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Participação e autonomia de pessoas que moram nos serviços residenciais terapêuticos: contribuições da terapia ocupacional1 1 Os resultados apresentados neste artigo são parte integrante da dissertação intitulada “Há vida lá fora: o cotidiano das pessoas que moram nos Serviços Residenciais Terapêuticos”, desenvolvida pela primeira autora sob orientação da segunda, junto ao Programa de Pós-Graduação em Terapia Ocupacional da Universidade Federal de São Carlos. Todos os procedimentos éticos foram cumpridos e o estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, sob parecer consubstanciado de número 3.929.252.

Resumo

Introdução

Os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs) representaram grande avanço no processo de desinstitucionalização brasileiro. Porém, faz-se necessário investir nas discussões que contribuam para que esses dispositivos sejam espaços potentes de habitação e de valorização da subjetividade de seus moradores.

Objetivo

Investigar a participação e o exercício da autonomia dos moradores de SRTs do tipo II, a partir da sua própria percepção.

Método

Trata-se de pesquisa qualitativa, exploratória e documental, realizada por meio de coleta de dados documentais e de entrevistas. Participaram do estudo 8 moradores de SRTs tipo II. O material produzido foi submetido à análise temática. O conceito do Cotidiano embasa o estudo, a partir das perspectivas da terapia ocupacional, da Teoria do Cotidiano de Agnes Heller e da Reabilitação Psicossocial.

Resultados

A institucionalização prolongada está estreitamente relacionada com a pouca participação e autonomia dos participantes em seu cotidiano, com a pouca ou inexistente apropriação do SRT e com a percepção que eles têm de si como pacientes, e não como moradores de suas casas. O exercício da autonomia pelos participantes é relacionado ao seu desempenho e funcionalidade na realização das atividades diárias e à assistência integral pré-estabelecida para o SRT tipo II.

Conclusão

Concluiu-se que a terapia ocupacional traz contribuições fundamentais relacionadas à participação e à autonomia de pessoas que, devido às institucionalizações prolongadas, encontram-se em situação importante de cronificação. A participação nas atividades cotidianas e a possibilidade do exercício de autonomia no SRT são o primeiro passo rumo à definitiva possibilidade de inclusão social de seus moradores.

Palavras-chave:
Institucionalização; Serviços de Saúde Mental; Terapia Ocupacional; Autonomia; Participação Social

Abstract

Introduction

Therapeutic Residential Services (RSTs) represented a great advance in the Brazilian deinstitutionalization process, but it is necessary to invest in discussions that contribute to these devices being powerful spaces for housing and for valuing the subjectivity of its residents.

Objective

To investigate the participation and exercise of autonomy of residents of type II RSTs, based on their own perception.

Method

This is qualitative, exploratory, and documentary research, carried out through the collection of documentary data and interviews. Eight residents of type II RSTs participated in the study. The material produced was submitted to thematic analysis. The concept of Daily Life underlies the study, from the perspectives of Occupational Therapy, the Theory of Daily Life by Agnes Heller, and Psychosocial Rehabilitation.

Results

Prolonged institutionalization is closely related to the participants' little participation and autonomy in their daily lives, with little or no ownership of the SRT, and with the perception, they have of themselves as patients and not as residents of their homes. The exercise of autonomy by the participants is related to their performance and functionality in carrying out daily activities and pre-established comprehensive care for type II SRT.

Conclusion

It was concluded that Occupational Therapy brings fundamental contributions related to the participation and autonomy of people who, due to prolonged institutionalization, are in an important situation of chronicity. Participation in daily activities and the possibility of exercising autonomy in the SRT is the first step towards the definitive possibility of social inclusion for its residents.

Keywords:
Institutionalization; Mental Health Services; Occupational Therapy; Free will; Social Participation

Introdução

Os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs) são dispositivos da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que têm como objetivo possibilitar às pessoas com sofrimento psíquico a vida em meio à sociedade. Os SRTs são classificados como tipo I e tipo II, de acordo com o comprometimento e necessidade de supervisão de seus moradores, sendo destinados às pessoas com mais independência e para aquelas com maior comprometimento, respectivamente (Brasil, 2004Brasil. (2004). Residências Terapêuticas: o que são, para que servem. Brasília: Ministério da Saúde.).

A vida em um SRT possibilita o estar na comunidade e o acesso a itens básicos de cidadania, como documentação pessoal, benefícios sociais, alimentação, vestuário, entre outros, mas esse é apenas o início do processo de desinstitucionalização de seus beneficiários. Em conjunto com outros dispositivos da rede de atenção à saúde mental e por meio de formação continuada de seus profissionais, tem o potencial de promover a inclusão social dessas pessoas.

Este debate se faz necessário para avançar nas discussões sobre os SRTs e sobre a inclusão social de seus moradores, que significa muito mais do que viver em meio à comunidade e ter acesso a itens que não tinham no hospital psiquiátrico. Salles & Barros (2013bSalles, M. M., & Barros, S. (2013b). Representações sociais de usuários de um Centro de Atenção Psicossocial e pessoas de sua rede sobre doença mental e inclusão social. Saúde e Sociedade, 22(4), 1059-1107. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902013000400009.
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902013...
, p. 1060) compreendem a inclusão social como a possibilidade de conduzir a própria vida e experimentá-la em toda a sua potência. Eles defendem que “a inclusão social é um processo de promover direitos, acessos, escolhas e participação”. Discutir esse assunto pressupõe, portanto, atentar para dois aspectos fundamentais que são partes indissociáveis do processo de inclusão social, que é a participação e a autonomia das pessoas que moram nos SRTs.

A dificuldade observada no caso das pessoas que estão cronificadas e com inúmeras limitações devido à institucionalização prolongada é que a participação social acaba sendo inexistente ou escassa; além disso, quando acontece, é realizada sob a tutela dos profissionais que atuam nesses dispositivos, principalmente por meio de uma perspectiva definitiva estabelecida quanto às limitações desse sujeito. Assim, até mesmo a participação nas atividades de vida diária passa a ser um aspecto tutelado, não estimulado para que seja realizado de forma independente e que possibilite a individualização e a expressão subjetiva dos desejos e interesses dos moradores, mesmo para aqueles que têm condições de realizá-las.

Neste sentido, a terapia ocupacional tem muito a contribuir, pois a questão da participação e autonomia perpassa não somente os aspectos micro, mas também os macrossociais. Segundo Galheigo (2020)Galheigo, S. M. (2020). Terapia ocupacional, cotidiano e a tessitura da vida: aportes teórico-conceituais para a construção de perspectivas críticas e emancipatórias. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(1), 5-25. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoao2590.
http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoa...
, é por meio de uma perspectiva crítica da prática da terapia ocupacional que a articulação entre esses aspectos micro e macrossociais é tecida; indivíduo e coletivo são compreendidos de forma conectada.

As práticas da terapia ocupacional, em uma perspectiva crítica, hoje, a nosso ver, convocam à escuta, ao acolhimento, ao encontro dialógico, à articulação social e em rede, e à construção de projetos terapêuticos e de vida com aqueles que necessitam e/ou reivindicam cuidado, suporte, uma vida digna, participação social e acesso a direitos (Galheigo, 2020Galheigo, S. M. (2020). Terapia ocupacional, cotidiano e a tessitura da vida: aportes teórico-conceituais para a construção de perspectivas críticas e emancipatórias. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(1), 5-25. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoao2590.
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, p. 14).

Silva & Oliver (2019)Silva, A. C. C., & Oliver, F. C. (2019). Participação em terapia ocupacional: sobre o que estamos falando? Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 27(4), 858-872. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoAR1883.
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realizaram uma revisão sistemática sobre o conceito de participação social utilizado por terapeutas ocupacionais brasileiros e referem a multiplicidade de compreensão e utilização desse termo. Para elas, a participação social é entendida como:

O envolvimento dos sujeitos em grupos sociais e/ou nos espaços públicos e comunitários, para transformar o cotidiano e as condições de vida marcados pelo adoecimento, violência, sofrimento mental e/ou psíquico, injustiça social e ocupacional, desigualdade, preconceitos, exclusão e opressão. Trata-se de definição circunscrita no campo da sociologia e da terapia ocupacional, de modo a compreendê-la como prática política e emancipatória, que acontece nos contextos sociais, políticos, econômicos e culturais, nos níveis micro e macrossociais (Silva & Oliver, 2019Silva, A. C. C., & Oliver, F. C. (2019). Participação em terapia ocupacional: sobre o que estamos falando? Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 27(4), 858-872. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoAR1883.
http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoA...
, p. 859).

É possível compreender que a inclusão social está estreitamente relacionada à participação, tanto nos níveis micro como macrossociais. Porém, no caso das pessoas que moram em SRTs do tipo II e que, a priori, necessitam de maior auxílio, refletir sobre a participação e autonomia nas atividades de vida diária é o primeiro passo necessário para que se alcance a efetiva participação social. A terapia ocupacional tem papel fundamental, tanto nessa atuação mais individual, para a participação do sujeito dentro da casa, por exemplo, quanto nas interlocuções desse com a comunidade. Nesse caso, utilizando a definição de Silva & Oliver (2019)Silva, A. C. C., & Oliver, F. C. (2019). Participação em terapia ocupacional: sobre o que estamos falando? Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 27(4), 858-872. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoAR1883.
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, podemos pensar em uma atuação que se inicia no nível micro social, para, junto ou posteriormente a isso, estimular o processo de participação dessas pessoas no nível macrossocial.

A revisão de literatura da área apontou que os estudos sobre a perspectiva da habitação tratavam, em sua maioria, da percepção dos funcionários e da comunidade ao entorno das residências sobre o SRT. Aqueles que evidenciavam a percepção dos moradores sobre esse aspecto focalizavam a rede social estabelecida pelos moradores dentro e fora da casa, a sua possibilidade de liberdade e poder de escolha e sua percepção de cuidado e saúde dentro do SRT. É importante destacar que, dos estudos encontrados, entre aqueles que mencionavam o tipo de SRT investigado, apenas 1 explicitou que teve como participantes moradores de SRTs do tipo II. De acordo com Salles & Miranda (2016Salles, A. C. R. R., & Miranda, L. (2016). Desvincular-se do manicômio, apropriar-se da vida: persistentes desafios da desinstitucionalização. Psicologia e Sociedade, 28(2), 369-379. http://dx.doi.org/10.1590/1807-03102016v28n2p369.
http://dx.doi.org/10.1590/1807-03102016v...
, p. 370), no âmbito da pesquisa nacional e internacional sobre a desinstitucionalização de pacientes psiquiátricos, “[...] há poucos dados sobre as dimensões sociais e psicológicas da reinserção destes sujeitos”.

O presente estudo teve como objetivo investigar a participação e o exercício da autonomia dos moradores de SRTs do tipo II, a partir da sua própria percepção. Trata-se de um recorte de uma pesquisa de mestrado que teve como objetivo geral compreender a percepção das pessoas que moram nos Serviços Residenciais Terapêuticos sobre o seu cotidiano e apresentou a análise dos resultados por meio de cinco categorias temáticas: A vida dentro da casa; A vida no território; Eu na vida; O fazer na vida; e A vida e o futuro. Apresentaremos a primeira categoria. Importa explicitar que a análise está circunscrita ao relato dos participantes, não sendo considerada a visão dos profissionais, gestores e demais envolvidos nos SRTs, pois este estudo já tinha como objetivo o caráter parcial de investigação, focalizado nos moradores destes dispositivos.

Percurso Metodológico

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, exploratória e documental, realizada com 8 pessoas que moram em 3 SRTs do tipo II, no município onde o estudo foi realizado. Foram convidados para participar da pesquisa os moradores de quatro SRTs do tipo II, do referido município. Como critérios estabelecidos para a participação nesta pesquisa, era preciso que respondessem por si (não fossem curatelados), que fossem independentes nas atividades de vida diária, com comunicação verbal preservada, que aceitassem participar da pesquisa e que assinassem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

A pesquisa foi dividida em 2 fases: a primeira constituída pela coleta de dados documentais; a segunda por meio de entrevistas. Na primeira fase do estudo, realizou-se a coleta de dados a partir dos relatórios, documentos e outras informações encontradas nos prontuários arquivados no CAPS localizado no interior do estado de São Paulo e que é referência para os SRTs do município onde o estudo foi realizado. Ele teve como objetivo a caracterização dos participantes. Foi utilizado um formulário de informações pessoais constando os dados pessoais (nome, idade, estado civil, escolaridade, experiência de trabalho), histórico de internação/institucionalizações (data e períodos de internação, motivo, diagnósticos recebidos, medicações utilizadas) e histórico social (documentação, recebimento de benefícios sociais, vínculos familiares e afetivos) para auxílio do registro e organização dos dados.

Na segunda fase, foram realizadas entrevistas semiestruturadas, que seguiram um roteiro pré-estabelecido pela pesquisadora, com 6 blocos de perguntas abertas (sobre a vida no SRT, sobre o que o SRT representa na vida, sobre o que as atividades e as relações representam na vida, sobre a vida no SRT e no hospital psiquiátrico, dos vínculos familiares/afetivos e da vida atual no contexto do coronavírus), com o objetivo de identificar e compreender como eles percebem seu cotidiano e como têm vivido suas vidas nos SRTs.

Em função da pandemia da COVID-19, desde abril de 2020, a entrada nas residências terapêuticas passou a ser restrita apenas aos funcionários de cada casa e em situações de emergência. Desta forma, as entrevistas foram realizadas de forma online por vídeo chamada pelo aplicativo WhatsApp. Como apenas um participante da pesquisa possui telefone celular, e todos os outros desconhecem ou têm dificuldade em manusear tais recursos, foi preciso contar com a colaboração das funcionárias dos SRTs na disponibilização de seus celulares para a realização das entrevistas.

Os dados provenientes das entrevistas foram submetidos à Análise Temática, tendo sido extraídos temas que foram reunidos e organizados em cinco categorias: A vida dentro da casa; A vida no território; O eu na vida; O fazer na vida; e A vida e o futuro. Neste artigo, apresentaremos a categoria temática denominada “A vida dentro da casa”, com enfoque na participação e autonomia, que foram aspectos predominantes nos relatos dos participantes.

Resultados e Discussão

De forma unânime, o SRT foi avaliado como um divisor, um marco, uma transformação benéfica na vida dos participantes deste estudo, tanto pela possibilidade de acesso a itens básicos de cidadania como pela segurança, mencionada por eles pela perspectiva da proteção física e do acolhimento. Porém, foi possível constatar que, quanto maior a cronificação, mais homogeneizadoras se tornam as práticas cotidianas; a rotina da casa perde seu caráter individualizado e se transforma em uma sequência determinada de tarefas a serem cumpridas pelos funcionários, feitas da mesma forma para todos. Observamos que o SRT surgiu como potência simbólica, subjetiva e afetiva na perspectiva dos participantes, principalmente pela relação de afeto e cuidado estabelecida entre eles e os profissionais destes dispositivos. Mas há elementos trazidos por eles sobre seu cotidiano a respeito da sua participação e exercício de autonomia que ainda estão atrelados à tutela e à assistência. A Reabilitação Psicossocial preconiza que um dos eixos sobre os quais se constrói o aumento da capacidade contratual (que pressupõe a troca de bens, mensagens e afetos entre as pessoas) é a habitação; não apenas no sentido material de estar em uma casa, ter abrigo, mas de apropriação material, simbólica e afetiva deste espaço por seus moradores. Portanto, argumentamos que o SRT é compreendido como uma casa, que faz parte de um conjunto de estratégias orientadas a aumentar as possibilidades de troca de recursos e afetos entre as pessoas.

Por meio da verificação dos prontuários dos participantes, que ficam armazenados no CAPS que é referência para os SRTs estudados, foi possível caracterizá-los a partir de dados sociais, pessoais e familiares, clínicos e histórico de internações/institucionalização. É importante destacar que os relatórios de alta do último hospital psiquiátrico em que estavam internados estão arquivados nos respectivos prontuários e também foram consultados para compor a coleta de dados. A Figura 1 apresenta a caracterização dos participantes da pesquisa.

Figura 1
Caracterização dos participantes. Fonte: elaborada pela própria autora a partir da pesquisa documental.

A Figura 2 apresenta o histórico de internações e a situação de institucionalização dos participantes.

Figura 2
Histórico de internações/institucionalizações. *Tempo total de permanência internado em hospital psiquiátrico. Consta em relatório apenas os anos que foi dada entrada na internação compulsória, sem data de saída. Consta apenas a somatória destes 4 períodos que é o equivalente a 11 anos de internação. **Apenas período de internação psiquiátrica. Não consta nos relatórios, nem no prontuário o período que ficou na FEBEM.

É importante mencionar que os SRTs em questão foram constituídos de forma heterogênea, não seguindo necessariamente a condição de dependência e necessidade de assistência de seus moradores, já que outros fatores foram levados em consideração na composição das pessoas que morariam nas quatro residências estabelecidas no município onde o estudo foi realizado, como laços afetivos e de amizade entre eles, e/ou ter nascido e vivido nesta cidade, por exemplo.

Por meio das entrevistas, foi possível compreender a trajetória de cada um e suas histórias de vida, constatando que, nos SRTs participantes, ainda prevalecem práticas homogeneizadoras de cuidado, pouco estímulo para a participação dos moradores nas atividades do cotidiano e, quando ocorre, assume um caráter de ajuda ao profissional do SRT; a autonomia é um aspecto que nem ao menos alcança a reflexão e discussão dos profissionais e dos próprios moradores. Há algumas hipóteses para isso: a falta de formação em saúde mental dos profissionais, que em sua maioria tiveram apenas experiências de trabalho em hospital psiquiátrico e formação técnica generalista, como é o caso dos técnicos de enfermagem contratados; as características pré-determinadas e esperadas para pessoas que são destinadas a um SRT do tipo II, que conduzem a ações assistencialistas e/ou direcionadas, já que a capacidade do sujeito está pré-determinada como limitada, que necessita de maior auxílio; e a confusão da compreensão do que é limitação e cronificação, favorecendo condutas que mantém a estagnação do morador do SRT. Considerando que a média de tempo de internação em hospital psiquiátrico dos participantes foi de 25 anos, a participação e o desempenho nas atividades está bastante prejudicada, mas essa situação é ainda vinculada somente às condições do sujeito e não como resultado deste histórico de institucionalização prolongada.

A seguir, discutiremos a categoria "A vida dentro de casa" a partir das temáticas: (Re) aprendendo o fazer, o gostar e o querer: a participação em discussão; e (Re) pensando as limitações: a autonomia em discussão.

(Re) aprendendo o fazer, o gostar e o querer: a participação em discussão

Para que haja participação do sujeito em atividades cotidianas, é necessária, inicialmente, a possibilidade da sua inserção no mundo, por meio do contato, da experiência, da vivência; em seguida, a sua ação (não importando se realizado com ou sem auxílio, de forma total, parcial ou adaptada); pode-se evoluir, assim, para um conhecimento de si (por meio das coisas que gosta ou não de fazer) e para um conhecimento do mundo (por meio do entendimento das relações, das coisas que existem, de como funcionam); o qual, por fim, retornará ao próprio sujeito em forma de desejo em realizar ou aprender tais atividades. Assim, a participação pressupõe o envolvimento e o engajamento do sujeito em seu cotidiano.

O conceito de participação utilizado neste artigo dialoga com o da American Occupational Therapy Association (2015American Occupational Therapy Association – AOTA. (2015). Estrutura da prática da terapia ocupacional: domínio & processo. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 26, 1-49., p. 4), que compreende a participação como a realização ativa dos sujeitos nas “ocupações ou atividades de vida diária em que encontram propósito e significado”, cujo envolvimento do sujeito neste processo engloba seus aspectos objetivos e subjetivos. Nesse sentido, a participação envolve a ação, as trocas, o envolvimento, além do significado e desejo para o sujeito que a realiza. Importante ressaltar que esta definição abrange de forma mais limitada a participação no sentido das atividades de vida diária. Por isso, também foi considerada a definição de Ferreira & Oliver (2018)Ferreira, N. R., & Oliver, F. C. (2018). O cotidiano de jovens com deficiência: um olhar da terapia ocupacional a partir do método photovoice. Revista Interinstitucional Brasileira de Terapia Ocupacional, 2(4), 745-762., que entendem a participação social por meio das diversas dimensões da vida dos sujeitos, de forma mais ampla. Para elas, a participação social é definida como o

[...] acesso e envolvimento em atividades do cotidiano e de cidadania, como estudo, trabalho, atividades de lazer e culturais, atividades políticas, entre outras; assim como o estabelecimento de relações sociais, sejam elas no âmbito familiar, dos amigos ou dos relacionamentos afetivos (Ferreira & Oliver, 2018Ferreira, N. R., & Oliver, F. C. (2018). O cotidiano de jovens com deficiência: um olhar da terapia ocupacional a partir do método photovoice. Revista Interinstitucional Brasileira de Terapia Ocupacional, 2(4), 745-762., p. 750).

Os participantes da pesquisa mencionaram sobre o uso e apropriação do SRT, que, de maneira recorrente, fica limitado à utilização concreta e objetiva dos espaços, equipamentos e dispositivos, além de quanto há poucas oportunidades e/ou recursos do próprio sujeito para experimentar possibilidades de criação e de subjetividade nos SRTs. Trata-se de um fator notadamente agravado pela institucionalização prolongada.

Foram extraídos trechos das entrevistas realizadas com os participantes da pesquisa que auxiliaram na análise. Suas histórias de vida evidenciaram os significados da realização de atividades para eles, e que foram esquecidas devido à institucionalização prolongada. Os relatos mostraram a percepção de não mais saber fazer alguma atividade e não saber ao menos o que se deseja, ou o que se gosta, evidenciando a cronificação decorrente disso. Mencionaram-se também a falta de oportunidades para a participação ativa nas atividades de cuidado com a casa, por exemplo, e o quanto ainda tem o imaginário do papel dos funcionários como detentores de poder, além da percepção de si como pacientes. Desta forma, prevalece nos relatos a ideia de ajuda e não de apropriação, assim como no hospital psiquiátrico. A apropriação da casa e sua habitação de forma subjetiva apareceram para apenas 2 participantes da pesquisa. Observou-se a tendência à homogeneização das práticas realizadas nos SRTs, as quais, somadas à cronificação decorrente da institucionalização prolongada, resultam na pouca participação das pessoas que moram nestes dispositivos em seu cotidiano.

Assim, neste recorte, a participação foi dividida em 3 aspectos que foram destacados com maior frequência pelos participantes da pesquisa e que estão relacionados diretamente com este fator, e que serão apresentados a seguir: As histórias de vida e os significados do fazer, a importância da experiência, além dos papéis e atribuições no SRT. Serão discutidas também possibilidades de direcionamento para as intervenções terapêutico-ocupacionais neste contexto.

As histórias de vida e os significados do fazer

A importância de compreender as histórias de vida das pessoas que estiveram em internações prolongadas e, atualmente, moram nos SRTs possibilita a diferenciação do que é cronificação e o que é limitação de cada sujeito. Rosa e Ana relatam que cozinhavam antes de serem internadas em hospital psiquiátrico, mas esqueceram como faz. Ambas tiveram um período de internação ininterruptos, de 34 e 35 anos, respectivamente.

Eu gostava de cozinhar também [...] Macarronada.[sobre o desejo de cozinhar no SRT] Agora eu esqueci (Rosa).

Eu sabia cozinhar, mas faz trinta anos que eu não cozinho. A única coisa que eu sei fazer é doce de abóbora [...] Faz tanto tempo que agora eu esqueci, não sei nem colocar água no arroz (Ana).

Para elas, a “impossibilidade” de cozinhar é decorrente da não utilização desta habilidade ao longo dos anos, e não devido a uma incapacidade física e/ou cognitiva que impeça sua realização. Nestes casos, há uma evidente cronificação decorrente da institucionalização prolongada. Nenhuma delas cozinha no SRT, nem ao menos alguma preparação rápida para si.

É importante destacar que o significado que cada pessoa atribui às atividades são fundamentais para nortear práticas que realmente valorizem a sua subjetividade. Ana, por exemplo, diz que prefere comer a comida feita pelas funcionárias, pois já cozinhou muito para os outros ao longo de sua vida, já que trabalhava como empregada doméstica. Ela menciona as preparações especiais de coisas que gosta muito de comer, como o doce de abóbora que citou; este ela ainda lembra como faz. Assim, o estímulo para que ela cozinhasse todos os dias, por exemplo, não teria nenhum sentido para ela neste momento. Mas Rosa, por outro lado, nem ao menos cogitou esta possibilidade, e nem foi oferecida a ela a oportunidade para cozinhar. Nenhuma das duas tem algum comprometimento físico e/ou cognitivo que impeça a realização desta atividade.

As histórias de vida das pessoas são importantes condutores do caminho a ser seguido em qualquer prática de cuidado, para entender qual o significado e sentido de determinada atividade para aquela pessoa, além de quais são suas habilidades, interesses e limitações.

A importância da experiência

Os participantes da pesquisa são moradores de SRT do tipo II que é, de acordo com a legislação, destinado àquelas pessoas com maior necessidade de auxílio e supervisão nas atividades diárias. Ficou evidente o quanto isso acaba também por determinar uma pré-classificação do tanto de auxílio que deve ser oferecido por parte dos profissionais desses locais, que acabam realizando todas as tarefas. O relato de José mostra o quanto a condução e organização da casa se torna parte do fluxo de trabalho dos funcionários e perde seu caráter rotineiro e singular que deveria fazer parte do cotidiano dos moradores do SRT.

A turma faz tudo, né? [sobre os funcionários do SRT] (José).

Nos SRTs em questão, argumentamos que a falta de formação em saúde mental destes profissionais, que muitas vezes já vinham de experiências em hospitais psiquiátricos e acabam por reproduzir a lógica manicomial nos SRTs, impactou os relatos trazidos pelos participantes, que mencionaram a falta de estímulo e aberturas para a realização de atividades de cuidado com a casa.

[sobre atividades que realiza no SRT]. Eu ajudo secar a louça [...] Passar pano eles passam, cozinhar eles cozinham também. (Rosa).

Eu não ajudo, porque quem cozinha, já passa um paninho na casa, né? Aí não tem mais o que fazer (Ana).

Tanto Ana quanto Rosa entendem que cabe a elas apenas a função de ajuda, e esperam a solicitação e autorização dos funcionários para realizar qualquer atividade dentro de casa. Assim, a possibilidade da experiência fica a critério unicamente do profissional. Por isso a importância da oferta e disponibilidade variada de experiências aos moradores dos SRTs, para que consigam então manifestar e agirem de forma mais ativa em seu cotidiano. É a ação, a experimentação que possibilita a (re) descoberta dos sujeitos de seus interesses, desejos e preferências.

Os papéis e atribuições

Assim como Ana e Rosa, Cláudia também menciona a sua percepção sobre a existência de papéis e atribuições no SRT, evidenciando a falta do sentimento de habitar nesta casa, que a impede de se sentir pertencente, proprietária, empoderada para ter qualquer iniciativa. Há indicativos de que a visão que tem de si é compreendida como ser passivo, paciente, que necessita de orientação para realizar alguma atividade.

Quando precisa sim, quando está muito apurado eu ajudo sim. Por exemplo, se a pessoa que trabalha aqui tá fazendo uma coisa e me pede para fazer outra coisa eu faço [...] Eu fico mais é sentada, não é por preguiça não. É que aqui, cada um tem seu serviço pra fazer. Então um limpa o banheiro, cada um tem a sua função aqui. [sobre sua função no SRT] A minha? Por enquanto nenhuma (Cláudia).

Talvez, por meio desta reflexão, seja pertinente também avaliar a própria classificação estabelecida para um SRT do tipo II. Na pesquisa, observou-se o quanto há uma heterogeneidade na constituição dos SRTs participantes, mas também é fundamental presumir que esta heterogeneidade faz parte de todo e qualquer SRT, seja do tipo I ou II. É necessário levantar esta discussão de que a classificação de um SRT serve apenas para facilitar o planejamento deste dispositivo, e não para guiar o que se deve esperar do desempenho de cada morador ou para determinar as atribuições de cada um dentro da casa.

Nas entrevistas, a nomenclatura utilizada pelos participantes reforça este aspecto; os funcionários foram nomeados como chefes, cuidadores, como aqueles que tem a posse e o controle da medicação, do dinheiro e de toda e qualquer decisão. Os participantes nomearam a si mesmos e aos outros como pacientes. A percepção do sentimento de poder por eles mencionada está relacionada a algumas situações, e de forma parcial para fatores unicamente individuais, como, por exemplo, o relato de se sentirem empoderados sobre parte do valor que recebem de seus benefícios, daquele dinheiro que fica na sua posse, nas suas mãos. Isso é um indicativo importante a ser trabalhado nos SRTs, que é o de refletir com os moradores e com os profissionais que atuam nestes locais sobre o que entendem ser os papéis e atribuições de cada um neste contexto.

(Re) pensando as limitações: a autonomia em discussão

Nos relatos dos participantes, foi possível perceber que, mesmo para aqueles com menor necessidade de auxílio e supervisão na realização das atividades, e que já as realizam de forma independente, a autonomia foi o aspecto menos prevalente no seu cotidiano. Serão apresentados alguns recortes e trechos dos relatos, divididos em 2 aspectos destacados com maior frequência pelos participantes da pesquisa e que estão diretamente relacionados: as barreiras e limitações por eles encontradas e o estímulo, graduação e adaptação de atividades.

A autonomia é a capacidade do indivíduo tomar decisões por si mesmo a partir das informações que possui ou tem disponível. É um dos princípios da Bioética e, de acordo com Cohen & Salgado (2009)Cohen, C., & Salgado, M. T. M. (2009). Reflexão sobre a autonomia civil das pessoas portadoras de transtornos mentais. Revista Bioética, 17(2), 221-235., indica um processo, um “ganho” de liberdade proporcional com as condições variadas constituintes de cada sujeito. Este ganho proporcional mencionado é um elemento crucial para a compreensão do exercício da autonomia, principalmente para as pessoas que moram em um SRT do tipo II. Estes autores definem a autonomia como

[...] a capacidade de autogoverno, de livre arbítrio quanto à regência de seu próprio destino, no fazer ou não fazer, no ir ou não ir, no aceitar ou no recusar e assim por diante, concedida pouco a pouco, por parâmetros biológicos e de convívio social, que afastam os seres humanos dos animais e criam os contornos de sua personalidade (Cohen & Salgado, 2009Cohen, C., & Salgado, M. T. M. (2009). Reflexão sobre a autonomia civil das pessoas portadoras de transtornos mentais. Revista Bioética, 17(2), 221-235., p. 227).

Para estes autores, o que se tem de forma mais frequentemente no caso de pessoas com sofrimento psíquico grave é a perda da autonomia, pois seu discurso e ações são invalidados por serem automaticamente atrelados aos sintomas de seu transtorno. E essa “aparente” impossibilidade de ter autonomia perpetua na vida do sujeito, assim como o diagnóstico recebido, que permanecem como marca ao longo de sua existência. Não é considerada a possibilidade de resgate de autonomia, sendo esse um aspecto que fica consolidado, na maioria das vezes, como uma situação permanente para o sujeito.

Só é possível falar de autonomia quando se tem a possibilidade de participação; como este é um aspecto ainda deficitário na realidade dos SRTs estudados, a autonomia não chega nem ao menos a fazer parte do cotidiano dos participantes. É preciso diferenciar as duas coisas: uma pessoa pode ser participativa, ou ser colocada em situações de participação, mas não ter autonomia para escolher e decidir o que quer; e é possível também que outra pessoa tenha autonomia, mas não seja participativa, seja por limitações físicas e/ou cognitivas, seja devido às barreiras físicas/estruturais, econômicas, culturais e sociais.

A participação diz sobre a ação e a autonomia sobre a decisão e escolha. Ambas são desenvolvidas pelo sujeito, são processos de construção e são passíveis de serem realizadas por etapas, parcial ou totalmente. Faz parte do ser humano, mesmo em condições de “normalidade”, ter limitações em diversos graus, a depender da tarefa a ser executada, mais ou menos autonomia em seu cotidiano, a depender da fase vivida, do contexto, entre outros. Da mesma forma, tal raciocínio deve valer para as pessoas “desviantes” dessa “normalidade”, em que o ponto de partida deve ser sempre a possibilidade de experimentação da própria vida, para que depois sejam analisados possíveis auxílios e intervenções nas dificuldades e limitações, sejam elas da ação e/ou da decisão. Certamente, não deverão ser desconsideradas limitações já estruturadas, mas definitivamente não deverão ser elas o ponto de partida quando se trata da participação e autonomia das pessoas com quem se pretenda desenvolver qualquer processo.

Em consonância com esta discussão, Kinoshita (1996)Kinoshita, T. R. (1996). Contratualidade e reabilitação psicossocial. In A. Pitta (Ed.), Reabilitação psicossocial no Brasil (pp. 55-59). São Paulo: Editora Hucitec. trata da necessidade da ampliação de suporte e auxílio que todas as pessoas devem ter; no caso dos moradores dos SRTs, pode ser entendido no sentido de não dependerem exclusivamente dos profissionais destes dispositivos.

Entendemos a autonomia como a capacidade de um indivíduo gerar normas, ordens para a sua vida, conforme as diversas situações que enfrente. Assim, não se trata de confundir autonomia com auto-suficiência nem com independência. Dependentes somos todos; a questão dos usuários é antes uma questão quantitativa: dependem excessivamente de apenas poucas relações/coisas. Esta situação de dependência restrita/restritiva é que diminui a sua autonomia. Somos mais autônomos quanto mais dependentes de tantas mais coisas pudermos ser, pois isso amplia as nossas possibilidades de estabelecer novas normas, novos ordenamentos para a vida (Kinoshita, 1996Kinoshita, T. R. (1996). Contratualidade e reabilitação psicossocial. In A. Pitta (Ed.), Reabilitação psicossocial no Brasil (pp. 55-59). São Paulo: Editora Hucitec., p. 57).

Assim, a inserção em diversos cenários da comunidade em que se vive e a participação social geram novas relações e experiências do morador do SRT, possibilitando, desta forma, a construção de um caminho rumo à autonomia. Como dito anteriormente, o SRT é o início para a participação, apropriação e sentimento de pertença de seus moradores, mas deve ter como objetivo final a ampliação de acesso a recursos físicos, pessoais, relacionais, entre outros, que façam parte do território.

A partir do estudo realizado, é possível observar a relação feita tanto pelos profissionais, quanto pelos próprios moradores, entre a capacidade do sujeito de realizar (com total independência e sem auxílio) com a autonomia; ambas são comparadas como inseparáveis e igualmente proporcionais. Desta forma, a compreensão que se tem é que se o sujeito tem alguma dificuldade/limitação; logo, não pode exercer sua autonomia.

O único lugar que eu não gosto de ir é na chácara [...] que tem almoço... eu não gosto, eu gosto de ficar em casa mais vai tudo, vai todas as casas, vai todo mundo, aí eu sou obrigada a ir [sobre a possibilidade de não ir para a chácara] Mas sozinha não tem como ficar, não tem quem cozinhe para mim (Ana).

No caso de Ana, ela não tem nenhuma limitação física e/ou cognitiva que a impeça de decidir se deseja ir ou não no evento de final de ano, que é realizado anualmente entre os SRTs do município, mas acaba indo porque não fica nenhum funcionário na casa que mora durante esse evento. Ela sente que precisa de cuidados de alguém, especificamente para cozinhar. É independente nas atividades de vida diária; apenas não cozinha. Considerando que ela realmente precisa desse auxílio, nem se cogitam outras possibilidades, como deixar a comida pronta para ela esquentar no micro-ondas, por exemplo. Esses impasses são momentos importantes que podem ser aproveitados para discutir com o morador do SRT, quais são seus desejos sobre determinada situação, o que gostaria de fazer, mostrar o que é possível. Neste caso, como exemplo, explicando que não ficará nenhum profissional na casa com ela durante estes eventos, oferecer opções e permitir que ela decida o que quer fazer. Seria um bom momento para estimular o uso do tablet da casa que mora, por exemplo, para ser utilizado nestas situações em que ficará sozinha, caso queira ou surja alguma emergência e que precise de ajuda.

As barreiras e limitações do sujeito no seu cotidiano

Nos relatos dos participantes, houve a menção recorrente de diagnósticos e restrições obtidos ainda no hospital, e de situações que aconteceram em momentos de crise da doença. Cláudia refere situações ocorridas quando sofria com crises constantes de epilepsia. Desde que foi morar no SRT, não teve mais nenhuma; porém, mantém as mesmas restrições.

A lógica predominante observada no contexto do estudo é que ou algo é feito totalmente pelo sujeito ou não pode ser feito. É possível constatar que essas limitações começam a fazer parte da condição do sujeito, ficando esquecido o fato de que o ambiente é também um fator que interfere fortemente nas limitações que um sujeito possa ter.

Eu não posso ficar na beira do fogão, porque eu me queimei na beira do fogão. Essa queimadura não foi aqui, foi na casa da minha patroa [...] foi de terceiro grau. Eu não esqueço até hoje, eu estava fazendo uma panela de arroz. Eu coloquei a água no fogo, porque diz que com a água quente o arroz sai mais rápido, né? Então eu coloquei a água no fogo. Aí daqui a pouco deu uma crise em mim, foi a primeira crise que deu em mim, aí a água fervendo caiu tudo em cima de mim. Quando eu fui acordar já estava no hospital. Não é à toa que eu vivo embaixo de remédio [sobre a possibilidade de usar fogão novamente] sou proibida, o médico proibiu eu (Cláudia).

Além da epilepsia, Cláudia tem uma hemiplegia do lado direito do corpo. Porém, essa limitação acaba se estendendo para grande parte das atividades realizadas no seu cotidiano e ela deixa de participar de inúmeras tarefas da casa. Ela mesma se recusa a realizar estas tarefas, pois acredita que não consegue.

De forma geral, as barreiras são aspectos que são mais evidentes e que acabam por fazer parte das reflexões relacionadas aos SRTs, principalmente as barreiras físicas e culturais. Pensa-se na acessibilidade e segurança da casa em que o SRT será instalado, no acesso aos diversos espaços da cidade e na aceitação da comunidade ao entorno. Mas a reflexão sobre as limitações decorrentes da cronificação devido à institucionalização prolongada fica em segundo plano; não se pensa nas limitações estabelecidas no período de internação e o quanto as mesmas estavam relacionadas ao quadro ou decorrentes do próprio ambiente do hospital e do longo período de institucionalização.

Estimular, graduar e adaptar atividades

Na questão da estimulação das atividades, foram encontrados alguns fatores no estudo realizado que estão diretamente relacionados à participação dos moradores dos SRTs nas atividades em seu cotidiano: a sobrecarga dos cuidadores, a falta de orientação para novas possibilidades de participação do sujeito, além da assimilação permanente da cronificação e limitações estabelecidas ao longo da história de vida destas pessoas, como anteriormente mencionado. Os dois primeiros fatores estão estreitamente relacionados, pois a falta de formação e de conhecimento do papel do SRT acabam por centralizar a realização de todas as atividades da casa e de cuidado com os moradores para os profissionais que trabalham nestes locais, além de não saberem como promover o aumento da participação dos moradores. Por fim, a questão da forma de ver estas pessoas, pela lente do déficit e da limitação, está relacionada a padrões de pensamento que são cristalizados através de estereótipos que são mantidos ao longo do tempo e que resultam na percepção de que os mesmos não podem ou não conseguem realizar determinadas atividades.

É papel importante do terapeuta ocupacional, no aspecto individual, mais do que investigar - juntamente com o sujeito e em seu cotidiano – quais são as suas limitações, é principalmente investigar quais são seus interesses e potencialidades. E, a partir disso, buscar novas possibilidades de participação, que podem ser realizadas de forma parcial e gradativa, com ou sem ajuda, com o uso ou não de dispositivos e aumentando a dificuldade da atividade conforme o avanço e o interesse do sujeito. É importante destacar que o desejo e interesse, ou a falta dele, para realizar qualquer atividade cotidiana muda conforme o período da vida em que o sujeito está vivenciando, conforme o ambiente, os estímulos, a condição de saúde física, cognitiva e emocional, entre outros. Por isso, essas ações de estímulo, graduação e adaptação de atividades devem ser constantemente revistas com o sujeito.

No aspecto coletivo, a ação do terapeuta ocupacional tem um papel importante com relação à reflexão e debate dos estereótipos, que são imensos, das pessoas que viveram grande parte de suas vidas institucionalizadas. Esse é um fator que contribui para que as ações realizadas por estas pessoas sejam sempre tuteladas e controladas de alguma forma, e o caráter de suas ações acabam assumindo sempre a função de ajuda a outra pessoa, no caso, os profissionais dos SRTs, ou sendo estritamente individualizadas. Essa articulação entre os moradores para ações e responsabilização coletiva do cotidiano também faz parte da ação do terapeuta ocupacional, e também passa por processos de estimulação, graduação e adaptação para a sua realização.

Jurema é bastante independente nas atividades e refere o desejo de realizar outras tarefas que ainda não realiza. Apesar de ter condições cognitivas e físicas, realiza completamente apenas algumas atividades do início ao fim, principalmente aquelas que estão estreitamente relacionadas a sua individualidade, como preparar um macarrão instantâneo que deseja comer, receber e gerenciar seu dinheiro para comprar roupas e alguns itens alimentícios. Ela refere que gostaria de realizar uma tarefa inteira na casa. Já lava algumas de suas roupas na mão e auxilia em partes desta tarefa, como tirar a roupa suja do cesto, mas ainda não sabe utilizar a máquina de lavar roupas.

Eu queria era aprender mexer na máquina, para eu e a Sol lavar a nossa roupa [...] (Jurema).

Cláudia, apesar de sua limitação física, não apresenta nenhum comprometimento que a impossibilite de aprender a utilizar os eletrodomésticos e equipamentos eletrônicos de forma independente. Seu passatempo favorito é assistir filmes, novelas, programas e shows na televisão. Quando quer assistir algo específico, ela pede para alguma funcionária da casa procurar para ela.

Aqui lava a roupa na máquina [...] Não sei mexer em nada, nem na TV, não sei ligar a televisão, nem ligar a música eu sei (Cláudia).

Foi possível ver o quanto há a necessidade de que este tema da participação e autonomia sejam revistos constantemente, já que tendem a ser incorporados em uma rotina automática, na qual o fato do morador do SRT fazer alguma coisa durante o dia acaba sendo considerado o suficiente.

Considerações Finais

A intervenção em terapia ocupacional vai além do processo individual do sujeito no seu fazer cotidiano, como também envolve um processo de articulação de ensino e aprendizagem mútuo entre os moradores dos SRTs, os profissionais destes dispositivos e da rede, assim como da comunidade ao redor, já que o objetivo final da intervenção terapêutica-ocupacional é a inclusão social do público atendido.

Faz-se necessário que, ao objetivar a inclusão social de pessoas, há necessariamente o pressuposto de construir o caminho junto com elas, pois é um processo complexo e que nunca está acabado; é preciso acompanhar a pessoa que mora em um SRT continuamente, a partir da compreensão de que a autonomia e a participação destas pessoas em seu cotidiano são algo a ser estimulado, favorecido, experimentado, para então ser conquistado. A inclusão social é o resultado deste processo.

O grau de comprometimento atual de uma pessoa, verificado por profissionais de diversas áreas no momento da avaliação, em nada garante que seu desempenho se mantenha inalterado por toda a vida. Portanto, nunca deve ser abandonada a premissa de que, independentemente das limitações observadas, o olhar da incerteza do que está por vir deve fazer parte da conduta e raciocínio clínico de todo e qualquer profissional que se dedique à vida humana, pois falar de participação é falar do desejo, do interesse, da história, das relações, das lembranças e das vivências que está neste outro; portanto, são impossíveis de serem analisadas de forma tão precisa e inalterada. Tais condições tratam da imaterialidade do ser, que foge às amarras de qualquer avaliação pré-estabelecida e de qualquer classificação que destine essa pessoa a um SRT, seja do tipo I ou II. Isso porque, mesmo para aqueles com maior necessidade de auxílio/supervisão, a possibilidade de participar e exercer sua autonomia ainda deve se fazer presente. Não há deficiência, limitação ou qualquer outra dificuldade que justifique o esquecimento destes aspectos ou a não possibilidade e estímulo dos mesmos, de acordo com a capacidade e interesse do sujeito.

Argumentamos que essas considerações são fundamentais para qualquer proposta de trabalho com os moradores de serviços residenciais terapêuticos e que objetive a inclusão social.

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    Os resultados apresentados neste artigo são parte integrante da dissertação intitulada “Há vida lá fora: o cotidiano das pessoas que moram nos Serviços Residenciais Terapêuticos”, desenvolvida pela primeira autora sob orientação da segunda, junto ao Programa de Pós-Graduação em Terapia Ocupacional da Universidade Federal de São Carlos. Todos os procedimentos éticos foram cumpridos e o estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, sob parecer consubstanciado de número 3.929.252.
  • Como citar: Vieira, F. R., & Lussi, I. A. O. (2022). Participação e autonomia de pessoas que moram nos serviços residenciais terapêuticos: contribuições da terapia ocupacional. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 30, e3006. https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoAO22773006

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    » http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoAR1883

Editado por

Editora de seção

Profa. Dra. Marta Carvalho Almeida

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    11 Abr 2021
  • Revisado
    17 Jul 2021
  • Revisado
    09 Set 2021
  • Aceito
    07 Out 2021
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