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Limitação terapêutica para crianças portadoras de malformações cerebrais graves

Resumo

As malformações cerebrais congênitas podem se apresentar de forma leve ou grave, podendo ser letais mesmo poucas horas após o nascimento. A partir de levantamento bibliográfico sistemático, verificou-se que, embora em tese sejam eticamente semelhantes suspender e renunciar a tratamento, tal equivalência não é percebida na prática por médicos e enfermeiros assistentes, nem pela população em geral, que tende a aceitar mais confortavelmente a renúncia que a suspensão de tratamentos. O diálogo com os pais é o procedimento que legitima a iniciativa médica de propor limitação terapêutica. Em conclusão, as malformações cerebrais graves resultam em contexto de terminalidade de vida, em que limitação ao suporte respiratório é o principal conflito enfrentado e ao qual se aplicam princípios bioéticos dos cuidados paliativos.

Palavras-chave:
Hidrocefalia; Microcefalia; Futilidade médica; Corpo caloso; Cromossomos-Patologia

Abstract

Brain malformations may present themselves in different forms, from mild to severe, which can be lethal within a few hours after birth. Based on a systematic review of literature, it was verified that, although theoretically suspending or withholding treatment are ethically similar, in practice, such equivalence is not perceived either by doctors and nursing assistants or by the general population, who tend to more comfortably accept the withholding rather than the withdrawal of treatments. The dialogue with parents is the procedure that legitimizes medical initiatives when proposing therapeutic limitation. In conclusion, severe brain malformations result in an end of life context, in which bioethical principles of palliative care apply and in which the limitation of respiratory support is the main dilemma to be faced in the final moments of patients’ lives.

Keywords:
Hydrocephalus; Microcephaly; Medical futility; Corpus callosum; Chromosomes-Pathology

Resumen

Las malformaciones cerebrales congénitas pueden presentarse desde formas leves hasta formas graves, pueden ser letales pocas horas después del nacimiento. A partir de una revisión bibliográfica sistemática se verificó que, aunque teóricamente suspender o reiniciar un tratamiento es éticamente semejante, esta equivalencia no es percibida en la práctica ni por los médicos y enfermeros asistentes, ni por la población en general, que tiende a aceptar más cómodamente la renuncia que la suspensión de los tratamientos. El diálogo con los padres constituye el procedimiento que legitima la iniciativa médica de proponer la limitación terapéutica. En conclusión, las malformaciones cerebrales graves dan lugar a un contexto de terminalidad de la vida, en el cual se aplican los principios bioéticos de los cuidados paliativos, y en el que la limitación del soporte respiratorio es el principal conflicto que se enfrenta en los momentos finales de la vida del paciente.

Palabras clave:
Hidrocefalia; Microcefalia; Inutilidad médica; Cuerpo calloso; Cromosomas-Patología

O histórico da boa morte ou “morte feliz” foi provavelmente originado na obra “A vida dos dozes Césares”, de Suetônio, no século II d.C., com a descrição da morte suave do imperador Augusto, consumada prontamente e sem sofrimento11. Junges JR. Bioética: hermenêutica e casuística. São Paulo: Loyola; 2006.. Trata-se de termo acatado na medicina, que busca minimizar o sofrimento no contexto de fim de vida. O direito à vida é assegurado pela dignidade humana, mas em situação de terminalidade, verifica-se a tensão inerente ao próprio conceito, que reflete a necessidade do contínuo aprimoramento ético e técnico para alcançar a melhor gestão médica da morte22. Rodrigues CFA. Alteridade da morte de Emmanuel Levinas. Rev. bioét. (Impr.). 2012;20(3):442-50.,33. Taboada P. El derecho a morir con dignidad. Acta Bioeth. 2000;6(1):89-101..

Responsabilidade médica é princípio de suma importância na análise bioética e na tomada de decisão por evidenciar elementos que ressaltam a assimetria entre médico e paciente e a consequente tutela dessa relação pelo Poder Judiciário. Existem acidentes imprevisíveis e males incontroláveis, provenientes de situações de curso inexorável, independentemente dos esforços dos médicos e equipes, e que estão relacionados à mortalidade intrínseca a todo ser vivo44. Marreiro CL. Responsabilidade civil do médico na prática da distanásia. Rev. bioét. (Impr.). 2013;21(2):308-17.. O cuidado a pacientes em estado terminal aumenta a responsabilidade do profissional de saúde, que se vê fragilizado ao prover tais cuidados devido à inevitável associação entre responsabilidade, risco e culpa, especialmente no que se refere ao possível descumprimento das obrigações éticas e legais55. Junges JR, Cremonese C, Oliveira EA, Souza LL, Backes V. Reflexões legais e éticas sobre o final da vida: uma discussão sobre a ortotanásia. Rev. bioét. (Impr.). 2010;18(2):275-88..

A complexidade de eventos envolvidos na terminalidade da vida representa desafio para os profissionais da saúde66. Kipper DJ. O problema das decisões médicas envolvendo o fim da vida e propostas para nossa realidade. Bioética. 1999;7(1):59-70.. Trata-se de paradoxo, que em todos os sentidos fragmenta a compreensão dos princípios bioéticos em espaço fronteiriço que articula diferentes discursos, como ético e moral, bioético e deontológico, regulamentar, jurídico e administrativo.

A situação de terminalidade de vida envolve fardo ainda maior quando se trata de crianças portadoras de doenças crônicas incuráveis que não as permitirão viver por muito tempo, ou seja, quando, no ciclo vital, nascimento e morte tornam-se cronologicamente próximos. As malformações congênitas são exemplos dessas condições clínicas e, no geral, podem ser expressas em diversos graus de severidade, desde formas leves, que não irão reduzir substancialmente a expectativa de vida, até formas graves, que serão letais poucas horas após o nascimento.

Crianças portadoras de malformações cerebrais que evoluem para a condição clínica de cuidados de fim de vida evocam dilemas morais e, portanto, bioéticos, que se encontram na interseção de fundamentos da neuroética, da ética dos cuidados paliativos e da ética dos cuidados pediátricos. Essas crianças são comumente submetidas a tratamentos nitidamente obstinados, mas há também situações em que a obstinação não é tão óbvia.

Na grande maioria dos países, os cuidados pediátricos são caracterizados pela heteronomia da criança, sua incapacidade legal de decidir por si mesma, sendo representada por adulto responsável, geralmente os pais ou outro representante legalmente constituído. No entanto, há questões bioéticas acerca dos limites dessa tutela e da margem de decisão parental diante de condições clínicas potencialmente letais, sobretudo quando há conflitos de posicionamento entre os pais e a equipe médica.

O tratamento de pacientes terminais requer a aplicação de cuidados que têm por paradigma o paciente sem possibilidade de cura77. Academia Nacional de Cuidados Paliativos. Manual de cuidados paliativos. Rio de Janeiro: Diagraphic; 2009.. A dignidade da vida humana que se esvai deve ser respeitada, e por isso a tomada de decisão por tratamentos adequados para a manutenção da vida e mitigação do desconforto sem que haja aumento da dor e do sofrimento são questões éticas relevantes no atendimento de crianças com malformações cerebrais graves. Em cada situação, para cada paciente, podem ocorrer circunstâncias nas quais fica claro o que é obstinação terapêutica, mas também sempre haverá zonas de limites imprecisos, nas quais não se evidencia o melhor caminho a tomar88. Villas-Bôas ME. Da eutanásia ao prolongamento artificial. Rio de Janeiro: Forense; 2005.,99. Souza PVS. O médico e o dever legal de cuidar: algumas considerações jurídico-penais. Bioética. 2006;14(2):229-38..

Existem marcadas diferenças geopolíticas entre países onde os cuidados paliativos e a limitação terapêutica já são rotina legalmente instituída e eticamente reconhecida na prática médica e aqueles onde os cuidados de fim de vida tendem a ser mais obstinados, com uso maciço de tecnologias intensivas1010. Lien Foundation. The 2015 quality of death index: Ranking palliative care across the world. London: The Economist Intelligence Unit; 2015.. O Brasil é considerado em fase intermediária, pois, embora a obstinação terapêutica não tenha sido positivada no ordenamento legal, já existem normativas éticas exaradas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) acerca da limitação terapêutica diante de pacientes em cuidados de fim de vida.

Considerando o exposto, e baseado em levantamento bibliográfico, este trabalho tem por objetivos: 1) analisar as peculiaridades na abordagem dos cuidados paliativos e da limitação terapêutica na assistência à saúde de crianças portadoras de malformações cerebrais; 2) identificar as principais intervenções terapêuticas invasivas na assistência à saúde dessas crianças; 3) delimitar a diferença ética e conceitual entre “cuidados obrigatórios” e “obstinação terapêutica” na assistência à saúde de crianças portadoras de malformações cerebrais; e 4) analisar os limites bioéticos das decisões dos responsáveis diante da heteronomia dessas crianças.

Método

Foi feita revisão sistemática de artigos em periódicos, a qual, segundo Marconi e Lakatos1111. Marconi MA, Lakatos EM. Técnicas de pesquisa. 7ª ed. São Paulo: Atlas; 2012., pode ser compreendida com a seguinte subdivisão de etapas: identificação das fontes, localização, compilação e fichamento. Para a identificação das fontes utilizaram-se os catálogos de indexação ISI Web of Science, Biblioteca do Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (BIREME), Scientific Electronic Library Online (SciELO) e Google Scholar. Inicialmente, a busca foi feita mediante cruzamento das palavras-chave “ethics”, “palliative care” e “child”, com retorno no total de mais de 20 mil possíveis referências, impondo-se limite temporal para artigos publicados até 2015.

Diante desse resultado, buscou-se refinar a busca acrescentando “and not cancer”, uma vez que o foco do trabalho são justamente casos não oncológicos. Com isso, a busca atingiu o objetivo de concentrar-se na problemática das malformações/lesões cerebrais. Realizou-se cruzamento das referências levantadas em cada base, que foram listadas e buscadas nas fontes de acesso aberto Periódicos Capes e Research Gate, além de busca direta pela ferramenta Google. Fichamentos de cada fonte extraíram dados sobre: a doença que motivou cuidado paliativo da criança; tratamentos e procedimentos considerados obstinação terapêutica; conflitos de responsabilidade profissional levantados; limites bioéticos do exercício da heteronomia pelo adulto responsável; consequências e limites éticos e jurídicos da indicação de cuidados paliativos. Os dados foram mutuamente confrontados, de modo a revelar consensos e antagonismos entre pensamento, fundamentos, conceitos e paradigmas dos autores. O processo de análise dos dados seguiu o modelo feedforward, ou seja, as análises já realizadas orientavam as análises subsequentes, e, com isso, alguns artigos que versavam sobre doenças não cerebrais foram mantidos na amostra por trazerem aspectos bioéticos relevantes à temática.

Resultados e discussão

Bibliometria

O levantamento bibliográfico sistemático mostrou 119 artigos, dos quais 67 foram obtidos na íntegra1212. Ambler J. When is the right time? Complex issues around withdrawing life-sustaining treatment in children. S Afr Med J. 2014;104(7):507-9.7878. Zinner SE. The use of pediatric advance directives: a tool for palliative care physicians. Am J Hosp Palliat Care. 2008;25(6):427-30.. Os casos clínicos estudados foram relacionados a diferentes desordens, mas houve preponderância de problemas neurológicos, mostrando como a questão neuroética é tema acirrado no âmbito dos cuidados paliativos pediátricos. As doenças levantadas foram: paralisia cerebral grave1212. Ambler J. When is the right time? Complex issues around withdrawing life-sustaining treatment in children. S Afr Med J. 2014;104(7):507-9.; insuficiência cardíaca grave por cardiopatia inoperável1616. Cadell S, Ho G, Jacques L, Wilson K, Davies B, Steele R. Considerations for ethics in multisite research in pediatric palliative care. Palliat Med. 2009;23(3):274-5.; atrofia muscular espinhal2727. Frader J, Michelson K. Can policy spoil compassion? Pediatr Crit Care Med. 2007;8(3):293-4.,5252. Okhuysen-Cawley R, McPherson ML, Jefferson LS. Institutional policies on determination of medically inappropriate interventions: use in five pediatric patients. Pediatr Crit Care Med. 2007;8(3):225-30.; distrofia muscular de Duchenne3131. Gerhardt CA, Grollman JA, Baughcum AE, Young-Saleme T, Stefanik R, Klopfenstein KJ. Longitudinal evaluation of a pediatric palliative care educational workshop for oncology fellows. J Palliat Med. 2009;12(4):323-8.,5050. Morrison W, Berkowitz I. Do not attempt resuscitation orders in pediatrics. Pediatr Clin North Am. 2007;54(5):757-71.; coma persistente por lesão acidental em paciente já portador de neoplasia cerebral incurável3232. Geller G, Harrison KL, Rushton CH. Ethical challenges in the care of children and families affected by life-limiting neuromuscular diseases. J Dev Behav Pediatr. 2012;33(7):548-61.; insuficiência respiratória por hemossiderose pulmonar3636. Himelstein BP, Hilden JM, Boldt AM, Weissman D. Pediatric palliative care. N Engl J Med. 2004;350(17):1752-62.; Síndrome de Down associada à encefalopatia degenerativa4242. Lago P, Devictor D, Piva JP, Bergounioux J. Cuidados de final de vida em crianças: perspectivas no Brasil e no mundo. J Pediatr. 2007;83(2 Suppl):S109-15.; transplante renal e coma persistente por lesão acidental4444. Levetown M. Communicating with children and families: from everyday interactions to skill in conveying distressing information. Pediatrics. 2008;121(5):e1441-60.; trissomia 18 com defeito cardíaco operável4545. Levine DZ. Discontinuing immunosuppression in a child with a renal transplant: are there limits to withdrawing life support? Am J Kidney Dis. 2001;38(4):901-15.; fibrose cística terminal4545. Levine DZ. Discontinuing immunosuppression in a child with a renal transplant: are there limits to withdrawing life support? Am J Kidney Dis. 2001;38(4):901-15.; erro inato de metabolismo com coma persistente4747. Martin C. Deception and the death of Ilyusha: truth and the best interest of a dying child in The Brothers Karamazov. Pediatrics. 2014;134(2 Suppl):s87-96.; síndrome de Proteus6969. Torres JCT, Goya JLH, Rubia NH, Jimenez PN, Munóz FG, Rodríguez JP et al. Recomendaciones sobre toma de decisiones y cuidados al final de la vida en neonatología. An Pediatr. 2013;78(1):190.e1-14..

Os artigos sistematicamente levantados permitiram análise de panorama concreto e cotidiano dos conflitos bioéticos concernentes aos cuidados paliativos que se tornam tratamento padrão, ou seja, associados a limitação terapêutica. A limitação terapêutica é, portanto, o extremo dos cuidados paliativos e a situação na qual conflitos bioéticos se tornam mais evidentes. Essencialmente, a base ético-jurídica para a problemática, segundo Lago e colaboradores4242. Lago P, Devictor D, Piva JP, Bergounioux J. Cuidados de final de vida em crianças: perspectivas no Brasil e no mundo. J Pediatr. 2007;83(2 Suppl):S109-15., reside no fato de que cuidados médicos de final de vida tornaram-se questão de saúde pública.

Panorama geral dos cuidados paliativos pediátricos

Os trabalhos concordavam que o dilema ético acerca da limitação terapêutica surge concomitantemente ao grande progresso da tecnologia biomédica. A situação de inércia para o médico e para o arcabouço jurídico termina sendo o uso indiscriminado de toda a tecnologia existente, a despeito dos efeitos deletérios inerentes às tecnologias de suporte vital, principalmente as mais invasivas. Nesse ponto, Sayeed6464. Sayeed SA. Baby doe redux? The Department of Health and Human Services and the Born-Alive Infants Protection Act of 2002: a cautionary note on normative neonatal practice. Pediatrics. 2005;116(4):e576-85. afirma que leis mal redigidas e em dissonância com a realidade da prática clínica terminam por engessar a solução de problemas sérios e piorar a condição de tratamento do grupo mais vulnerável – no caso, pacientes em cuidados de fim de vida.

Mercurio e colaboradores4848. Mercurio MR, Murray PD, Gross I. Unilateral pediatric “do not attempt resuscitation” orders: the pros, the cons, and a proposed approach. Pediatrics. 2014;133(1 Suppl):S37-43. classificam os países em cores: verde, onde a legislação é explícita em reconhecer a necessidade de limitação terapêutica; amarela, onde a situação é indefinida, mas com tendência à aceitação de limites; e vermelha, onde qualquer discussão a esse respeito é rechaçada. Durall e colaboradores2121. Durall A, Zurakowski D, Wolfe J. Barriers to conducting advance care discussions for children with life-threatening conditions. Pediatrics. 2012;129(4):e975-82. exemplificam, informando que na Rússia não se admite qualquer tipo de discussão ou abordagem sobre limitação terapêutica. Portanto, a maior parte das discussões bioéticas levantadas provém de autores de países em que a limitação terapêutica já encontra corpo jurídico mais consolidado, de modo que os conflitos se mostram em patamar elevado de complexidade.

Em tese, conforme Pelant e colaboradores5353. Pelant D, McCaffrey T, Beckel J. Development and implementation of a pediatric palliative care program. J Pediatr Nurs. 2012;27(4):394-401., bons serviços de cuidados paliativos evitariam internação hospitalar, isolamento e procedimentos invasivos desnecessários em cuidados médicos de final de vida. Mas Lago e colaboradores4242. Lago P, Devictor D, Piva JP, Bergounioux J. Cuidados de final de vida em crianças: perspectivas no Brasil e no mundo. J Pediatr. 2007;83(2 Suppl):S109-15. alertam que, na faixa etária pediátrica, cuidados de final de vida têm sido mais frequentemente realizados em unidades de terapia intensiva (UTI). Isso gera evidentes conflitos éticos, pois UTI são estruturadas para cuidados intensivos, enquanto pacientes terminais necessitam de cuidados paliativos e limitação terapêutica.

Nesse ponto, Ramnarayan e colaboradores5959. Ramnarayan P, Craig F, Petros A, Pierce C. Characteristics of deaths occurring in hospitalized children: changing trends. J Med Ethics. 2007;33(5):255-60. mostram que adultos com previsão de fim de vida próximo tendem a escolher a morte em casa, mas a criança em situação de terminalidade tende a morrer em âmbito hospitalar e, principalmente, em UTI, portanto em condição de obstinação terapêutica. Justamente, Rezzónico6262. Rezzónico CA. Bioética y derechos de los niños. Arch Argent Pediatr. 2004;102(3):214-9. proclama que cuidados de final de vida se baseiam na recusa a obstinação terapêutica, ou seja, na recusa ao emprego maciço de tecnologia mesmo diante do resultado previsível e esperado de óbito do paciente. Em descrição genérica, tratamentos que sejam dolorosos e ineficazes são renunciados ou suspensos1212. Ambler J. When is the right time? Complex issues around withdrawing life-sustaining treatment in children. S Afr Med J. 2014;104(7):507-9.,7878. Zinner SE. The use of pediatric advance directives: a tool for palliative care physicians. Am J Hosp Palliat Care. 2008;25(6):427-30., mas jamais o paciente é abandonado sem cuidados: deixa-se de empregar tecnologias avançadas, mas administram-se medicamentos que aliviem sintomas e mantêm-se cuidados básicos com os pacientes. Ou seja, não se justifica internação em UTI de paciente terminal sob cuidados paliativos. Existem outros ambientes no próprio hospital – enfermaria, quarto, leito-dia – que se mostram mais apropriados para cuidados de pacientes terminais.

Morgan4949. Morgan D. Caring for dying children: assessing the needs of the pediatric palliative care nurse. Pediatr Nurs. 2009;35(2):86-90. compara a recomendação para a limitação terapêutica em adultos – que por convenção difusa considera seis meses como a temporalidade estatisticamente previsível de óbito, tomada como condição inicial para renúncia a tratamentos ou sua suspensão – com os procedimentos adotados para a faixa etária pediátrica, cujo tempo previsível do óbito ainda não foi estabelecido pela comunidade médica.

Leeuwenburgh-Pronk e colaboradores4343. Leeuwenburgh-Pronk WG, Miller-Smith L, Forman V, Lantos JD, Tibboel D, Buysse C. Are we allowed to discontinue medical treatment in this child? Pediatrics. 2015;135(3):545-9. ressaltam que a heteronomia da criança se reveste do caráter de tutela, considerando que a infância deve ser protegida, inclusive da imaturidade e da irresponsabilidade inerentes a esse período da vida. Quando esse valor essencial se defronta com caso de criança que sofre de doença crônica e com curta expectativa de vida, os conflitos éticos e jurídicos acerca da limitação terapêutica refletem choque de valores entre sacralidade da vida e qualidade de vida. Ambas são expressões de valores gerais e difusos e somente apresentam efeitos práticos diante de caso concreto. Geller e colaboradores3232. Geller G, Harrison KL, Rushton CH. Ethical challenges in the care of children and families affected by life-limiting neuromuscular diseases. J Dev Behav Pediatr. 2012;33(7):548-61. reafirmam essa perspectiva, pois o conflito se torna ainda mais acirrado quando se trata de crianças.

Nesses casos, a dúvida sobre qual valor prevalece se intensifica: deve-se considerar um dia a mais na vida da criança, que é algo inestimável; ou até que ponto a falta de qualidade de vida deve ser considerada na decisão. Como exemplo, Klein4141. Klein SM. Moral distress in pediatric palliative care: a case study. J Pain Symptom Manage. 2009;38(1):157-60. mostra o caso de bebê portador de holoprosencefalia com intercorrência respiratória grave e ida prolongada a UTI, situação na qual a limitação terapêutica seria indicada. No entanto, de modo inesperado, esse bebê apresentou boa recuperação pós-alta, e se desenvolveu até pelo menos a idade pré-escolar sem ter apresentado novas intercorrências graves.

Casos como esses levantam a questão acerca da expectativa de temporalidade para a limitação terapêutica: deveria ser proposta na perspectiva de morte em seis meses, tal como a prática para adultos tem sedimentado? Ou devem-se levar em conta outros fatores, como a probabilidade de sobrevivência – até dez anos, adolescência ou idade adulta? A literatura mostra que a questão permanece aberta.

Suspender versus renunciar a tratamentos

A maioria dos artigos levantados retoma a discussão ético-jurídica acerca da diferença entre suspensão e renúncia a tratamento. A conclusão teórica dos autores diz que suspender ou renunciar a determinado tratamento são eticamente equivalentes, mas, na prática, médicos, enfermeiros e a população em geral consideram mais aceitável renunciar do que suspender tratamentos.

Tsai7171. Tsai E. Withholding and withdrawing artificial nutrition and hydration. Paediatr Child Health. 2011;16(4):241-2. afirma que já foi possível avaliar efeitos benéficos e deletérios ao suspender tratamento. Assim, a suspensão de suporte avançado traz a estimativa previsível do óbito, e essa percepção de previsibilidade aproximaria a suspensão do tratamento da prática de eutanásia. Nesse aspecto, juridicamente, o termo “eutanásia” é aplicado quando há pedido explícito de morte por parte do paciente, enquanto a suspensão de tratamentos fúteis e obstinados é medida de cuidados paliativos. Na prática, a renúncia a tratamentos avançados implica a substituição de tratamento mais invasivo e agressivo por outros que, ainda que menos eficazes, resultem na percepção de que o final da vida está seguindo seu caminho “natural”7171. Tsai E. Withholding and withdrawing artificial nutrition and hydration. Paediatr Child Health. 2011;16(4):241-2..

Bela resposta a esse conflito de valores pode ser encontrada no trabalho estatístico de Tan e colaboradores6767. Tan GH, Totapally BR, Torbati D, Wolfsdorf J. End-of-life decisions and palliative care in a children's hospital. J Palliat Med. 2006;9(2):332-42., que conseguem concretizar em termos matemáticos que tanto a percepção do senso comum como a reflexão ética estão corretas. Os autores apresentam uma curva de Kaplan-Meier de sobrevida de grupos compostos por pacientes submetidos a “renúncia” e “suspensão” de tratamento: na fase inicial, ambos os grupos apresentam a mesma mortalidade, mas, após essa fase inicial, o grupo “renúncia” apresenta, surpreendentemente, sobrevida maior que o grupo “suspensão”. Ou seja, quando se suspende ou se indica a renúncia a determinado tratamento invasivo, o óbito será previsivelmente imediato no caso dos pacientes mais graves. No entanto, proporção significativa de pacientes pode sobreviver por mais tempo, em perío do indefinido – de poucos dias a várias semanas –, se em vez de procedimentos intensivos e invasivos receberem cuidados paliativos adequados.

De todo modo, Klein4141. Klein SM. Moral distress in pediatric palliative care: a case study. J Pain Symptom Manage. 2009;38(1):157-60. frisa que, quando o tratamento é suspenso e o óbito demora a ocorrer, os pais tendem a se questionar se o diagnóstico de terminalidade da vida estava realmente correto. Com isso, frequentemente reconsideram decisões de limitação terapêutica, acirrando conflitos bioéticos ao gerar quebra de confiança da relação médico-paciente, o que é perfeitamente compreensível, dada a grande dimensão subjetiva da angústia e da responsabilidade que recaem sobre os pais diante da morte da criança. Essa quebra de confiança evidencia o profundo desejo dos pais de curar ou ao menos proteger a criança do sofrimento, ainda que em seus momentos finais.

Procedimentos éticos na tomada de decisão de limitação terapêutica

Quarenta e seis artigos mencionaram a questão do procedimento decisório acerca da limitação terapêutica. A questão da dependência da criança e de sua incapacidade de plena expressão foi sempre aventada não como barreira à limitação terapêutica, mas como fator gerador de conflitos éticos singulares. Para fins comparativos, Siegel e colaboradores6666. Siegel AM, Sisti DA, Caplan AL. Pediatric euthanasia in Belgium: disturbing developments. Jama. 2014;311(19):1963-4. descrevem que a eutanásia infantil, legalizada na Holanda e na Bélgica7979. Silva FM, Nunes R. Caso belga de eutanásia em crianças: solução ou problema? Rev. bioét. (Impr.). 2015;23(3):475-84., é procedimento altamente judicializado, no qual a promotoria analisa o processo decisório quanto ao exercício dos quesitos legais. Não se trata de análise de mérito, mas de constar que as etapas formais foram todas cumpridas.

Diante disso, Morrison e Kang5151. Morrison W, Kang T. Judging the quality of mercy: drawing a line between palliation and euthanasia. Pediatrics. 2014;133(1 Suppl):s31-6. constataram que a decisão de limitação terapêutica em UTI, embora seja algo penoso, já se tornou rotineira, de modo que seu procedimento decisório cabe à equipe médica assistente, que é quem conhece e vivencia detalhes do caso. Ou seja, os autores defendem que comitês institucionais de ética são essenciais, mas seu papel é agir como instância revisora para a intermediação de conflitos, quando houver.

Em todos os textos obtidos, é nítido o valor do diálogo com os pais como procedimento que legitima a limitação terapêutica. Também em consenso, a iniciativa pela limitação terapêutica provém da equipe médica, advindo dos pais em poucos casos. Em síntese, os textos mostram que deve haver maneiras e condições adequadas de comunicação e tomada de decisão. Primeiramente, a equipe assistente – médicos, enfermeiros, fisioterapeutas – devem, nas visitas diárias, concordar entre si que a limitação terapêutica é o melhor a ser feito para o paciente. Então, os pais da criança são convidados para reuniões com a equipe, que deve ser realizada em sala apropriada.

Na primeira reunião, o tema é abordado e dá-se tempo para os pais refletirem sobre a questão; em segundo momento, a decisão de limitação terapêutica é tomada. Em alguns casos, os pais se sentem inseguros, de modo que podem ser necessárias mais reuniões. Estudiosos1414. Bovens L. Child euthanasia: should we just not talk about it? J Med Ethics. 2015;41(8):630-4.,7575. Vose LA, Nelson RM. Ethical issues surrounding limitation and withdrawal of support in the pediatric intensive care unit. J Intensive Care Med. 1999;14(5):220-30. descrevem técnicas de comunicação aberta e honesta com os pais do paciente. Essa questão de comunicação vem sendo debatida desde pelo menos 1969, quando Philip Evans e Cicely Saunders2222. Evans P, Saunders C. The management of fatal illness in childhood. Proc R Soc Med. 1969;62:15-7. confrontaram a cultura da época diante do óbito infantil. Evans descreveu que o médico apresentava reação emocional forte, improvisada, chegando a chorar junto com os pais que perdiam sua criança, enquanto Saunders enfatizava a necessidade de empatia, mas com distanciamento emocional, até mesmo para que o adequado suporte aos familiares fosse possível. Mesmo atualmente, não apenas o médico, mas o profissional de enfermagem necessita saber lidar emocionalmente com a terminalidade de vida no contexto pediátrico4949. Morgan D. Caring for dying children: assessing the needs of the pediatric palliative care nurse. Pediatr Nurs. 2009;35(2):86-90., o que reforça a necessidade de as visitas clínicas em UTI contarem com as categorias profissionais que assistem os pacientes.

A limitação terapêutica não é medida intempestiva nem de urgência, mas decisão tomada em etapas diante de situação crônica de base. Ou seja, o médico, em situação crítica, tem o dever e a ampla liberdade de indicar e iniciar tratamentos, mas, quando se trata de limitação terapêutica, o fato deve ser compartilhado e comunicado aos pais ou responsáveis pela criança. A limitação terapêutica é, sobretudo, posição institucional da equipe assistente, e não posição pessoal do chefe de equipe ou plantonista.

Os trabalhos consultados mostram que há duas posturas jurídicas para a legitimação da limitação terapêutica. Nos Estados Unidos, é legalizada, mas profundamente arraigada no contrato feito com os pais: a ordem de não reanimação, por exemplo, é documento assinado pelos responsáveis. Em outros países, como França e Japão, segue-se o paradigma da não objeção, ou seja, a equipe médica propõe limitação terapêutica, que é implementada caso não haja objeção por parte dos pais. Para alguns estudiosos1717. Clark J, Dudzinski D. The culture of dysthanasia: attempting CPR in terminally ill children. Pediatrics. 2013;131(3):572-80.,4242. Lago P, Devictor D, Piva JP, Bergounioux J. Cuidados de final de vida em crianças: perspectivas no Brasil e no mundo. J Pediatr. 2007;83(2 Suppl):S109-15., diante da fragilidade emocional vivenciada pelas famílias, o paradigma de não objeção é a forma de aliviar o peso da decisão para os pais, transferindo-o para a equipe de saúde, de modo que os pais não sintam, futuramente, que foram eles que tomaram a decisão da morte da criança.

Quanto mais diretrizes esclarecidas houver acerca do curso clínico natural das doenças e indícios clínicos que apontem para condição clínica de terminalidade instalada, mais segura e precisa será a iniciativa médica de propor a limitação terapêutica1515. Brook L, Hain R. Predicting death in children. Arch Dis Child. 2008;93:1067-70.. Feudtner e Nathanson2525. Feudtner C, Nathanson PG. Pediatric palliative care and pediatric medical ethics: opportunities and challenges. Pediatrics. 2014;133(1 Suppl):s1-7. assinalam que dados estatísticos consolidados podem guiar protocolos e diretrizes, mas que, na prática, não é possível prever como será a evolução daquele paciente específico, ou seja, o exercício de prognóstico é essencialmente intuitivo. Portanto, pelo princípio da incerteza, não se pode deixar de travar amplo e franco diálogo com os responsáveis pelo paciente. Cuidados paliativos são tópico de pesquisa de ponta, e Cadell e colaboradores1616. Cadell S, Ho G, Jacques L, Wilson K, Davies B, Steele R. Considerations for ethics in multisite research in pediatric palliative care. Palliat Med. 2009;23(3):274-5. ressaltam a importância inclusive de pesquisas multicêntricas em cuidados paliativos. Diante da delicadeza da situação, investigações desse tipo têm enfatizado que mesmo comitês de ética em pesquisa mostram posições muito distintas acerca dos protocolos existentes.

Por exemplo, até recentemente havia muita discussão ética sobre sedação profunda nas fases terminais de câncer, sob a hipótese de que o paciente sedado teria seu tempo de vida reduzido. Porém, em outros trabalhos examinando a literatura6767. Tan GH, Totapally BR, Torbati D, Wolfsdorf J. End-of-life decisions and palliative care in a children's hospital. J Palliat Med. 2006;9(2):332-42.,5151. Morrison W, Kang T. Judging the quality of mercy: drawing a line between palliation and euthanasia. Pediatrics. 2014;133(1 Suppl):s31-6., percebeu-se que, embora teoricamente altas doses de analgésicos e sedativos possam inibir o centro respiratório, o grupo de pacientes que receberam doses mais altas sobreviveu por mais tempo que aquele a quem não foram administradas. Para esses autores, a pesquisa em cuidados paliativos propiciou o surgimento de diretrizes de sedação e analgesia que escalonam a dose, ou seja, inicia-se com doses mais baixas e aumenta-se aos poucos, conforme a necessidade do paciente. Com esse tipo de escalonamento, doses altas de medicamentos analgésicos e sedativos podem ser usados em pacientes que assim necessitarem, sem que paire algum tipo de desconfiança a respeito de eventual redução de sobrevida.

Apesar do processo dialógico entre a equipe médica e os responsáveis pela criança em fim de vida, restam conflitos éticos acerca de tomada de decisão. Ham3434. Ham C. Tragic choices in health care: lessons from the child B case. BMJ. 1999;319(7219):1258-61. discute o caso de pais de criança inglesa que desejam novos tratamentos, ainda que contra a indicação médica. Os pais queriam tentar um segundo transplante de medula, a que os médicos objetavam, e nas cortes judiciais inglesas foi dada razão ao protocolo médico, que considerava tal medida como futilidade e obstinação.

Feltman e colaboradores2323. Feltman D, Stokes T, Kett J, Lantos JD. Is treatment futile for an extremely premature infant with giant omphalocele? Pediatrics. 2014;133(1):123-8. descrevem caso peculiar de comorbidades graves: prematuridade extrema com onfalocele. Os pais pediam insistentemente que o bebê fosse submetido a procedimento cirúrgico e eventualmente a manobras de reanimação cardiorrespiratória, mas a equipe médica previa que isso não seria factível. Esses casos revelaram que existe tendência ética e jurídica a favorecer a decisão da equipe assistente de não iniciar tratamento em situações em que não há indicação médica ou condições clínicas. Ou seja: em suma, renunciar a tratamentos é mais aceitável que suspendê-los.

Outro tipo de conflito se apresenta quando médicos indicam suspensão ou redução de tratamentos e os pais desejam a manutenção dos cuidados. Como consenso, esse conflito não deve ser considerado logo nas primeiras reuniões da equipe médica com pais ou responsáveis, mas quando essa objeção surge de forma sistemática. Construir a proposta de limitação terapêutica paulatinamente durante o planejamento de médio prazo – conforme haja sinais de deterioração clínica progressiva e irreversível –, e não apenas no último momento, segundo a proposta dos cuidados paliativos, é maneira de minimizar ou evitar esse tipo de situação.

De todo modo, vários estudos1313. Basu RK. End-of-life care in pediatrics: ethics, controversies, and optimizing the quality of death. Pediatr Clin North Am. 2013;60(3):725-39.,2121. Durall A, Zurakowski D, Wolfe J. Barriers to conducting advance care discussions for children with life-threatening conditions. Pediatrics. 2012;129(4):e975-82.,2727. Frader J, Michelson K. Can policy spoil compassion? Pediatr Crit Care Med. 2007;8(3):293-4.,4949. Morgan D. Caring for dying children: assessing the needs of the pediatric palliative care nurse. Pediatr Nurs. 2009;35(2):86-90. consideram que, nessas circunstâncias, uma instância ética revisora (como comitês institucionais de ética) pode ser acionada e, em casos extremos, pode ser enviada solicitação ao judiciário. Não obstante, Powell5656. Powell R. Dilemmas in the medical treatment of patients facing inevitable death. Arch Dis Child. 2007;92(9):746-9. ainda defende que, embora a limitação terapêutica não seja formalmente aceita, a equipe médica não é eticamente obrigada a indicar procedimentos invasivos de cuidados intensivos, como coletas seriadas de amostra sanguínea, monitoração por eletrodos (que requer certo imobilismo do paciente), balanço hídrico por sondagem vesical etc.

Nesse quesito, o pensamento jurídico varia nos diversos países do mundo. Estudiosos5252. Okhuysen-Cawley R, McPherson ML, Jefferson LS. Institutional policies on determination of medically inappropriate interventions: use in five pediatric patients. Pediatr Crit Care Med. 2007;8(3):225-30.,6363. Ruppe MD, Feudtner C, Hexem KR, Morrison WE. Family factors affect clinician attitudes in pediatric end-of-life decision making: a randomized vignette study. J Pain Symptom Manage. 2013;45(5):832-40. descrevem a tendência nos EUA de obrigar médicos a realizar procedimentos de cuidados intensivos usuais caso o paciente não concorde expressamente com a limitação terapêutica. Apenas situações específicas, muito bem referendadas por protocolos já existentes, como neoplasia terminal ou prematuridade extrema6969. Torres JCT, Goya JLH, Rubia NH, Jimenez PN, Munóz FG, Rodríguez JP et al. Recomendaciones sobre toma de decisiones y cuidados al final de la vida en neonatología. An Pediatr. 2013;78(1):190.e1-14., são exceção a essa tendência. Já no Reino Unido3434. Ham C. Tragic choices in health care: lessons from the child B case. BMJ. 1999;319(7219):1258-61.,7777. Wilfond BS. Tracheostomies and assisted ventilation in children with profound disabilities: navigating family and professional values. Pediatrics. 2014;133(1 Suppl):S44-9., a tendência geral é respeitar decisões e protocolos dos médicos caso as equipes de diversos serviços mostrem consenso sobre a futilidade terapêutica.

Gunn e colaboradores3333. Gunn S, Hashimoto S, Karakozov M, Marx T, Tan IKS, Thompson DR et al. Ethics roundtable debate: child with severe brain damage and an underlying brain tumour. Crit Care. 2004;8(4):213-8. mostraram situação-limite de paciente portadora de tumor cerebral, o que reduziria sua expectativa de vida, mas que por intercorrência respiratória resultou em estado vegetativo prolongado. Segundo os autores, a postura ético-jurídica prevalente no âmbito estadunidense teria sido mais contundente que a de outros países em suspender os tratamentos mesmo à revelia dos familiares. Como exemplo, para Singapura, Japão, Alemanha e Rússia, o momento do luto parental e os cuidados avançados seriam mantidos até que os pais se conformassem com a situação. Segundo Schildmann e colaboradores6565. Schildmann J, Hoetzel J, Baumann A, Mueller-Busch C, Vollmann J. Limitation of treatment at the end of life: an empirical-ethical analysis regarding the practices of physician members of the German Society for Palliative Medicine. J Med Ethics. 2011;37(6):327-32., na Alemanha encontra-se resistência às práticas de limitação terapêutica, que foram usadas de forma abusiva durante o nazismo, de modo que há maior facilidade em não progredir com tratamentos do que propriamente suspender algum tipo de suporte.

Tratamentos atuais a serem suspensos/renunciados

No que tange à limitação terapêutica, a primeira decisão é a ordem de não reanimação cardiopulmonar77. Academia Nacional de Cuidados Paliativos. Manual de cuidados paliativos. Rio de Janeiro: Diagraphic; 2009., cuja eficácia global é de cerca de 30%; em casos de pacientes terminais, pode até ocorrer sobrevida após manobra de reanimação, mas dificilmente o paciente terá alta hospitalar. Ou seja, a aceitação dessa limitação terapêutica é fortemente simbólica: a ordem de não reanimar significa que paciente e familiares reconhecem o diagnóstico médico de terminalidade da situação clínica, que eventual sobrevida a manobras de reanimação será breve e que não há soluções para o controle da doença.

Embora Feltman e colaboradores2323. Feltman D, Stokes T, Kett J, Lantos JD. Is treatment futile for an extremely premature infant with giant omphalocele? Pediatrics. 2014;133(1):123-8. digam que qualquer tratamento pode ser discutido quanto à suspensão ou renúncia, conflitos mais drásticos de decisão ética recaem sobre suporte respiratório/ventilação mecânica e nutrição enteral por sonda, e cada um deles apresenta aspectos éticos peculiares. O suporte avançado por ventilação mecânica via intubação orotraqueal é tratamento muito invasivo e doloroso, e frequentemente necessita de sedação e analgesia potente para ser introduzido ou mantido. Não obstante, a suspensão de ventilação mecânica usualmente leva ao óbito em pouco tempo, trazendo, portanto, o questionamento sobre qual seria a fronteira entre limitação terapêutica e eutanásia.

Diante dos limites implicados nesse questionamento, estudiosos5151. Morrison W, Kang T. Judging the quality of mercy: drawing a line between palliation and euthanasia. Pediatrics. 2014;133(1 Suppl):s31-6.,6060. Rapoport A, Shaheed J, Newman C, Rugg M, Steele R. Parental perceptions of forgoing artificial nutrition and hydration during end-of-life care. Pediatrics. 2013;131(5):861-9. alertam que, como o conceito de limitação terapêutica é algo novo, é preciso, inclusive, que se crie vocabulário que consiga descrever, abstratamente, as nuances das situações clínicas vivenciadas; ou seja, palavras e práticas que façam a devida distinção entre negligência, limitação terapêutica e eutanásia.

Geller e colaboradores3232. Geller G, Harrison KL, Rushton CH. Ethical challenges in the care of children and families affected by life-limiting neuromuscular diseases. J Dev Behav Pediatr. 2012;33(7):548-61. afirmam que suporte respiratório apresenta possibilidades menos drásticas e invasivas que ventilação mecânica: é possível aplicar suporte não invasivo, ou mesmo suporte ventilatório via traqueostomia em vez de intubação orotraqueal, por exemplo. Esses autores listam possibilidades de limitação terapêutica de suporte respiratório: 1) não iniciar qualquer medida nesse sentido; 2) não realizar intubação orotraqueal; 3) restringir-se a suporte via traqueostomia, se o paciente já tiver sido submetido a uma; 4) restringir-se a suportes não invasivos; ou 5) iniciar ventilação mecânica por período pré-determinado, findo o qual o paciente será extubado independentemente de haver se recuperado ou não.

Pesquisadores3030. Garros D, Rosychuk RJ, Cox PN. Circumstances surrounding end of life in a pediatric intensive care unit. Pediatrics. 2003;112(5):e371.,3232. Geller G, Harrison KL, Rushton CH. Ethical challenges in the care of children and families affected by life-limiting neuromuscular diseases. J Dev Behav Pediatr. 2012;33(7):548-61.,4545. Levine DZ. Discontinuing immunosuppression in a child with a renal transplant: are there limits to withdrawing life support? Am J Kidney Dis. 2001;38(4):901-15. reconhecem que há nítida futilidade clínica quando o órgão tratado está falindo a despeito da tecnologia empregada. No caso da ventilação mecânica no contexto de cuidados de fim de vida, se os parâmetros ventilatórios se mostram prolongadamente elevados e ainda assim os parâmetros clínicos são de insuficiência respiratória, não há eutanásia na suspensão da ventilação mecânica. Ao contrário, há claramente obstinação terapêutica em manter a vida do paciente por um fio que previsivelmente se romperá, considerando o indispensável tratamento invasivo e doloroso.

Vose e Nelson7575. Vose LA, Nelson RM. Ethical issues surrounding limitation and withdrawal of support in the pediatric intensive care unit. J Intensive Care Med. 1999;14(5):220-30. consideram que essa é situação de futilidade fisiológica, mas que a futilidade terapêutica pode se referir também ao conjunto do quadro clínico do paciente, quando cada suporte avançado é feito em parâmetros habituais, mas a condição do paciente é de nítida deterioração progressiva, como no caso de doenças neurodegenerativas. Frader e Michelson2727. Frader J, Michelson K. Can policy spoil compassion? Pediatr Crit Care Med. 2007;8(3):293-4. adicionam que, em contexto de cuidados de fim de vida, se a sedação tiver de ser profunda, por conta da ventilação mecânica, e não pela condição clínica de base do paciente, isso também é critério indicador de obstinação terapêutica.

O suporte respiratório apresenta nuances em que não fica claro se houve apenas limitação terapêutica ou determinação da morte do paciente naquele momento. Estudos2323. Feltman D, Stokes T, Kett J, Lantos JD. Is treatment futile for an extremely premature infant with giant omphalocele? Pediatrics. 2014;133(1):123-8.,6969. Torres JCT, Goya JLH, Rubia NH, Jimenez PN, Munóz FG, Rodríguez JP et al. Recomendaciones sobre toma de decisiones y cuidados al final de la vida en neonatología. An Pediatr. 2013;78(1):190.e1-14.,7575. Vose LA, Nelson RM. Ethical issues surrounding limitation and withdrawal of support in the pediatric intensive care unit. J Intensive Care Med. 1999;14(5):220-30. descrevem o interdito ético da aplicação de bloqueadores neuromusculares à extubação do paciente porque, obviamente, com o diafragma paralisado, a morte é causada pelo fármaco, e não pela doença de base. Nesse ponto, Morrison e Berkowitz5050. Morrison W, Berkowitz I. Do not attempt resuscitation orders in pediatrics. Pediatr Clin North Am. 2007;54(5):757-71., respondendo à necessidade de distinção de práticas, definem que o termo “eutanásia” pode ser utilizado somente quando medicações letais são administradas nos períodos intercríticos do paciente. Ou seja, a eutanásia seria prática realizada em momentos de estabilidade clínica (isto é, sem sinais ou sintomas de agravamento da doença), e ainda assim apenas sob expressa manifestação do paciente. Por outro lado, em contextos de urgência e emergência, a terminologia mais bem aplicada seria “limitação terapêutica”.

Torres e colaboradores6969. Torres JCT, Goya JLH, Rubia NH, Jimenez PN, Munóz FG, Rodríguez JP et al. Recomendaciones sobre toma de decisiones y cuidados al final de la vida en neonatología. An Pediatr. 2013;78(1):190.e1-14. descrevem que a extubação no contexto de cuidados paliativos é precedida da suspensão de relaxantes musculares, do aumento da dose de sedativos, da redução dos parâmetros ventilatórios até a extubação e da substituição por outro suporte menos invasivo, como pronga nasal de oxigênio. No entanto, Penner e colaboradores5454. Penner L, Cantor RM, Siegel L. Joseph's wishes: ethical decision-making in Duchenne muscular dystrophy. Mt Sinai J Med. 2010;77(4):392-7., estudando caso de distrofia muscular de Duchenne, mostram que não é claro se ventilação mecânica domicilar por traqueostomia é obstinação terapêutica ou se é apenas cuidado crônico diante dessa doença grave e previsivelmente fatal.

Nesse sentido, estudos2323. Feltman D, Stokes T, Kett J, Lantos JD. Is treatment futile for an extremely premature infant with giant omphalocele? Pediatrics. 2014;133(1):123-8.,7777. Wilfond BS. Tracheostomies and assisted ventilation in children with profound disabilities: navigating family and professional values. Pediatrics. 2014;133(1 Suppl):S44-9. constatam que cuidados menos invasivos – como traqueostomia ou gastrostomia – não são a priori obstinados, mas podem por si exigir cuidados e gerar novas complicações. E intercorrências associadas a esses procedimentos podem indicar situação de obstinação terapêutica. Igualmente, o caso do paciente descrito por Leeuwenburgh-Pronk e colaboradores4343. Leeuwenburgh-Pronk WG, Miller-Smith L, Forman V, Lantos JD, Tibboel D, Buysse C. Are we allowed to discontinue medical treatment in this child? Pediatrics. 2015;135(3):545-9. mostra como pode ser tênue a distinção entre limitação terapêutica e eutanásia: o paciente se mantinha estável, embora em condição grave, com o mero uso de oxigênio nasal por cateter, ou seja, tratamento não invasivo, mas cuja retirada provocou óbito em poucas horas.

A questão neuroética é de particular importância no conflito decisório acerca da suspensão de suporte respiratório. Segundo vários autores1919. Devictor DJ, Latour JM. Forgoing life support: how the decision is made in European pediatric intensive care units. Intensive Care Med. 2011;37(11):1881-7.2020. Diekema D, Botkin J. Clinical report: forgoing medically provided nutrition and hydration in children. Pediatrics. 2009;124(2):813-22.,2525. Feudtner C, Nathanson PG. Pediatric palliative care and pediatric medical ethics: opportunities and challenges. Pediatrics. 2014;133(1 Suppl):s1-7.,5555. Piva JP, Garcia PCR, Lago PM. Dilemas e dificuldades envolvendo decisões de final de vida e oferta de cuidados paliativos em pediatria. Rev Bras Ter Intensiva. 2011;23(1):78-86., diante de pacientes com graves sequelas cognitivas (malformações cerebrais, coma persistente, paralisia cerebral etc.), médicos se sentiriam menos desconfortáveis em indicar suspensão e omissão de tratamentos do que diante de doenças terminais não oncológicas que não afetem o cognitivo, como doenças musculares neurodegenerativas2828. García-Salido A, Paso-Mora MG, Monleón-Luque M, Martino-Alba R. Palliative care in children with spinal muscular atrophy type I: what do they need? Palliat Support Care. 2015;13(2):313-7.,5454. Penner L, Cantor RM, Siegel L. Joseph's wishes: ethical decision-making in Duchenne muscular dystrophy. Mt Sinai J Med. 2010;77(4):392-7.,6767. Tan GH, Totapally BR, Torbati D, Wolfsdorf J. End-of-life decisions and palliative care in a children's hospital. J Palliat Med. 2006;9(2):332-42., fibrose cística4646. Liben S, Papadatou D, Wolfe J. Pediatric palliative care: challenges and emerging ideas. Lancet. 2008;371(9615):852-64., insuficiência pulmonar por hemossiderose3737. Hirani SA, Rahman A. Child with idiopathic pulmonary hemosiderosis: a case report from Pakistan with multiple ethical and moral issues. J Pediatr Nurs. 2012;27(4):e22-8. etc.

No entanto, com relação a cromossomopatias e/ou malformações cerebrais, outros estudos1212. Ambler J. When is the right time? Complex issues around withdrawing life-sustaining treatment in children. S Afr Med J. 2014;104(7):507-9.,7676. Wellesley H, Jenkins IA. Withholding and withdrawing life-sustaining treatment in children. Paediatr Anaesth. 2009;19(10):972-8. defendem que o diagnóstico por si só não é suficiente para indicar limitação terapêutica. Trata-se de doenças cuja expressão clínica pode apresentar intensidade variada, desde leves sintomas até graves problemas que geram situação de dependência de tecnologia. Com alguma frequência, portadores dessas doenças apresentam períodos de estabilidade clínica. Feudtner2424. Feudtner C. Collaborative communication in pediatric palliative care: a foundation for problem-solving and decision-making. Pediatr Clin North Am. 2007;54(5):583-607. apresenta ilustração da condição clínica em perspectiva temporal desses pacientes, em que se pode observar que a terminalidade começa a se evidenciar: 1) após internação em UTI, quando o estado clínico geral não retorna ao nível anterior (alta estável, mas com sequelas); e 2) quando começa a haver intercorrências clínicas graves recorrentes.

Com relação à nutrição ou hidratação por sondagem nasogástrica ou gastrostomia, para alguns autores1212. Ambler J. When is the right time? Complex issues around withdrawing life-sustaining treatment in children. S Afr Med J. 2014;104(7):507-9.,2020. Diekema D, Botkin J. Clinical report: forgoing medically provided nutrition and hydration in children. Pediatrics. 2009;124(2):813-22.,2626. Floriani C. Cuidados paliativos no domicílio: desafios aos cuidados de crianças dependentes de tecnologia. J Pediatr. 2010;86(1):15-20., a nutrição somente é cuidado essencial caso o paciente apresente capacidade de deglutição ou perspectiva de retomá-la. Assim, em caso de estado vegetativo persistente, a visão inglesa e estadunidense é no sentido de deixar a definição a cargo dos responsáveis. Ou seja, médicos não indicam a suspensão desse cuidado, mas a nutrição por sondagem é suspensa – enquanto aumentam-se doses de sedativo e aguarda-se óbito por desidratação – caso responsáveis legais o solicitem.

Leeuwenburgh-Pronk e colaboradores4343. Leeuwenburgh-Pronk WG, Miller-Smith L, Forman V, Lantos JD, Tibboel D, Buysse C. Are we allowed to discontinue medical treatment in this child? Pediatrics. 2015;135(3):545-9. informam que, geralmente, os pais pedem a suspensão da nutrição porque a condição clínica geral dos cuidados é muito penosa, embora o suporte nutricional em si não traga aparente desconforto ao paciente. Morrison e Kang5151. Morrison W, Kang T. Judging the quality of mercy: drawing a line between palliation and euthanasia. Pediatrics. 2014;133(1 Suppl):s31-6. mencionam que a nutrição pode ser suspensa caso traga danos ao paciente. Hidayat e colaboradores3535. Hidayat T, Iqbal Z, Nasir A, Mohamad N, Taib F. Can I give food or drink to my terminally ill child? Education in Medicine Journal. 2015;7(3):e73-8. descrevem o caso de menina com câncer terminal que sentia muita fome e desejo de se alimentar, mas sofria com vômitos incoercíveis que a desidratavam sempre que o fazia. Embora seja evento corriqueiro nos EUA, segundo Wellesley e Jenkins7676. Wellesley H, Jenkins IA. Withholding and withdrawing life-sustaining treatment in children. Paediatr Anaesth. 2009;19(10):972-8., pelo menos metade dos médicos estadunidenses não concorda que a retirada de nutrição artificial seja limitação terapêutica eticamente aceitável. E Devictor e Latour1919. Devictor DJ, Latour JM. Forgoing life support: how the decision is made in European pediatric intensive care units. Intensive Care Med. 2011;37(11):1881-7. mostram que, nos países europeus, pode haver tendência a não iniciar nutrição artificial em casos específicos, se houver concordância dos responsáveis, mas a retirada da nutrição raramente é proposta.

Por fim, estudiosos2626. Floriani C. Cuidados paliativos no domicílio: desafios aos cuidados de crianças dependentes de tecnologia. J Pediatr. 2010;86(1):15-20.,7575. Vose LA, Nelson RM. Ethical issues surrounding limitation and withdrawal of support in the pediatric intensive care unit. J Intensive Care Med. 1999;14(5):220-30. asseveram, com relação a custos financeiros do atendimento a pacientes terminais, que não é possível afirmar que o dinheiro que não se gastou com determinado paciente irá necessariamente para outro que necessite de algum tratamento. O custo em saúde é global, de modo que casos particulares não geram impacto financeiro significativo no sistema.

Considerações finais

A decisão terapêutica de iniciar ou não tratamento com base em seu duplo efeito é discussão que mescla aspectos técnicos e questionamentos éticos, e deve agregar o valor da dignidade humana do paciente. Nenhum tratamento por si só é fútil; a futilidade é atributo de valor relativo, ligado à realidade do tratamento e ao contexto clínico geral, ou seja, caso haja expectativa de cura ou caso se trate principalmente de alívio66. Kipper DJ. O problema das decisões médicas envolvendo o fim da vida e propostas para nossa realidade. Bioética. 1999;7(1):59-70.. Dessa forma, limitação terapêutica não é decisão a ser tomada isoladamente por médico assistente, mas pela equipe, da qual o chefe é apenas porta-voz, considerando-se que a responsabilidade jurídica é sobretudo institucional. Crianças portadoras de malformações cerebrais graves apresentam como mecanismo de terminalidade de vida mais comum intercorrências clínicas relacionadas ao aparelho respiratório, de modo que o debate bioético mais acirrado gira em torno da suspensão ou não indicação de ventilação mecânica.

Apesar de obstinação terapêutica ser considerada desvio ético, a atual legislação brasileira não positivou essa figura: existe legislação contrária à negligência, à imprudência e à eutanásia, mas não existe, formalmente, norma ou lei contrária aos excessos ou à hipermedicalização de paciente terminal77. Academia Nacional de Cuidados Paliativos. Manual de cuidados paliativos. Rio de Janeiro: Diagraphic; 2009.. Não obstante, a Resolução CFM 1.995/2012 8080. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.995, de 31 de agosto de 2012. Dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes. Diário Oficial da União. Brasília, p. 269-270, 31 ago 2012. Seção 1., sobre diretivas antecipadas de vida, tenta entrar em consonância com a cultura ético-jurídica estadunidense, embasada em contratos e decisões escritos. Isso soa relativamente estranho à cultura europeia e talvez também à prática brasileira, que tendem a adotar postura de não objeção em vez de propriamente privilegiar contrato explicitado pelo paciente.

Do ponto de vista ético-jurídico, atualmente no Brasil há apenas autorização para que equipe médica, em contexto de cuidados paliativos, restrinja procedimentos diagnósticos e terapêuticos. No entanto, ainda não se conhecem decisões judiciais que punam condutas de obstinação terapêutica. Pelo contrário, atos de obstinação terapêutica podem ser equivocadamente tratados como manutenção do direito à vida de um paciente, conforme contestação do Ministério Público8181. Brasil. Seção Judiciária do Distrito Federal. 14ª. Vara Federal. Autos do processo 2007.34.00.014809-3. [acesso 11 out 2016]. Disponível: http://bit.ly/2efL5jy
http://bit.ly/2efL5jy...
à Resolução CFM 1.805/20068282. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.805, de 28 de novembro de 2006. Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal. Diário Oficial da União. Brasília. 28 nov 2006; seção 1: p.169.. Em conclusão, malformações cerebrais graves resultam em situação de terminalidade de vida, sendo indicados cuidados paliativos, que apresentam como principal dilema limitação ao suporte respiratório. A decisão de limitação de esforços deve ter aspecto institucional, de equipe, e o diálogo com os pais ou responsáveis é um dos principais pilares éticos. Certamente, o uso indiscriminado de tecnologia avançada para todo tipo de paciente já não é mais eticamente aceito; resta, agora, mediante confrontação da realidade, refinar a conduta médica para adequada limitação terapêutica de pacientes terminais.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016

Histórico

  • Recebido
    06 Jun 2016
  • Revisado
    12 Out 2016
  • Aceito
    17 Out 2016
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