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Quando eles registram, escrevem e publicam: o antropólogo como editor

When they register, write, and publish: the anthropologist as editor

Rivera, Andía, J. J.. 2018. Cañaris: etnografias y documentos de la sierra norte del Perú. (Colección Ethnographica). Buenos Aires: Asociación Civil Rumbo Sur, 978-987-4474-14-18.

Em sua etnografia dos seres-terra (earth beings) nos Andes meridionais do Peru, De la Cadena (2015)De La Cadena, M. (2015). Earth beings: ecologies of practice across Andean worlds. Durham: Duke University Press. menciona e discute longamente – fazendo um uso etnográfico inovador, ainda que não descreva detalhadamente seu conteúdo – uma caixa contendo mais de quatrocentos documentos escritos guardados, ao longo de anos, por Mariano Turpo, um de seus principais informantes. A caixa, que ela chama de o arquivo de Mariano (Mariano’s archive), continha um conjunto heteróclito de papéis, que documentavam a história pessoal de Mariano, mas também seu entrelaçamento com as lutas sociais nas quais os camponeses desta região do país haviam se envolvido entre as décadas de 1920 e 1970. Com isso, entre outras coisas, o arquivo de Mariano – como, talvez, todo arquivo indígena ou toda coleção documental não controlada pelo estado –, mais do que depósito de memória, constituía, segundo a autora, uma forma de luta contra os poderes estatais, contra a expropriação e o apagamento, e, sobretudo, contra modelos dominantes – all too human – de se fazer política.

Pode-se dizer que “Cañaris: etnografias y documentos de la sierra norte del Perú”, editado pelo andinista peruano Juan Javier Rivera Andía, é uma espécie de versão publicada de um arquivo como o de Mariano: uma “heterodoxa antologia”1 1 Optei por traduzir para o português os curtos trechos da obra que cito aqui. Deve-se dizer que o livro exige bastante de seu leitor, uma vez que, embora a maior parte seja escrita em espanhol, traz um artigo em inglês e outro em francês, além de vários trechos na língua quechua local. , tal como definido pelo autor/organizador, trabalho que resulta na compilação e análise de um conjunto heteróclito de documentos – crônicas, panfletos, desenhos, canções, memórias, revistas, cores e sons – acerca de uma região pouco conhecida antropologicamente do norte do Peru, a região Cañaris, na sierra de Lambayeque, próxima à fronteira com o vizinho Equador. Resulta dessa coleção um interessantíssimo exercício antropológico, em que se cruzam a atividade do cientista social não tanto como analista sob controle permanente do texto, mas como editor, aquele que possibilita que as vozes e os pontos de vista dos outros, nossos interlocutores, possam ser efetivamente ouvidos (ou melhor, lidos) diretamente ou através de uma mediação o mais reduzida possível. É assim que Rivera Andía (2018), a seu modo, aplica as lições do projeto decolonizante da antropologia pós-modernista dos anos de 1980. Não por meio de estratégias textuais, por vezes confusas, ou discussões sobre se a autoria pode ser resolvida nas capas de livros e nos agradecimentos em artigos (Clifford, 1998Clifford, J. (1998). A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: UFRJ.), mas através de uma abordagem, diríamos, “museológica”, em que vários materiais distintos são ajuntados por uma certa narrativa que lhes dá coerência, ainda que não necessariamente se interponha ao nosso contato com os materiais propriamente ditos – estes que conformam a intenção interpretativa, reflexiva e crítica, que já não é mais monopólio do cientista. Estes materiais podem, todavia, combinar-se com a narrativa explicativa antropológica, e é dessa maneira que “Cañaris: etnografias y documentos de la sierra norte del Perú” está habilmente organizado em duas seções: a primeira delas contendo textos inéditos, produzidos na região em tela; a segunda agregando uma série de ensaios etnográficos contemporâneos escritos por investigadores profissionais a respeito da mesma zona.

É preciso, entretanto, ressaltar: trata-se de uma “museologia” contemporânea, que atenta para o cotidiano das pessoas comuns – que, para antropólogos, nunca são, obviamente, comuns (constituindo sua “tradição”) – e se interessa por coisas aparentemente banais da vida desses indivíduos (cadernos manuscritos, folhetos que divulgam festas, revistas escolares, textos mimeografados ou impressos, livros esquecidos). E é preciso destacar, ainda, que a antropologia está ali, seja nas análises etnográficas da segunda seção, seja nos materiais compilados na primeira seção – que constituem, talvez, a grande inovação proposta neste trabalho – e que são produtos das análises da gente da serra de Lambayeque sobre ela mesma. “Narrações outras”, sugere o editor, ao discutir as dificuldades que antropólogos usualmente demonstram com a oralidade materializada na escrita – uma “contaminação” daquela por esta – e na sua publicação.

É isso que permite a Frank Salomon, no prefácio ao livro, afirmar que o leitor tem, diante de si, um conjunto de “auto-etnografias”, que autorizam conhecer “a formulação de auto-imagens da coletividade” (Rivera Andía, 2018, p. 12). Neste caso, mais do que os frequentemente relatados “informantes privilegiados” – aqueles perspicazes filósofos (nativos) da vida (nativa) que muitos etnógrafos relatam encontrar em campo – Rivera Andía (2018) nos proporciona o contato com formas escritas (e, às vezes, publicadas) do que poderíamos denominar de “antropologias nativas” ou “populares”, as quais, com toda certeza, constituem parte riquíssima do que se denomina a cultura andina desta parte do Peru – e que são descritas pelo trabalho crítico e analítico combinado entre antropólogos profissionais e “amadores”. Talvez seja esta cultura do “homem simples”, nos termos de Martins (2008)Martins, J. S. (2008). A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala. São Paulo: Contexto., ou daquilo que Geertz (2001)Geertz, C. (2001). O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes. denominou de “sistema cultural do senso comum” – “nem indígenas, nem científicos”, tal qual os mestiços da serra de Lambayeque que escrevem em “Cañaris: etnografias y documentos de la sierra norte del Perú”, alertando para o valor dessas autoetnografias escritas espontaneamente, a meio caminho entre a “palavra nativa e a escritura antropológica” (Rivera Andía, 2018, p. 19), para o conhecimento antropológico de um povo, de uma comunidade, de uma região e, até mesmo, de um país.

A primeira seção da obra, como dito, traz, depois de uma introdução do compilador, uma seleção de oito textos inéditos (manuscritos ou impressos) referentes à região Cañaris. Esta parte primeira aborda, principalmente, a história da região Cañaris e aspectos variados da religiosidade, de seu folclore, de sua arte (especialmente música e instrumentos musicais, poesia e danças) e de várias iniciativas locais e regionais relacionadas à educação, à cultura, às obras públicas, ao relacionamento com as cidades costeiras e ao desenvolvimento geral desta zona do norte do Peru – tudo, é sempre bom frisar, segundo a perspectiva dos próprios atores locais, que redigem os textos reunidos neste livro. Nesses vislumbres da vida cotidiana, da política, da religião, da história e da cultura locais – que chamam a atenção pelo nível de detalhamento e da preocupação com o registro acurado de nomes, posições sociais, lugares e datas –, é possível ter uma ideia acerca dos interesses destas pessoas (só aparentemente) comuns das pequenas cidades e povoados da serra de Lambayeque e região. Fornecem, assim, um panorama recheado “[d]aquilo que o homem comum pensa quando livre das sofisticações vaidosas dos estudiosos” (Geertz, 2001Geertz, C. (2001). O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes., p. 116). É digna de nota a preocupação desses textos, às vezes expressa, literalmente, com a preservação desses conhecimentos e informações: tais escritos buscam funcionar como ferramentas contra o esquecimento tanto cultural quanto político e socioeconômico desta parte do norte do Peru.

Este foco na conservação da cultura e das tradições locais conecta a primeira à segunda parte do livro, que agrega oito pequenos ensaios etnográficos, também inéditos, descritos pelo editor como “etnografias mínimas”. Esta seção reúne discussões empreendidas por autores locais e de outras regiões do Peru, e mesmo de fora do país (Canadá e Bélgica), e que se caracterizam não apenas por retomarem, analiticamente, vários dos assuntos abordados pelos documentos da primeira seção, mas, sobretudo, por apresentarem foco – bastante ressaltado na apresentação – em práticas sociais e eventos rituais restritos à região Cañaris ou nunca antes registrados, estudados ou publicados. Trata-se, desse modo, de fazer compor estas etnografias com os documentos reproduzidos na parte anterior do livro, na forma daquela “narrativa” analítica, que amarra e confere sentidos novos aos “materiais” reunidos nesta coleção – neste baú – de costumes, ritos, mitos, músicas e saberes cañarenses. Os ensaios desta parte versam sobre distintos elementos artísticos (com foco, novamente, nas danças, nos ritmos e instrumentos musicais, e nos ritos e festivais, especialmente o grande Inkawasi Takin, da gênese do qual se oferece uma detalhada reconstituição) e simbólico-rituais (o enforcamento do diabo, a doença conhecida como susto, a bruxa conhecida como Aĉakay, personagem de histórias muito populares) da cultura regional da serra norte, sempre ressaltando a importância da coleta de vários apontamentos etnográficos raros, cujos registros são, neste livro, publicados pela primeira vez.

A fusão de ambas as seções, então, acaba por redesenhar a dicotomia entre “documentos” e “etnografias” – ainda que os dois tipos de escritos estejam apartados nas duas partes do livro – e de aproximar a antropologia profissional das antropologias feitas “em casa”, para usar a imagem com a qual Lévi-Strauss (1997)Lévi-Strauss, C. (1997). O pensamento selvagem. Campinas: Papirus. diferencia os modelos nativos daqueles analíticos, dando a esses modelos nativos, manuscritos ou publicados, o devido respeito como estratégias locais de superação de uma invisibilidade imposta tanto pelos centros de poder estatais como pela própria academia. Trata-se, afinal, de colocar os esforços analíticos de comunidades indígenas em pé de igualdade com o discurso antropológico – e se nós, antropólogos, lutamos ao lado desses grupos contra os vários desígnios do capital, faremo-lo, daqui em diante, não só por meio da usual tradução, mas também, e talvez principalmente, por meio da compilação e da divulgação, esforço empreendido por Juan Javier Rivera Andía neste belo trabalho.

É por isso que minar esta oposição entre o discurso nativo e o (meta)discurso antropológico torna-se um ato político: o do reconhecimento de que todos são capazes, por diversas formas, de produzir reflexões críticas e informadas sobre suas condições e sobre as condições dos outros. E todos são capazes de expressar a percepção das igualdades e das diferenças – o que se torna crucial, tem razão Rivera Andía (2018), em sociedades brutalmente desiguais, como é o caso da peruana e, igualmente, da brasileira. Desafiam-se, assim, as “antropologias hegemônicas”, que não são apenas aquelas do norte, europeias ou estadunidenses, mas igualmente aquelas produzidas nos centros de poder regional e intelectual, seja em Lima, seja no Rio de Janeiro.

A comunidade antropológica brasileira ainda tem, lamentavelmente, pouca condição de avaliar a importância dos estudos reunidos neste livro para o conhecimento etnográfico desta porção norte do Peru, onde há poucos estudos, em comparação com o sul andino, centro do antigo poder incaico e foco da maioria das investigações (e do que se sabe a respeito dos Andes aqui nas terras baixas). No entanto, podemos compreender – e (por que não?) atender – a convocação para que os materiais aqui apresentados tomem parte na “reflexão sobre as sociedades andinas” e, de modo mais amplo, “nos debates em torno dos povos indígenas sul-americanos” (Rivera Andía, 2018, p. 31).

Oxalá este estudo-compilação de Juan Javier Rivera Andía inspire trabalhos semelhantes do lado de cá dos Andes: entre antropólogas e antropólogos brasileiros que, superando a falsa oposição entre uma oralidade verdadeira e uma escrita enganadora, possam também colecionar e analisar os escritos de seus interlocutores, as reflexões – manuscritas, mimeografadas, impressas, xerocadas, publicadas, desenhadas – daqueles (e por aqueles) de quem pretendem aprender os modos de vida e, sobretudo, de autopercepção. Que muitos arquivos como os de Mariano Turpo, e como este, ele próprio em papel, sobre Cañaris possam ser, então, descobertos e seus documentos investigados, permitindo alcançar dimensões cada vez mais sofisticadas das culturas e tradições dos outros – e, especialmente, das lutas dos outros contra a exploração e o esquecimento –, mesmo que expressas com uma tecnologia, a escrita, feita à mão ou à máquina, que julgamos erroneamente toda nossa.

  • Vander Velden, F. (2020). Quando eles registram, escrevem e publicam: o antropólogo como editor. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 15(1), e20190089. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2019-0089
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    Optei por traduzir para o português os curtos trechos da obra que cito aqui. Deve-se dizer que o livro exige bastante de seu leitor, uma vez que, embora a maior parte seja escrita em espanhol, traz um artigo em inglês e outro em francês, além de vários trechos na língua quechua local.

REFERÊNCIAS

  • Clifford, J. (1998). A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX Rio de Janeiro: UFRJ.
  • De La Cadena, M. (2015). Earth beings: ecologies of practice across Andean worlds Durham: Duke University Press.
  • Geertz, C. (2001). O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa Petrópolis: Vozes.
  • Lévi-Strauss, C. (1997). O pensamento selvagem Campinas: Papirus.
  • Martins, J. S. (2008). A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala São Paulo: Contexto.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    2020
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