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Medicina e sociedade

Apesar de as primeiras preocupações com a bioética terem ocorrido após as grandes guerras, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, suas pesquisas tomaram vulto a partir dos anos 1970. Em tempos de mudanças sociais, o principialismo bioético tem muito a contribuir para a ciência e a área de humanidades 11. Pessini L. As origens da bioética: do credo bioético de Potter ao imperativo bioético de Fritz Jahr. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2013 [acesso 18 fev 2020];21(1):9-19. DOI: 10.1590/S1983-80422013000100002
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A bioética surge a partir da tecnicização da medicina, com seus avanços científicos e do poder sobre vida e morte, saúde e doença, qualidade de vida e sofrimento, além das mudanças socioculturais vivenciadas no século XX. O pesquisador americano Van Rensselaer Potter propôs a criação de uma espécie de ponte entre a área da ciência e a de humanidades, ponderando, sob a perspectiva da ética, sobre civilização humana, direitos individuais e dignidade da pessoa humana 11. Pessini L. As origens da bioética: do credo bioético de Potter ao imperativo bioético de Fritz Jahr. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2013 [acesso 18 fev 2020];21(1):9-19. DOI: 10.1590/S1983-80422013000100002
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,22. Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. 7ª ed. Nova York: Oxford University Press; 2013.. Estas situações mudaram totalmente a dinâmica da relação médico-paciente, que atualmente se baseia no princípio da autonomia do paciente sobre seu corpo e sobre a decisão terapêutica. A partir disto, ganham prioridade nos procedimentos médicos a autodeterminação e o termo de consentimento livre e esclarecido, regido pela Resolução CNS 466/2012 33. Conselho Nacional de Saúde. Resolução CNS nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 12, p. 59, 13 jun 2013 [acesso 18 fev 2020]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/37Eo2Ye
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Socialmente, prega-se em todo o mundo o respeito às diferenças, principalmente contra a discriminação e a estigmatização, além da garantia dos direitos individuais 44. Godoi AMM, Garrafa V. Leitura bioética do princípio de não discriminação e não estigmatização. Saúde Soc [Internet]. 2014 [acesso 18 fev 2020];23(1):157-66. DOI: 10.1590/S0104-12902014000100012
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. No Brasil, esses direitos são ratificados pela Constituição Federal de 1988 55. Brasil. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 5 out 1988 [acesso 18 fev 2020]. Disponível: https://bit.ly/37FWFge
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, especialmente em seu artigo 5º. Nesse sentido, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura 66. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Declaração universal sobre bioética e direitos humanos [Internet]. Paris: Unesco; 2006 [acesso 18 fev 2020]. Disponível: https://bit.ly/2HznRCP
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(Unesco) publicou em 2006 a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, cujo texto foi aprovado unanimemente por seus 191 países-membros no dia 19 de outubro de 2005. Em seu artigo 11, a Declaração determina que nenhum indivíduo ou grupo deve ser discriminado ou estigmatizado por qualquer razão, o que constituiria violação à dignidade e aos direitos humanos, bem como às liberdades fundamentais 66. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Declaração universal sobre bioética e direitos humanos [Internet]. Paris: Unesco; 2006 [acesso 18 fev 2020]. Disponível: https://bit.ly/2HznRCP
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. Incluiu-se nesse documento, ainda, a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos 77. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Declaração universal sobre o genoma humano e os direitos humanos: da teoria à prática [Internet]. Brasília: Unesco; 2001 [acesso 18 fev 2020]. Disponível: https://bit.ly/39LSy40
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Neste exemplar da Revista Bioética, podemos observar reflexões acerca das mudanças nos paradigmas sociais ao longo dos anos de forma a evitar a discriminação de determinados grupos, seja por razões étnicas, de gênero, de religião, por questões políticas ou de orientação sexual. Como exemplo, embora o homossexualismo tenha sido excluído da Classificação Internacional de Doenças pela Organização Mundial de Saúde 88. Organização Mundial da Saúde. Classificação estatística internacional de doenças e problemas relacionados à saúde: décima revisão. São Paulo: Edusp; 1993. em meados dos anos 1990, ainda existem situações que devem sofrer mudanças no campo jurídico, cujo entendimento difere em muitos países 99. Dieter CT. As raízes históricas da homossexualidade, os avanços no campo jurídicos e o prisma constitucional. IBDFAM [Internet]. 2012 [acesso 18 fev 2020]. Disponível: https://bit.ly/2SCW22K
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,1010. Monte NB, Vargas CR, Gutierres Filho PJB, Matos JCM, Silva R, Fernandes JMGA. Ética, estigma e discriminação de grupos vulneráveis no processo educacional. Rev Digital [Internet]. 2009 [acesso 18 fev 2020];14(132):1-12. Disponível: https://bit.ly/2HBK43i
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O difícil papel do médico ao comunicar más notícias aos pacientes em casos de malformações congênitas é igualmente abordado nesta edição. Parte da dificuldade discutida surge, por exemplo, da necessidade de o médico administrar as implicações éticas e jurídicas sobre a decisão final, que é fundamentalmente um direito da paciente.

Os conceitos de eutanásia, distanásia e ortotanásia são também tema gerador de conflitos éticos na área assistencial. Isso porque a tecnologia na medicina cada vez mais permite prolongar a vida de forma artificial, sendo, no entanto, sempre questionável se a doença poderia ter seguido seu desfecho natural. Nesse contexto, a eutanásia é forma de abreviar a vida, e não é permitida no Brasil, assim

como o suicídio assistido; na distanásia se utilizam todos os recursos possíveis para prolongar a vida, ainda que isso traga prejuízos ao paciente; e a ortotanásia é quando um indivíduo, em estado de doença terminal, busca recursos para abreviar seu sofrimento, evitando procedimentos que aviltem a dignidade humana apenas para prorrogar a vida 1111. Felix ZC, Costa SFG, Alves AMPM, Andrade CG, Duarte MCS, Brito FM. Eutanásia, distanásia e ortotanásia: revisão interativa da literatura. Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2013 [acesso 18 fev 2020];18(9):2733-46. DOI: 10.1590/S1413-81232013000900029
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As diretivas antecipadas de vontade (DAV) no Brasil são manifestações do desejo do paciente quanto ao seu tratamento médico. Em 31 de agosto de 2012, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou a Resolução 1.995/2012 1212. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.995, de 9 de agosto de 2012. Dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 269-70, 31 ago 2012 [acesso 18 fev 2020]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/38CywZy
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, em que o direito do paciente ou de seu representante legal de manifestar sua vontade sobre os tratamentos médicos é reconhecido 1313. Dadalto L, Tupinambás U, Greco DB. Diretivas antecipadas de vontade: um modelo brasileiro. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2013 [acesso 18 fev 2020];21(3):463-76. DOI: 10.1590/S1983-80422013000300011
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. As DAV registram também a opinião do paciente quanto à doação de órgãos – ainda que a efetiva doação dependa da concordância familiar –, outra questão abordada nesta edição. No Brasil, este tema é regulamentado pela Lei 10.211/2001 1414. Brasil. Presidência da República. Lei nº 10.211, de 23 de março de 2001. Altera dispositivos da Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que “dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento”. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 24 mar 2001 [acesso 18 fev 2020]. Disponível: https://bit.ly/37JouVj
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, pelo Decreto 9.175/2017 1515. Brasil. Presidência da República. Decreto nº 9.175, de 18 de outubro de 2017. Regulamenta a Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, para tratar da disposição de órgãos, tecidos, células e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 19 out 2017 [acesso 18 fev 2020]. Disponível: https://bit.ly/38F8KUj
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e pela Resolução CFM 2.173/2017 1616. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.173, de 23 de novembro de 2017. Define os critérios do diagnóstico de morte encefálica. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 240, p. 50-275, 15 dez 2017 [acesso 18 fev 2020]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/2V4kRXk
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, que estabelece critérios para o diagnóstico de morte encefálica.

Em tempos de redes sociais e intensa comunicação entre as pessoas, as reflexões sobre a percepção dos estudantes de medicina acerca do sigilo médico são importantes e estão presentes no Código de Ética do Estudante de Medicina, lançado em 2018 pelo CFM 1717. Conselho Federal de Medicina. Código de ética do estudante de medicina [Internet]. Brasília: CFM; 2018 [acesso 18 fev 2020]. Disponível: https://bit.ly/38EBrAF
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. Neste número também são analisados os aspectos da judicialização da saúde no Brasil, especialmente no município de Ribeirão Preto/SP, a partir do direito à saúde, elencado no artigo 196 da Constituição Federal 55. Brasil. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 5 out 1988 [acesso 18 fev 2020]. Disponível: https://bit.ly/37FWFge
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como dever do Estado. Finalmente, são analisadas as práticas inclusivas para a pessoa com deficiência no sintagma identidade-metamorfose-emancipação.

Boa leitura a todos, na certeza de que ao abordar estes temas se produzirão importantes insights no campo da bioética.

Tatiana Bragança de Azevedo Della Giustina

Referências

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    Pessini L. As origens da bioética: do credo bioético de Potter ao imperativo bioético de Fritz Jahr. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2013 [acesso 18 fev 2020];21(1):9-19. DOI: 10.1590/S1983-80422013000100002
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  • 2
    Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. 7ª ed. Nova York: Oxford University Press; 2013.
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    Conselho Nacional de Saúde. Resolução CNS nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 12, p. 59, 13 jun 2013 [acesso 18 fev 2020]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/37Eo2Ye
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  • 4
    Godoi AMM, Garrafa V. Leitura bioética do princípio de não discriminação e não estigmatização. Saúde Soc [Internet]. 2014 [acesso 18 fev 2020];23(1):157-66. DOI: 10.1590/S0104-12902014000100012
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  • 5
    Brasil. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 5 out 1988 [acesso 18 fev 2020]. Disponível: https://bit.ly/37FWFge
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    Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Declaração universal sobre o genoma humano e os direitos humanos: da teoria à prática [Internet]. Brasília: Unesco; 2001 [acesso 18 fev 2020]. Disponível: https://bit.ly/39LSy40
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    Organização Mundial da Saúde. Classificação estatística internacional de doenças e problemas relacionados à saúde: décima revisão. São Paulo: Edusp; 1993.
  • 9
    Dieter CT. As raízes históricas da homossexualidade, os avanços no campo jurídicos e o prisma constitucional. IBDFAM [Internet]. 2012 [acesso 18 fev 2020]. Disponível: https://bit.ly/2SCW22K
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    Monte NB, Vargas CR, Gutierres Filho PJB, Matos JCM, Silva R, Fernandes JMGA. Ética, estigma e discriminação de grupos vulneráveis no processo educacional. Rev Digital [Internet]. 2009 [acesso 18 fev 2020];14(132):1-12. Disponível: https://bit.ly/2HBK43i
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    Felix ZC, Costa SFG, Alves AMPM, Andrade CG, Duarte MCS, Brito FM. Eutanásia, distanásia e ortotanásia: revisão interativa da literatura. Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2013 [acesso 18 fev 2020];18(9):2733-46. DOI: 10.1590/S1413-81232013000900029
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  • 12
    Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.995, de 9 de agosto de 2012. Dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 269-70, 31 ago 2012 [acesso 18 fev 2020]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/38CywZy
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  • 13
    Dadalto L, Tupinambás U, Greco DB. Diretivas antecipadas de vontade: um modelo brasileiro. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2013 [acesso 18 fev 2020];21(3):463-76. DOI: 10.1590/S1983-80422013000300011
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  • 14
    Brasil. Presidência da República. Lei nº 10.211, de 23 de março de 2001. Altera dispositivos da Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que “dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento”. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 24 mar 2001 [acesso 18 fev 2020]. Disponível: https://bit.ly/37JouVj
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    Brasil. Presidência da República. Decreto nº 9.175, de 18 de outubro de 2017. Regulamenta a Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, para tratar da disposição de órgãos, tecidos, células e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 19 out 2017 [acesso 18 fev 2020]. Disponível: https://bit.ly/38F8KUj
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  • 16
    Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.173, de 23 de novembro de 2017. Define os critérios do diagnóstico de morte encefálica. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 240, p. 50-275, 15 dez 2017 [acesso 18 fev 2020]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/2V4kRXk
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    Conselho Federal de Medicina. Código de ética do estudante de medicina [Internet]. Brasília: CFM; 2018 [acesso 18 fev 2020]. Disponível: https://bit.ly/38EBrAF
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2020
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