos são tecidos de intertextualidade, as imagens são atravessadas por uma intericonicidade cujas formas e deslocamentos devem ser reconstruídos a partir da investigação de seus modos de produção, de circulação e de recepção na cultura visual de um momento histórico determinado.

A aplicação desse termo é, naturalmente, extensiva a qualquer forma de manifestação artística. Ao discorrer sobre a interface literatura e pintura no Surrealismo, por exemplo, Arbex (2000) atenta para o caráter eminentemente intertextual da produção artística desse movimento, evidenciando "obras que se constroem como um mosaico de citações". A autora também lança mão aqui dessa noção de intericonicidade, definida nos mesmos termos que o conceito de intertextualidade, isto é, como processo de produtividade de uma imagem que se constrói como absorção ou transformação de outras imagens. Arbex (2000) sustenta que, assim como queria Bakhtin para o texto literário, a intericonicidade está ligada ao contexto social no qual ela se insere, sendo uma marca não somente da história e da ideologia, mas também da estética e da visualidade.

É nesse sentido que, em uma entrevista a Nilton Milanez realizada em 2005 na Université Sorbonne-Nouvelle (Paris 3), Courtine argumenta

a intericonicidade supõe as relações das imagens exteriores ao sujeito como quando uma imagem pode ser inscrita em uma série de imagens, uma genealogia como o enunciado em uma rede de formulação, segundo Foucault. Mas isso supõe também levar em consideração todos os catálogos de memória da imagem do indivíduo. De todas as memórias. Podem até ser os sonhos, as imagens vistas, esquecidas, ressurgidas e também aquelas imaginadas que encontramos no indivíduo (citado por MILANEZ, 2006, p.168-169).

Nesse cenário, a importância do papel da memória para a análise intericônica é, assim, fundamental: "Nossa memória se constrói, portanto, a partir do entrelaçamento de lugares nos quais procuramos as imagens que formam a substância de nossas lembranças" (MILANEZ, 2006, p.173).

Como essa noção de intericonicidade pode ser aplicada ao nosso modelo de análise, apresentado no Gráfico 3, acerca da representação da intertextualidade quanto à sua forma e à sua função? Para responder a essa questão, recorro, a título de ilustração, a quatros videoclipes estrelados pela cantora norte-americana Madonna5 5 A opção pelos clipes da popstar Madonna se deu, em primeiro lugar, em razão da sua vasta carreira videográfica, o que permite um leque mais amplo de opções e possibilidades de análise das suas relações intertextuais. Além disso, como argumenta Kellner (2001), os vídeos de Madonna parecem sempre fazer referências ou prestar tributos a outras variadas formas de arte: pintura, fotografia, cinema, moda, etc. Todos os clipes da cantora aqui citados podem ser vistos em seu site oficial: < http://www.madonna.com> (acesso em 10 mar. 2013). .

Em primeiro lugar, a partir da comparação entre as imagens retratadas nas Figs. 1 e 2, torna-se claro que o clipe Material Girl (Madonna, 1985 – Fig. 1) dialoga visualmente de forma bem explícita com a icônica performance de Marilyn Monroe em Os homens preferem as loiras (Howard Hanks, 1953 – Fig. 2). Contudo, com a análise mais detida dessas obras, é possível perceber um flagrante deslizamento de sentido entre os dois discursos, sobretudo no que se refere à identidade construída por Madonna em seu vídeo.



Na comédia musical dirigida por Howard Hawks (1953), a dançarina Lorelei Lee (Monroe) é uma típica gold digger, interessada sobretudo na fortuna de seu noivo milionário. Já no clipe Material Girl, Madonna 'interpreta' uma estrela em ascensão. O vídeo intercala dois núcleos ficcionais mais evidentes: como destaque principal, exibe a performance de Madonna à la Marilyn Monroe, quase reproduzindo a coreografia original do número musical Diamonds are a girl's best friend6 6 Essa antológica performance de Marilyn Monroe pode ser assistida neste link: < http://www.youtube.com/watch?v=Q_aqOTVKebY> (acesso em 10 dez. 2011). . Paralelamente, mostra a popstar nos bastidores da gravação, recusando presentes suntuosos e mostrando-se insatisfeita com seus pretendentes endinheirados.

Se o videoclipe – como queria Madonna – era uma grande ironia, pouca gente percebeu (TARABORRELLI, 2003). Por um lado, na letra de Material Girl (composta por Peter Brown e Robert Rans), a imagem de Madonna é construída de modo bem categórico: "você sabe que vivemos num mundo materialista, e eu sou uma garota materialista". Por outro, no vídeo, Madonna decide desprezar presentes caros para ficar com o aparente pobretão da história, interpretado pelo ator Keith Carradine.

Apesar do evidente diálogo intericônico entre as duas produções, é possível perceber que, no vídeo musical Material Girl, há uma clara ruptura diante do sentido original do filme estrelado por Marilyn Monroe. Se neste, a protagonista – por mais adorável que seja – acaba se casando por mero interesse financeiro, no clipe há uma evidente subversão paródica de sentido, na medida em que o personagem de Carradine – que é, na verdade, um sujeito de posses – tem que se fingir de pobre para poder conquistar o coração de Madonna.

Em outras palavras, o videoclipe termina, portanto, por promover cognitivamente a desconstrução da imagem de gold digger – loira platinada, dançarina-cantora de clubes noturnos, sem dinheiro, interesseira, espertalhona, porém com uma aparência ingênua, quase tola (personificada pela Lorelei de Monroe) –, reposicionando a personagem sob a imagem de uma mulher poderosa e independente (Madonna), cujo final feliz não está atrelado à conta bancária do seu pretendente.

Ou seja, entre esses dois textos multissemióticos, há uma visível explicitude intertextual/intericônica quanto à forma (figurinos e cenário praticamente idênticos, coreografia bastante assemelhada, etc.), mas se constata um distanciamento da voz do texto fílmico-fonte. O vídeo encontra-se, desse modo, no quadrante (4) do Gráfico 4.


Já na versão ao vivo da canção Vogue, durante o MTV's 1990 Music Video Awards, realizado em Los Angeles (EUA), em 06/09/1990 (Fig. 3), Madonna surpreendeu seus fãs ao retomar um grande ícone pictórico da história: a última rainha francesa, Maria Antonieta (Fig. 4). "Madonna [...] se volta para a etimologia da palavra 'vogue', vestida como Maria Antonieta, com maquiagem branca no rosto, perucas e seios levantados, como na corte francesa do século XVIII", descreve uma biógrafa da cantora, Lucy O'Brien (2008, p.195).



Segundo a historiadora Evelyne Lever (2004), Marie Antoinette Josèphe Jeanne de Habsbourg-Lorraine era uma figura muito controversa e fascinante. Seu encanto por um modo de vida luxuoso e sua total alienação dos problemas do povo renderam-lhe a fama de fútil, ingênua, egoísta e arrogante. No entanto, apesar de odiada pelos cortesãos de Versailles, Maria Antonieta soube imprimir sua marca personalística, exercendo forte influência sobre os hábitos e a moda na corte (vestidos, joias, penteados) e sobre a arquitetura e a decoração de monumentos franceses.

A leitura que Madonna faz da imagem de Maria Antonieta na apresentação do MTV's 1990 Music Video Awards é eminentemente 'pastichadora'. Aqui não há o tom irônico do videoclipe Material Girl, nem a tentativa de desconstruir cognitivamente a imagem-fonte. Pelo contrário: a caracterização exagerada e farsesca apenas reforça o imaginário coletivo sobre a frivolidade e os excessos da rainha francesa. A cantora incorpora o visual de Maria Antonieta e sua corte somente para fins lúdicos de entretenimento da plateia, sem qualquer pretensão de crítica ou de sátira política e artística. É, portanto, um claro pastiche.

De acordo com Charaudeau e Maingueneau (2004, p.371), o pastiche consiste em uma "prática de imitação" com um objetivo lúdico, distinguindo-se, portanto, da paródia, de caráter eminentemente subversivo, contestatório e oposicionista. O pastichador normalmente deixa indícios claros dos propósitos de seu texto, quer por uma indicação expressa, quer pela natureza caricatural conferida ao conteúdo ou às marcas estilísticas.

Assim, a partir do videoclipe ao vivo de Vogue, é possível estabelecer duas relações intericônicas simultâneas entre os discursos e as imagens construídas de suas personagens. Em primeiro lugar, há explicitude quanto à forma: composição cênica 'fidedigna' do vestuário (respeitadas obviamente as devidas adaptações para uma performance musical), da maquiagem, dos penteados, do cenário, dos hábitos (e.g., um dos bailarinos inala rapé), etc. Em segundo lugar, também se observa uma certa aproximação da voz do texto-fonte – ou, ao menos, do imaginário social que se tem sobre o texto-fonte –, já que Madonna estaria 'homenageando', ainda que em tom zombeteiro, a rainha francesa. O vídeo se situa, pois, no quadrante (2) do Gráfico 5.


O videoclipe Cherish (Madonna, 1989), por sua vez, foi todo filmado em locação externa em uma praia em Malibu, na Califórnia (EUA). Utilizando uma bela película em preto e branco, o diretor Herb Ritts – até então um dos fotógrafos favoritos de Madonna, sem nenhuma experiência na direção de clipes – coloca a cantora em cenário paradisíaco, cercada por sereios. A música é, na verdade, uma simples canção de amor pop-feliz, celebrando a paixão e a devoção de uma mulher pelo seu amado, cujo destino é ficar para sempre ao lado dela.

No vídeo, Madonna aparece bem à vontade em um vestido preto justo exibindo-se para a câmera reiteradamente, ora só (sorrindo, dançando, mostrando os músculos, quase sempre em contato com o mar), ora brincando com uma criança-sereia, enquanto sereios fazem suas acrobacias na água. O tom é leve, doce e divertido, e Madonna mostra a imagem de uma mulher radiante, festiva e, segundo a letra da canção, completamente apaixonada (Fig. 5).


Alguns críticos de cinema e de arte notaram uma nítida semelhança entre o clipe Cherish e o curta-metragem At Land (1944), da cineasta ucraniana naturalizada americana Maya Deren7 7 O filme pode ser assistido neste site: < http://www.youtube.com/watch?v=lD088nkJlD4> (acesso em: 7 mar. 2013). 8 Na Fig. 6, a imagem à esquerda apresenta stills do videoclipe Cherish; a da direita, do filme At Land. 9 Na Fig. 7, a coluna esquerda apresenta stills do filme At land; a direita, do videoclipe Cherish. 10 Na Fig. 9, em cada uma dessas seis composições, a imagem à esquerda apresenta uma foto de Guy Bourdin ou um still de uma de suas videoartes; a imagem à direita, um still do videoclipe Hollywood. . Com sua produção concentrada entre os anos 1940 e 1950, Deren também foi poeta, escritora, fotógrafa, dançarina, coreógrafa e teórica de cinema, sendo considerada uma artista brilhante e exercendo uma grande influência sobre os diretores contemporâneos de videoclipe e cinema (TURIM, 2001).

Em seu filme At Land, Maya Deren não só dirige como interpreta a personagem principal, uma mulher aflita e inquieta. O filme inicia com Deren sendo banhada pelo mar e, a partir daí, segue uma jornada narrada visualmente (trata-se de um filme mudo) de forma bastante surreal, em que ela encontra diversas pessoas – muitas delas ignorando sua presença – e se depara com várias versões de si mesma. O tom do filme é sombrio e, não raro, angustiante. A imagem criada da mulher é de uma pessoa perturbada e ansiosa, sempre perseguindo (e sendo perseguida por) algo pouco claro.

Apesar de construírem identidades femininas bastantes divergentes, o clipe Cherish e o filme At land dialogam visualmente, ao menos de forma implícita – já que nem Madonna nem o diretor Herb Ritts assumiram qualquer influência da obra de Maya Deren. Em seu famoso blog "Madonna Scrapbook", Whacker (2010) constatou a semelhança entre os dois trabalhos (Fig. 6). E em seu site de crítica de arte contemporânea "Freak Show Business", Santos (2009) apresentou uma interessante fotomontagem comparativa, em que também se percebe o evidente diálogo imagético entre as duas obras (Fig. 7).



Chegamos então à conclusão de que há uma aproximação imagética entre o clipe Cherish (Madonna, 1989) e o curta-metragem At land (Deren, 1944), já que ambos possuem uma forma semelhante: fotografia em preto e branco, figurino idêntico entre as protagonistas, cenário similar (praia, mar, ondas), etc. Essa forma semelhante, no entanto, está implícita, pois não foi expresso em nenhum momento (quer por indícios no clipe, quer por entrevistas dos artistas envolvidos) de que a obra de Maya Deren tenha servido de influência visual para a composição do vídeo. Essa é, na verdade, uma 'descoberta' – ou, para ser mais preciso, uma suposição – de fãs e críticos.

Já, quanto à imagem da mulher construída, observamos que há um total distanciamento entre as duas personas: enquanto Madonna representa uma mulher feliz e apaixonada, Deren corporifica uma mulher ansiosa e atormentada. O clipe se situa, assim, no quadrante (3) do Gráfico 6.


O clipe Hollywood (Fig. 8), além de sua acachapante beleza plástica, possui outra peculiaridade na videografia de Madonna: foi formalmente acusado de plágio por Samuel Bourdin, que possui os direitos autorais sobre as fotografias de seu pai, Guy Bourdin. Não é exagero afirmar que Guy Bourdin (1929-1991) foi um dos mais importantes, influentes e inovadores fotógrafos de moda e de publicidade de todos os tempos. Para a crítica Alison Gingeras (2006), Bourdin foi responsável por redefinir conceitos e estabelecer novos padrões estéticos do mundo fashion e publicitário, mesclando em suas obras surrealismo, glamour, ironia, sensualidade e muita polêmica.


Madonna e o diretor Jean-Baptiste Mondino retomaram uma série de imagens produzidas originalmente por Guy Bourdin, apresentando no videoclipe Hollywood uma 'releitura' não creditada arriscadamente muito próxima do texto-fonte, como é possível constatar nas fotomontagens da Fig. 9.


Em uma entrevista exibida no programa GNT Fashion (veiculada no canal GNT, em 14/09/2009), a apresentadora e editora de moda Lilian Pacce pediu que Samuel Bourdin esclarecesse a história do processo contra Madonna. Ele contou que, apesar do respeito pela cantora e pelo diretor do clipe, o plágio é evidente: "[...] o que eles fizeram foi uma colagem [dos trabalhos de Guy Bourdin] com modificações e não há nenhum crédito, não se reconhece a fonte. A influência do meu pai não foi reconhecida" (BOURDIN, 2009).

Nas relações de intericonicidade que se estabelecem nas produções artísticas, a fronteira que separa a 'inspiração' do mero plagiato nem sempre é muito clara. Se no mundo jurídico a definição de plágio parece em princípio precisa, nas complexas teias intertextuais construídas entre discursos verbais e não-verbais – sobretudo em se tratando de obras de arte –, essa avaliação está sempre sujeita a controvérsias. A fim de evitar prolongamentos desnecessários sobre o tema, assumo aqui como critério de definição do que é plágio ou não a decisão judicial ou administrativa julgando se um texto (verbal ou não-verbal) é original ou se é fruto de apropriação ilegal.

Quanto à função intertextual do nosso modelo, fica claro que tanto as fotos iconoclastas de Guy Bourdin quanto a letra corrosiva da canção Hollywood seguem uma mesma direção de olhar crítico sobre o status quo. Com suas lentes, Bourdin conseguia conciliar um glamour altamente sofisticado e um tom mordaz do mundo da moda, através de imagens "recheadas de sexualidade e violência, fugindo do óbvio nas cenas cotidianas" (PACCE, 2009). Já na letra de Hollywood (composta por Madonna e Mirwais Ahmadzaï), a cantora ironiza: "Todo mundo vem pra Hollywood / Eles querem se dar bem no pedaço / Eles gostam do cheiro de sucesso em Hollywood / Como isso poderia lhe machucar se parece tão bom?".

Por sua vez, quanto à forma da intertextualidade entre as imagens de Bourdin e do videoclipe, é possível perceber uma óbvia semelhança visual e 'de atitude' entre as identidades femininas construídas nos dois casos. Madonna, no entanto, ao deixar de creditar a autoria do texto-fonte, pretendia deixar apenas implícita essa intericonicidade. O vídeo foi concebido, portanto, como pertencente ao quadrante (1) do Gráfico 7 – antes, naturalmente, de o plágio ter sido revelado11 11 Por acordo extrajudicial, Madonna e os demais acusados de plágio reconheceram a intericonicidade formal entre os discursos e o clipe passou a se localizar, pois, no quadrante 2, à semelhança do Gráfico 5. .


Considerações finais

Vimos assim, ao longo deste artigo, como opera o modelo proposto de análise da intertextualidade. Restam, contudo, algumas questões não resolvidas, aqui suscitadas a título de provocação para possíveis debates posteriores. Uma delas é seguinte: se há uma semelhança imagética formal tão evidente tanto entre as Figs. 1 e 2 (Madonna em Material Girl e Marilyn Monroe em Os homens preferem as loiras) quanto entre as Figs. 8 e 9 (Madonna em Hollywood e imagens de Guy Bourdin), por que só o clipe Hollywood é considerado um plágio e não Material Girl?

Uma resposta possível a essa pergunta pode ser encontrada a partir da noção de memória socialmente partilhada em uma dada cultura. Nesse sentido, portanto, a imagem exuberante de Marilyn cantando Diamonds Are a Girl's Best Friend já integra a memória social da cultura ocidental, constituindo assim um discurso fundador. Ou seja, apesar de ser possível identificar o texto-fonte de modo preciso (e, obviamente, a sua autoria), ele já faz parte do nosso imaginário coletivo, independentemente de estar ou não legalmente no domínio público (algo que aconteceu também no caso do videoclipe ao vivo de Vogue com relação à imagem de Maria Antonieta).

Uma flagrante evidência dessa hipótese pode ser constada a partir das várias 'releituras' pelas quais a icônica apresentação de Marilyn Monroe vem passando em diferentes mídias, tais como em comerciais impressos e televisivos, em filmes, etc. Por outro lado, Guy Bourdin ainda se encontra restrito a um seleto grupo de profissionais da moda e da publicidade. Apesar de ter suas imagens veiculadas em várias publicações internacionais por mais de 30 anos, o fotógrafo francês permanece desconhecido do grande público.

Em outras palavras, por não integrarem a nossa memória coletiva, as imagens femininas criadas por Guy Bourdin – ao contrário da antológica performance de Marilyn – ainda possuem um traço autoral bastante marcado, que as impede de ser tomadas de empréstimo sem a devida autorização e atribuição de crédito. Além disso, também é preciso considerar o fato de que a ampla divulgação de uma obra fílmica – sobretudo protagonizada por uma estrela consagrada como Marilyn Monroe – viabiliza um poder de assimilação cognitiva e cristalização social bem mais sólido e duradouro do que fotos em revistas de moda ou do que as videoartes produzidas por Bourdin.

Assim, tal como podemos observar a partir da discussão dos exemplos de videoclipes analisados anteriormente, é fundamental levarmos em consideração o papel desempenhado pela intertextualidade na produção de sentidos do texto videoclíptico. Evidentemente, nem todo clipe será passível de ser enquadrado de forma tão precisa em um dos gráficos acima. É possível encontrarmos textos videoclípticos dialogando com outros textos de modo multifacetado e pouco claro, o que Fairclough (2001, p.152) denomina de intertextualidade mista, "em que textos ou tipos de discursos estão fundidos de forma mais complexa e menos facilmente separável".

Daí a importância, inclusive, de termos selecionado exemplos de uma artista com uma extensa obra videográfica. Com base nos clipes escolhidos e discutidos da cantora Madonna, foi possível 'didatizar' a maneira como a intertextualidade pode ser compreendida em termos de dois contínuos quanto à forma e à função.

Por fim, cabe enfatizar a necessidade de mudarmos essa perspectiva dicotômica ainda majoritária de que 'texto é para ler' x 'imagem é para ver'. Com a presença na contemporaneidade de textos cada vez mais multissemióticos, é importante atentarmos não só para seus elementos verbais, mas também para todos os seus outros componentes (imagéticos, sonoros, etc.). Só assim é possível realizarmos uma interpretação integral e apropriada desse texto e dos variados modos como ele dialoga com outros textos que circulam socialmente12 12 O presente trabalho constitui, na verdade, um recorte de um dos temas tratados na minha tese de doutorado, intitulada "O ethos e o pathos em videoclipes femininos: construindo identidades, encenando emoções" (MOZDZENSKI, 2012) e orientada pela Profa Dra. Angela Paiva Dionisio. .

Recebido em 12/03/2013

Aprovado em 24/10/2013

  • ARBEX, M. Intertextualidade e intericonicidade. In: I Colóquio de Semiótica da UFMG, 1, 2000, Belo Horizonte. Anais do I Colóquio de Semiótica da UFMG Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2000. Disponível em: <www.letras.ufmg.br/site/publicacoes/LIVROCOLOQSEM7.doc>. Acesso em: 10 mar. 2013.
  • AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Trad. Celene M. Cruz e João Wanderley Geraldi. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, n. 19, p.25-42, jul./dez. 1990.
  • BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski Trad. Paulo Bezerra. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
  • _______. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M.M. Estética da criação verbal Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.261-306.
  • _______. (VOLOSHINOV, V.N.). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico nas ciências da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 11. ed. São Paulo: Hucitec, 2004.
  • BAZERMAN, C. Intertextualidade: como os textos se apoiam em outros textos. In: BAZERMAN, C.; HOFFNAGEL, J.C.; DIONISIO, A.P. (orgs.). Gênero, agência e escrita Trad. Judith Hoffnagel (Coord.). São Paulo: Cortez, 2006, p.87-103.
  • _______. Intertextualidades: Volosinov, Bakhtin, Teoria Literária e Estudos de Letramento. In: BAZERMAN, C.; HOFFNAGEL, J.C.; DIONISIO, A.P. (orgs.). Escrita, gênero e interação social Trad. Judith Hoffnagel (Coord.). São Paulo: Cortez, 2007, p.92-109.
  • BOURDIN, S. Guy Bourdin: A message for you São Paulo: GNT Fashion (GNT canais Globo Sat), 14 out 2009. Entrevista concedida a Lilian Pacce.
  • CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D. Dicionário de análise do discurso Trad. Fabiana Komesu (Coord.). São Paulo: Contexto, 2004.
  • COURTINE, J-J. Discours et image: semiologie des messages mixtes (Descriptifs des séminaires année 2006-2007). Paris: Université Sorbonne-Nouvelle (Paris 3), 2006. Disponível em: <http://www.cavi.univ-paris3.fr/ILPGA/ED/DIFLE1_seminaires.html>. Acesso em: 27 out. 2009.
  • CUNHA, D. A. C. O funcionamento dialógico em notícias e artigos de opinião. In: DIONISIO, A. P.; MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. (orgs.). Gêneros textuais e ensino 2.ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2003, p.166-179.
  • FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social Trad. Izabel Magalhães. Brasília: UnB, 2001.
  • FALCONE, K. O acesso dos excluídos ao espaço discursivo do jornal Recife: Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE, 2005.
  • GENETTE, G. Introduction à l'architexte Paris: Seuil, 1979. [Coll. Poétique]
  • GINGERAS, A.M. Guy Bourdin London: Phaidon Press, 2006.
  • KELLNER, D. Madonna, moda e imagem. In: KELLNER, D. A cultura da mídia estudos culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-moderno. Trad. Ivone Castilho Benedetti. Bauru: EDUSC, 2001, p.335-375.
  • KOCH, I. Introdução à linguística textual São Paulo: Martins Fontes, 2004.
  • _______; BENTES, A. C.; CAVALCANTE, M. M. Intertextualidade: diálogos possíveis. São Paulo: Cortez, 2007.
  • KRESS, G.; LEITE-GARCÍA, R.; VAN LEEUWEN, T. Semiótica discursiva. In: VAN DIJK, T.A. (org.). El discurso como estructura y proceso. Estudios del discurso: introduction multidisciplinaria. Vol. 1. Barcelona: Gedisa editorial, 2000, p.373-416.
  • KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Multimodal discourse: the modes and media of contemporary communication. New York: Oxford University Press, 2001.
  • KRISTEVA, J. Introdução à semanálise Trad. Lúcia Helena França Ferraz. São Paulo: Perspectiva, 1974.
  • LEVER, E. Maria Antonieta: a última rainha da França. Trad. S. Duarte. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.
  • MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso Trad. Freda Indursky. 3.ed. Campinas: Pontes/ Ed. da Unicamp, 1997.
  • _______. Gênese dos discursos Trad. Sírio Possenti. Curitiba: Criar Edições, 2005.
  • MARCUSCHI, L.A. Cognição, linguagem e práticas interacionais Rio de Janeiro: Lucerna, 2007.
  • MILANEZ, N. A disciplinaridade dos corpos: o sentido em revista. In: SARGENTINI, Vanice; NAVARRO, Pedro (orgs.). M. Foucault e os domínios da linguagem: discurso, poder, subjetividade. São Carlos: Claraluz, 2004, p.183-200.
  • _______. O corpo é um arquipélago: memória, intericonicidade e identidade. In: NAVARRO, P. (org.). Estudos do texto e do discurso: mapeando conceitos e métodos. São Carlos: Claraluz, 2006, p. 153-179.
  • MOZDZENSKI, L. O ethos e o pathos em videoclipes femininos: construindo identidades, encenando emoções. 2012. 356 f. Tese (Doutorado em Linguística) Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2012. Disponível em: <http://www.pgletras.com.br/autores/tese2012-Leonardo-Pinheiro-Mozdzenski.html>. Acesso em: 14 maio 2013.
  • O'BRIEN, L. Madonna 50 anos: a biografia do maior ídolo da música pop. Trad. Inês Cardoso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
  • PACCE, L. Guy Bourdin: tudo o que você tem que saber. MSN Moda (Blog da jornalista Lilian Pacce), 12 ago. 2009. Disponível em: <http://msn.lilianpacce.com.br/portfolio/guy-bourdin-portfolio/>. Acesso em: 10 mar. 2013.
  • PELLEGRINI, T. Narrativa verbal e narrativa visual: possíveis aproximações. In: PELLEGRINI, T. et al. Literatura, cinema e televisão São Paulo: Ed. Senac São Paulo / Instituto Itaú Cultural, 2003, p.14-35.
  • PIÈGAY-GROS, N. Introduction à l'intertextualité Paris: Dunod, 1996.
  • SANT'ANNA, A. R. Paródia, paráfrase e cia São Paulo: Ática, 1985.
  • SANTOS, A. A discreta influência de Maya Deren na arte do videoclipe. Freak Show Business, 10 abr. 2009. Disponível em: <http://freakshowbusiness.com/2009/04/10/a-discreta-influencia-de-maya-deren-na-arte-do-videoclipe/>. Acesso em: 7 mar. 2013.
  • STOCKBRIDGE, S. Intertextuality: video music clips and historical film. In: O'REAGAN, T.; SHOESMITH, B. (Eds.). History on/and/in film Perth: History & Film Association of Australia, 1987, p. 153-158.
  • TARABORRELLI, J.R. Madonna: uma biografia íntima. Trad. Cássio de Arantes Leite. São Paulo: Globo, 2003.
  • TURIM, M. The ethics of form: structure and gender in Maya Deren's challenge to the cinema. In: NICHOLS, B. (Ed.). Maya Deren and the American avant-garde Berkeley: University of California Press, 2001, p.77-102.
  • VAN DIJK, T.A. Discourse and context: a sociocognitive approach. New York: Cambridge University Press, 2008.
  • WHACKER, P. Cherish at land. Madonna Scrapbook, 28 fev. 2010. Disponível em: <http://madonnascrapbook.blogspot.com/2010/02/cherish-at-land.html>. Acesso em: 7 mar. 2013.
  • 1
    Não cabe detalhar neste trabalho toda a profusão taxionômica de classificação dos tipos de intertextualidade. Mencionarei aqui apenas alguns autores mais citados nos trabalhos brasileiros. Para uma análise bem mais extensiva sobre o tema, consultar Bazerman (2007), Fairclough (2001) e Koch, Bentes e Cavalcante (2007).
  • 2
    De particular interesse para esta investigação dentro dessa miríade de terminologias, resta tão-somente o fato de que Koch, Bentes e Cavalcante (2007, p. 130), ao criticarem as propostas dicotômicas de Piègay-Gros e de Authier-Revuz, sugerem que seria "mais adequado considerar variados graus de explicitude". As autoras, no entanto, não chegam a propor um modelo desse tipo de análise nem sistematizam como se daria um estudo da intertextualidade realizado a partir desses "graus de explicitude". Seria, na verdade, uma mescla daquilo que Bazerman (2006) denomina de "níveis de intertextualidade", "técnicas de representação intertextual" e "alcance intertextual".
  • 3
    Assumo a noção de
    contexto sob o paradigma sociocognitivista. Em linhas gerais, contextos são definidos como as interpretações subjetivas (sociocognitivamente construídas) dos interlocutores sobre as propriedades relevantes da
    situação social, interacional ou comunicativa da qual participam (VAN DIJK, 2008).
  • 4
    Adoto aqui o termo
    função (tomado em seu sentido lato) para caracterizar o critério de organização desse contínuo (
    Gráfico 2), embora reconheça a carga semântica dessa expressão já associada a alguns referenciais teóricos bastante distintos daqueles que são utilizados neste trabalho.
  • 5
    A opção pelos clipes da
    popstar Madonna se deu, em primeiro lugar, em razão da sua vasta carreira videográfica, o que permite um leque mais amplo de opções e possibilidades de análise das suas relações intertextuais. Além disso, como argumenta Kellner (2001), os vídeos de Madonna parecem sempre fazer referências ou prestar tributos a outras variadas formas de arte: pintura, fotografia, cinema, moda, etc. Todos os clipes da cantora aqui citados podem ser vistos em seu
    site oficial: <
    http://www.madonna.com> (acesso em 10 mar. 2013).
  • 6
    Essa antológica performance de Marilyn Monroe pode ser assistida neste
    link: <
    http://www.youtube.com/watch?v=Q_aqOTVKebY> (acesso em 10 dez. 2011).
  • 7
    O filme pode ser assistido neste
    site: <
    http://www.youtube.com/watch?v=lD088nkJlD4> (acesso em: 7 mar. 2013).
    8 Na
    Fig. 6, a imagem à esquerda apresenta stills do videoclipe
    Cherish; a da direita, do filme
    At Land.
    9 Na
    Fig. 7, a coluna esquerda apresenta stills do filme
    At land; a direita, do videoclipe
    Cherish.
    10 Na
    Fig. 9, em cada uma dessas seis composições, a imagem à esquerda apresenta uma foto de Guy Bourdin ou um still de uma de suas videoartes; a imagem à direita, um still do videoclipe
    Hollywood.
  • 11
    Por acordo extrajudicial, Madonna e os demais acusados de plágio reconheceram a intericonicidade formal entre os discursos e o clipe passou a se localizar, pois, no quadrante 2, à semelhança do
  • 12
    O presente trabalho constitui, na verdade, um recorte de um dos temas tratados na minha tese de doutorado, intitulada "O
    ethos e o
    pathos em videoclipes femininos: construindo identidades, encenando emoções" (MOZDZENSKI, 2012) e orientada pela Profa Dra. Angela Paiva Dionisio.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Dez 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      12 Mar 2013
    • Aceito
      24 Out 2013
    LAEL/PUC-SP (Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Rua Monte Alegre, 984 , 05014-901 São Paulo - SP, Tel.: (55 11) 3258-4383 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: bakhtinianarevista@gmail.com