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A nova sistemática e a planctonologia

A nova sistemática e a planctonologia

M. Vannucci* * Trabalho apresentado em 1955, no I Simpósio Latino-Americano sobre Plancton, organizado pela UNESCO, em colaboração com o Conselho Nacional de Pesquisas e a Universidade de São Paulo.

Como é sabido, a expressão "Nova Sistemática" foi cunhada por Huxley que editou em 1940 o livro também intitulado: "The New Systematics". Todavia, essa expressão, de felicidade discutível, apesar de sua vasta aceitação, representa apenas a cristalização de uma tendência geral que surgiu e veio se estabelecendo cada vez mais firmemente nos últimos decênios. O conceito fundamental dessa nova tendência não é realmente novo, pelo contrário, seria fácil demonstrar que há mais de cem anos, já alguns zoólogos clarividentes encararam o problema da classificação dos seres vivos como algo mais do que uma mera catalogação de nomes aplicados a grupos de indivíduos entre si idênticos, facilmente reconhecíveis como pertencentes a esses grupos e que poderiam, portanto, ser sem delongas distribuidos para essa ou aquela gaveta de algum Museu de História Natural.

O termo Nova Sistemática foi geralmente adotado e elogiado como uma expressão feliz. Como citei acima, tal não me parece inteiramente verdadeiro, porque o que é novo hoje, amanhã ou daqui a 10 ou 100 anos será velho, pois é justamente essa uma das características fundamentais das Ciências Naturais: as verdades são sempre transitórias, são apenas degraus, meios, para se alcançar verdades ulteriores. Além disso, o termo Nova Sistemática não diz no que a Nova Sistemática difere da Velha e seria desejável um termo mais apropriado como, por exemplo: sistemática evolutiva, sistemática biológica, sistemática geográfica ou mesmo, sistemática funcional, em contraposição à sistemática fixa e estanque que é a velha sistemática. Longe de mim, porém, o desejo de alterar um termo já estabelecido pelo uso, mesmo porque, a introdução de um novo nome somente serviria para confundir mais o quadro e não simplificá-lo. No fundo, qualquer termo serve, conquanto seja entendido seu significado e usado apropriadamente.

A Nova Sistemática deixa de encarar a espécie como objeto central de seus interesses, pois verificou-se, e confirmou-se, que uma definição da mesma baseada essencialmente em dados morfológicos, não é suficiente. A velha sistemática trabalhava considerando, na prática, a espécie como uma entidade fixa e baseando-se para a distinção das mesmas, sobretudo, ou quase exclusivamente, nos caracteres morfológicos. Os critérios morfológicos são úteis e mesmo indispensáveis, mas não são os únicos que interessam. A espécie é o conjunto de populações formadas por indivíduos que ocupam uma maior ou menor área geográfica, contínua ou discontinua, em que os indivíduos estão sujeitos às variações geográficas e aos vários fatores ecológicos do meio ambiente. A nova sistemática encara a espécie sob todos os seus aspectos biológicos, no sentido mais amplo da palavra, inclusive tendo em vista o fato de que aquilo que temos diante dos olhos é apenas uma determinada fase de uma longa cadeia de formas em evolução contínua. Isso é válido para a grande maioria de espécies pertencentes aos mais variados grupos, afora algumas, talvez, cujo ritmo evolutivo seja especialmente lento. É por essa razão que a nova sistemática ocupa-se principalmente com séries de indivíduos con-específicos e com o estudo das categorias sistemáticas de nível infra-específico, sobretudo as sub-espécies.

Evidentemente, é necessário para esses estudos, possuir uma grande série de espécimes, coletados em todas as partes da área de distribuição da mesma, para poder estudar a sua variabilidade. É, além disso, necessário conhecer o mais detalhadamente possível as condições ecológicas em que viveram os indivíduos em questão, pois a tese aceita é a importância da variação geográfica para a especiação (a produção de novas espécies).

Interessa-nos agora verificar o que foi feito nesse sentido na planctonologia e estudar a aplicabilidade dos conceitos e métodos da Nova Sistemática nesses estudos.

Pelo que disse acima, está implícito que é necessário coletar um grande número de espécimes em toda a área habitada pela espécie, para se poder então proceder a estudos biométricos e à análise estatística dos dados recolhidos.

O material planctónico colecionado, geralmente fornece para a grande maioria das espécies, um grande número de indivíduos e o local geográfico pode ser exatamente registrado. Mas, nesse ponto está a primeira grande dificuldade: não basta situar o ponto geográfico, pois o habitat em que os indivíduos vivem é móvel e os organismos planctónicos são levados juntamente com os deslocamentos das massas de água às quais pertencem, deslocando-se geograficamente a população inteira. É portanto mais interessante conhecer as características físicas e químicas da água em que foi efetuada a coleta, do que propriamente conhecer o ponto geográfico. Acontece, porém, que justamente os dados sobre a temperatura, salinidade, pH, teor de 02 teor de nitratos e fosfatos, são precisamente os que faltam na grande maioria de amostras, pois é relativamente fácil coletar plancton, mesmo a certa profundidade, mas bastante difícil e complicado obter todos esses dados.

Em outros termos, a variação ecológica e o isolamento ecológico, fenômenos esses parcialmente superponíveis e intimamente relacionados e mesmo dependentes do fenômeno da variação geográfica, são os fatores decisivos para a especiação dos animais planctônicos, porque a variação geográfica perde grande parte de seu sentido em virtude da mobilidade do ambiente e da população nele existente.

Vê-se, portanto, que a grandíssima maioria dos nossos conhecimentos sobre a sistemática das espécies planctônicas são forçosamente obtidos e ampliados pelos conceitos e métodos da "velha" sistemática e somente difícil e lentamente, mesmo para o futuro, poderão ser acumuladas "séries" de espécimes que possam ser tratadas com métodos biométricos e estatísticos, tendo-se ao mesmo tempo dados sobre o ambiente ecológico em que viveram os animais em questão. Será sempre preciso lembrar que duas populações planctônicas podem estar vivendo em ambiente idênticos ou pelo menos extremamente semelhantes, mesmo estando a dezenas ou centenas de milhas de distância uma da outra. E, mais ainda, não somente a mesma população, mas também a mesma associação de espécies diferentes pode ser deslocada por muitas e muitas milhas sem que seja sensivelmente alterado o meio ambiente. Inversamente, no mesmo ponto geográfico, em tempos sucessivos podemos ter condições, portanto associações, diferentes.

Outro fenômeno que situa as populações planctônicas numa posição toda especial é o problema do isolamento geográfico.

As populações de animais terrestres, mesmo nos grupos que têm amplos meios de deslocamento e dispersão, como por exemplo aves e mamíferos, encontram barreiras geográficas que limitam a área habitada pelo indivíduo; formam-se assim populações mais ou menos independentes que são intercrusáveis com as vizinhas apenas nas regiões limítrofes. Surgem desse modo os gradientes (ou "clines") de pequenas diferenças gradativas que se somam e substituem ao longo da região habitada pela espécie. As diferenças acumuladas ao longo da área de dispersão da espécie como um todo, podem ser bastante consideráveis, tendo sido e ainda sendo descritos os degraus intermediários mais notáveis como raças geográficas ou sub-espécies. As várias sub-espécies são, entre si, perfeita e expontâneamente cruzáveis afora casos especiais em que a área de distribuição é muito vasta e as sub-espécies extremas perderam a capacidade de se entrecruzarem. Tais espécies politípicas, i. é, formadas por numerosas sub-espécies, ocorrem provavelmente entre os animais planctônicos, mas pelas razões expostas acima, é extremamente difícil poder delimitar tanto a extensão exata da área habitada pela espécie como a distribuição das sub-espécies e muito menos a variabilidade da espécie dentro da região habitada pela mesma. Nenhuma espécie politípica ou "cline" foi, pelo que sei, até agora estudada em espécies planctônicas. Deve-se isso à falta de ciados adequados.

É por essas razões e mais, pela pequena variabilidade das águas marinhas, que a grande maioria das espécies planctônicas é vastamente distribuída e, mesmo as espécies stenooecas ocupam áreas geograficamente muito extensas.

Chegamos, assim, a considerar outra faceta do problema: a situação diferente em que se encontram as espécies stenooecas e as eurycecas.

As espécies euryoecas são aquelas que se adaptam a condições ambientes diferentes e variáveis. No caso das espécies planctônicas, é extremamente difícil saber, e consegue-se isso somente com estudos demorados, coletas contínuas e a aplicação de métodos estatísticos, se é o mesmo indivíduo que se adapta ou suporta as variações do ambiente, ou se é a espécie, como um todo que se habitua a habitats diferentes, por meio de populações ou gerações diferentes e com requisitos diferentes. No caso de espécies em que o mesmo indivíduo se adapta facilmente a condições diferentes, dificilmente teremos a formação de sub-espécies ou raças geográficas, pois a adaptabilidade é nesse caso uma propriedade do indivíduo e não das populações e raças da espécie. A adaptabilidade diferente das raças geográficas explicam-se pela freqüência relativa e pela presença ou ausência de determinados gens. É possível generalizar esse fato, e afirmar, inversamente que, quanto mais sedentária for uma espécie, mais tenderá à formação de süb-espécies. Ora, o caso das espécies planctônicas é exatamente o contrário e essa é provavelmente mais uma das explicações da vasta área ocupada pela maioria das espécies planctônicas e pelágicas. Estamos, nesse caso, na presença de espécies cosmopolitas e dé vasta distribuição e que apresentam pouca variabilidade intraespecífica e escassa tendência à formação de sub-espécies.

No segundo caso, o de espécies em que a adaptabilidade individuai é pequena mas o potencial adaptativo da espécie é grande (mormente pela produção intensa de mutações), teremos a formação de espécies politípicas, com grande variabilidade intraespecífica e formação de grande número de sub-espécies. Ora, procuramos demonstrar que a variação geográfica é fenômeno secundário nos estudos de plancton, de modo que a especiação deve ser essencialmente um fenômeno devido à variação ecológica, precisamos portanto conhecer os dados ecológicos (i. é, os dados hidrográficos e oceanográficos) para poder estudar a variabilidade das espécies politípicas. Justamente esses dados são tão escassos que ainda, a meu ver, é totalmente impossível aplicar os métodos da Nova Sistemática aos estudos de plancton. Os conceitos da Nova Sistemática, porém, podem ser aplicados e não somente podem, mas elevem orientar o planejamento e a execução dos trabalhos.

Uma grande porcentagem de espécies holoplanctônicas e holopelágicas se revelarão como espécies politípicas e o número de espécies descritas será consideravelmente reduzido. Verifiquei isso pessoalmente trabalhando com as hidromedusas.

Mais uma dificuldade no estudo da variação geográfica e ecológica das espécies planctônicas reside no fato seguinte: existência de um grande número de gerações por ano; a ocorrência de diferenças morfológicas, principalmente de tamanho, entre as gerações de inverno e as de verão de uma mesma espécie e a forte influência que o ambiente tem sobre o fenotipo individual em todos os poikilotermas. Essa variação individual, de estação e de gerações, em suma, essa variação intraespecífica introduz nesse quadro mais numerosos fatores que dificultam o estudo da variabilidade intraespecífica.

As reações fenotípicas ao meio ambiente, e consequentes alterações morfológicas individuais são, todavia, muito menos importantes para o estudo das espécies holoplanctônicas do que para as meroplanctônicas. Isso porque as espécies cujo ciclo inteiro se processa através de formas que vivem em suspensão na água, acompanham as mesmas massas de água nos seus deslocamentos oceanográficos, conservando-se, portanto, num ambiente relativamente pouco variável e cujas propriedades são alteradas com lentidão e, por vezes, num ritmo mais longo do que a duração da vida individual (esse último fator reputo de grande importância). Em outros termos, será talvez a mesma espécie que parte do Golfo do México e chega à Europa, levada pelo "Gulf Streain", mas não os mesmos indivíduos; e as várias gerações sofrerão alterações fenotípicas durante o percurso, podendo dar a falsa impressão de serem raças ou até espécies diferentes. De qualquer modo, as alterações do ambiente em que vivem as espécies planctónicas são de muito menor monta do que as das águas que banham as espécies, formas ou fases bentônicas. As espécies planctónicas stenocecas, morrem quando são desviadas das águas às quais pertencem ou quando essas águas misturam-se com outras e perdem suas características. As espécies planctónicas eurtecas irão reagir às mudadas condições do meio com alterações do fenotipo, mas suportarão, até certo ponto, essas mudanças, enquanto que as stenocecas morrem ao serem levadas para outras massas de águas. Surge, portanto, o problema de serem as variabilidades intraespecíficas observadas nas espécies planctónicas sempre, ou não, o indício de serem realmente correspondentes às sub-espécies pertencentes à uma única espécie politípica ou apenas o conjunto de populações fenotípica e passageiramente diferentes, com amplas possibilidades não somente de cruzamentos férteis com as outras populações da espécie mas também com amplas possibilidades de trocas geográficas das várias populações devido ao jogo das correntes e aos deslocamentos das massa de águas. Todos esses fatores retardam ou impedem a especiação.

Caso especial é o dos peixes e talvez de algumas outras espécies pelágicas ou planctónicas de grande ou médio porte, com capacidade de deslocamentos ativos independentes cios deslocamentos do meio e que além disso formam cardumes, e isso é o que interessa, do ponto de vista da sistemática e da formação de espécies novas. Sabe-se, com certeza, para muitas espécies, que ao se tornarem adultos, os indivíduos procuram os mesmos lugares onde nasceram. Evidentemente, formar-se-ão nesse caso grandes cardumes de origem genética homogênea e que funcionarão como populações intercruzáveis comparáveis às populações vizinhas de uma espécie politípica terrestre. Todavia, o próprio fenotipo dos peixes é bastante influenciado pelas condições do meio ambiente. Algumas espécies de peixes foram estudadas sob esses pontos de vista, sendo, por exemplo, o harenque muito provavelmente uma espécie politípica, formada por 13 raças tendo cada uma sua área e época determinadas de desova.

Falamos, até aqui, de espécies holoplanctônicas. Diferente é a situação das espécies meroplanctônicas. Antes de mais nada, é preciso lembrar que foi demonstrada, para grande número de animais bentônicos, a forte ação das condições das águas sobre o fenotipo. Por exemplo, o simples estado de agitação ou calma (em outros termos, profundidade ou fatores locais) das águas altera profundamente a forma e o aspecto das gerações ou espécies sésseis dos celenterados. Além disso, todas as espécies que têm alguma fase fixa no seu ciclo evolutivo individual, são amarradas, por essa mesma fase, à área geográfica em que essa pode viver. A fase ou as fases móveis servem para a dispersão da espécie, mas essa não poderá ultrapassar as fronteiras da zona habitável para a fase fixa. As formas vágeis e os seus descendentes, que ultrapassarem essas fronteiras, serão perdidas para a história evolutiva da espécie. Nesses casos, as fases bentônicas poderão ser facilmente distribuídas em áreas geográficas, ocorrendo entre as áreas, barreiras zoogeográficas mais ou menos estritamente demarcadas. Todavia, a fase móvel terá maiores possibilidades de entrar em contacto e em cruzamento com os indivíduos de outras populações. Se acontecer de ser a fase móvel a fase sexualmente madura, ela poderá se entrecruzar com os indivíduos das populações adjacentes pois, no pelagial, as barreiras e as zonas são por via de regra imprecisa e inconstantemente demarcadas. Resultará desses cruzamentos com outras populações uma série mal delimitada e flutuante de sub-espécies e a formação de um quadro específico extremamente difícil de analisar. Se, por outro lado, a fase livre for a fase lar vária ou sexualmente imatura, é de se esperar o aparecimento de espécies politípicas com a formação de sub-espécies reconhecíveis como tais.

É sempre preciso verificar a possibilidade da ocorrência de gradientes ("clines") independentemente dos gradientes das condições ambientes. Esses, muito provavelmente, serão encontrados.

Presumo que o mesmo poderia ser dito para as espécies das águas costeiras, quer tenham, quer não, fase bentônica e o mesmo para as pouco numerosas espécies bentônicas desprovidas de larvas livremente natantes.

Nos estudos de plancton ocorre mais uma dificuldade: a quase impossibilidade de cruzamentos experimentais.

Esse o quadro geral que se me afigura ao tentar aplicar os métodos da Nova Sistemática às pesquisas de plancton. Nesse tipo de trabalho estamos ainda em parte na fase de depender de coletas ao acaso, incompletas e de coletas efetuadas por expedições. Isso, sobretudo no Atlântico Sul. No Atlântico Norte, no Mar da Mancha e no Mar do Norte, as pesquisas estão muito adiantadas e alguns frutos notáveis já foram colhidos como, por exemplo, o esclarecimento e a compreensão do problema dos indicadores.

Vamos ver, em outro ensaio, o que já foi feito, em matéria de plancton, no Atlântico Sul.

Esse quadro geral parece bastante desanimador mas, se não houvesse mais o que fazer, poderíamos nos considerar falidos e, por outro lado, o muito que já foi feito nesse sentido, em grupos mais trabalhados e sistematicamente melhor conhecidos, ajuda grandemente nosso trabalho e pode nos servir como paradigma.

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    Trabalho apresentado em 1955, no I Simpósio Latino-Americano sobre Plancton, organizado pela UNESCO, em colaboração com o Conselho Nacional de Pesquisas e a Universidade de São Paulo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Jun 2012
    • Data do Fascículo
      1957
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