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Da conquista à resistência Kaiowa: uma história de luta e de crença no bem viver

From conquest to Kaiowa resistance: a story of struggle and growth in well-being

CHAMORRO, Graciela. História Kaiowá. : das origens aos desafios contemporâneos. São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2015. 320. Coleção Povos Indígenas. 9788560990238.

Com cobertura de longa duração de tempo, em “História Kaiowa: das origens aos desafios contemporâneos”, Graciela Chamorro propõe narrar uma história indígena dos Kaiowa utilizando-se de fontes documentais, desde o período colonial até a contemporaneidade, de estudos e de relatos de historiadores, antropólogos, missionários, viajantes, cronistas e sertanistas, além de dados etnográficos de seu trabalho de campo junto a esse povo, que durou mais de trinta anos. Por se tratar de um período de longa duração, é possível perceber lacunas, próprias desse tipo de pesquisa. Porém, isso não tira a importância da obra para o povo Kaiowa, para a história indígena e nem para as disciplinas de história e de antropologia. O livro consegue instigar o leitor propondo um movimento referente às ‘possíveis’ origens desse povo, bem como busca explorar as agências indígenas nos processos históricos, em suas relações de ações e saberes pautadas em contexto colonial.

A autora é heterogênea em sua formação acadêmica, e isso faz diferença no conjunto da obra. Com graduação em Teologia e em Música, ela guinou para mestrado em História, dois doutorados – um em Teologia e outro em Antropologia – e, ainda, para dois pós-doutorados em Romanística. Todas essas áreas compõem ampliações e desdobramentos que estão refletidos na obra. Graciela Chamorro dá-nos a oportunidade de conhecer melhor esse povo, trazendo informações a partir da cultura material e imaterial – práticas religiosas, rituais, mitos, denominações, expressões, parentesco etc. Como poucos, ela consegue transitar da história e da antropologia para a linguística, fornecendo-nos ferramentas que ajudam a compreender nomes, topônimos e práticas culturais, sem negligenciar o processo histórico. Mais do que isso, chama a atenção como esta autora trabalha a língua Kaiowa, tentando explorar usos que dizem sentido para eles enquanto coletivo.

Mesmo trabalhando sob uma perspectiva histórica e antropológica, o exercício teórico-metodológico tem força histórica predominante. A cada início de capítulo, Chamorro apresenta as fontes que serão trabalhadas para sua escrita e interpretação. Para o leitor informado, esse ‘modo de fazer história’ facilita o entendimento das múltiplas espacialidades e temporalidades, que vão se sobrepondo e justapondo a cada evento, contexto e período. Ao mesmo tempo, a proposta impele o movimento nas fronteiras dos campos disciplinares, rendendo entendimentos mais amplos, tanto por conta da formação acadêmica da autora quanto pelos instrumentais que ela mobiliza para construir uma história Kaiowa.

No capítulo inicial, Chamorro faz uma discussão sobre nomes, autodenominações e identidades atribuídas aos Kaiowa. Para esse intento, ela marca uma posição e demonstra que não há como afirmar uma origem e, tampouco, como tratar a documentação histórica como positivista e determinista. Faz-se necessário o tratamento da documentação sem incorrer em armadilhas, por exemplo, lê-la como um conjunto de realidades constatadas. A partir de um exercício processualista, a autora parte do nome genérico até chegar a uma autodenominação Kaiowa. Com essa reflexão, fornece um pano de fundo para pensar a complexidade do ato de nomear, ou seja, dos processos denominativos e autodenominativos, apontando para o caráter relacional dos etnônimos, para os múltiplos sentidos dos nomes – que implicam níveis plurais de (auto)definição – e também para a relativização na construção da identidade. Ela não se contenta em fazer o exercício para chegar em uma autodenominação Ka’agua (Kaiowa). Chamorro vai além e traz a questão sobre nomes e identidades étnicas na história indígena, marcando de maneira concisa discussões relevantes para qualquer incursão sobre o tema, pois não se trata, como ela diz, de traçar uma linha contínua, tanto étnica quanto histórica, mas sim de deixar claro quão complexa é a questão e demonstrar que as “[...] identidades emergem e se consolidam em determinadas conjunturas [...]” (Chamorro, 2015CHAMORRO, Graciela. História Kaiowa: das origens aos desafios contemporâneos. São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2015. 320 p. (Coleção Povos Indígenas)., p. 44).

Em seguida, a partir do segundo capítulo, ela passa a intensificar fontes históricas, de modo a costurar espacialidades que delineiam uma ordem de tratamento das questões, perfazendo uma linha temporal, desde a época pré-colonial até a contemporaneidade.

No capítulo seguinte, a autora vai buscar como fonte informações da arqueologia e a glotocronologia. Com isso, Chamorro refina o levantamento de dados sobre os processos de constituição de territórios, de deslocamentos, de interações, de conflitos etc. Nesta obra, ela inova, trazendo essas duas áreas do conhecimento que no Brasil pouco dialogam com a antropologia e a história. O livro apresenta dados sobre a distribuição geográfica das evidências arqueológicas Guarani, com mapas de distribuição dos sítios de tradição Tupiguarani na região de Mato Grosso do Sul, bem como com informações sobre a cultura material, como utensílios cerâmicos e artefatos líticos da tradição Tupiguarani do Maciço Urucum (Corumbá, Mato Grosso do Sul). Assim, Chamorro complexifica também o tratamento dos lugares, associando dados arqueológicos e informações históricas e nos dando uma visão mais ampla sobre a presença humana na região.

Desse modo, a autora imprime uma história indígena de longa duração e, na sequência, explora uma documentação colonial e fontes orais para tratar dos grupos considerados descendentes dos Kaiowa – os Itatim, que também era um topônimo. A região do Itatim, “[...] que corresponderia atualmente à parte do nordeste paraguaio e do centro-oeste brasileiro, do rio Ypané até o rio Miranda [...]” (Chamorro, 2015CHAMORRO, Graciela. História Kaiowa: das origens aos desafios contemporâneos. São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2015. 320 p. (Coleção Povos Indígenas)., p. 56), foi alvo de disputa dos conquistadores europeus (missões e bandeirantes), presença nefasta que foi se estabelecendo e traçando uma história de deslocamentos forçados, exploração, expropriação e imposição de práticas externas ao mundo indígena.

A autora segue no tempo cronológico e penetra o século XIX, no qual os Kaiowa refugiaram-se nas matas em razão do avanço colonial. Esse tempo é caracterizado pela ocupação não indígena das terras Kaiowa e também evidencia a autodenominação Kaiowa (cayuáz, na grafia da época). Para esse fim, Chamorro mobiliza relatos de sertanistas, entre 1830 e 1860, por meio dos quais demonstra a conformidade de interesses entre parte da elite e o império, em convergência com a política indigenista de aldeamentos com intenção de liberação de terras para a colonização, promovendo o esbulho das terras dos indígenas. Nesses relatos, há também informações sobre como eram os aldeamentos indígenas, as casas e como elas eram ligadas por caminhos, além de um conjunto de caracterizações Kaiowa.

Nos capítulos seguintes, Chamorro se concentra no período mais recente, envolvendo os últimos 150 anos. Ela explora as presenças, as ações e as percepções indígenas através dos relatos orais sobre eventos, contextos, espacialidades e temporalidades. Chama atenção como ela insere a guerra do Paraguai, a implantação e a exploração dos ervais pela companhia Mate Laranjeira e por personalidades como Getúlio Vargas e Rondon, imprimindo uma história construída a partir de categorias nativas e embaralhando a noção de tempo – nada cartesiano – dos Kaiowa. Ainda sobre tais contextos, a autora dá conta de uma história dos deslocamentos desses indígenas, que aconteceram por várias motivações, não só profético-religiosas, mas também por razões materiais e relacionais (Chamorro, 2015CHAMORRO, Graciela. História Kaiowa: das origens aos desafios contemporâneos. São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2015. 320 p. (Coleção Povos Indígenas)., p. 109).

Graciela Chamorro, em toda documentação que trabalhou, fez o exercício de cotejar as informações sobre as práticas culturais Kaiowa e Guarani. Além disso, a autora reserva um capítulo para tratar de descrições sobre os Kaiowa que migraram para o Paraná e sobre seus descendentes. Com esse movimento, ela sublinha uma distinção em relação aos Kaiowa do sul do antigo Mato Grosso, que viveram no contexto de exploração da erva mate. Ela seleciona três obras do final do século XIX e do início do XX para o exercício. Com isso, esboça uma etnografia histórica e aponta possibilidades para futuros estudos. Há informações sobre adornos e habilidades corporais, expressões, particularidades da língua Kaiowa, descrições sobre a casa grande, o fogo, a mobília, os utensílios e as armas, a subsistência, a produção de chicha, a festa do Kagwi, a caça e a festa, os rituais, o casamento, o parto, a educação das crianças, as doenças e as deficiências físicas, a cura, os enterros, a música, a organização social, a religião, o tempo e a forma de contar a sua passagem, as viagens e os meios de transporte e as relações dos Kaiowa com os outros povos.

Em seguida, faz o movimento de retorno para os Kaiowa do sul do antigo Mato Grosso, atualmente, Mato Grosso do Sul, nos séculos XX e XXI, período em que a colonização não indígena avançou sobre as terras indígenas, em consonância com uma política integracionista de demarcação de áreas indígenas, capitaneada pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) – atualmente Fundação Nacional do Índio (Funai) –, que estabeleceu áreas reduzidas para grupos indígenas em todo o Brasil e assegurou grandes porções de terras para as frentes de expansão. Esta foi uma redefinição geográfica que em nenhum momento esteve desligada de um forte interesse político-econômico, envolvendo poderes locais, regionais e nacionais. Esse processo de entrega das terras indígenas por parte do Estado para a colonização acarretou um conflito fundiário dos mais perversos no contexto atual. Juntamente com o trabalho indigenista oficial, os Kaiowa foram alvo da ação de algumas igrejas, sendo a mais importante a Missão Evangélica Caiuá, também tratada na obra.

Ao manejar uma documentação mais contemporânea, a autora inclui também material etnográfico de antropólogos que estiveram entre os Kaiowa ao longo do século XX. Entre eles, o casal Virgínia D. Watson e James Watson, Egon Schaden, Eduardo Galvão e Nelson Teixeira. Esses dados tratam dos modos de vida das comunidades Kaiowa entre as décadas de 1940 e 1970, e a autora vai traçando um processo de mudança desses grupos sobre vários aspectos do cotidiano. Um ponto que chamou minha atenção entre a riqueza das informações é o conjunto de fotografias de James Watson na década de 1940. Inclusive, um destaque da obra como um todo é o caderno de imagens que reúne uma história Kaiowa através de ilustrações, pinturas, mapas e fotografias. A autora conjuga imagens e palavras que fazem parte de um mesmo contexto histórico, realizando conexões e ampliando o entendimento de suas interpretações. Entre os dados dos antropólogos, ela também se insere, para pontuar uma questão de suma importância para esses indígenas. Apresenta informações recentes sobre as denominações dadas aos parentes pelos Kaiowa em sua língua. Essa contribuição de Chamorro tem o propósito de assinalar a revitalização da língua como uma bandeira da luta dos Kaiowa na sua história contemporânea (Chamorro, 2015CHAMORRO, Graciela. História Kaiowa: das origens aos desafios contemporâneos. São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2015. 320 p. (Coleção Povos Indígenas)., p. 174).

A partir daí, as fontes passam a ser a memória indígena de seus interlocutores – Paulito Aquino, Machu Mônica, Machu Tereza etc. –, que a autora faz questão de identificar, trazendo trechos onde eles descrevem suas vivências e rituais, fazem suas leituras do processo histórico de chegada dos colonos ao longo do século XX, das pressões do Estado, forjando a redução nas reservas indígenas. Ela trabalha também com dados de dissertações, teses de doutorado e laudos antropológicos do período recente, que expõem o conflito de terras em curso, que tem produzido violências alarmantes contra os indígenas no estado de Mato Grosso do Sul. Na obra, esse cenário vem explicitado a partir de uma resposta dos Kaiowa, que decidiram pelo não confinamento nas reservas até então demarcadas e por um movimento de retomada através de acampamentos e de reorganização de comunidades por meio de suas lideranças, a fim de reaverem seus territórios tradicionais, seus antigos Tekoha, lugares que os constituem em uma história interna ao grupo, onde a cultura e a identidade Kaiowa carregam suas historicidades, conjugando suas temporalidades, espacialidades, vivências e práticas.

Com essa obra, necessária e atual, Graciela Chamorro traça não apenas uma história Kaiowa – no sentido de dar a conhecer diversos aspectos culturais, os processos de redução desse povo durante a presença e a conquista colonial –, mas, sobretudo, oportuniza o conhecimento da luta, da persistência e da resistência Kaiowa.

REFERÊNCIAS

  • CHAMORRO, Graciela. História Kaiowa: das origens aos desafios contemporâneos. São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2015. 320 p. (Coleção Povos Indígenas).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018
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