Acessibilidade / Reportar erro

Identidade e Agência Profissional de um Professor de Matemática na Interface dos Mundos da Escola e do Mestrado Profissional

Identity and Professional Agency of a Mathematics Teachers at the Interface between the School and Professional Master’s Degree Worlds

Resumo

As iniciativas de formação continuada são oportunidades essenciais para os professores promoverem transformações em suas práticas na escola. Esses processos, no entanto, são complexos, frágeis e incertos. Este artigo aborda essa problemática ao explorar um espaço especial de formação – um programa de Mestrado Profissional – e analisar as experiências profissionais de um professor de Matemática egresso de tal programa. Considerando que a promoção de transformações na prática envolve a produção e negociação de novas maneiras de ser e atuar nos contextos escolares, a perspectiva teórica do estudo se baseia nas noções de agência, identidade e mundos figurados, entendidas desde uma perspectiva sociocultural. Seguindo uma abordagem qualitativa, o estudo desenvolve uma dupla análise. Primeiramente, é estudado o próprio Mestrado Profissional, buscando revelar qual é a teoria ou concepção de aprendizagem docente que embasa as práticas do programa. Em segundo lugar, é desenvolvido um estudo de caso interpretativo do egresso, revelando como esse professor negocia novos modos de ser professor de Matemática e de conceber e direcionar sua prática docente na escola a partir da participação no mestrado. Os resultados destacam dois fatores inter-relacionados de promoção de mudanças na prática escolar do professor que faz Mestrado Profissional: o papel condicionante dos contextos escolares onde ele atua e a potencialidade do mestrado em desencadear processos sinérgicos entre o desenvolvimento de sua identidade e a mobilização de sua agência profissional.

Palavras-chave:
Identidade Profissional; Agência Profissional; Professores de Matemática; Mestrado Profissional; Análise Narrativa

Abstract

In-service teacher education initiatives are essential opportunities for teachers to promote changes in their school practices. However, these are complex, fragile, and uncertainty-ridden processes. This article approaches this topic by analyzing a specific teacher education initiative – a Professional Master’s Degree – and by exploring the experiences of a mathematics teacher graduated from such program. Considering that participation in teacher education initiatives usually involves negotiating new ways of being and acting into the teaching profession, the theoretical perspective is based on the notions of professional identity, agency, and figured worlds. The study adopts a qualitative perspective and presents a double-aimed analytical approach. Firstly, it analyses the Professional Master’s Degree, seeking to reveal the theory or conception of teachers’ learning that supports the practices developed by the program. Secondly, it develops an interpretative case study revealing how the graduated negotiated new ways of being a mathematics teacher and of conceiving and directing his teaching practice from his participation in the master’s degree. The results highlight two interconnected factors regarding the introduction of changes in teachers’ practices from participation in the master’s degree: The central role played by the school context in the production of changes in teaching practices and the potentiality of the professional master’s degree in giving rise to synergic processes between identity development and the exercise of agency.

Keywords:
Professional identity; Professional agency; Mathematics teachers; Professional Master’s Degrees; Narrative analysis

1 Introdução

Um dos grandes desafios da formação de professores de Matemática é organizar os espaços de formação de maneira a produzir reverberações na prática docente na escola (CRECCI; FIORENTINI, 2018CRECCI, V. M.; FIORENTINI, D. Reverberações da aprendizagem de professores de matemática em uma comunidade fronteiriça entre universidade-escola. Educar em Revista, Curitiba, v. 34, n. 70, p. 273-292, jul./ago. 2018.). Educadores comprometidos com este desafio buscam criar oportunidades nas quais os professores possam problematizar e refletir sobre seus conhecimentos e práticas profissionais – desenvolvidos no seu trabalho cotidiano na escola – e colocá-los em diálogo com os conhecimentos produzidos no campo da pesquisa em Educação Matemática. Espera-se que tal exercício reflexivo e investigativo contribua para que os professores desenvolvam não somente novas maneiras de orientar sua prática na escola, mas também novas formas de compreender seu papel enquanto professores.

No entanto, a promoção de mudanças na prática docente, considerando as ideias propostas nos espaços de formação, pode tornar-se um processo difícil e incerto para os professores que devem enfrentar inúmeros obstáculos, tais como a pressão para cumprir o currículo proposto, a falta de apoio institucional, a resistência de pais e alunos, entre outros (GOODCHILD, 2014GOODCHILD, S. Mathematics teaching development: learning from developmental research in Norway. ZDM Mathematics Education, New York, v. 46, p. 305-316, abr. 2014.). Assim, quando os professores buscam e desenvolvem novas ideias sobre o ensino da Matemática, geralmente se envolvem em complexos processos de negociação com outros sujeitos da escola, podendo facilitar ou obstaculizar as mudanças almejadas na prática. Portanto, as ações dos professores e os modos de compreender seu papel enquanto profissionais são continuamente influenciados pelas demandas e expectativas dos múltiplos participantes do mundo da escola.

Os professores, por sua vez, não podem ser considerados meros reprodutores das práticas e dos discursos veiculados nos espaços acadêmicos de formação e nem produtos determinados pelo mundo social da escola onde trabalham. Ao contrário, os professores tomam partido e assumem posturas perante as condições, restrições e possibilidades oferecidas pelo contexto escolar e, baseados em seus princípios, juízos e experiências, fazem uso de sua margem de manobra para tomar decisões e fazer escolhas em relação ao seu trabalho (VÄHÄSANTANEN, 2015VÄHÄSANTANEN, K. Professional agency in the stream of change: understanding educational change and teachers’ identity. Teaching and teacher education, Philadelphia, v. 47, p. 1-12, abr. 2015.). Ademais, eles se apropriam criticamente dos recursos oferecidos pelos espaços universitários de formação e os articulam com outros que já fazem parte de seu repertório para (re)criar modos de ser professor e de conceber e realizar sua prática docente.

Desde essa perspectiva, a problemática de promover mudanças na prática, a partir da participação em espaços acadêmicos de formação, deve ser compreendida em termos das relações mutuamente constitutivas entre o professor e os mundos sociais dos quais ele participa – a escola e o espaço universitário de formação. Investigar uma oportunidade formativa em termos da sua reverberação na prática docente na escola requer, então, um duplo esforço analítico. Por um lado, analisar o próprio espaço formal de formação, visando revelar quais são as aprendizagens docentes que valoriza e os modos de ser professor que busca promover. Por outro lado, analisar as experiências de participação dos professores nesses espaços formativos da universidade, revelando como eles se apropriam dos recursos ali oferecidos para (re)negociar modos de ser professor e de orientar sua prática na escola. Esse é o objetivo do presente artigo.

Desse modo, analisamos um espaço de formação particular – um Mestrado Profissional – e desenvolvemos um estudo de caso interpretativo de um professor de Matemática, Roberto1 1 Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética na Pesquisa com a ressalva de manter sob sigilo os nomes das instituições e dos professores envolvidos. Assim, todos os nomes utilizados neste trabalho são pseudônimos. Além disso, temos mantido sob sigilo as fontes de dados. , egresso desse mestrado. Adotando uma perspectiva teórica enraizada na teoria sociocultural, as experiências de Roberto serão analisadas sob a lente teórica das noções de identidade, agência e mundos figurados. Nossas perguntas de pesquisa são: Como um Mestrado Profissional compreende a aprendizagem docente? Como um professor egresso desse Mestrado Profissional desenvolve e negocia modos de ser professor de Matemática e de conceber e direcionar sua prática docente?

Antes de apresentar a perspectiva teórica adotada no artigo, discutimos a relevância de desenvolver pesquisas com foco nos Mestrados Profissionais (MP) como espaço de formação.

2 Os Mestrados Profissionais como espaços de formação docente

Ganhando destaque nos últimos anos no Brasil, os MP são, atualmente, um importante espaço formativo e de desenvolvimento profissional para os professores em geral e para o professor de Matemática, em particular. Ao tomar como foco a qualificação dos profissionais que atuam nas escolas, os MP tendem a reforçar ou provocar o compromisso dos programas de Pós-Graduação com a formação de professores (CAMPOS; GUÉRIOS, 2017CAMPOS, M. A. T.; GUÉRIOS, E. Mestrado profissional em Educação: reflexões acerca de uma experiência de formação à luz da autonomia e da profissionalidade docente. Educar em Revista, Curitiba, n. 63, p. 35-51, jan./mar. 2017.).

Originados em um processo marcado por desconfianças e resistências, nos últimos anos os MP ganharam legitimidade e credibilidade (ANDRÉ; PRINCEPE, 2017ANDRÉ, M.; PRINCEPE, L. O lugar da pesquisa no mestrado profissional em Educação. Educar em Revista, Curitiba, n. 63, p. 103-117, jan./mar. 2017.; CAMPOS; GUÉRIOS, 2017CAMPOS, M. A. T.; GUÉRIOS, E. Mestrado profissional em Educação: reflexões acerca de uma experiência de formação à luz da autonomia e da profissionalidade docente. Educar em Revista, Curitiba, n. 63, p. 35-51, jan./mar. 2017.). Contudo, a expansão da oferta de MP não significou homogeneidade nos programas. Assim, hoje existe uma ampla variedade de MP destinados a professores de Matemática2 2 Em janeiro de 2017, quando iniciou a pesquisa que originou o presente artigo, a plataforma Sucupira da Capes informava que, dentro do estado de São Paulo, estavam em funcionamento dez programas de mestrado profissional que tinham algum vínculo com a educação matemática (cinco na área de Ensino, três na área de Educação e dois na área de Matemática). (LOSANO; FIORENTINI, 2018aLOSANO, A. L.; FIORENTINI, D. Análise das ênfases formativas de mestrados profissionais destinados a professores de matemática. Revista Internacional de Educação Superior, Campinas, v. 4, n. 2, p. 278-307, maio/ago. 2018a.). Cada um deles persegue diversos objetivos e possui uma organização curricular particular. Tanto os objetivos como a estrutura curricular de cada MP se fundamentam nas teorias da aprendizagem docente que, implícita ou explicitamente, sustentam o programa.

Nos últimos anos, diversos pesquisadores apontaram as potencialidades dos MP para a produção de transformações na prática docente (CAMPOS; GUÉRIOS, 2017CAMPOS, M. A. T.; GUÉRIOS, E. Mestrado profissional em Educação: reflexões acerca de uma experiência de formação à luz da autonomia e da profissionalidade docente. Educar em Revista, Curitiba, n. 63, p. 35-51, jan./mar. 2017.; CEVALLOS; PASSOS, 2012CEVALLOS, I.; PASSOS, L. F. O Mestrado Profissional e a pesquisa do professor. Revista Diálogo Educacional, Curitiba, v. 12, n. 37, p. 803-822, set./dez. 2012.; PIRES; IGLIORI, 2013PIRES, C. M. C.; IGLIORI, S. B. C. Mestrado profissional e o desenvolvimento profissional do professor de matemática. Ciência & Educação, Bauru, v. 19, n. 4, p. 1045-1068, 2013.), principalmente quando eles se constituem em espaços onde

as atividades de estudo e pesquisa são pensadas de forma a provocar nos mestrandos uma efetiva reflexão sobre a prática profissional, reconhecendo os limites da pedagogia desenvolvida nas escolas e, a partir desse reconhecimento, tendo condições de desvelar realidades e forjar estratégias de superação. Essa tarefa impõe pesquisa utilizando como ferramenta os estudos teóricos e os conhecimentos específicos da formação para entendimento da realidade da escola e da complexidade do cotidiano que circunda a prática docente (NERES; NOGUEIRA; BRITO, 2014NERES, C. C.; NOGUEIRA, E. G. D.; BRITO, V. M. Mestrado profissional em educação e sua interseção com a qualificação docente na educação básica. RBPG, Brasília, v. 11, n. 25, p. 885-909, set. 2014., p. 902-903).

Dentro desse tipo de MP, o professor traz para a universidade os problemas que vivencia no seu cotidiano escolar e encontra um ambiente fértil para transformá-los em objeto de reflexão e de investigação (CEVALLOS; PASSOS, 2012CEVALLOS, I.; PASSOS, L. F. O Mestrado Profissional e a pesquisa do professor. Revista Diálogo Educacional, Curitiba, v. 12, n. 37, p. 803-822, set./dez. 2012.). A pesquisa que os professores desenvolvem nesses MP é, então, uma pesquisa que “nasce da prática e traz propostas para a prática” (CARNEIRO, 2008CARNEIRO, V. C. G. Contribuições para a formação do professor de matemática pesquisador nos mestrados profissionalizantes na área de ensino. Bolema, Rio Claro, v. 21, n. 29, p. 199- 222, 2008., p. 217). O envolvimento nessas atividades possibilita a formação de professores críticos e criativos (ANDRÉ; PRINCEPE, 2017ANDRÉ, M.; PRINCEPE, L. O lugar da pesquisa no mestrado profissional em Educação. Educar em Revista, Curitiba, n. 63, p. 103-117, jan./mar. 2017.) que, ao desenvolver propostas de sua autoria, conseguem participar ativamente dos debates que envolvem seu fazer profissional (NERES; NOGUEIRA; BRITO, 2014NERES, C. C.; NOGUEIRA, E. G. D.; BRITO, V. M. Mestrado profissional em educação e sua interseção com a qualificação docente na educação básica. RBPG, Brasília, v. 11, n. 25, p. 885-909, set. 2014.). Segundo Cevallos e Passos (2012CEVALLOS, I.; PASSOS, L. F. O Mestrado Profissional e a pesquisa do professor. Revista Diálogo Educacional, Curitiba, v. 12, n. 37, p. 803-822, set./dez. 2012.), a pesquisa que os professores desenvolvem dentro deste tipo de MP, ao tomar como objeto de investigação a prática docente “pode influenciar diretamente a forma como o professor lida com o conteúdo e as atividades práticas em sala de aula” (CEVALLOS; PASSOS, 2012CEVALLOS, I.; PASSOS, L. F. O Mestrado Profissional e a pesquisa do professor. Revista Diálogo Educacional, Curitiba, v. 12, n. 37, p. 803-822, set./dez. 2012., p. 807).

Considerando a diversidade de MP que existem na atualidade e sua história relativamente curta, vários pesquisadores ressaltaram a necessidade de desenvolver pesquisas que analisem as produções e os impactos destes espaços formativos (NERES; NOGUEIRA; BRITO, 2014NERES, C. C.; NOGUEIRA, E. G. D.; BRITO, V. M. Mestrado profissional em educação e sua interseção com a qualificação docente na educação básica. RBPG, Brasília, v. 11, n. 25, p. 885-909, set. 2014.; CAMPOS; GUÉRIOS, 2017CAMPOS, M. A. T.; GUÉRIOS, E. Mestrado profissional em Educação: reflexões acerca de uma experiência de formação à luz da autonomia e da profissionalidade docente. Educar em Revista, Curitiba, n. 63, p. 35-51, jan./mar. 2017.). O presente artigo procura avançar nesta direção, ao analisar um programa de MP, que aqui chamaremos MPU, e desenvolver um estudo de caso de um professor de Matemática egresso desse mestrado.

3 Perspectiva teórica

Neste artigo, baseamos nossa conceitualização teórica no trabalho de Holland et al. (1998)HOLLAND, D.; SKINNER, D.; LACHICOTTE, W.; CAIN, C. Identity and agency in cultural worlds. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.. Tal perspectiva, enraizada nas teorias socioculturais, assume que existem relações mútuas e dialógicas entre as pessoas e o mundo social. Desse modo, assumimos que, quando os professores participam das suas atividades cotidianas, muitas das suas ações são moldadas pelas condições materiais e sociais estabelecidas nas escolas. Contudo, os professores também atuam proposital e reflexivamente para reiterar, reconstruir ou transformar suas práticas de ensino e os modos de se compreender enquanto profissionais. A perspectiva desenvolvida por Holland et al. (1998)HOLLAND, D.; SKINNER, D.; LACHICOTTE, W.; CAIN, C. Identity and agency in cultural worlds. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. fornece três noções teóricas para capturar essas relações mutuamente constitutivas entre o professor e os mundos sociais dos quais participa: a identidade, a agência e os mundos figurados.

A noção de mundo figurado é uma ferramenta teórica útil para conceitualizar o contexto social e cultural. Segundo Holland et al. (1998)HOLLAND, D.; SKINNER, D.; LACHICOTTE, W.; CAIN, C. Identity and agency in cultural worlds. Cambridge: Cambridge University Press, 1998., os mundos figurados são reinos de interpretação e atuação social e culturalmente construídos. Eles oferecem um conjunto de papéis para seus participantes, outorgam importância a certos fatos e atividades e valorizam mais alguns resultados do que outros. A escola onde um professor trabalha pode ser entendida como um mundo figurado, visto que participar dele envolve aprender o sentido de certas ações, compreender quais são os comportamentos considerados corretos e os valores que os membros sustentam, assim como desenvolver identificações com as práticas produzidas dentro dele.

Um MP também pode ser entendido como um mundo figurado, já que tem participantes que ocupam papéis e posições diferentes – mestrando, formador, orientador etc. – que se comprometem em certas atividades consideradas relevantes para a formação de professores (LOSANO; FIORENTINI, 2018bLOSANO, A. L.; FIORENTINI, D. A constituição identitária de professores de matemática no contexto dos mestrados profissionais. Educação em revista, Belo Horizonte, v. 34, e190193, 2018b.). Ao longo do tempo, esses mundos figurados produzem e legitimam oportunidades e trajetórias de aprendizagem para seus participantes. Também produzem seus próprios recursos e compreensões sobre o que significa ser um bom professor de Matemática. Assim, os mundos figurados proveem o contexto de significação para as ações e disputas de seus participantes e para as compreensões que eles chegam a desenvolver sobre eles mesmos. Portanto, eles moldam a agência e a identidade profissional dos professores.

A identidade profissional de um professor é compreendida como sendo um “conjunto de compreensões sobre si mesmo, relacionadas com formas de estar, viver e projetar-se na profissão docente, diante das vozes, das demandas e das condições sociais e políticas da prática de ensino” (LOSANO; FIORENTINI; VILLARREAL, 2018LOSANO, L.; FIORENTINI, D.; VILLARREAL, M. The development of a mathematics teacher’s professional identity during her first year teaching. Journal of Mathematics Teacher Education, New York, v. 21, p. 287-315, 2018., p. 291). Assim, as identidades profissionais estão sempre em desenvolvimento e são pontos de vista continuamente negociados ao longo do tempo e do espaço de atuação profissional. A partir dessa perspectiva, a identidade se vincula às noções de posicionamento dentro de mundos figurados e de espaço de construção da autoria. A primeira delas se relaciona com o poder, o estatus e a reivindicação de recursos sociais e materiais segundo a posição social de uma pessoa dentro de um mundo figurado.

Quando os professores atuam dentro das suas escolas, eles são posicionados por outros membros – como um professor exigente, por exemplo – e, simultanemente, eles constroem sua própria posicão social. É importante destacar que as identidades que se desenvolvem em relação às posições revindicadas e/ou prescritas, dentro de um mundo figurado, podem sofrer disrupções: “quando os indivíduos aprendem sobre os mundos figurados e chegam a se identificar dentro deles, sua participação pode incluir reações ao tratamento que receberam como ocupantes das posições delineadas por esses mundos” (HOLLAND et al., 1998HOLLAND, D.; SKINNER, D.; LACHICOTTE, W.; CAIN, C. Identity and agency in cultural worlds. Cambridge: Cambridge University Press, 1998., p. 143).

A noção de espaço de construção da autoria ressalta que, no seu terreno íntimo, as pessoas – e particularmente os professores – são continuamente interpeladas por diferentes disursos e vozes que carregam intencionalidades e sentidos sobre sua identidade profissional. No caso dos professores de Matemática, essas vozes podem provir dos membros da escola onde trabalham, dos formadores e colegas dos espaços acadêmicos de formação que frequentam ou frequentaram e de suas experiências passadas como estudantes ou docentes. Sendo interpelado por esses discursos e vozes, o professor está continuamente envolvido em um processo dialógico de produzir sentido a elas, de respondê-las, de ressignificá-las e de adaptá-las às suas próprias intenções e necessidades. O desenvolvimento da identidade profissional envolve, assim, orquestrar vozes e discursos – provenientes de diversos mundos sociais e do presente ou do passado – para produzir compreensões sobre ele mesmo e para se imaginar em novos mundos sociais vinculados com o ensino e a aprendizagem da Matemática. Desse modo, a identidade possui uma natureza profundamente dialógica e multivocal (GUTIÉRREZ, 2013GUTIÉRREZ, R. The Sociopolitical Turn in Mathematics Education. Journal for Research in Mathematics Education, Reston, v. 44, n. 1, p. 37-68, jan. 2013.).

Entretanto não são apenas as identidades que estão sempre em desenvolvimento e transformação. Os mundos figurados são também continuamente criados e recriados pelos seus participantes. Certas práticas culturais, especialmente aquelas produzidas fora dos tempos e espaços regulados, são ocasiões nas quais mundos alternativos podem ser imaginados e experimentados e, também, oportunidades para que as pessoas representem a si mesmas dentro desses novos mundos (HOLLAND et al., 1998HOLLAND, D.; SKINNER, D.; LACHICOTTE, W.; CAIN, C. Identity and agency in cultural worlds. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.).

Portanto, certas práticas – tais como participar em um MP – podem ser oportunidades para imaginar novos mundos vinculados com o ensino da Matemática e para desenvolver novas identidades profissionais. Tais práticas permitem a reflexão sobre o mundo da escola – revelando suas regras implícitas e as identidades que promovem – e incentivam o desenvolvimento de novas maneiras de conceber e direcionar e ensino da Matemática. Elas permitem, então, a mobilização da agência do professor na (re)criação da sua prática e do mundo social da escola onde trabalha. Desde essa perspectiva, a agência profissional é compreendida como o envolvimento ativo e intencional do professor na concepção e direcionamento da sua prática de ensino, considerando tanto seus próprios propósitos, princípios e interesses como as restrições e possibilidades colocadas pelo contexto escolar.

É importante ressaltar que essa perspectiva não supõe que os professores sejam livres para fazer qualquer coisa que queiram. Para responder aos dilemas que continuamente lhes coloca sua prática docente, os professores consideram suas experiências passadas, as posições e as possibilidades oferecidas pelo mundo figurado da escola e os recursos disponíveis para criar e negociar ações possíveis. Desde essa perspectiva, a agência pode ser muitas vezes modesta e frágil, mas ela “acontece mundanamente e merece nossa atenção” (HOLLAND et al., 1998HOLLAND, D.; SKINNER, D.; LACHICOTTE, W.; CAIN, C. Identity and agency in cultural worlds. Cambridge: Cambridge University Press, 1998., p. 5), principalmente porque é a partir dela que os professores podem promover e realizar modificações no mundo do ensino.

A perspectiva apresentada constitui uma lente teórica rica e complexa através da qual é possível analisar o desenvolvimento da identidade e da agência profissional de Roberto a partir da sua participação no MPU. A noção de mundo figurado nos permite conceitualizar o contexto escolar e o MP, assim como as relações que o professor estabelece entre eles. Por sua vez, as noções de identidade e de agência profissional possibilitam considerar os conflitos e as contradições que o professor enfrenta quando procura, cria e negocia novos modos de ser professor e de conceber e direcionar sua prática docente nas escolas a partir da sua participação no MPU.

4 Perspectiva metodológica

Neste artigo apresentamos um recorte de uma pesquisa mais ampla cujo objetivo é compreender como a participação em diversos MP contribui para o desenvolvimento da identidade professional e para a produção de mudanças nas práticas de professores de Matemática. Com esse objetivo, foram selecionados quatro MP destinados a professores de Matemática oferecidos dentro do estado de São Paulo (Brasil). Assumindo uma abordagem qualitativa (BOGDAN; BIKLEN, 1994BOGDAN, R. C.; BIKLEN, S. K. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Porto Editora, 1994.), a realização da pesquisa requeriu um trabalho metodológico em duas linhas. Por um lado, foram coletados dados que orientassem a descrição de cada um dos MP. Por outro, foram coletados dados a fim de desenvolver estudos de caso de professores egressos no período 2014-2016. A utilização de estudos de caso se justifica visto que eles permitem compreender em profundidade o “como” e os “porquês” das experiências dos professores nos MP e suas repercussões na prática profissional (PONTE, 2006PONTE, J. P. Estudos de caso em educação matemática. Bolema, Rio Claro, v. 25, n. 1, p. 05-132, 2006.). Este artigo apresenta os resultados relativos a um dos MP investigados – o MPU – e o caso de Roberto, um professor de Matemática egresso desse programa.

4.1 A elaboração da descrição e análise do mundo figurado do MPU

A coleta e análise dos dados do MPU objetivou revelar como este mundo figurado compreende a aprendizagem docente. Para tanto, foram coletados diversos documentos oficiais disponibilizados pelo mestrado (regulamento, editais de seleção, informação da página web do programa e dissertações defendidas no período 2014-2016). Também realizamos uma entrevista semiestruturada com a coordenadora do mestrado que foi áudio-gravada.

Visando analisar como o MPU compreende a aprendizagem docente, nos apoiamos na conceitualização de Lave (1996) sobre as teorias de aprendizagem. Segundo a autora, uma teoria de aprendizagem consiste em, ao menos, três especificações:

  • Telos: uma direção de movimento ou mudança para a aprendizagem […].

  • Relação sujeito-mundo: Uma especificação geral das relações entre os sujeitos e o mundo social.

  • Mecanismos de aprendizagem: mais do que ferramentas ou técnicas particulares para a aprendizagem […] são formas de se tornar um participante, formas de participar e formas nas quais os participantes e as práticas mudam (LAVE, 1996LAVE, J. Teaching, as learning, in practice. Mind, Culture, and Activity, Philadelphia, v. 3, n. 3, p. 149-164, 1996., p. 156-157).

Desse modo, a análise do mestrado esteve orientada por três focos analíticos. Em primeiro lugar, a identificação do Telos proposto pelo MPU, fazendo foco no perfil de professor que pretende formar. Em segundo lugar, compreender o modo como o MPU concebe a relação entre os professores e seu mundo social – principalmente a escola onde ele trabalha e a universidade. E, finalmente, elucidar os mecanismos de aprendizagem que o MPU mobiliza, centrando a atenção nas trajetórias de participação oferecidas.

Sendo um dos programas de MP mais antigos no estado de São Paulo, o principal motivo para a escolha do MPU foi o seu grande número de egressos. Ele é oferecido por uma universidade particular e se destina a professores ou formadores em exercício, atuando na área de Ensino de Ciências e Matemática em qualquer nível de ensino.

4.2 O caso do professor Roberto

A coleta e a análise dos dados para investigar o caso de Roberto estiveram orientadas a compreender como esse professor desenvolve e negocia modos de ser professor de Matemática e de conceber e direcionar sua prática docente. Assim, o primeiro dado coletado foi a dissertação de mestrado do professor, o que nos proporcionou um importante background para compreender as experiências de Roberto. O segundo, e principal, dado coletado foi uma entrevista narrativa na qual o professor foi estimulado a produzir explicações detalhadas em lugar de respostas curtas ou afirmações de caráter geral (RIESSMAN, 2008RIESSMAN, C. K. Narrative methods for the human sciences. California: Sage, 2008.). Assim, Roberto foi encorajado a falar abertamente sobre ele mesmo, sua prática docente, as escolas onde trabalha e suas experiências durante e depois do MPU. A entrevista foi conduzida pela primeira autora deste artigo.

Desenvolvemos uma análise narrativa dos dados provenientes da entrevista. Dois motivos sustentaram essa opção analítica. Em primeiro lugar, a natureza narrativa dos dados. Em segundo lugar, as narrativas expressam os processos inter-relacionados de ser e tornar-se, de pertencer e desejar pertencer, ou seja, revelam a natureza fluída da identidade do narrador. Assim, a análise narrativa é um enfoque frutífero para estudar o processo de desenvolvimento da identidade profissional (RIESSMAN, 2008RIESSMAN, C. K. Narrative methods for the human sciences. California: Sage, 2008.).

A análise foi desenvolvida em duas etapas. Na primeira etapa, transcrevemos a entrevista e realizamos várias leituras da mesma, buscando episódios narrativos nos quais Roberto desenvolvesse e negociasse novas formas de ser professor e de conceber e direcionar sua prática docente. Desse modo, selecionamos os episódios em função de nossa pergunta de pesquisa. Como resultado, selecionamos quatro episódios distribuídos ao longo da entrevista.

A segunda etapa envolveu a análise de cada episódio, considerados como unidades analíticas. Desse modo, decompomos nossa pergunta geral nas seguintes perguntas específicas: Como Roberto, sendo egresso do MPU,

  1. se posiciona e posiciona outros participantes do mundo do ensino na escola?

  2. Orquestra vozes do seu mundo social e pessoal para criar compreensões dele mesmo como professor de Matemática e para se imaginar em novos mundos sociais?

  3. Atua sobre o mundo do ensino na escola e negocia – com outros – novas ações possíveis dentro desse mundo?

A seguir, desenvolvemos uma análise narrativa performática (RIESSMAN, 2008RIESSMAN, C. K. Narrative methods for the human sciences. California: Sage, 2008.) de cada episódio em termos das três perguntas específicas. Essa análise examina o que é dito num episódio narrativo, ou seja, o seu conteúdo temático. Mas considera, também, o como é dito, ou seja, a forma que o narrador escolhe para construir a trama e os tons e acentos que emprega (KAASILA, 2007KAASILA, R. Using narrative inquiry for investigating the becoming of a mathematics teacher. ZDM, New York, v. 39, p. 205-213, mai. 2007.). Começamos estudando como Roberto estruturava cada episódio. Com esse intuito, escutamos repetidamente os fragmentos da entrevista que correspondiam a cada episódio e identificamos, em cada um deles, cenas relativas a um tópico, evento e/ou tempo, que poderia se constituir em um foco de análise. A seguir, analisamos os posicionamentos dos participantes no episódio, os diálogos entre eles, os signos paralinguísticos – pausas, risos, repetições – e a audiência do interlocutor.

Os critérios utilizados para a escolha de Roberto como participante privilegiado desta pesquisa foram: ter desenvolvido uma dissertação voltada à própria prática docente em Matemática na escola básica; estar atuando na escola pública e ter disponibilidade em colaborar com a pesquisa.

Roberto é um professor de Matemática com 12 anos de experiência docente que se graduou do MPU em 2015. Ele realizou sua formação inicial numa universidade pública do estado do Paraná onde teve seu “primeiro contato com as novas tendências e pesquisas na área da Educação Matemática” (Dissertação Roberto, 2015, p. 10), principalmente a Modelagem Matemática como metodologia de ensino. Em 2006, Roberto começou uma especialização em Educação Matemática em outra universidade pública na qual ele teve “a oportunidade de conhecer e estudar mais detalhadamente diversas metodologias, dentre as quais a Resolução de Problemas foi a que mais me chamou a atenção” (Dissertação Roberto, 2015, p. 11). A principal motivação para ingressar, em 2013, no programa MPU, foi “a busca por respostas ao enfrentamento de desafios que se apresentaram em minha prática docente” (Dissertação Roberto, 2015, p. 18).

Segundo Roberto, ao longo da sua trajetória profissional se defrontou com duas inquietações. A primeira é refletir sobre “como ensinar Matemática utilizando diferentes metodologias de ensino e aprendizagem” e a segunda é “compreender como os alunos aprendem Matemática quando adotamos uma metodologia de ensino mais atual como, por exemplo, a Resolução de Problemas” (Dissertação Roberto, 2015, p. 105). Essas inquietações deram origem à questão norteadora da sua dissertação de mestrado: “como se realiza a aprendizagem sobre funções definidas por várias sentenças através da Resolução de Problemas?” (Dissertação Roberto, 2015, p. 17). Sua orientadora foi a professora Natalia, uma pesquisadora reconhecida por sua trajetória de estudos na área da Resolução de Problemas. Na época da entrevista, Roberto lecionava em numa escola pública técnica – atuando no Ensino Técnico Integrado ao Médio –, em uma escola particular apostilada e em uma instituição de Ensino Superior particular3 3 Embora a participação no MPU possa ter tido repercussões na atuação de Roberto no Ensino Superior, a nossa pesquisa tem por objetivo principal analisar como a participação no MP contribuiu para o desenvolvimento da identidade profissional e para a produção de mudanças na prática docente na Educação Básica. Por esse motivo, restringimos a coleta e a análise dos dados aos mundos figurados da escola pública e da escola particular onde esse professor atua. .

Buscando satisfazer os critérios de autenticidade, de adequação, de plausibilidade e de qualidade explicativa (CLANDININ; CONNELLY, 2000CLANDININ, D. J.; CONNELLY, F. M. Narrative inquiry: Experience and story in qualitative research. San Francisco: Jossey-Bass, 2000.), descrevemos detalhadamente cada episódio, colocando em relevo a voz do professor. Além disso, enfatizamos a habilidade da narrativa para explicar os fenômenos e as experiências (KAASILA, 2007KAASILA, R. Using narrative inquiry for investigating the becoming of a mathematics teacher. ZDM, New York, v. 39, p. 205-213, mai. 2007.) e compartilhamos com Roberto versões preliminares da análise, oferecendo-lhe oportunidade de propor mudanças e correções.

A próxima seção destina-se à análise dos dados, iniciando com a descrição e análise do mundo figurado do MPU. A seguir, apresentamos a análise narrativa do caso de Roberto. Antes de cada episódio descrevemos o momento da entrevista e a pergunta que deu origem à sua narração. Continuamos apresentando a transcrição completa do episódio, organizando-o em cenas e, finalmente, realizamos a análise do mesmo.

5 Análise dos dados

5.1 O mundo figurado da formação profissional do MPU

O telos promovido pelo MPU – ou seja, o sentido de movimento para as aprendizagens promovidas – pode ser caraterizado ao considerar o tipo de professor de Matemática que o mestrado pretendia formar. Três objetivos do programa apontam dados nessa direção:

  • Formar professor pesquisador para atuar em todos os graus de ensino, inclusive no Ensino Superior, especialmente nos Cursos de Licenciatura.

  • Formar professor pesquisador que contribua para a formação continuada de outros professores da área, em contexto formais e não-formais de ensino.

  • Formar professor pesquisador que atue de forma autônoma e contribua para a utilização e divulgação de pesquisas da área em situação real de ensino (MPU, Página Web, 2017).

A noção de professor pesquisador também foi ressaltada pela coordenadora do MPU ao descrever os objetivos do programa:

nosso objetivo é formar [o] professor pesquisador, ou formador pesquisador […] Que a gente consiga levar para esses profissionais […] a pesquisa como uma das formas de desenvolvimento profissional e uma das formas de delinear suas ações de formação ou suas ações como professor […] Ele deixa de ser simplesmente professor para se tornar também professor pesquisador.

(Entrevista com a Coordenadora MPU, 2018).

Podemos interpretar, então, que o telos deste mundo figurado projeta um processo de formação que leve os mestrandos a se tornarem professores pesquisadores. O egresso do MPU deveria, então, desenvolver um olhar investigativo sobre sua prática que desenvolve no mundo da escola e ao trabalhar com outros colegas.

Quanto às relações entre o professor e seu mundo profissional, o MPU parece compreender os contextos e práticas escolares como espaços formativos que contribuem à aprendizagem e à constituição profissional do professor. Atuando dentro desses espaços, o professor é visto como um produtor de conhecimentos específicos situados no mundo da prática escolar, os quais são levados para estudo no âmbito do MPU:

nossos alunos trazem a prática para nós! […] Eles sabem muito dos alunos. Esse aprendizado da prática, esse conhecimento da prática, que vários autores chamam conhecimento didático do conteúdo, eles é que trazem para a gente. Eles sabem muito dessa realidade, das dificuldades, e a gente leva para eles os resultados das pesquisas que a gente realiza […] é uma convivência, uma aprendizagem mútua, a gente leva essa prática de pesquisa e eles trazem a prática e a realidade da escola. O testemunho que nós temos é que eles mudam a sua pessoa e as suas práticas a partir da formação que eles têm aqui.

(Entrevista com a Coordenadora MPU, 2018).

De acordo com a perspectiva da coordenadora, o MPU promove o diálogo entre o mundo da escola e o mundo da academia. Os professores trazem seus conhecimentos e experiências produzidos na prática, bem como as codições e possibilidades oferecidas pelas escolas em que atuam. Os formadores da universidade trazem teorias e metodologias que podem instrumentalizar e problematizar as análises, interpretações e compreensões das práticas docentes nas escolas. Podemos concluir, então, que, neste mundo figurado, pesquisadores, formadores e professores compartilham conhecimentos desenvolvidos dentro dos mundos da escola e da academia e negociam novos significados relativos ao ensino e à aprendizagem da Matemática. O MPU supõe que, a partir desses diálogos, o professor desenvolverá sua identidade e poderá promover transformações na sua prática docente. Assim, a partir da sua praticipação no MPU, o professor poderá contribuir, também, com a (re)construção do seu mundo profissional.

O telos e os modos de compreender a relação entre os professores e seu mundo profissional sustentados pelo MPU se concretizam em mecanismos de aprendizagem que requerem o envolvimento dos mestrandos em distintas atividades (cursar disciplinas, participar em seminários, estágios de docência supervisionada e realizar trabalho de pesquisa).

As disciplinas ocupam boa parte das atividades dos primeiros três semestres dividindo-se entre obrigatórias (quatro) e eletivas (seis). As eletivas separam-se em três blocos: o primeiro é formado por disciplinas centradas nos conteúdos de ensino específicos das áreas de conhecimento que compõem o programa (Matemática, Física, Biologia e Química); o segundo, composto por disciplinas de caráter pedagógico e o terceiro por disciplinas que abordam tópicos vinculados com as metodologias de ensino. Segundo a coordenadora, as disciplinas do primeiro bloco têm um foco diferenciado: “não é aula de álgebra, não é aula de geometria, não é aula de probabilidade. As disciplinas tratam esses conteúdos específicos mas sob o olhar dos teóricos da educação, do ensino da Matemática que visa formas de aprendizagem desses conteúdos” (Entrevista com a Coordenadora MPU, 2018).

Assim, tais disciplinas abordam, de maneira inter-relacionada, os conteúdos matemáticos, as dificuldades de aprendizagem e as estratégias de ensino desses conteúdos tomando por base a pesquisa em Educação Matemática. A seguinte fala da coordenadora revela a trajetória oferecida pelas disciplinas neste mundo figurado: “nós temos o compromisso de levá-los ao conhecimento da existência do campo da Educação Matemática, em geral, em termos de pesquisa e das tendências e, depois, sim, [cada um] se debruça sobre as particularidades da sua pesquisa” (Entrevista com a Coordenadora MPU, 2018).

Outra atividade que perpassa os dois anos do mestrado é o desenvolvimento do trabalho de pesquisa. Ao ingressar no MPU, o mestrando é vinculado a um orientador – escolhido tendo em vista as temáticas de interesse de ambos – que o acompanhará durante todo o mestrado. Juntos, eles se comprometem em tarefas tais como:

  1. realização de pesquisas bibliográficas e leituras de aprofundamento; b) estudos dirigidos visando a definição do tema da pesquisa a ser realizada; c) elaboração e produção de textos; d) participação e apresentação de seminários; e) participação e apresentação de trabalhos em eventos científicos relacionados com a área de conhecimento da sua pesquisa; f) orientação para as atividades de docência supervisionada; elaboração da redação da Dissertação de Mestrado e construção do Produto Educacional (MPU, Estrutura curricular, 2018).

Essas tarefas sugerem uma trajetória de participação para os mestrandos que começa com a escolha de um tópico, continua com o estudo dos trabalhos já desenvolvidos nessa área e segue com a delimitação e definição da temática de pesquisa. Neste ponto, as tarefas do mestrando e do orientador se voltam para a produção de textos a serem discutidos em seminários e outros eventos de cunho científico. O trabalho culmina com a escrita de dois textos: a dissertação de mestrado e o produto educacional.

Assim, neste mundo figurado, o trabalho de pesquisa oferece uma trajetória que introduz os mestrandos no mundo da pesquisa em Educação Matemática. Contudo, o objeto dessas pesquisas é diferente daquele próprio das pesquisas de cunho acadêmico. Segundo a coordenadora: “a pesquisa tem que ser voltada à prática […] são pesquisas que estão realmente imersas na prática em sala de aula” (Entrevista com a Coordenadora MPU, 2018). Tal afirmação se confirma ao analisar as vinte dissertações defendidas na área de concentração Educação Matemática no período 2014-2016. Dessas vinte, 18 poderiam ser caraterizadas como pesquisas da própria prática, tendo sido desenvolvidas tanto por professores como por formadores em exercício.

No MPU, as dissertações relatam o trabalho de pesquisa utilizando a linguagem e a estrutura próprias da pesquisa acadêmica; destinando capítulos a apresentar a problemática de pesquisa, a fundamentação teórica, a metodologia empregada, a análise dos dados e as conclusões. Assim, a audiência a qual estão dirigidas é aquela que possui interesses na pesquisa em Educação Matemática. Neste mundo figurado, o desenvolvimento do trabalho de pesquisa requer, também, a escrita do Produto Educacional cujo objetivo é “tornar os resultados e os elementos mais ligados à prática, desenvolvidos na pesquisa, acessíveis ao professor” (Entrevista com a Coordenadora MPU, 2018). Esses textos, que buscam proporcionar subsídios para outros professores, são curtos (em torno de 30 páginas) e seu principal conteúdo são as tarefas para sala de aula elaboradas durante o desenvolvimento da pesquisa de campo relativa à dissertação. A escrita do produto educacional envolve, então, um movimento onde o mestrando leva para o mundo figurado da escola parte da experiência vivenciada no MPU.

Uma atividade, especialmente importante durante os dois primeiros semestres do mestrado, são os seminários. Eles são “espaços de debate coletivo onde todos os orientadores e seus respectivos orientandos terão a oportunidade de discutir amplamente diversos aspectos de suas atividades de investigação” (MPU, Página Web, 2017). Buscando contribuir com o seu amadurecimento, existe uma trajetória de participação para os mestrandos: ao ingressar no MPU, ele participa como ouvinte – o que lhe permite tomar conhecimento das pesquisas desenvolvidas por outros mestrandos e aprender como se estrutura e se apresenta um projeto de pesquisa. Ao final do mestrado, ele mesmo e seu orientador serão os apresentadores de um seminário.

Uma vez que o mestrando escolheu o tópico de seu trabalho de pesquisa, deve desenvolver, também, a atividade de docência supervisionada. Nela, os mestrandos realizam tarefas dentro do mundo figurado do ensino na escola – principalmente observações de aulas – e, a seguir, as interpretam a partir dos discursos promovidos pelo MPU.

A análise realizada revela que os mecanismos de aprendizagem do MPU estão vinculados a trajetórias de participação nas quais os professores reiteradamente atravessam as fronteiras entre o mundo do ensino na escola e o mundo da pesquisa em Educação Matemática, tornando-se boundary brokers (SZTAJN et al., 2014SZTAJN, P.; WILSON, H.; EDGINGTON, C.; MYERS, M.; PARTNER TEACHERS. Mathematics professional development as design for boundary encounters. ZDM Mathematics Education, New York, v. 46, p. 201-212, mar. 2014.). Sem deixar de participar do mundo do ensino nas escolas, ao ingressar no MPU, os professores são introduzidos no mundo da pesquisa em Educação Matemática. A partir dessa imersão, eles são estimulados a empregar ferramentas desenvolvidas neste mundo para analisar sua prática e as de outros professores, imaginando ou projetando soluções para alguns dos problemas que nela enfrentam. Tais soluções são implementadas no mundo figurado do ensino na escola, depois são analisadas pelo professor com ajuda de outros membros do MPU e, finalmente, tais reflexões são sistematizadas em textos orientados tanto aos participantes do mundo do ensino na escola como aos membros do mundo da pesquisa em Educação Matemática.

5.2 O caso de Roberto

Episódio 1: Adotando novas práticas e identidades na escola pública

Depois de conversar sobre as motivações que o levaram a realizar o mestrado, propusemos a Roberto falar sobre sua prática docente na atualidade. Concretamente, pedimos para ele narrar como é seu trabalho cotidiano na escola, convidando-o a falar sobre o trabalho que desenvolve em sala de aula e da maneira como ele compreende seu papel como professor. Como resposta, ele narrou o seguinte episódio relativo a sua atuação na escola pública:

Cena 1 1 Eu tenho uma diferença muito importante [entre] o sistema tradicional de ensino que, em alguns momentos da minha aula, que não são tão poucos, eu utilizo, mesmo. 2 Vou na lousa, escrevo, falo, explico. 3 Aquela aula em que o professor é o protagonista. 4 Porque eu tenho necessidade e tenho alunos que gostam desse modelo de aula. 5 Eu também acho importante, em alguns momentos, ir à lousa e explicar, e falar, e propor. 6 Mas eu também utilizo, cada vez mais, o trabalho com essas novas metodologias. 7 Eu gosto muito da resolução de problemas. 8 […] Meus alunos estão começando a procurar isso, também, durante as aulas. Cena 2 9 [Durante uma aula] eu estava ensinando geometria analítica, seguindo o modelo mais tradicional. 10 Ia até a lousa e explicava e [depois] eles faziam exercícios. 11 Aí eu coloquei as equações de duas retas e pedi para eles calcularem a distância entre essas duas retas. 12 E aí eles ficaram totalmente perdidos. 13 [Imitando aos estudantes]”Ah! Mas o senhor não falou isso!”. 14 [Como se respondesse aos estudantes] “Que fala que nada! Tenta aí!”. 15 E eles vão tentando. Alguns conseguem sem [conhecer previamente] a fórmula que calcula a distância entre um ponto e uma reta. 16 E eu vou ajudando. 17 E depois que eles fizeram toda essa investigação, que tentaram, depois eu vou para a lousa. Cena 3 18 No final do ano sempre faço uma avaliação da disciplina. 19 E esse ano foi bastante interessante que meus alunos […] falaram: 20 “Professor aquelas aulas que você não falou a fórmula, não falou nada, são as mais interessantes. Não que a aula do senhor seja ruim, mas aquelas aulas são muito interessantes”. 21 Pena que não tem tanto tempo, porque na [menciona o nome da escola] são só quatro horas de matemática por semana e aí… 22 Mas eles gostam, eu também gosto, eu acho interessante. 23 E eu adoto, assim, parcialmente, essas metodologias. Cena 4 24 Eu também ainda… Não sei se é uma concepção minha, mas eu não vejo que todo conteúdo matemático é possível de ser desenvolvido usando a resolução de problemas ou a modelagem. 25 Tem alguns conteúdos que eu ainda tenho muita dificuldade para usar essas metodologias. 26 Eu prefiro, até pelo meu perfil profissional, ir até a lousa, explicar, dar exercícios, dar alguns exemplos e algumas coisas desse tipo. 27 Então, quando eu vejo a possibilidade, eu tento trabalhar bastante com essas ideias, mas tem alguns momentos em que o professor Roberto vai na lousa e dá a aula dele e tudo mundo tem que ficar quietinho e prestar atenção [ambos riem]. (Entrevista com Roberto, 2018).

Roberto começa o episódio se descrevendo como um professor tradicional. Ele se posiciona como o protagonista da aula (fala 3) que vai à lousa, explica e propõe. Tal compreensão de si mesmo aparece apoiada em suas próprias necessidades e interesses e nos gostos de seus alunos (falas 4 e 5). No final da Cena 1, Roberto começa a articular a compreensão de si mesmo como um professor tradicional com a de um professor que também utiliza outras metodologias de ensino, principalmente a Resolução de Problemas (falas 6 e 7). A introdução gradativa dessas metodologias de ensino em sua prática parece produzir uma mudança nas posições que seus alunos assumem dentro da sala de aula: eles gradativamente também começam a demandar esse tipo de trabalho (fala 8).

A Cena 2 narra um momento no qual Roberto decide quebrar a dinâmica tradicional de sua aula para propor uma tarefa cuja resposta não se obtém da aplicação de uma fórmula já apresentada (falas 9 a 12). No nosso ponto de vista, este é um relato de como Roberto mobiliza sua agência para introduzir novas ações possíveis no mundo do ensino e as negocia com seus alunos. Na fala 13, Roberto utiliza o discurso indireto para introduzir um diálogo que tivera com seus alunos naquela ocasião. Tal diálogo lhe serve para revelar as posições que seus alunos ocupam rotineiramente na sala de aula e para ressaltar os esforços de Roberto para posicioná-los num papel mais ativo. Por sua vez, ele também se reposiciona: já não é quem dá a fórmula, mas quem ajuda e resolver (fala 16) e quem, só no final, vai para a lousa (fala 17).

Roberto relata, na Cena 3, o momento de avaliação da disciplina no final do ano. Novamente, ele traz as vozes de seus alunos para comunicar um ponto importante: eles legitimam e valorizam aquelas aulas nas quais novas ações emergem porque se rompe com a dinâmica tradicional (fala 20). Em seguida, Roberto traz uma restrição vinda do mundo do ensino na escola: com quatro horas por semana de Matemática fica difícil desenvolver, com mais frequência, ações como essas. Embora essa restrição continue existindo, Roberto finaliza a cena ressaltando que ele e seus alunos valorizam a utilização dessas novas metodologias (fala 22). Esta cena parece revelar que, a partir das experiências vividas, Roberto e seus alunos começam a se compreenderem como participantes do mundo do ensino que gostam de trabalhar com metodologias mais ativas e que fogem da didática tradicional.

O episódio finaliza com uma cena na qual Roberto estabelece algumas reflexões sobre sua prática transformada: embora tenha passado a adotar e valorizar a Resolução de Problemas e a Modelagem como metodologias de ensino, avalia ser difícil utilizá-las para conceber e direcionar toda sua prática docente (falas 24 e 25). Para certos conteúdos, ele prefere explicar exercícios e dar exemplos na lousa. Tal preferência aparece, na fala de Roberto, como embasada no que ele chama de “perfil profissional” (fala 26). Essa expressão parece condensar certas compreensões de si mesmo como professor produzidas ao longo da sua formação inicial e do seu exercício profissional. Ele finaliza o episódio se descrevendo como um professor que, em certos momentos, utiliza metodologias de ensino inovadoras e, em outros, atua como um professor tradicional.

Consideramos que, ao longo deste episódio, Roberto orquestra os discursos provenientes de perspectivas tradicionais do ensino da Matemática com os discursos próprios da Resolução de Problemas e da Modelagem vindos do MPU para produzir uma compreensão dele mesmo como professor da escola pública onde trabalha. Ele parece ter se apropriado desses discursos e tenta adaptá-los às suas próprias intenções: os recupera em determinados momentos da sua atuação profissional, considerando tanto suas necessidades como as restrições do mundo do ensino na escola. Por sua vez, neste episódio, Roberto aparece como o principal agente na concepção e direcionamento da sua prática na escola e também como o principal agente do desenvolvimento da sua identidade: é ele quem escolhe direcionar sua prática docente adotando, às vezes, uma perspectiva mais tradicional e, em outras, metodologias inovadoras.

Episódio 2: Tornando-se um empregado incomodado na escola particular

Ao finalizar a narração do episódio 1, a primeira autora deste artigo convidou o professor a falar sobre sua prática docente na escola particular. Nesse momento da entrevista, Roberto narrou um episódio no qual ele contrastou sua prática docente nas duas escolas onde atua. Na escola particular, ele é posicionado de maneira diferente e desenvolve outro tipo de ação. O episódio narrado foi o seguinte:

Cena 1 1 Na escola particular eu já não consigo trabalhar com essa proposta [refere-se à utilização da Resolução de Problemas e da Modelagem como alternativas pedagógicas]. 2 Quando eu trabalho é bem pontual. O foco da aula é o cumprimento da apostila. 3 Então, eu sou empregado da dona da escola, ela deixa bem claro isso. 4 Que eu preciso dar conta daquele material. Cena 2 5 E eu sou um professor que tem uma bagagem relativamente boa. 6 Eu trabalho com esse material há quinze anos, então, não tem problema nenhum. 7 Porque o pai, quando ele chega em casa, ele vai olhar se o professor terminou a apostila ou não. 8 Ele não vai perguntar se o aluno aprendeu e como ele aprendeu. 9 E isso, inclusive, me incomoda um pouco. 10 Eu tenho conversas com minha esposa, com a professora Natalia. 11 E isso me incomoda um pouco. 12 Esse modelo de aula em que o professor precisa dar conta de todo o conteúdo sempre, sem deixar um item para trás e vamos que vamos. Cena 3 13 Em alguns momentos eu até tento [utilizar outras metodologias], mas dentro da sala de aula fica muito complexo porque, basicamente, eu tenho 75, 80 páginas por bimestre. 14 E eu tenho que dar conta do conteúdo, eu sou contratado para isso, eu preciso trabalhar isso. 15 Às vezes eu lamento um pouco. 16 Às vezes, o que eu consigo fazer é usar o recurso tecnológico que é o Google Sala de Aula, o Google Classroom, e alguns outros recursos que a escola disponibiliza. 17 Mas a maioria do tempo é a mesma apostila, a resolução de exercícios na lousa e os alunos mal podem respirar porque o vestibular está chegando e essa é a proposta. (Entrevista com Roberto, 2018).

No episódio, Roberto começa afirmando que a escola particular deixa pouca margem para negociar novas ações, portanto, é difícil introduzir metodologias de ensino como a Resolução de Problemas e a Modelagem (fala 1). Ele introduz um participante que ocupa uma posição de hierarquia dentro deste mundo: a dona da escola que posiciona muito claramente os professores. Eles são empregados contratados para realizar uma determinada tarefa, a saber, transmitir os conteúdos da apostila ao longo do ano (falas 3 e 4). Assim, o principal artefato que concebe e direciona a prática docente de Roberto neste mundo figurado é a apostila.

Na Cena 2, Roberto parece se esforçar para produzir uma compreensão de si mesmo como professor dentro desse mundo figurado. Primeiro, recorre à sua bagagem matemática (fala 5) e a seus anos de experiência trabalhando com esse material (fala 6). A conjunção desses fatores faz com que Roberto “não tenha problema nenhum”. Contudo, no resto da cena, Roberto vai revelando os dilemas e as tensões que atualmente enfrenta nesta escola. Para isso, Roberto introduz no episódio outros participantes deste mundo figurado: os pais de seus alunos. Através desses participantes, Roberto descreve a identidade que se espera que ele assuma dentro da escola privada: sua principal função, como professor, é cobrir todos os conteúdos da apostila; propiciar a compreensão é secundário e, majoritariamente, uma responsabilidade do aluno (falas 7 e 8). Neste ponto, Roberto expressa seu incômodo com essa identidade incorporada pragmaticamente ao modo de ser/fazer a docência na escola. Para tratá-la e aceitá-la, busca interlocutores fora do mundo figurado de sua escola (fala 10). Depois de vários anos atuando nessa escola e da realização do mestrado, resulta difícil se apropriar desses discursos e adaptá-los as suas próprias intenções. O discurso de que o professor precisa dar conta de todo o conteúdo já não parece um bom discurso para falar sobre si mesmo ou de como se projeta, no futuro, em relação a esta escola (falas 11 e 12).

Os esforços do professor para atuar sobre o mundo de ensino nessa escola são narrados na Cena 3. Tais ações são possíveis em momentos pontuais e procurando aproveitar alguns dos recursos que a escola disponibiliza. Contudo, a margem de ação de Roberto é restrita, o ritmo colocado pela apostila elimina muitas possibilidades de mudança (falas 13 e 17). Nesta cena, ele se posiciona novamente como um “contratado” para dar conta do conteúdo (fala 14). Nessa posição, parece que só resta se lamentar (fala 15), embora, vez por outra, tente introduzir pequenas mudanças.

A partir da nossa perspectiva, Roberto, neste episódio, não consegue ser um agente que direciona e concebe sua prática segundo seus próprios propósitos, princípios e interesses, nem um agente no desenvolvimento da sua identidade. Enquanto professor da escola particular, Roberto deve se subjugar a discursos que carregam intencionalidades e sentidos sobre sua identidade profissional. Assim, na escola particular, Roberto acaba assumindo, não sem conflitos, o papel que a dona da escola, os pais dos alunos e a apostila projetam para ele. Roberto parece não encontrar margem para mobilizar sua agência no redirecionamento da sua prática, haja vista as múltiplas restrições colocadas por este contexto escolar.

Episodio 3: Transformando gradativamente a postura docente

Depois de Roberto narrar os dois episódios anteriores, as seguintes perguntas da entrevista giraram em torno das experiências vividas pelo professor durante sua participação nas disciplinas que compõem a grade curricular do MPU. Convidamos Roberto para falar sobre as contribuições das disciplinas do mestrado a partir das seguintes perguntas: Você considera que essas disciplinas fizeram algum aporte nas maneiras como você se entende como professor de Matemática? Elas contribuíram ou produziram algumas transformações na sua própria prática? Você lembra de algum momento que foi especial nesse sentido? Ao responder nossas perguntas, Roberto narrou o seguinte episódio:

Cena 1 1 Eu acho que todas as disciplinas […] contribuíram muito para minha prática profissional no sentido de realmente ter mudança na minha postura enquanto professor. 2 Claro que essa mudança acontece, também, de acordo com a escola e o aluno com quem estou trabalhando, mas ela acontece. 3 Às vezes mais, às vezes menos, mas ela acontece. 4 Acontecia e continua acontecendo. Cena 2 5 Eu me lembro muito de uma disciplina que a gente fez com a professora Clara [centrada] na ideia de análise de erros. 6 Eu fiz uma graduação em que a gente nem olhava a prova. 7 O professor não devolvia para a gente. 8 A avaliação, ela não tinha um caráter de construção do conhecimento. 9 [Mas esta] era uma disciplina muito legal […] fizemos análise do erro na avaliação. 10 Olhar a avaliação como um momento de construção de conhecimento. 11 Eu comecei a entregar a prova pros meus alunos para eles olharem. 12 [Como se falasse com seus alunos]”Pessoal, muita gente resolveu mal o exercício 3, vamos discutir um pouquinho do exercício 3?” 13 Até hoje eu faço isso […]. 14 E aí eu falo: “A avaliação está avaliando vocês e está avaliando meu trabalho também, então, vamos fazer com seriedade, vamos fazer bem-feitinho”. 15 Então, os meus alunos, eles já entendem um pouco melhor a avaliação. Cena 3 16 Esse momento de olhar para a avaliação como aquilo que o aluno ainda não conhece, como dizia a professora Clara. 17 Olhar para o que ele ainda não conhece, eu adotei [essa ideia] na minha prática profissional. 18 Incorporei no meu dia a dia de aula, eu observo muito isso. 19 Eu sempre procuro reservar um momento da aula para eles tentarem fazer as coisas sob a minha supervisão. 20 Para ver como eles estão fazendo, as perguntas que eles estão me dirigindo, essas coisas todas. 21 Então, acabei adotando essa ideia, sim. (Entrevista com Roberto, 2018).

Roberto vincula as contribuições das disciplinas na sua prática profissional com a possibilidade de transformar a sua postura enquanto professor (fala 1). Nesta fala, ele destaca que a possiblidade de desenvolver novas ações dentro da sala de aula tem a ver, também, com a possibilidade de se posicionar e de desenvolver novas maneiras de se compreender enquanto professor. A seguir, ele parece se transladar até o mundo do ensino na escola. Roberto articula as novas compreensões de si mesmo, produzidas a partir da participação no MPU, com as restrições provenientes deste mundo. A “escola” e os “alunos” aparecem, no discurso do professor, como fatores que mediam a mudança de sua postura. Essa mediação faz com que a mudança de Roberto aconteça em diversos graus (fala 3). Contudo, o professor ressalta que tal transformação começou a se produzir durante o mestrado e continua acontecendo na atualidade (fala 4).

Na cena 2, Roberto traz para seu discurso lembranças de uma disciplina do MPU na qual ele teve a oportunidade de analisar os erros nas produções dos estudantes. A lembrança o faz revisitar seu passado quando era aluno da graduação. Desde essa posição, rememora suas experiências com a avaliação e evoca posicionamentos bastante assimétricos entre o professor e o aluno (falas 6 e 8).

A seguir, Roberto volta ao tempo no qual era um participante do MPU e cria um contraste entre a maneira de compreender a avaliação que experimentou enquanto aluno com aquela que desenvolveu durante a disciplina ministrada pela professora Clara. Orquestrando discursos provenientes da disciplina, Roberto produz uma compreensão de si mesmo como um professor que entende a avaliação também como um momento de construção de conhecimento (fala 10) e como uma oportunidade para analisar seu desempenho (fala 14). Essas compreensões o levaram a negociar novas ações com seus alunos, permitindo que olhem com tranquilidade a prova e promovendo discussões sobre os pontos mais dificultosos de cada avaliação (falas 11 e 13). Para Roberto, essa nova maneira de avaliar também envolve negociar com seus alunos outras posições: visto que a prova avalia tanto o trabalho dos estudantes como o do professor, ambos devem se posicionar com seriedade perante ela (fala 14). Na fala 15, Roberto ressalta que tais processos de negociação estão se desenvolvendo de maneira satisfatória.

Na última cena do episódio, Roberto recupera a voz da professora da disciplina para descrever suas ações enquanto professor na atualidade: entender a avaliação como um momento que revela o que o aluno ainda não conhece se tornou, segundo Roberto, parte de sua prática. Essa é uma ideia a partir da qual ele concebe e direciona sua prática (falas 16 e 18). Nas falas 19 e 20, ele recupera e aplica tal ideia em outros momentos da aula, principalmente quando os alunos estão resolvendo tarefas. Parece que, ao se apropriar desse discurso proveniente do MPU e, ao incorporá-lo à sua prática, Roberto o adapta e produz novos sentidos para ele.

Desde nosso ponto de vista, este episódio mostra como os discursos provenientes do MPU, com os quais Roberto chegou a se identificar, são adaptados e transformados quando levados para o mundo do ensino. Não se trata de uma reprodução direta das identidades ou das práticas promovidas pelo espaço de formação. Ao contrário, os discursos provenientes do MPU são negociados com distintos participantes e se articulam com outros discursos já existentes no mundo do ensino. O produto dessas negociações e articulações não é, necessariamente, o discurso original, mas guarda influência ou relação com ele.

Episodio 4: Desenvolvendo sensibilidades e assumindo novas posições na escola

A parte final da entrevista destinou-se as experiências de Roberto durante o desenvolvimento do trabalho de pesquisa que deu origem à sua dissertação. A seguir, perguntamos para Roberto sobre as contribuições da realização da dissertação para sua prática docente e para o desenvolvimento da sua identidade. Ao responder à nossa pergunta, o professor narrou o seguinte episódio:

Cena 1 1 Eu continuo, sim, aplicando essas ideias da resolução de problemas e da modelagem em diversos conteúdos matemáticos em todas as séries que eu dou aulas. 2 Então,[a realização da dissertação] me ajudou muito. 3 O Mestrado, ele contribui muito para melhorar a minha vida profissional. 4 [Apontou conhecimentos] em metodologias e estratégias didáticas um pouco diferentes. 5 Isso é muito importante, mas não acho que foi o mais importante. 6 [O mais importante foi] compreender um pouco melhor como se constitui a aprendizagem dos alunos. 7 Eu acho que isso me ajudou bastante para entender que a matemática precisa de um tempo para cada um, que cada indivíduo não é o mesmo. 8 E que um pode achar que o aluno de matemática errou, mas ele está construindo esse conhecimento, não tenha dúvida disso. Cena 2 9 E [a realização da dissertação] me ajudou também a trabalhar com outros professores. 10 A gente estuda alguma coisa e na sala de professores aí a gente se posiciona. 11 Fala: “Olha, eu estou entendendo que….”. 12 Enfim, eu acho que isso está sendo uma das maiores contribuições do Roberto, enquanto colega de profissão. 13 Tentar ajudar outro profissional que não teve a oportunidade que eu tive de vivenciar tudo isso ao longo do Mestrado Profissional. 14 Acho que isso é bastante importante e me tornou uma pessoa mais firme no que eu faço, nas minhas atitudes. 15 E isso me ajuda a passar para um outro colega da escola, outro colega de profissão que está sofrendo algum dilema. 16 E a gente se posiciona e pode tentar passar para ele como as coisas funcionam na Educação Matemática. 17 Isso foi importante para mim. (Entrevista com Roberto, 2018).

Roberto começa o episódio descrevendo uma das contribuições do MPU vinculada às suas expectativas iniciais. Reconhece que sua participação no mestrado lhe possibilitou tornar-se um professor que conhece metodologias e estratégias didáticas diferenciadas e que as utiliza em suas aulas (falas 1 e 4). Embora reconheça a importância dessa contribuição, na atualidade, ela não é a mais relevante para o professor. A contribuição mais relevante, segundo Roberto, tem a ver com novas formas de enxergar a aprendizagem dos alunos (fala 6). Sua participação no MPU lhe permitiu criar compreensões de si mesmo como um professor que dá lugar e respeita os diferentes ritmos e caminhos de aprendizagem evidenciados por alunos diversos (falas 7 e 8). A partir da experiência vivida no MPU, ele se torna um professor que desenvolve uma sensibilidade perante a diferença e a diversidade de seus alunos.

A passagem pelo MPU também habilitou Roberto a reivindicar novas posições no mundo do ensino na escola, principalmente com seus colegas, tal como relata na cena 2. Na atualidade, ele se compreende como um professor que pode ajudar outros colegas a enfrentar os dilemas da sua prática, levando para eles os resultados das pesquisas no campo da Educação Matemática (falas 12 e 17). O MPU parece ter oportunizado a Roberto se posicionar como formador de outros professores da escola. Assim, as mudanças na prática e na identidade de Roberto não se restringem a sua sala de aula, elas perpassam, também, pelo modo como se relaciona e se posiciona perante seus colegas professores. Finalmente, Roberto destaca que a passagem pelo MPU lhe permitiu compreender-se como um docente com princípios e propósitos mais firmes, embasados em resultados da pesquisa (fala 14).

6 Discussão

Nesta seção, realizamos uma discussão dos resultados na qual respondemos as nossas perguntas de pesquisa, tendo por base a análise realizada.

Considerando a primeira pergunta, a análise revelou que o MPU é um espaço de formação sustentado por uma teoria ou concepção da aprendizagem docente particular: visa formar professores pesquisadores, colocando a reflexão e a problematização das relações entre os docentes e seu mundo profissional no centro de suas atividades. Para tal fim, oportuniza trajetórias de aprendizagem nas quais os mestrandos – sem deixar de participar do mundo da escola – se adentram no campo da pesquisa em Educação Matemática, desenvolvendo pesquisas que tomam como foco de estudo os dilemas e problemas que enfrentam cotidianamente em sua prática profissional.

O telos do MPU, sua maneira de compreender a relação entre o professor e seu mundo profissional e as trajetórias de aprendizagem que oferece parecem ter deixado marcas no discurso e na prática de Roberto. Por exemplo, embora ele não tenha empregado explicitamente a expressão ‘professor pesquisador’, Roberto parece reivindicar alguns aspectos desse discurso ao relatar ter recuperado, utilizado e divulgado resultados da investigação educativa na sua prática, contribuindo, também, para o desenvolvimento de seus colegas de profissão. Os episódios analisados revelam, ademais, que a experiência de Roberto no MPU contribuiu para a problematização das relações entre o professor e as escolas onde trabalha.

Desse modo, a passagem de Roberto pelo mestrado parece ter intensificado seu sentimento de incompletude e de incômodo perante as restrições colocadas pela escola particular, mas, em compensação, essa passagem possibilitou-lhe a realização de novas ações e posicionamentos dentro da escola pública onde trabalhava. Por sua vez, a trajetória de aprendizagem percorrida durante o MPU – no qual teve contato e acesso ao campo da pesquisa em Educação Matemática – parece ter deixado marcas profundas em sua atuação profissional atual, pois continua introduzindo em suas aulas tarefas inspiradas na Resolução de Problemas e na Modelagem e utiliza os resultados da pesquisa para fundamentar suas escolhas e decisões perante seus colegas.

Em ressonância com outras pesquisas com foco nos MP (ANDRÉ; PRINCEPE, 2017ANDRÉ, M.; PRINCEPE, L. O lugar da pesquisa no mestrado profissional em Educação. Educar em Revista, Curitiba, n. 63, p. 103-117, jan./mar. 2017.; CAMPOS; GUÉRIOS, 2017CAMPOS, M. A. T.; GUÉRIOS, E. Mestrado profissional em Educação: reflexões acerca de uma experiência de formação à luz da autonomia e da profissionalidade docente. Educar em Revista, Curitiba, n. 63, p. 35-51, jan./mar. 2017.; PIRES; IGLIORI, 2013PIRES, C. M. C.; IGLIORI, S. B. C. Mestrado profissional e o desenvolvimento profissional do professor de matemática. Ciência & Educação, Bauru, v. 19, n. 4, p. 1045-1068, 2013.; SOUSA, 2013SOUSA, M. C. Quando professores que ensinam matemática elaboram produtos educacionais, coletivamente, no âmbito do mestrado profissional. Bolema, Rio Claro, v. 27, n. 47, p. 875-899, dez. 2013.), a análise realizada mostra que, quando organizados a partir deste tipo de teoria da aprendizagem docente, os MP se tornam espaços férteis para diminuir a distância entre a universidade e a escola, estabelecendo oportunidades para um diálogo crítico entre a prática profissional cotidiana nas escolas e a teoria e os resultados das pesquisas desenvolvidas no âmbito acadêmico.

Em relação à nossa segunda pergunta de pesquisa, a análise revelou que Roberto desenvolve e negocia modos de ser professor de Matemática e de conceber e direcionar sua prática docente num processo complexo em que:

  • Combina e articula discursos provenientes do MPU com discursos provenientes de suas experiências passadas, desenvolvidos dentro da sala de aula e durante a formação inicial. A partir desse processo, Roberto reivindica uma identidade múltipla na qual, em certos momentos, se destacam os discursos do professor tradicional de Matemática e, em outras ocasiões, encontram relevância os discursos associados a maneiras inovadoras de ensinar Matemática. Desse processo emergem, também, maneiras híbridas de conceber e direcionar sua prática, não sendo exatamente iguais àquelas discutidas no espaço de formação, mas mantendo relação com elas.

  • Recupera parte dos discursos do MPU para analisar as restrições a sua prática colocadas pela escola particular. As contradições entre os discursos provenientes do MPU e aqueles sustentados e praticados nesta escola o deixam sob forte tensão e conflito identitário e profissional. Depois da experiência no MPU, é difícil para o professor se apropriar dos discursos provenientes do mundo da escola particular para produzir compreensões de si mesmo como professor.

  • Torna-se um boundary broker (SZTAJN et al., 2014SZTAJN, P.; WILSON, H.; EDGINGTON, C.; MYERS, M.; PARTNER TEACHERS. Mathematics professional development as design for boundary encounters. ZDM Mathematics Education, New York, v. 46, p. 201-212, mar. 2014.), ou seja, um participante que introduz, no mundo do ensino da escola, práticas e discursos aprendidos no mundo figurado do MPU que possuem potencial transformador. Assumir esse papel envolve intensos processos de tradução e de coordenação e alinhamento das perspectivas desses dois mundos.

7 Conclusão

Neste artigo, analisamos um programa de MP – descrevendo a teoria ou concepção de aprendizagem docente que sustenta as práticas do programa – e desenvolvemos um estudo de caso de um professor de Matemática egresso desse programa sob a lente teórica das noções de identidade e agência profissional. Consideramos que a perspectiva teórica assumida neste estudo, enraizada nas teorias socioculturais que enfatizam as relações mútuas entre a pessoa e o mundo social, foi adequada para capturar a complexidade da produção de transformações nas práticas docentes. Essa lente teórica permitiu mostrar que tal processo se revela, de um lado, frágil e parcial e, de outro, contínuo e possível, envolvendo tanto a promoção de práticas inovadoras como a manutenção de outras já estabelecidas.

Em relação ao nosso enfoque metodológico de investigação, a análise narrativa mostrou ser uma ferramenta útil para explorar, a partir do ponto de vista dos professores, as escolhas e dilemas implicados no desenvolvimento da sua identidade e na mobilização da sua agência. Além disso, nosso trabalho revela que a análise narrativa é uma ferramenta metodológica frutífera para analisar as complexas inter-relações entre a identidade e a agência profissional.

Ao ressaltar o desenvolvimento da identidade e a mobilização da agência profissional a partir da participação em espaços de formação continuada, nosso trabalho traz novas luzes para compreender o processo de promover mudanças na prática docente em Matemática.

Em primeiro lugar, o artigo ressalta que o desenvolvimento da identidade e a mobilização da agência dependem fortemente do contexto de atuação profissional do professor. Diante dessa perspectiva, a possibilidade de o professor promover mudanças na prática, a partir de sua participação em espaços de formação, está condicionada fortemente pelas instituições educativas onde trabalha, não apenas em termos de normas e restrições explícitas, mas também em termos das expectativas que os diversos participantes desses mundos possuem com respeito ao papel do professor de Matemática. Assim, o caso de Roberto destaca a importância de organizar os espaços de formação continuada levando em conta os múltiplos contextos escolares em que os professores atuam. Os espaços de formação devem oferecer oportunidades para problematizar o contexto escolar, assim como disponibilizar ferramentas e promover estratégias que apoiem aos professores no processo de negociação de novas práticas com colegas, membros da equipe diretiva e também com os estudantes.

Em segundo lugar, a nossa análise ressalta que, quando o professor participa de espaços de formação orientados à problematização, reflexão e pesquisa sobre prática docente – como é o caso do MPU – e atua em uma escola que permite negociação e certa margem de intervenção inovadora, a promoção de mudanças na prática docente não se caracteriza como um processo drástico de ruptura. Ao contrário, a identificação do professor com discursos provenientes da pesquisa em Educação Matemática – tais como a Modelagem ou a Resolução de Problemas – não implica o abandono ou supressão de outras práticas e discursos já estabelecidos no ensino e nas escolas. Assim, a produção de mudanças nas práticas docentes parece acontecer em momentos específicos nos quais o professor e os alunos começam a experimentar outras maneiras de ser e atuar na aula de Matemática, construindo novos mundos vinculados com o ensino e a aprendizagem da Matemática. Embora esses momentos possam ser pontuais, eles se constituem germes potenciais de transformação do modo de ensinar e aprender Matemática na escola, despertando o desejo de professores e alunos quererem recriá-los em outras oportunidades.

Em terceiro lugar, o presente trabalho evidencia que as novas maneiras de conceber e direcionar as práticas docentes, produzidas a partir da participação em espaços de formação como o MP, não são uma mera transposição ou reprodução das práticas e discursos oriundos desses espaços, por mais próximos que sejam da prática escolar. Na verdade, tais práticas ou metodologias precisam passar por um importante processo de adaptação e negociação, cabendo ao professor egresso desses espaços formativos, recriá-las de modo que possam se articular com outras já familiares e/ou estabelecidas na escola.

Finalmente, nosso trabalho coloca em primeiro plano as complexas inter-relações entre a identidade e a agência profissional. O caso de Roberto mostra que o MPU parece ter sido um contexto formativo fértil para que o professor desenvolvesse novas compreensões sobre si mesmo e sobre o ensino da Matemática nas escolas. Simultaneamente, tais compreensões o levavam a imaginar e testar na prática novas ações em sala de aula. Os episódios ressaltam que esse processo sinérgico entre o desenvolvimento da identidade e a mobilização da agência profissional continua acontecendo em momentos específicos da prática de Roberto, mesmo depois de finalizado o mestrado. Assim, o MPU parece ter sido uma oportunidade para desencadear um processo inacabado em que, concomitantemente, Roberto imagina novos mundos vinculados ao ensino da Matemática e produz novas compreensões sobre si mesmo como professor.

  • 1
    Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética na Pesquisa com a ressalva de manter sob sigilo os nomes das instituições e dos professores envolvidos. Assim, todos os nomes utilizados neste trabalho são pseudônimos. Além disso, temos mantido sob sigilo as fontes de dados.
  • 2
    Em janeiro de 2017, quando iniciou a pesquisa que originou o presente artigo, a plataforma Sucupira da Capes informava que, dentro do estado de São Paulo, estavam em funcionamento dez programas de mestrado profissional que tinham algum vínculo com a educação matemática (cinco na área de Ensino, três na área de Educação e dois na área de Matemática).
  • 3
    Embora a participação no MPU possa ter tido repercussões na atuação de Roberto no Ensino Superior, a nossa pesquisa tem por objetivo principal analisar como a participação no MP contribuiu para o desenvolvimento da identidade profissional e para a produção de mudanças na prática docente na Educação Básica. Por esse motivo, restringimos a coleta e a análise dos dados aos mundos figurados da escola pública e da escola particular onde esse professor atua.

Agradecimentos

Essa pesquisa foi financiada por uma bolsa de pós-doutorado outorgada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Processo FAPESP N0 2016/12877-2).

Referências

  • ANDRÉ, M.; PRINCEPE, L. O lugar da pesquisa no mestrado profissional em Educação. Educar em Revista, Curitiba, n. 63, p. 103-117, jan./mar. 2017.
  • BOGDAN, R. C.; BIKLEN, S. K. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Porto Editora, 1994.
  • CAMPOS, M. A. T.; GUÉRIOS, E. Mestrado profissional em Educação: reflexões acerca de uma experiência de formação à luz da autonomia e da profissionalidade docente. Educar em Revista, Curitiba, n. 63, p. 35-51, jan./mar. 2017.
  • CARNEIRO, V. C. G. Contribuições para a formação do professor de matemática pesquisador nos mestrados profissionalizantes na área de ensino. Bolema, Rio Claro, v. 21, n. 29, p. 199- 222, 2008.
  • CEVALLOS, I.; PASSOS, L. F. O Mestrado Profissional e a pesquisa do professor. Revista Diálogo Educacional, Curitiba, v. 12, n. 37, p. 803-822, set./dez. 2012.
  • CLANDININ, D. J.; CONNELLY, F. M. Narrative inquiry: Experience and story in qualitative research. San Francisco: Jossey-Bass, 2000.
  • CRECCI, V. M.; FIORENTINI, D. Reverberações da aprendizagem de professores de matemática em uma comunidade fronteiriça entre universidade-escola. Educar em Revista, Curitiba, v. 34, n. 70, p. 273-292, jul./ago. 2018.
  • GOODCHILD, S. Mathematics teaching development: learning from developmental research in Norway. ZDM Mathematics Education, New York, v. 46, p. 305-316, abr. 2014.
  • GUTIÉRREZ, R. The Sociopolitical Turn in Mathematics Education. Journal for Research in Mathematics Education, Reston, v. 44, n. 1, p. 37-68, jan. 2013.
  • KAASILA, R. Using narrative inquiry for investigating the becoming of a mathematics teacher. ZDM, New York, v. 39, p. 205-213, mai. 2007.
  • HOLLAND, D.; SKINNER, D.; LACHICOTTE, W.; CAIN, C. Identity and agency in cultural worlds Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
  • LAVE, J. Teaching, as learning, in practice. Mind, Culture, and Activity, Philadelphia, v. 3, n. 3, p. 149-164, 1996.
  • LOSANO, A. L.; FIORENTINI, D. Análise das ênfases formativas de mestrados profissionais destinados a professores de matemática. Revista Internacional de Educação Superior, Campinas, v. 4, n. 2, p. 278-307, maio/ago. 2018a.
  • LOSANO, A. L.; FIORENTINI, D. A constituição identitária de professores de matemática no contexto dos mestrados profissionais. Educação em revista, Belo Horizonte, v. 34, e190193, 2018b.
  • LOSANO, L.; FIORENTINI, D.; VILLARREAL, M. The development of a mathematics teacher’s professional identity during her first year teaching. Journal of Mathematics Teacher Education, New York, v. 21, p. 287-315, 2018.
  • NERES, C. C.; NOGUEIRA, E. G. D.; BRITO, V. M. Mestrado profissional em educação e sua interseção com a qualificação docente na educação básica. RBPG, Brasília, v. 11, n. 25, p. 885-909, set. 2014.
  • PIRES, C. M. C.; IGLIORI, S. B. C. Mestrado profissional e o desenvolvimento profissional do professor de matemática. Ciência & Educação, Bauru, v. 19, n. 4, p. 1045-1068, 2013.
  • PONTE, J. P. Estudos de caso em educação matemática. Bolema, Rio Claro, v. 25, n. 1, p. 05-132, 2006.
  • RIESSMAN, C. K. Narrative methods for the human sciences California: Sage, 2008.
  • SOUSA, M. C. Quando professores que ensinam matemática elaboram produtos educacionais, coletivamente, no âmbito do mestrado profissional. Bolema, Rio Claro, v. 27, n. 47, p. 875-899, dez. 2013.
  • SZTAJN, P.; WILSON, H.; EDGINGTON, C.; MYERS, M.; PARTNER TEACHERS. Mathematics professional development as design for boundary encounters. ZDM Mathematics Education, New York, v. 46, p. 201-212, mar. 2014.
  • VÄHÄSANTANEN, K. Professional agency in the stream of change: understanding educational change and teachers’ identity. Teaching and teacher education, Philadelphia, v. 47, p. 1-12, abr. 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    26 Mar 2021
  • Aceito
    12 Jun 2021
UNESP - Universidade Estadual Paulista, Pró-Reitoria de Pesquisa, Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática Avenida 24-A, 1515, Caixa Postal 178, 13506-900 Rio Claro - SP Brasil - Rio Claro - SP - Brazil
E-mail: bolema.contato@gmail.com