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Educação em dor: da ideia à ação!

A aquisição e uso do conhecimento sempre foram desafios para a humanidade. Um dia, recebi de presente, “para refletir e divertir-me sobre nomes e classificações” o livro Kant e o Ornitorrinco11 Eco H. Kant e o ornitorrinco. Rio de Janeiro: Record; 1998. de Humberto Eco. Esse, já de início esclarece que não há nada em comum entre os dois personagens. O autor quer é falar sobre o ato de dar nome às coisas, que é parte da obtenção do conhecimento. Kant apresentou as bases do conceito empírico que vai dos sentidos ao conceito. Por sua vez, o Ornitorrinco apresentou grande dificuldade conceitual, pois é uma mistura aparente de animais diferentes. Somente após 80 anos foi reconhecido como mamífero. Segundo o autor, a resistência de muitos dos estudiosos foi o que retardou esse reconhecimento. Afinal, exigiram-se muitas evidências nem sempre fáceis de se obter. Por outro lado, entender conceitualmente e na prática a questão da dor crônica é um desafio para estudantes e educadores. Imagine então para os pacientes! Um estudo brasileiro realizado nos anos de 2005 e 2006 perguntava a cirurgiões-dentistas e médicos que frequentavam congressos de dor, o que pensavam sobre pacientes com dor crônica22 Bérzin MG, Siqueira JT. Study on the training of Brazilian dentists and physicians who treat patients with chronic pain. Braz J Oral Sci. 2009;8(1):44-9.. O estudo mostrou que a maioria dos profissionais era formada há mais de 10 anos, entre- tanto, o treinamento para a abordagem de pacientes com dor crônica era recente. Também havia a tendência de realçar a formação técnica da própria especialidade ou profissão exercida. Além disso, foi pequeno o percentual de profissionais que considerava a relação profissional/ paciente, os aspectos emocionais da dor e o comportamento do paciente com dor crônica de importância para o controle do sintoma. Embora os profissionais demonstrassem interesse pelo tema, os resultados do estudo mostraram divergência entre a abordagem clínica expressa e a recomendada para o tratamento da dor33 Federal Council of Medicine. The doctor and his work: methodological aspects and results of Brazil. Brasilia: Federal Council of Medicine; 2004.

4 Loeser J. Pain, suffering and the brain: a narrative of meanings. In: Loeser JD, Carr DB, Morris D (eds). Narrative, Pain and Suffering. Seattle: IASP Press; 2005.
-55 Siqueira JTT. Dores Mudas. As Estranhas Dores de Boca. São Paulo: Artes Médicas; 2007..

Muita coisa mudou nesses anos, como a regulamentação para especialização em Dor em várias profissões de saúde. Congressos, como o recente VIII Congresso Interdisciplinar de Dor (CINDOR), mostraram que os alunos de graduação, de pós-graduação, os pesquisadores de área básica e os profissionais das diversas áreas da saúde continuam interessados em conhecer, reciclar e discutir a questão da dor.

A experiência de ter dor física não parece algo simples de entender na prática, e nem sempre há uniformidade sobre o tema. Do mesmo modo, foram necessários muitos anos de pesquisas e discussões para se chegar ao conceito atual de dor que ainda gera debates. Quando o tema é “Educação em dor” parece não haver discordância quanto à sua importância e necessidade. A própria Associação Internacional para o Estudo da Dor (IASP) escolheu-o para seu ano global de 201866 Ogboli-Nwasor E. Educação e dor nos países de poucos recursos. Fact-sheet No. 8. Global Year of Education and Pain. IASP; 2018., resumindo em um dos seus folhetos educativos: “Muito trabalho permanece: a apropriada educação em dor é essencial para todos os profissionais de saúde (e para os pacientes), e o trabalho em equipe multidisciplinar é fundamental para o sucesso do controle da dor. A educação em dor deve ser incluída, para fins de competência, nos currículos e exames dos alunos de graduação e pós-graduação em saúde, e ser incorporada aos programas de educação continuada”.

Transformar ideias em ações produtivas não é fácil. No quadro A luta de Jacó com um Anjo, Paul Gauguin expressa a ideia de transformar o abstrato em realidade77 Gauguin P. The vision after the sermon. Galeria Nacional de Arte Moderna da Escócia. 1888.. Do abstrato ao empírico. O abstrato imerso na realidade. É como se o artista respondesse ao filósofo, transformando o abstrato, o conceitual, na experiência empírica. Vem no sentido inverso, mostrando o abstrato na realidade em que é imaginado. Em edu- cação, precisa-se realmente de esforço integrado de profissionais, dos estudantes, dos pacientes, da família e dos gestores.

Num mundo contemporâneo globalizado, digital, e em tempo real, a ação educativa pode sofrer a influência do meio social em que está, do cuidado ou descaso dos gestores, da influência das indústrias e dos laboratórios, da resistência a mudanças e até da conduta ética dos profissionais. Isso é de alcance global, mas em países pobres ou em desenvolvimento a vulnerabilidade é maior. O desafio da educação é gigantesco. E em um país como o nosso, em que a educação é muito criticada em todos os níveis, incluindo o universitário, é preciso ação. As ideias já estão postas. Mas, quando há o sofrimento coletivo de um país que se contorce adoecido em vários planos (saúde, segurança pública, educação) e que vê ou tem no futebol um alívio, imagina-se o que falar sobre educação quando há descrença nos gestores e os idosos se tornam descrentes ou indiferentes. Refletindo sobre esse dilema, e à procura de material para este texto, encontrei a foto de uma agenda dos residentes de Dor Orofacial da Divisão de Odontologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP). A foto chamou a atenção pela frase expressa em letras garrafais “Se eu pudesse eu pegava a dor, colocava dentro de um envelope e devolvia ao remetente”88 Quintana M. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar; 2005., do poeta Mário Quintana.

De repente, em uma equipe de odontologia, profissão voltada à prática instrumental, que envolve diagnóstico e terapêutica, a escolha de um poema para a capa denota que as lições sobre o paciente com dor estão fazendo efeito. Também aquela mensagem baseada na aparente sim- plicidade do cotidiano, uma metáfora que aborda uma questão complexa de sofrimento, aponta que estamos aprendendo e ensinando sobre a necessidade e importância de ver, na queixa individual, a integração de todas as dimensões da dor.

Então, vamos transformar a ideia da “educação em dor” em ações necessárias à nossa realidade. E existem muitos exemplos de ex- periência pedagógica em todo o país, como os cursos de pós-gra- duação, multidisciplinares, de residência e de especialização em dor. Vamos copiá-los, discuti-los, reciclá-los! É tempo de refletir e enfrentar o desafio de aplicar o conceito à prática clínica99 Sarda Jr JJ. Challenges in pain education in Brazil: where are we going? Br J Pain 2018;1(2):93.. E vamos seguindo, pois sem esperança, não há ação que dê à razão sentido à vida, e muito menos ideias.

E o combate à dor, sem dúvida, dá esperança, e talvez sentido à vida!

REFERENCES

  • 1
    Eco H. Kant e o ornitorrinco. Rio de Janeiro: Record; 1998.
  • 2
    Bérzin MG, Siqueira JT. Study on the training of Brazilian dentists and physicians who treat patients with chronic pain. Braz J Oral Sci. 2009;8(1):44-9.
  • 3
    Federal Council of Medicine. The doctor and his work: methodological aspects and results of Brazil. Brasilia: Federal Council of Medicine; 2004.
  • 4
    Loeser J. Pain, suffering and the brain: a narrative of meanings. In: Loeser JD, Carr DB, Morris D (eds). Narrative, Pain and Suffering. Seattle: IASP Press; 2005.
  • 5
    Siqueira JTT. Dores Mudas. As Estranhas Dores de Boca. São Paulo: Artes Médicas; 2007.
  • 6
    Ogboli-Nwasor E. Educação e dor nos países de poucos recursos. Fact-sheet No. 8. Global Year of Education and Pain. IASP; 2018.
  • 7
    Gauguin P. The vision after the sermon. Galeria Nacional de Arte Moderna da Escócia. 1888.
  • 8
    Quintana M. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar; 2005.
  • 9
    Sarda Jr JJ. Challenges in pain education in Brazil: where are we going? Br J Pain 2018;1(2):93.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018
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