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Terapia Ocupacional e o tratamento de bebês em intervenção precoce a partir de uma Hipótese de Funcionamento Psicomotor: estudo de caso único1 1 Este estudo faz parte da pesquisa “Análise Comparativa do Desenvolvimento de Bebês Prematuros e a Termo e sua Relação com Risco Psíquico: da detecção à intervenção” aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob parecer número 652.722. Os responsáveis tiveram esclarecimento dos objetivos e procedimentos, e manifestaram a concordância em participar da pesquisa a partir da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Resumo

Introdução:

Atuais pesquisas sobre intervenção precoce (IP) em bebês com risco ao desenvolvimento ‒ entre os quais, o prematuro ‒ convidam terapeutas à construção de novos tratamentos clínicos.

Objetivo:

Analisar a eficácia de uma Hipótese de Funcionamento Psicomotor (HFP) para tratamento de bebê prematuro.

Método:

Tem cunho qualitativo, longitudinal, clínico quase experimental, de estudo de caso único. Amostra deu-se por conveniência, sendo um bebê prematuro, com risco psíquico e de desenvolvimento, identificado pelos protocolos PREAUT e IRDIS. Foi tratado durante três meses em IP por terapeuta ocupacional, a partir de HFP. O tratamento foi filmado e registrado em diário de campo. Posteriormente analisado através da comparação entre objetivos propostos e resultados alcançados, destacando os efeitos da HFP.

Resultados:

O caso confirma que a irregularidade psicomotora pode ser compreendida como sintoma psicomotor e sua origem pode ser interpretada a partir de uma HFP. Considera a irregularidade de forma singular, como anúncio de como a criança constrói seu Esquema (EC) e Imagem Corporal (IC), a partir do laço com seus pais. Confirmou-se a eficácia do tratamento a partir de uma HFP, pois o sintoma psicomotor desapareceu (EC), dando espaço para aquisições psicomotoras e cognitivas, e para a ressignificação dos investimentos da mãe em seu bebê (IC). O EC é tomado como funcionamento motor e cognitivo, que anuncia o funcionamento psíquico relacionado a IC em elaboração.

Conclusão:

A HFP interpreta o processo psicomotor do bebê supondo como está se constituindo, de modo a permitir uma IP que possa transformar o sintoma psicomotor em gesto estruturante.

Palavras-chave:
Prematuro; Desempenho Psicomotor; Terapia Ocupacional; Fonoaudiologia; Psicanálise

Abstract

Introduction:

Ongoing studies about premature intervention (PI) on babies with developmental risk, like prematures, invite therapists to construct new clinical treatments.

Objective:

To analyze the effectiveness of a Hypothesis of Psychomotor Functioning (HPF) for treatment of the premature babies.

Method:

Qualitative, longitudinal, and clinical almost experimental single case study. We studied one premature baby, with developmental and psychic risk, identified by the PREAUT and IRDI protocols. The baby received three months of PI treatment by occupational therapy from the HPF. Treatment was filmed and registered in a field diary. We then compared the proposed objectives and the collected results, outlining the effects of the HPF.

Results:

The case confirms that the psychomotor irregularity may be understood as a psychomotor symptom and its source construed as from a HPF. The irregularity is considered in a singular way, as observation of how the child constructs its Body Scheme (BS) and Body Image (BI), starting from the bonds with parents. The treatment effectiveness was confirmed from a HPF, as the psychomotor symptom went away (BS), giving place for cognitive and psychomotor acquisitions, and to the maternal resignification of the investments in her baby (BI). The BS is taken as a cognitive and motor psychic functioning related to the BI in construction.

Conclusion:

The HPF interprets the baby psychomotor process based on its construction, allowing a PI that can transform a psychomotor symptom into a structuring motion.

Keywords:
Premature; Psychomotor Performance; Occupational Therapy; Speech; Language and Hearing Sciences; Psychoanalysis

1 Introdução

O campo da intervenção precoce foi e continua sendo tradicionalmente aplicado ao tratamento para os bebês diagnosticados com lesões neurológicas, síndromes, mas formações congênitas, ou seja, com sérios transtornos biológicos. No entanto, o investimento em pesquisa e tratamento na área da saúde (GURKA; LO CASALE-CROUCH; BLACKMAN, 2010GURKA, M. J.; LO CASALE-CROUCH, J.; BLACKMAN, J. A. Long-term cognition, achievement, socioemotional, and behavioral development of healthy late-preterm infants. Archives of Pediatrics & Adolescent Medicine, Chicago, v. 164, n. 6, p. 525-532, 2010. Disponível em: <http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/20530302>. Acesso em: 20 nov. 2015.
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; RODRIGUES; BOLSONI-SILVA, 2011RODRIGUES, O. M. P.; BOLSONI-SILVA, A. T. Efeitos da prematuridade sobre o processo de desenvolvimento de lactentes. Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano, São Paulo, v. 21, n. 1, p. 111- 121, 2011.; FERNANDES et al., 2013FERNANDES, L. V. et al. Avaliação do neurodesenvolvimento de prematuros de muito baixo peso ao nascer entre 18 e 24 meses de idade corrigida pelas escalas Bayley III. Jornal de Pediatria, Rio de Janeiro, v. 88, n. 6, p. 471-478, 2013. Disponível em: <http://www.ncbi. nlm.nih.gov/pubmed/23172131>. Acesso em: 6 mar. 2012
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) somado a pesquisas em neurociência ‒ as quais apontam a existência de uma “intersubjetividade inata” (NAGY; MOLNAR, 2013NAGY, E.; MOLNAR, P. Homo imitans ou homo provocans? Modelo de imprinting a partir de imitação neonatal. In: BUSNEL, M. C.; MELGAÇO, R. G. O bebê e as palavras: uma visão transdisciplinar sobre o bebê. São Paulo: Instituto Langage, 2013. p. 54-63.), afirmando que o bebê possui recurso biológico e psíquico para colocar todo seu repertório estrutural e instrumental na busca do prazer, utilizado por ele para assumir uma posição mais ativa em seu próprio desenvolvimento ‒ tem estimulado os profissionais desta área a investirem em novos caminhos a partir da detecção precoce de risco psíquico ou ao desenvolvimento do bebê.

Entre esses novos caminhos, na última década, destaca-se a validação de instrumentos, como os sinais PREAUT, que identificam risco psíquico e fazem parte do Programme Recherche Evaluation Autisme (OLLIAC et al., 2017OLLIAC, B. et al. Infant and dyadic assessment in early community-based screening for autism spectrum disorder with the PREAUT grid. PLoS One, San Francisco, v. 12, n. 12, p. 1-22, 2017. Disponível em: <http://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0188831>. Acesso em: 2 mar. 2018.
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), avaliando crianças a partir de quatro meses de vida, e que detectam precocemente risco de evolução para autismo. Outro instrumento são os Indicadores de Risco de Desenvolvimento Infantil (IRDIs) (KUPFER et al., 2010KUPFER, M. C. et al. Predictive value of clinical risk indicators in child development: final results of a study based on psychoanalytic theory. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 31-52, 2010.), que avaliam as crianças a partir de um mês. Os IRDIs diferenciam risco psíquico, quando há possibilidade de estruturação de uma psicopatologia grave no futuro, de risco ao desenvolvimento, quando há risco no laço entre o bebê e seus pais, que pode provocar a emergência de sintomas, como, por exemplo, atrasos psicomotores, sem que haja risco biológico envolvido.

Ambos os instrumentos observam a condição dos bebês, em sua intersubjetividade, e dos pais, para exercer suas funções a partir do campo psicanalítico freudo-lacaneano.

Entre as psicopatologias, está o risco de evolução para o autismo, que pode ter uma causa orgânica, mas que incide sobre a construção da intersubjetividade inata ‒ ou primária (GOLSE, 2013GOLSE, B. O autismo infantil, a intersubjetividade e a subjetivação entre as neurociências e a psicanálise. In: MARIN, I. K.; ARAGÃO, R. O. (Org.). Do que fala o corpo do bebê. São Paulo: Escuta, 2013. p. 263-278.) ‒ por se tratarem de bebês que apresentam dificuldades em responder já aos primeiros investimentos relacionais dos pais (OUSS et al., 2014OUSS, L. et al. Infant’s engagement and emotion as predictors of autism or intellectual disability in West syndrome. European Child & Adolescent Psychiatry, Toronto, v. 23, n. 3, p. 143-149, 2014. Disponível em: <http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/23728914>. Acesso em: 8 maio 2014.
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; ESPOSITO; VENUTI, 2009ESPOSITO, G.; VENUTI, P. Symmetry in infancy: analysis of motor development in autism spectrum disorders. Journal Symmetry, Barcelona, v. 1, p. 215-225, 2009. Disponível em: <www.mdpi.com/journal/symmetry>. Acesso em: 10 abr. 2015.
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). Também há casos em que existem limitações no laço com o outro que não provêm do bebê, mas de dificuldades no exercício das funções parentais, que podem evoluir para psicopatologias como a psicose ou apenas se manifestarem na forma de um distúrbio do desenvolvimento (LAZNIK, 2013LAZNIK, M. C. A voz da sereia: o autismo e os impasses na constituição do sujeito. Salvador: Ágalma, 2013.). Em ambos os tipos, dificuldades psicomotoras podem ser o recurso que o bebê tem de manifestar sua dificuldade, cabendo ao terapeuta interpretá-las na condição de sintoma (KUPFER et al., 2010KUPFER, M. C. et al. Predictive value of clinical risk indicators in child development: final results of a study based on psychoanalytic theory. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 31-52, 2010.; VENDRUSCOLO; SOUZA, 2015VENDRUSCOLO, J. V.; SOUZA, A. P. R. Intersubjetividade no olhar interdisciplinar sobre o brincar e a linguagem de sujeitos com risco psíquico. Revista CEFAC, São Paulo, v. 17, n. 3, p. 707-719, 2015.). Ainda é possível identificar problemas do desenvolvimento na aquisição da linguagem como outro sintoma comum (PRETTO; RAMOS; MORAES, 2014PRETTO, J.; RAMOS, A. P.; MORAES, A. B. Análise da relação entre depressão materna e indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil. Revista CEFAC, São Paulo, v. 16, n. 2, p. 500-510, 2014.; CRESTANI; MORAES; SOUZA, 2015CRESTANI, A. H.; MORAES, A. B.; SOUZA, A. P. R. Análise da Associação entre Índices de Risco ao Desenvolvimento Infantil e Produção Inicial de Fala Entre 13 e 16 Meses. Revista CEFAC, São Paulo, v. 17, n. 1, p. 169-176, 2015.), sem que haja uma causa biológica específica. Seja qual for o risco detectado, a inserção dos protocolos PREAUT e IRDI na avaliação no primeiro ano de puericultura demanda pensar em uma intervenção precoce que considere o bebê e sua família, de modo simultâneo e singular, que indica um risco, mas que ainda não está estruturado na condição de uma psicopatologia.

Neste artigo, o desenvolvimento psicomotor será tomado como foco na avaliação e intervenção. Será discutido a partir da apresentação de um caso de um bebê prematuro com risco psíquico, em que se buscou a compreensão simultânea das dimensões biológica, cognitiva e psíquica do desenvolvimento infantil, a partir da concepção de uma Hipótese de Funcionamento Psicomotor (HFP).

A proposição da HFP a partir de uma análise que abarca conceitos como esquema corporal (EC) e imagem corporal (IC), analisados a partir de uma leitura que garanta a singularidade das características motoras, cognitivas e psíquicas do bebê com relação ao seu cuidador primordial, considera trazer, para o campo da intervenção precoce, conceitos tradicionalmente utilizados na identificação de sintomas psicomotores de crianças mais velhas (PERUZZOLO; SOUZA, 2017PERUZZOLO, D. L.; SOUZA, A. P. R. Uma hipótese de funcionamento psicomotor como estratégia clínica para o tratamento de bebês em intervenção precoce. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, São Carlos, v. 25, n. 2, p. 427-434, 2017.).

Considerando que, nos primeiros anos de vida do bebê, ele está construindo e experienciando tanto seu EC quanto sua IC, e que já neste período é possível identificar algumas de suas capacidades inatas, mostra-se possível avaliar e intervir em um sinal psicomotor antes que este se estruture como sintoma psicomotor. Por isso, é preciso tomar a condição psicomotora do bebê com risco psíquico ou risco ao desenvolvimento como um anúncio (hipótese) de como ele está tentando haver-se tanto com suas questões intersubjetivas quanto biológicas, na inter-relação corporal com seus pais (funcionamento psicomotor). A HFP supõe que se deva avaliar a psicomotricidade do bebê a partir da distinção entre sintoma e sinthoma. Essa distinção foi considerada por Surreaux (2006SURREAUX, L. Linguagem, sintoma e clínica em clínica de linguagem. 2006. 202f. Tese (Doutorado em Letras) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.), a partir da teoria Lacaniana, para propor uma hipótese de funcionamento de linguagem. Para a autora, o sintoma “[...] é considerado a extensão simbólica de um significante [...]” (SURREAUX, 2006SURREAUX, L. Linguagem, sintoma e clínica em clínica de linguagem. 2006. 202f. Tese (Doutorado em Letras) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006., p. 115). É compreendido também como o sintoma clínico, “[...] o que leva o sujeito a criar demanda de atendimento, é a queixa [...]”. Já o “sinthoma é aquilo que é próprio da estrutura do sujeito” (SURREAUX, 2006, p. 115). É compreendido como um sintoma estruturante, que “organiza o lugar do sujeito” (SURREAUX, 2006, p. 115) na relação com seus pais e com o ambiente em geral. Para Surreaux (2006), escutar a queixa (sintoma) implica tomá-la como um anúncio e tratá-la de forma que se desdobre para uma condição constituinte do sujeito (sinthoma).

Esta distinção proposta para o campo da linguagem ‒ e deslocada nesta pesquisa para pensar o desenvolvimento psicomotor a partir da HFP ‒ permite dirigir o tratamento do bebê em intervenção precoce considerando a possibilidade de que seus sintomas psicomotores funcionem como um anúncio no corpo sobre de que forma sua condição emocional interpreta o meio e determina seus movimentos (PERUZZOLO; SOUZA, 2017PERUZZOLO, D. L.; SOUZA, A. P. R. Uma hipótese de funcionamento psicomotor como estratégia clínica para o tratamento de bebês em intervenção precoce. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, São Carlos, v. 25, n. 2, p. 427-434, 2017.). Do mesmo modo que Surreaux (2006SURREAUX, L. Linguagem, sintoma e clínica em clínica de linguagem. 2006. 202f. Tese (Doutorado em Letras) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.) defende o sintoma de linguagem como uma forma do inconsciente manifestar-se, propõe-se, neste estudo, considerar tal manifestação no campo psicomotor.

O tratamento em intervenção precoce a partir da clínica psicomotora interfere na produção do sintoma psicomotor, impedindo que ele se instale, ou diminuindo os efeitos iatrogênicos no desenvolvimento do bebê (PERUZZOLO et al., 2015PERUZZOLO, D. L. et al. Contribuições à clínica da Terapia Ocupacional na área da intervenção precoce em equipe interdisciplinar. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, São Carlos, v. 23, n. 2, p. 295-303, 2015.).

Este artigo tem o objetivo de apresentar um estudo no formato de estudo de caso clínico, cujo tratamento foi pautado por uma HFP. Propõe-se aqui considerar o sintoma psicomotor como um anúncio e uma resposta psicomotora de como o bebê está conseguindo utilizar seus recursos e responder às primeiras informações passadas pela mãe.

Para isso, o artigo apresenta as características da criança legível para este tipo de tratamento, o processo de avaliação e a elaboração da HFP, o tratamento, a evolução e os resultados, e faz uma discussão teórica que contribui para que outros profissionais busquem, nesta técnica, caminhos para qualificar a clínica com bebês.

2 Método

Esta pesquisa é fruto da Tese de Doutorado da primeira autora. Teve um cunho qualitativo, longitudinal, clínico quase experimental que, segundo Nobre et al. (2004NOBRE, M. R. C. et al. A Prática Clínica Baseada em evidências: Parte III Avaliação Crítica das Informações de Pesquisas Clínicas. Revista Associação Médica Brasileira, São Paulo, v. 50, n. 2, p. 221-228, 2004., p. 221), tem o objetivo de “[...] desenvolver meios diagnósticos e terapêuticos entre um fator em estudo e um desfecho clínico [...]”. A estratégia de pesquisa foi a de uma investigação a partir de estudo de caso, com amostra de conveniência identificada, encaminhada e tratada nos moldes estabelecidos na pesquisa intitulada Análise Comparativa do Desenvolvimento de Bebês Prematuros e a Termo e sua Relação com Risco Psíquico: da detecção à intervenção, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob parecer número 652.722, com data de relatoria de 10 de junho de 2014, atendendo a Resolução nº 466/12. Os responsáveis tiveram esclarecimento dos objetivos e procedimentos, e manifestaram a concordância em participar da pesquisa a partir da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Esta pesquisa está vinculada aos programas de pós-graduação em Distúrbios da Comunicação Humana e em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

2.1 O sujeito da pesquisa

Trata-se de uma menina em risco psíquico e atraso no desenvolvimento, que será apresentada pela letra T. Apresentou risco psíquico e ao desenvolvimento pelos IRDIs e pelos sinais PREAUT, e sinais clínicos de inibição psicomotora (LEVIN, 2011LEVIN, E. A clínica psicomotora: o corpo na linguagem. Petrópolis: Vozes, 2011.), observados pelos examinadores da pesquisa maior, na primeira etapa de coleta que correspondia à idade corrigida aos quatro e nove meses, respectivamente. Considerando estes resultados, T. foi encaminhada para avaliação e intervenção precoce, o que gerou dados para este estudo.

2.2 A intervenção clínica

Os atendimentos foram realizados por uma terapeuta ocupacional, uma vez por semana, em um período de três meses, balizados por uma equipe interdisciplinar, em um Programa de Extensão em intervenção precoce, vinculado à UFSM, composta por fonoaudiólogas, fisioterapeutas, psicólogas e terapeutas ocupacionais. No caso clínico em questão, duas pesquisadoras subsidiaram a discussão do caso, para que outra pesquisadora fizesse a intervenção na modalidade de terapeuta único, considerando a clínica interdisciplinar.

Para elaboração do tratamento, apresentação e discussão deste caso clínico, foram consultados os dados coletados na pesquisa que detectou e encaminhou a menina para tratamento: a entrevista e o preenchimento de questionário sociodemográfico com a mãe, Denver II, IRDIs, sinais PREAUT, assim como os dados do prontuário do bebê no Hospital Universitário. Também foi analisada a filmagem da menina em interação com a mãe, coletada na pesquisa de avaliação para detecção precoce de transtorno psíquico e ao desenvolvimento, realizada aos quatro meses e vinte dias de idade corrigida.

2.3 Coleta dos dados

Todas as sessões de tratamento e entrevista foram filmadas, e a terapeuta registrou em diário de campo questões que julgou importantes a destacar. Uma aluna da graduação em terapia ocupacional participou das sessões filmando e interagindo, quando convocada pela menina, e também fez seus registros em diário de campo. Todas essas informações compuseram o banco de dados, porém as filmagens e os diários de campo das duas terapeutas ocupacionais foram mais utilizados, com o propósito de registrar as ações tanto do terapeuta quanto do bebê e seus familiares (ROSE, 2002ROSE, D. Análise de imagens em movimento. In: BAUER, M. W.; GASKELL, G. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 343-364.).

2.4 Análise dos dados

Da análise das filmagens, foram destacadas as que contribuiriam para a discussão sobre a eficácia ou não de um tratamento em intervenção precoce baseado em uma HFP. A análise das filmagens aconteceu a partir da formulação de uma estrutura de análise, constituída por seleção da amostra, transcrição e citações ilustrativas, para complementar a análise da transcrição (ROSE, 2002ROSE, D. Análise de imagens em movimento. In: BAUER, M. W.; GASKELL, G. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 343-364.). A busca dos resultados se deu por meio da análise comparativa entre os objetivos traçados para a produção da HFP e os resultados alcançados, feita por uma terapeuta ocupacional e uma fonoaudióloga que não participaram do tratamento, destacando os efeitos que a proposta surtiu na evolução terapêutica a partir das estratégias utilizadas para tal.

Estes dados compuseram uma Matriz de Categorias produzida a partir da análise mais detalhada da descrição do caso, em uma série temporal. Yin (2001YIN, R. K. Estudo de caso: planejamento e métodos. Porto Alegre: Bookman, 2001.) denomina esta matriz como um “Modelo Lógico de Programa”, uma combinação das técnicas de adequação ao padrão encontrado e de análise de séries temporais.

Como a pesquisa é qualitativa, as narrativas de alguns fragmentos de atendimentos servirão para ilustrar, com maior precisão, a discussão apresentada. Os quadros que apresentam algumas das cenas foram transcritos através da adaptação das normas de transcrição adotadas pelo banco de dados da Enunciação e Sintoma na Linguagem ‒ Enuncil (FLORES, 2006FLORES, V. Entre o dizer e o mostrar: a transcrição como modalidade de enunciação. Revista Organon, Porto Alegre, v. 20, n. 40-41, p. 61-75, 2006.), em que se acrescentou o sinal (!), um ponto de expressão entre parênteses, para registrar que o gesto não foi endereçado a ninguém ou que o gesto não foi interpretado por ninguém.

3 Apresentação do Caso Clínico

3.1 Do encaminhamento

T. é filha única de mãe e pai jovens: a mãe tem 19 anos e o pai, 22. A menina chegou para atendimento em intervenção precoce com 15 meses de vida em idade cronológica e 12 meses e 20 dias em idade corrigida, sendo prematura de dois meses e 10 dias. Antes disso, ela foi avaliada quando estava completando três meses e 26 dias de idade corrigida, pelos IRDIs, indicando risco ao desenvolvimento.

Esta idade corresponde a Fase I dos IRDIs (de zero a quatro meses), composta por cinco itens; note-se que todos estavam ausentes na menina, indicando risco psíquico para emergência de uma psicopatologia no futuro (KUPFER et al., 2010KUPFER, M. C. et al. Predictive value of clinical risk indicators in child development: final results of a study based on psychoanalytic theory. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 31-52, 2010.): 1 - quando a criança chora ou grita, a mãe sabe o que ela quer; 2 - a mãe fala com a criança num estilo particularmente dirigido a ela (manhês); 3 - a criança reage ao manhês; 4 - a mãe propõe algo à criança e aguarda a sua reação; 5 - há trocas de olhares entre a criança e a mãe. Cabe ressaltar que os itens 3 e 5 estavam ausentes quando a mãe intervinha, mas presentes quando a bebê foi contatado pelos examinadores.

Já os sinais PREAUT, aplicados quando a menina estava com cinco meses e dois dias de idade corrigida, também foram preocupantes. A menina não respondeu a nenhum dos itens da primeira parte do questionário, que se pode sintetizar na ausência de resposta ao examinador ou à mãe, quando pergunta: O bebê procura olhar para você espontaneamente ou quando estimulado? e O bebê procura se fazer olhar por sua mãe tanto na ausência da solicitação da mãe quanto quando ela fala com ele? Como determina o uso dos sinais PREAUT, quando o escore da primeira parte do questionário for inferior a 5, é necessário aplicar a segunda parte. Em sua aplicação, a menina só respondeu ao subitem A do item 4 - Depois de ser estimulado por sua mãe (ou pelo seu substituto); A - Ele olha para sua mãe (ou para seu substituto). Nos outros itens, ela não respondeu, ou seja, não olhava espontaneamente para a mãe, não sorria para a mãe, estabelecendo contato depois de estimulada, como aconteceu no item 4 quando a pesquisadora (substituta) provocou o contato. Contudo, pode-se dizer que T. não se oferecia para uma troca prazerosa com a mãe, o que indicava risco pelos sinais PREAUT.

Além disso, embora os marcos motores tivessem sido atingidos (pontuação de 100% no Denver II, aos cinco meses e dois dias de idade corrigida), observou-se que havia uma inibição psicomotora, pois T., nas filmagens da coleta da pesquisa deste período, não esboçava movimentos diante da oferta de brinquedo pela mãe. Identificava-se que a menina mantinha um padrão motor pouco ativo, com um olhar constante nos brinquedos oferecidos pela mãe. Esta mantinha um padrão de diálogo que não estimulava a menina a interagir. Isso fez com que a equipe de pesquisa a encaminhasse para tratamento em intervenção precoce (IP).

Somente quando a menina tinha 12 meses e 20 dias de idade corrigida, foi que a terapeuta ocupacional iniciou atendimento em IP. Até então T. estava sendo tratada pela fisioterapia no mesmo ambulatório de reabilitação por dois meses, em função de alteração no protocolo Alberta, realizado no setor de seguimento de prematuros, no Hospital Universitário da mesma instituição. Quando a fisioterapeuta encaminhou a menina para a terapeuta ocupacional, a avaliação era de pouca evolução, devido à pouca colaboração da menina e da mãe.

3.2 Da avaliação à produção da HFP

No primeiro contato com a terapeuta ocupacional, a mãe dizia saber que a filha estava atrasada no caminhar. Referia que T. não engatinhava e chorava se ficasse de barriga para baixo. Não conseguia levantar sozinha: “do jeito que cai fica” (SIC da mãe). Dizia que esperava que a menina caminhasse. Relatava também que a menina só se alimentava com alimentos pastosos, que se engasgava se houvesse pedacinhos de carne. Que a menina era esperta e atenta. Sabia descrever o que ela gostava e não gostava.

Durante esta conversa, a menina manipulou os brinquedos disponibilizados no tatame da sala de atendimento e não interagiu. Somente quando a terapeuta voltou sua atenção para T., é que houve contato. Para isso, a terapeuta passou a falar com ela sobre o nome, a função e o que cada brinquedo que a menina explorava poderia fazer, buscando uma aproximação. Até que um dos brinquedos que T. manipulava bateu em um brinquedo musical, que começou a tocar. A terapeuta fez expressão de surpresa e curiosidade, fisgando a atenção da menina. T. passou a apertar o botão da música toda a vez que parava de tocar e balançava o corpo sorrindo e olhando a terapeuta dançar. Esta foi a cena que deu início à construção da relação terapêutica entre as duas. Durante este tempo, a mãe só observava e esboçava um sorriso tímido.

Desta brincadeira e de outras que se seguiram ‒ como manipular brinquedos grandes e pequenos, pegar e soltar, trocar o brinquedo de uma mão para outra, pegar um brinquedo em cada mão ‒, foi possível observar que a menina possuía construções importantes com relação a alguns elementos de EC, como pinça, lateralidade, espaço, tempo e ritmo.

Também indicava curiosidade e iniciativa, na medida em que explorava cada um dos brinquedos. O fato de, depois de um tempo de exploração, a menina compreender a função de cada um, anunciava a possibilidade de boas condições intelectuais. Possuía noção do movimento (trajetória de objeto) em relação ao ambiente e a ela; noção de causalidade, podendo antecipar tanto os movimentos provocados pelos brinquedos quanto pela terapeuta. A menina utilizava meios para alcançar seus objetivos ‒ conceitos piagetianos que situam a construção de sua inteligência.

A escolha de um brinquedo que pudesse “dançar” e o retorno constante a este anunciavam uma inserção na cultura e um reconhecimento de que, aos olhos dos adultos que estavam ali, isso agradava (mais à terapeuta que à mãe). Tratava-se, da construção de uma IC, ainda muito incipiente para a terapeuta supor o lugar de T. (função de filho) na relação, porém já era possível minimizar a impressão transmitida na filmagem da coleta da pesquisa, de que a menina mantinha um interesse nos objetos e possuía um corpo sem muita expressão.

O contato da menina com a mãe acontecia quando T. não conseguia movimentar-se ou deslocar-se no tatame. Então reclamava em uma expressão de choro e jogava seu corpo em direção à mãe, que logo compreendia que era necessário pegá-la de forma acolhedora. No colo, nem a menina nem a mãe trocavam olhares. Mas a menina abraçava a mãe, que sorria sem emoção.

Neste atendimento, a mãe falou muito com a terapeuta sobre outros atendimentos, sobre a questão motora e sobre a sequência do tratamento, pois a mãe queria voltar a trabalhar. Compreendia-se, minimamente, nesta primeira avaliação, que a menina reconhecia aquela mulher como sua mãe (função de mãe), a qual, por sua vez, oferecia o colo seguro para a filha. Esta constatação seguiu ancorando a percepção de que a menina compreendia ser alguém fora do corpo materno. Ela era uma e a mãe era outra. Isto, pela via da psicomotricidade, situa a construção de um EC da criança fora do corpo da mãe. E, quando T. procurava a mãe para socorrê-la, também anunciava um processo em que a menina identificava e compreendia uma das funções de sua mãe: protegê-la em um colo seguro. Este reconhecimento, que está na ordem de um afeto, é, para a psicomotricidade, o campo em que se está constituindo a IC. Quando T. encontra seu limite, a mãe lhe dá sustento acolhendo o corpo no colo (EC), mas também acolhe a angústia do não fazer (IC). Isso situava o caminho da constituição psíquica que a menina estava construindo na relação com sua mãe e é o caminho para uma HFP.

A cena transcrita a seguir dá um anúncio do caminho da menina na construção de seu EC e sua IC, que, à luz desta pesquisa, anuncia a relação entre os aparatos biológico (desenvolvimento considerando a prematuridade), cognitivo (experiências) e psíquicos (relação mãe-bebê).

Cena 1 ‒ trocando olhares pelo espelho

Sentada no tatame, em frente a um espelho, junto com a mãe e a terapeuta, a menina tenta pegar um brinquedo que está longe. Antes que desista, a terapeuta diz que ela pode pegar engatinhando e a convida para fazê-lo, ficando na posição. A menina dirige as mãos para frente de suas pernas apoiando-se no tatame, dando a entender que estava disposta a tentar. Na análise da cena, foi possível perceber que a menina possuía mais tolerância a ficar em decúbito ventral do que supunha a mãe, possibilitando que ela visse no espelho seu reflexo na posição. Desse encontro consigo mesma no espelho, a menina balbuciou: “haaaa”, como um canto. Buscou a imagem da mãe do espelho e da mãe real (fora do espelho). A mãe, respondendo ao pedido da terapeuta ‒ e não ao olhar da filha que a havia visto no espelho ‒, abanou com a mão para a menina, mantendo seu olhar tímido. T. vibrou com encontro, dizendo “heee”. Em seguida, a menina voltou à posição sentada, pegou outro brinquedo e passou a brincar sozinha novamente.

Depois da insistência da terapeuta em não saber o que T. queria, a menina passou a pedir apontando o dedo e fazendo “tetete”. A mãe dizia que ela fazia este som para tudo que queria. Esta convocação do outro pela menina, quando precisava, indicava que ela sabia que o outro estava ali, porém preferia experiências solitárias. Mas, quando a cena exigia controle motor, ela se incomodava, pois não tinha e, frustrada, jogava-se para a mãe choramingando. Ali ela encontrava o que precisava: “acolhimento corporal”.

Já quando T. ficou em pé no chão, foi possível identificar rapidamente de que forma a menina organizava-se para deslocar-se: era segurada pelos dois braços pela mãe, de uma forma que estes ficavam acima e atrás da cabeça. A menina não via seus braços durante a marcha. Caminhava com seus membros inferiores (MsIs) para frente, deslocados do tronco e membros superiores (MsSs), que ficavam para trás, aparentando uma hiperflexibilidade escapular. Ela subia em uma cadeira tocando com a ponta dos pés, enquanto que, na verdade, sua mãe é que a sustentava pelos braços desaparecidos e fazia toda a força e manutenção do corpo no eixo necessário; ou seja, a menina também não precisava equilibrar-se, pois sua mãe a segurava para que não caísse. Quando a terapeuta assumiu o lugar da mãe na condução para a marcha, a menina manteve o mesmo padrão motor. Identificava-se, neste momento, que os conceitos de EC e IC estavam comprometidos para a produção de uma marcha. Não se tratava de supor algo orgânico, mas sim algo que poderia ter sido armado entre a forma como a mãe cuidava e a forma como a menina se colocava a ser cuidada, durante os deslocamentos.

Identificava-se um eixo para a produção de uma HFP.

Existia algo na forma como as duas (mãe e filha) tomavam a sustentação do corpo da menina que a impedia de posicionar-se para a produção de experiências de força, equilíbrio e destreza nos movimentos sem que tivesse o auxílio da mãe, ou de outro.

Porém, foi, nos últimos minutos desta sessão, que a mãe contou algo muito importante. Ela havia perdido um bebê, menino, de 24 semanas de gestação. Isso foi muito sofrido para ela e seu esposo. Após nove meses da morte do primeiro filho, a mãe engravidou novamente. Diz que “Eu engravidei por mim. Eu estava triste porque eu achava que não ia engravidar de novo, e engravidei”. Desta nova gravidez, nasceu T., também prematura. Ficou aproximadamente dois meses na UTIN e, segundo relato da mãe, “foi um tempo sofrido”. Seguido dessa informação, a mãe relata ter um sobrinho que foi prematuro, atualmente com 15 anos e estudando em uma Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE).

Conhecendo esta história, parecia ser óbvio que o silêncio da mãe se tratava de uma tristeza pelo luto do primeiro filho e pelas incertezas com relação ao futuro da menina, pela prematuridade. Já do lado da menina, identificava-se que possuía repertório psíquico, cognitivo e potencial motor adequado à idade. A questão era o quanto ela estava disposta a colocar sua estrutura como instrumento a fazer e para quem fazer.

No segundo encontro, uma semana depois do primeiro, a mãe relatou que a menina ensaiou alguns deslocamentos, engatinhando com apoio em mãos e joelho. Durante a conversa, tentando abrir um caminho para retomar a história da perda do primeiro bebê, que se supunha contaminar o investimento na menina, a terapeuta perguntou à mãe como ela se sentia em ter de levar a filha à terapia. A mãe respondeu: “Estou bem. Psicologicamente, bem”.

Com a menina, percebia-se que estava arriscando mais nas mudanças de postura, de deitada para sentada, mas que continuava incomodando-se com as impossibilidades e recorrendo à mãe, como socorro.

Quanto às questões relativas à construção de conceitos psicomotores, o destaque é que a menina estava muito feliz, compartilhando a brincadeira com a terapeuta, focada no jogo, colocando seu esquema corporal à disposição para brincar. Mostrava-se muito concentrada na relação armada com a terapeuta, mas não com a mãe. Isso apontava para seu lugar de interlocutora e na construção de sua IC tanto quando brincava com a terapeuta como quando não compartilhava nada com a mãe. Era possível supor que T. sabia que não conseguiria manter os momentos prazerosos que a brincadeira produzia se acessasse a mãe, pois ela não sustentava. A menina ainda encontrava uma mãe preocupada e triste.

Antes do anúncio da HFP, apresenta-se, a seguir, na Tabela 1, a cena que reuniu informações suficientes para a produção da HFP.

Tabela 1
Cena 2 - Repartindo a bolacha.

Cena 2 ‒ Repartindo a bolacha

A menina estava em pé, no chão da sala do ambulatório, apoiada nas pernas da mãe, que estava sentada no tatame. A terapeuta estava em frente das duas, sentada no chão. T. pegou um pote com bolachas da mãe e começou a comê-las. A tabela abaixo descreve o silêncio da mãe frente à tentativa da filha de fazer contato e o esforço da terapeuta em sustentar a tentativa da menina e servir de espelho para a mãe.

3.3 A Hipótese de Funcionamento Psicomotor para a menina T.

Os dois dias de avaliação, relacionados com a filmagem dos cinco meses e os resultados dos protocolos IRDIs e Sinais PREAUT, já anunciavam questões importantes para pensar-se uma HFP para a menina.

Uma mãe silenciosa, amorosa, mas triste e preocupada, pela perda do primeiro filho, diminuía as experiências da filha em relacionar-se com seu próprio corpo e com o ambiente. Porém, a menina possuía potencial pessoal para encontrar em si e nos outros o recurso necessário para seguir desenvolvendo-se quando lhe ofereciam oportunidade para tal.

A questão é que já estava instituída para a menina e para a mãe uma maneira de se relacionarem e isso aparece mais explicitamente na forma como organizam a marcha (diálogo-tônico) e no nível de diálogo (discurso enunciativo) armado entre as duas. Cabia então deslocar aquela “forma-gesto de caminhar” (sintoma) para outra, que a deixasse mais independente (sinthoma), e ajudar a mãe a encontrar prazer nas interlocuções com a filha. O caminho não seria pelo treinamento de marcha e pela orientação sobre como ouvir e falar, mas sim de qualificar o encontro entre filha e mãe, principalmente no momento da marcha, queixa principal da mãe. Que se passasse da condição de cuidado à produção de um fazer: deslocar-se com independência. Para isso, a menina precisava haver-se com seu corpo. Era necessário que ela fosse mais ativa nos seus cuidados ‒ para não cair, desequilibrar, para levantar ‒ e que, para sustentar isso, era necessário que a mãe anunciasse o que estava acontecendo, assumindo um modo menos silencioso e encontrando outras formas de interagir com a filha. As observações reunidas ao longo deste período de avaliação produziram a seguinte Hipótese de Funcionamento Psicomotor:

O sintoma motor é um anúncio da necessidade da menina de que a mãe exista, que invista. Quando a menina cai, ou quando não faz, ela encontra a mãe. E do lado da mãe, é neste lugar de cuidadora do corpo que ela se identifica com sua função de mãe. Era preciso que o corpo falhasse para ter acesso à mãe.

A questão é que esta “falha” de um aspecto do desenvolvimento mantinha a mãe na posição inicial (primeiro significante materno para a filha) de tristeza e preocupação, que tem sua origem no sofrimento vivido durante a vida e a morte do primeiro filho, e na perspectiva de futuro da filha. O silêncio da mãe é alimentado, quando a menina falha. Outro raciocínio clínico também pode se dar supondo que o desejo de colocar a filha em uma cadeia discursiva, tanto do gesto quanto de um funcionamento de linguagem, é bloqueado com a identificação do não fazer da menina, como uma sequela da prematuridade que já havia causado um grande mal.

A mudança de postura da criança, tanto motora quanto relacional, já visível na segunda sessão, fez com que a terapeuta apostasse na possibilidade de que, à medida que a menina avançasse em algumas aquisições, a mãe passasse a investir mais na filha. É um espaço importante na clínica em intervenção precoce, em que, muitas vezes, a terapeuta não consegue acessar interpretativamente as angústias maternas e ajudar a mãe a recalcá-las. Em alguns casos, se aposta que o desejo de maternagem seja maior que a tristeza da perda e que, em seu tempo, cada um destes sentimentos estará em lugares distintos do inconsciente.

E também que, para a menina, suas novas aquisições poderiam ajudá-la a colocar-se mais ativamente nas construções relacionais com outras pessoas além da mãe, na busca por experiências que também a desenvolvessem (pai, tios, primos da mesma idade).

Os instrumentos (EC e suas habilidades), se aprimorados, poderiam oferecer à menina uma mudança de posição com relação aos outros (sua IC passava da condição de dependente para independente e ainda mais provocadora do desejo do outro), podendo demonstrar para a mãe que ela era diferente do bebê que faleceu e do sobrinho com déficit cognitivo.

3.4 A Hipótese de Funcionamento Psicomotor como caminho clínico

Na quarta sessão, a terapeuta apresentou para a mãe sua HFP. A forma encontrada pela terapeuta para anunciar a condição da menina deu-se por dois eixos: o primeiro, afirmando e demonstrando para a mãe o potencial cognitivo da menina, seu interesse e sua criatividade; o segundo, mais focado para o desenvolvimento da marcha (queixa da mãe). A terapeuta afirmava que a dependência motora da menina estava associada à forma como elas se relacionavam e foi contando para a mãe que a menina havia descoberto uma forma de deslocar-se com segurança e agilidade, mas que quem fazia todo o “serviço” era a mãe.

A terapeuta foi relatando para a mãe que era preciso contar para a menina o que podia acontecer se ela continuasse não se cuidando ou se jogando: ela cairia. A mãe foi orientada a deixar que a menina tivesse a experiência de cair, com cuidado e proteção, para que também experimentasse se levantar, se equilibrar, para compreender que poderia caminhar sozinha, pois não havia nenhum componente motor que a impedisse.

Já para a menina, a terapeuta contou que ela estava “muito passada com a mãe”. Que se aproveita da bondade amorosa da mãe e que não estava nem aí se ia cair ou não: “Claro, a mamãe está aí para te segurar!”.

3.5 A Evolução de T.

Na sessão seguinte, a quinta sessão, T. chegou caminhando conduzida pela mãe por uma mão somente. No deslocamento até a sala de atendimento, engatinhou, levantou-se e, buscando apoio nos móveis, deslocou-se sozinha. Ao final deste atendimento, a menina dava seus primeiros passos sozinha e a mãe relatava estar bastante impressionada com a resposta rápida da filha ao tratamento. Balbuciava comunicando-se: “tatata, bababa”, “ai, ai, ai”, quando se machucava. Mãe relatava que a filha gostava de brincar com as panelas da casa, mexendo nos armários enquanto ela cozinhava: “Está uma espertinha”, diz a mãe com um sorriso de satisfação no rosto. A cena 3, transcrita na Tabela 2, ilustra o processo por que estão passando, mãe e filha.

Tabela 2
Cena 3 - O jogo de bola.

Nesta cena 3, aconteceu uma brincadeira entre mãe e filha, sustentada pelo gesto, pelo olhar e pela voz uma da/para outra. A mãe se autorizava a acreditar nas possibilidades da filha e se diverte com isso. T., a cada novo fazer, alimentava a mãe e a encontrava diferente. Isso provocava a menina a seguir com suas conquistas.

Esta cena e outras, em que a menina brincava de mamãe, dando comida e dividindo os cuidados com a mãe, demonstravam um percurso construído pela menina de uma cadeia simbólica, inserida na cultura familiar. Os gestos destas brincadeiras anunciavam os papéis os quais T. estava reconhecendo como dos adultos, dos quais podia se valer, e, nesta evolução, considerava-se que a mãe estava engajada também. Tratava-se, ali, de supor uma hipótese de IC espelhada na mãe, da qual a menina estava se valendo para aproximar-se dela.

Estes acontecimentos afirmavam que a menina estava ampliando seu repertório instrumental, dimensionado pelos elementos conceituais do EC.

Na perspectiva de uma terapeuta ocupacional, a brincadeira de experienciar as atividades de uma mãe alimentando e ninando sua filha anunciava o reconhecimento de um dia a dia, um cotidiano, que colocava a menina na condição de se fazer sujeito em suas atividades (PERUZZOLO; SOUZA, 2017PERUZZOLO, D. L.; SOUZA, A. P. R. Uma hipótese de funcionamento psicomotor como estratégia clínica para o tratamento de bebês em intervenção precoce. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, São Carlos, v. 25, n. 2, p. 427-434, 2017.).

T. construía um repertório cognitivo adequado à idade cronológica, utilizando conceitos e estratégias, desde os relacionados aos objetos quanto também às suas funções, à intencionalidade, à causalidade e aos efeitos que podem provocar, tanto sobre estes quanto sobre as pessoas e o ambiente. As produções espontâneas na criação de brincadeiras da menina como protagonista a deixavam, sob os olhos da mãe, na condição de quem estava superando as dificuldades advindas da prematuridade. Apesar do jeito tímido da mãe, ela já sustentava o brincar da filha, sem necessitar do auxílio da terapeuta. Junto a isso, T. passava a alimentar-se com a mesma comida dos pais e à mesa, junto com eles.

Outro destaque evidente foi o funcionamento de linguagem. Segundo interconsulta com fonoaudióloga do caso, a menina havia assumido um lugar de interlocução, passando a utilizar os primeiros mecanismos enunciativos (relativos à conjunção e disjunção do eu-tu), e, em seguida, já ampliava semanticamente seu repertório na língua, com onomatopeias (tototo) e protopalavras (mamama), bem como interjeições, que anunciavam que, em breve, poderia emergir o segundo mecanismo enunciativo.

3.6 O final do tratamento

Na entrevista de encerramento do tratamento, a mãe retomou sua história e a dos filhos, colocando a menina na condição de alguém que passou por problemas de saúde, mas que já havia superado. Narrou as façanhas da filha, divertindo-se a cada episódio. Contava que o pai e a filha se divertiam muito, mas era mais obediente com ele e que a filha “sabe direitinho” (SIC da mãe) quando está fazendo algo de errado.

Neste período, a menina recebeu alta, com indicação de seguir com o acompanhamento no Programa de Seguimento de Prematuros do hospital de referência, no qual a menina já fazia acompanhamento.

4. Discussão Clínica sobre o Caso Apresentado

Para a clínica psicomotora, a defesa de que o “corpo dá-se a ver” (LEVIN, 2011LEVIN, E. A clínica psicomotora: o corpo na linguagem. Petrópolis: Vozes, 2011.) ‒ e o que se mostra é da ordem do que angustia a criança ‒ vem ao encontro do que se deu entre a menina e sua mãe.

É possível considerar que T., com muita sensibilidade na identificação do rosto e da voz materna (LAZNIK, 2013LAZNIK, M. C. A voz da sereia: o autismo e os impasses na constituição do sujeito. Salvador: Ágalma, 2013.), percebeu que não a teria de outra forma se não pelo cuidado do corpo. Onde o corpo falhava, era onde encontrava a mãe.

Por parte da mãe, considerando o medo dos efeitos da prematuridade, que culminou na morte do primeiro bebê e nas sequelas do sobrinho, somado a um estilo pessoal de poucas palavras, esta conseguia reconhecer a filha sob a ótica do que a mesma não conseguia fazer.

Tratava-se, considerando um raciocínio psicomotor (LEVIN, 2011LEVIN, E. A clínica psicomotora: o corpo na linguagem. Petrópolis: Vozes, 2011.; PERUZZOLO et al., 2015PERUZZOLO, D. L. et al. Contribuições à clínica da Terapia Ocupacional na área da intervenção precoce em equipe interdisciplinar. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, São Carlos, v. 23, n. 2, p. 295-303, 2015.), de um bom aparato biológico e cognitivo, que ofereceu à menina condições de assimilar do meio (que incluiu a mãe, o pai e demais parentes com quem convivia) conceitos importantes para a construção dos elementos do EC. Ela conhecia, utilizava e inclusive não utilizava seu corpo para marcar seu lugar na relação com sua mãe.

Apesar de, já nas duas primeiras sessões, a menina demonstrar, por meio do brincar e dos jogos que construiu, que estava constituindo-se psiquicamente em uma estrutura simbólica de distinção entre ela e a mãe, sua IC estava colada à angústia materna. E seu corpo era o registro e a garantia de que se ali havia um encontro, e este gesto persistiria.

Esta posição psíquica da criança é muito importante para o terapeuta, em intervenção precoce. Para isso, as interconsultas com o profissional do campo da psicologia são fundamentais (BORTAGARAI; PERUZZOLO; SOUZA, 2015BORTAGARAI, F.; PERUZZOLO, D. L.; SOUZA, A. P. R. A interconsulta como dispositivo interdisciplinar em um grupo de intervenção precoce. Distúrbios da Comunicação, São Paulo, v. 27, n. 2, p. 392-400, 2015.), pois ajudam a conduzir o atendimento que tem, por foco principal, o bebê, mas que está sob os efeitos de angústias e expectativas familiares.

Para a clínica com bebês ou crianças, cuja estrutura psíquica ainda está se constituindo, este gesto é o anúncio de uma possível posição a ser assumida na cadeia de significantes, sua matriz simbólica (JERUSALINSKY, 2011JERUSALINSKY, A. Para compreender a criança: chaves psicanalíticas. São Paulo: Instituto Langage, 2011.). Um gesto que busca identificar-se com seu cuidador. A questão é que, por vezes, essa identificação é construída a partir dos fantasmas familiares. O sintoma psicomotor é um movimento assumido pelo bebê para manter a atenção dos pais, já que, por outras vias, como uma identificação de traços herdados (sinthoma), não é o suficiente.

Por isso, a condição de que para cada sujeito haverá uma Hipótese de Funcionamento Psicomotor (PERUZZOLO; SOUZA, 2017PERUZZOLO, D. L.; SOUZA, A. P. R. Uma hipótese de funcionamento psicomotor como estratégia clínica para o tratamento de bebês em intervenção precoce. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, São Carlos, v. 25, n. 2, p. 427-434, 2017.) e não uma avaliação psicomotora, pois, para cada sujeito, o que seu corpo diz, o que seu gesto põe a ver como linguagem na forma de um diálogo tônico, é sua matriz constitutiva (JERUSALINSKY, 2011JERUSALINSKY, A. Para compreender a criança: chaves psicanalíticas. São Paulo: Instituto Langage, 2011.), construída a partir da forma como o bebê compreende precisar ser e fazer para produzir o encontro que o sustenta em uma posição de filho.

Mas este “diálogo tônico-emocional” (WALLON, 2007WALLON, H. A evolução psicológica da criança. São Paulo: Martins Fontes, 2007.) também é mediatizado pelo modo como o bebê é sustentado pela mãe. Este significado construído pelos pais, atribuído ao movimento do bebê, e a passagem desse ato motor a gesto intencional são compreendidos como um ato dialético, porque os transforma a cada nova interpelação.

O interessante deste caso é que, mesmo compreendendo-se que é da mãe que vinha a informação de tristeza, não foi sobre ela, diretamente, que a terapeuta interveio.

A questão, para esta clínica, é pensar qual sintoma está em evidência na relação mãe-bebê-pai. Muito rapidamente, os pais necessitam enfrentar o luto do filho desejado, que veio diferente e, também, o luto de não serem os pais que esperavam ser.

Já, ao contrário, a prematuridade (o período de internação e primeiros cuidados), considerando que a maioria das UTINs, em serviços públicos, ainda não possui assistência humanizada, põe os pais à espera do momento de exercer suas funções na íntegra. Esta quebra narcísica em ter um filho deficiente, ou com diagnóstico de atraso no desenvolvimento, ou sofrendo as consequências da prematuridade, recoloca, na família, os objetivos para os quais ele foi gerado: função de filho (LEVIN, 2001LEVIN, E. A função do filho: espelho e labirintos da infância. Petrópolis: Vozes, 2001.).

A intervenção precoce, pautada por um terapeuta ocupacional, retoma as produções (LIMA; PASTORE; OKUMA, 2011LIMA, E. M. F. A.; PASTORE, M. N.; OKUMA, D. G. As Atividades no Campo da Terapia Ocupacional: mapeamento da produção científica dos terapeutas ocupacionais brasileiros de 1990 a 2008. Revista de Terapia Ocupacional da USP, São Paulo, v. 22, n. 1, p. 68-75, 2011.) familiares, que poderão estar envolvidas em um sintoma ou em angústias familiares, que dificultarão ainda mais o desenvolvimento do filho. Para Lima, Okuma e Pastore (2013LIMA, E. M. F. A.; OKUMA, D. G.; PASTORE, M. N. Atividade, ação, fazer e ocupação: a discussão dos termos na Terapia Ocupacional brasileira. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, São Carlos, v. 21, n. 2, p. 243-54, 2013. http://dx.doi.org/10.4322/cto.2013.026.
http://dx.doi.org/10.4322/cto.2013.026...
), a condição de um sujeito estar integrado em sua atividade implica compreender-se em sua condição material, simbólica e relacional como tal.

No caso clínico apresentado, quando a HFP foi construída, foi indicando um caminho em que, quando a menina deixasse de falhar (gesto motor), ela poderia alimentar a mãe do desejo de ser mãe, o qual estava em suspenso pela tristeza e pelo medo, tanto pela perda do primeiro filho quanto dos possíveis problemas advindos da prematuridade da segunda filha.

Sabia-se, pelos resultados da avaliação, que a menina possuía todas as condições necessárias para sair desse lugar, mas que precisava de outro tipo de investimento: ser convocada a fazer (brincar, dançar, jogar, sentar, engatinhar, caminhar) e, com isso, ser banhada de significantes que a descolassem dos efeitos dos acontecimentos vividos.

A formulação da HFP permitiu ‒ ao contrário de uma proposta puramente instrumental, em que se trabalharia a aquisição da marcha ‒ supor estratégias para que o encontro entre mãe e filha se desse em outros termos e que o sintoma psicomotor fosse superado, antes de sua cristalização.

Por fim, cabe um comentário sobre os protocolos utilizados nas avaliações da coleta da pesquisa e a contribuição para o encaminhamento precoce do bebê. Mostra-se importante observar que a avaliação do serviço de seguimento de prematuros do hospital universitário levou a menina a ser encaminhada para o setor de fisioterapia, pois o protocolo Alberta, utilizado no serviço, analisa o motor de modo objetivo, o que permitiu detectar o atraso específico de marcha. No entanto, ao mesmo tempo, já aos três meses e vinte e seis dias e aos cinco meses e dois dias, os IRDIs e sinais PREAUT, respectivamente, identificaram que havia algo que não estava bem na relação entre a mãe e a filha. Neste caso em especial, o tratamento fisioterápico não produzia resultados, como relatado anteriormente. Mas foi o tratamento clínico pautado por meio da formulação de uma HFP que permitiu identificar a origem do sintoma, elaborar um caminho clínico a ser tomado para tratamento e produzir os efeitos no desenvolvimento da menina, bem como permitiu também na reestruturação dos laços afetivos entre a mãe e filha.

Também permitiu confirmar a preocupação constante das pesquisadoras que produziram os protocolos IRDIs (KUPFER et al., 2010KUPFER, M. C. et al. Predictive value of clinical risk indicators in child development: final results of a study based on psychoanalytic theory. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 31-52, 2010.) e PREAUT (LAZNIK, 2013LAZNIK, M. C. A voz da sereia: o autismo e os impasses na constituição do sujeito. Salvador: Ágalma, 2013.) quanto à necessidade de tomar os resultados destes protocolos como um anúncio de “risco psíquico” e não como um diagnóstico para autismo. No caso clínico exposto, não se tratava de risco para autismo (LAZNIK, 2013), mesmo considerando que a menina pouco interagia com os outros, mas de uma defesa na forma de inibição psicomotora que, se não tratada ou se tratada como uma questão puramente motora, poderia seguir produzindo um afastamento cada vez maior entre mãe e filha.

5. Considerações Finais

Este estudo de caso demonstra que o atendimento clínico para bebês demanda uma imbricação entre a produção do conhecimento corporal e suas funções (EC), e a constituição psíquica e seu funcionamento (IC), pois tal imbricação está diretamente relacionada à evolução humana. A intervenção precoce em bebês deve produzir efeitos amplos em todos os aspectos evolutivos e não direcionados a somente um aspecto do desenvolvimento. Para esta pesquisa, utilizando-se a perspectiva de uma Hipótese de Funcionamento Psicomotor, propôs-se considerar o bebê como um sujeito que utiliza seus recursos para produzir relações sociais. Suas habilidades, na forma de um gesto, são utilizadas para produzir um encontro com seus pais. Mas, quando este gesto não é tão habilidoso, pode ser tomado como um obstáculo que dificulta ao bebê e aos seus pais construírem seus fazeres (função de filho e função de pais). Por isso, a questão não é de investir em tratamentos com foco no motor ‒ para deambular, por exemplo ‒, mas de propor estratégias em que andar faça sentido, a partir da possibilidade de endereçamento dessa ação à mãe, ao pai e a outros. Como efeito, T. evoluiu no caminhar, na cognição, na linguagem, mas o tratamento se deu no reencontro entre uma mãe e um pai, dispostos a reconhecer as aquisições da filha e considerar que o passado não produziria mais os efeitos catastróficos até então vividos, e que, com isso, o futuro estava em aberto.

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  • Fonte de Financiamento

    CNPq - Bolsa de Produtividade em Pesquisa do último autor.

Notas

  • 1
    Este estudo faz parte da pesquisa “Análise Comparativa do Desenvolvimento de Bebês Prematuros e a Termo e sua Relação com Risco Psíquico: da detecção à intervenção” aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob parecer número 652.722. Os responsáveis tiveram esclarecimento dos objetivos e procedimentos, e manifestaram a concordância em participar da pesquisa a partir da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2018

Histórico

  • Recebido
    16 Maio 2017
  • Revisado
    20 Fev 2018
  • Aceito
    04 Maio 2018
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