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Avaliação da funcionalidade em crianças de 4-6 anos apresentando toxoplasmose congênita e retinocoroidite1 1 Este artigo é parte integrante da Dissertação de Mestrado de Aline de Oliveira Brandão no Programa de Pós-graduação em Saúde da Criança e do Adolescente da Universidade Federal de Minas Gerais. Todos os procedimentos éticos foram cumpridos. Projeto aprovado COEP-UFMG nº CAAE 0540.0.203.000.11

Resumo

Introdução:

No Brasil, a toxoplasmose congênita (TC) é a principal causa de deficiência visual na infância. É causa de retinocoroidite, que pode levar à cegueira. Minas Gerais apresenta prevalência de um neonato com TC para cada 770 nascidos vivos.

Objetivo:

Avaliar funcionalidade visual e tarefas do autocuidado de crianças com TC classificadas em grupos de acordo com a acuidade visual.

Método:

Estudo transversal com 96 pré-escolares com TC. Realizado exame oftalmológico e avaliada a funcionalidade por dois instrumentos: O teste Avaliação da Visão Funcional (AVIF-2 a 6 anos) e Inventário de Avaliação Pediátrica de Incapacidade (PEDI-versão brasileira).

Resultados:

As crianças foram classificadas em três grupos conforme a acuidade visual: perda visual moderada/grave (n=16), perda leve (n=39) e visão normal (n=41). Houve diferença significativa no escore total do AVIF-2 a 6 anos entre os três grupos (p=0,001), e entre os grupos com perda visual moderada/grave e visão normal (p<0,0001). Os escores do domínio seguimento visual apresentaram pior resultado (p=0,022). O teste PEDI não mostrou diferença significativa entre os grupos. Não houve correlação entre os escores dos testes aplicados.

Conclusão:

Crianças com TC e perda visual moderada/grave apresentaram comprometimento da funcionalidade visual com maior prejuízo no seguimento visual. O teste AVIF-2 a 6 anos demonstrou esse comprometimento entre os grupos com diferentes acuidades visuais. O teste PEDI (autocuidado) não mostrou diferença estatística significativa dos escores entre os grupos. O teste AVIF- 2 a 6 anos pode contribuir para intervenção mais objetiva na habilitação visual de crianças com TC e baixa visão.

Palavras-chave:
Toxoplasmose Congênita; Avaliação; Baixa Visão; Funcionalidade; Testes

Abstract

Introduction:

In Brazil, congenital toxoplasmosis (CT) is the main cause of visual impairment in childhood. It causes retinochoroiditis, which should lead to blindness. Minas Gerais has a prevalence of 1 newborn with congenital toxoplasmosis for every 770 live births.

Objective:

To evaluate visual functionality and tasks of self-care with TC classified in groups according to a visual acuity.

Method:

A cross-sectional study with 96 preschoolers with CT. Ophthalmologic examination and assessment of some functionalities were performed: The Functional Vision Evaluation (AVIF-2 at 6 years) and the Pediatric Disability Assessment Inventory (PEDI-Brazilian version).

Results:

Children were classified into three groups according to visual acuity: moderate / severe visual loss (n=16), low level (n=39) and normal vision (n=41). The chance of difference is not greater than AVIF-2 at 6 years among the three groups (p=0.001), being (p <0.0001) between the groups with moderate/severe visual and normal vision. The domain scores are displayed as the end result (p=0.022). The test PEDI is not able to make a difference between the groups. It is not different between the scores of the tests carried out.

Conclusion:

Children with CT without moderate / severe visual impairment, compromising visual functionality with greater impairment without visual accompaniment. The AVIF-2 at 6 years test demonstrated the impairment between groups with different visual acuities. The PEDI (self-care) test was not performed with a significant difference in scores between the groups. The AVIF-2 at 6 years test may contribute to the more effective intervention in the visual habilitation of children with CT and low vision.

Keywords:
Congenital Toxoplasmosis; Evaluation; Low Vision; Functionality; Tests

1 Introdução

O Toxoplasma gondii, parasito encontrado em todo o mundo, apresenta prevalência elevada (estimativa de 1 criança por 1000 nascimentos) no Brasil (DUBEY et al., 2012DUBEY, J. P. et al. Toxoplasmosis in humans and animals in Brazil: high prevalence, high burden of disease, and epidemiology. Parasitology, Cambridge, v. 139, n. 11, p. 1375-1424, 2012. http://dx.doi.org/10.1017/S0031182012000765. PMid:22776427.
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). É uma das causas de cegueira evitável em crianças. A retinocoroidite é a manifestação ocular mais característica da toxoplasmose congênita e, quando localizada na mácula, pode comprometer as funções acuidade visual, campo visual e levar à baixa visão, com grande prejuízo na qualidade de vida (PAULA, 2013PAULA, C. H. T. Estudo das características epidemiológicas da deficiência visual dos pacientes matriculados no setor de baixa visão infantil do Hospital São Geraldo - Hospital das Clínicas - Universidade Federal de Minas Gerais. 2013. 101 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Aplicadas à Cirurgia e Oftalmologia) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2013.; SILVA; FURTADO, 2016SILVA, M. S. F.; FURTADO, J. M. Toxoplasmose congênita. In: CARVALHO, K. M. et al. Prevenção da cegueira e deficiência visual na infância. Rio de Janeiro: Cultura Médica, 2016. p. 75-80.).

A Organização Mundial de Saúde, em parceria com a Agência Internacional para a Prevenção da Cegueira criaram a iniciativa global Programa Visão 2020 com objetivo de eliminar a cegueira evitável, o que inclui os casos de toxoplasmose congênita. As ações para alcançar esse objetivo até o ano de 2020 visam tratar as crianças até os 7 anos de idade evitando ambliopia e os prejuízos psicológicos, financeiros e sociais que permeiam a vida da criança e da família (FURTADO; SILVA, 2016SILVA, M. S. F.; FURTADO, J. M. Toxoplasmose congênita. In: CARVALHO, K. M. et al. Prevenção da cegueira e deficiência visual na infância. Rio de Janeiro: Cultura Médica, 2016. p. 75-80.).

A capacidade de localizar objetos em seu campo de visão, a identificação de objetos está intimamente ligada à manutenção de postura, deslocamento no ambiente, segurança e assim participação em diversas atividades. Um déficit visual, como no caso da toxoplasmose congênita pode levar a atrasos nas habilidades funcionais, perceptíveis pelos terapeutas (SILVA; AIROLDI, 2014SILVA, M. R.; AIROLDI, M. J. Influência do familiar na aquisição de habilidades funcionais da criança com deficiência visual. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 36-42, 2014. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2238-6149.v25i1p36-42.
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).

A mácula, responsável pela visão central, quando comprometida pode levar à redução na clareza de detalhes, baixa acuidade visual para longe, além da dificuldade para identificar objetos muito grandes ou muito pequenos como exemplificado em alguns casos (SANTOS; PASSOS; REZENDE, 2007SANTOS, L. C.; PASSOS, J. E. O. S.; REZENDE, A. L. G. Os efeitos da aprendizagem psicomotora no controle das atividades de locomoção sobre obstáculos em crianças com deficiência da visão. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, v. 13, n. 3, p. 365-380, 2007. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-65382007000300005.
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). Isso pode dificultar tarefas como escrita, devido à necessidade de posição compensatória da cabeça para visualizar toda a frase ou desenho, fazer aproximação ao papel, entre outras, com impacto na qualidade de vida da criança. Estudos relacionando o comprometimento macular às atividades especificamente de autocuidado em crianças são escassos. Tibúrcio (2016TIBÚRCIO, J. D. Propriedades psicométricas do children’s visual function questionnaire adaptado para avaliação da qualidade de vida relacionada à visão de crianças com toxoplasmose congênita. 2016. 128 f. Tese (Doutorado em Ciências da Saúde) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016.) estudou uma coorte de crianças com toxoplasmose congênita identificada ao nascimento em Minas Gerais e observou baixa visão em 17,9% (25/140) delas. Nessa população foi aplicado instrumento para avaliar qualidade de vida de modo geral e observado que as crianças com baixa visão apresentaram repercussão significativa em diversas dimensões da qualidade de vida, quando comparadas às crianças com perda visual leve e sem perda visual.

Avaliar e consequentemente relacionar a sequela visual com a função é relevante devido à peculiaridade do impacto que cada disfunção no sistema sensorial visual pode ter sobre habilidades específicas e sobre a participação do indivíduo. Indivíduos com a mesma acuidade visual podem apresentar diferenças no uso da visão funcional, que é o modo como se utiliza a visão remanescente para a realização de tarefas (COLENBRANDER, 2005COLENBRANDER, A. Visual functions and functional vision. International Congress Series, London, v. 1282, p. 482-486, 2005. http://dx.doi.org/10.1016/j.ics.2005.05.002.
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). Pode-se citar como exemplo o fato de uma criança com retinocoroidite macular poder apresentar comprometimento na visão de detalhes e já uma com catarata congênita poder apresentar redução da capacidade de visão de cores (CAVALCANTE, 1995CAVALCANTE, A. M. M. Educação visual: atuação na pré-escola. Benjamin Constant, Rio de Janeiro, n. 1, p. 1-24, 1995.).

Considerando-se o raciocínio de que a lesão da estrutura anatômica está associada ao comprometimento da função e repercussão no desenvolvimento das habilidades necessárias para participação do indivíduo nas atividades cotidianas, a terapia ocupacional propõe avaliações da funcionalidade e intervenções que possibilitem a participação do indivíduo em suas ocupações. Em relação à funcionalidade visual, em 1998, a Associação Americana de Terapia Ocupacional - AOTA desenvolveu um guia prático para a reabilitação de adultos com baixa visão e, em 2006, passou a conceder uma certificação para os profissionais que cumprissem os pré-requisitos de experiência nessa área (SCHEIMAN; SCHEIMAN; WHITTAKER, 2007SCHEIMAN, M.; SCHEIMAN, M.; WHITTAKER, S. G. Low vision rehabilitation: a practical guide of occupational therapists. New Jersey: Slack Incorporated, 2007.). No Brasil, algumas avaliações da visão funcional em crianças merecem destaque: Bruno (1993BRUNO, M. M. G. O desenvolvimento integral do portador de deficiência visual: da intervenção precoce à integração escolar. São Paulo: Newswork, 1993.) com a avaliação funcional da visão e Gagliardo (1997GAGLIARDO, H. G. R. Investigação do comportamento visuo-motor do lactente normal no primeiro trimestre de vida. 1997. [s.p.]. Dissertação (Mestrado em Ciências Médicas) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1997.) com um roteiro para avaliar a conduta visual de lactentes, que foi revisado em 2004 (GAGLIARDO; GONÇALVES; LIMA, 2004GAGLIARDO, H. G. R.; GONÇALVES, V. M. G.; LIMA, M. C. M. P. Método para avaliação da conduta visual de lactentes. Arquivos de Neuro-Psiquiatria, São Paulo, v. 62, n. 2A, p. 300-306, 2004. http://dx.doi.org/10.1590/S0004-282X2004000200020. PMid:15235735.
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). Em 2010 Rossi e Saliba propuseram o teste AVIF-2 a 6 anos e, em 2015, Zimmermann et al. (2015ZIMMERMANN, A. et al. Teller test with functional vision evaluation in children with low vision. Revista Brasileira de Oftalmologia, Rio de Janeiro, v. 74, n. 6, p. 362-365, 2015. http://dx.doi.org/10.5935/0034-7280.20150076.
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) desenvolveu o teste avaliação da visão funcional. Dessas, a Avaliação da conduta visual de lactentes e o AVIF-2 a 6 anos se baseiam no conteúdo do raciocínio acima explicitado. Essa última, o teste é de autoria de uma fisioterapeuta e uma terapeuta ocupacional (ROSSI et al., 2013ROSSI, L. D. F. et al. Avaliação da visão funcional em crianças: revisão da literatura. Revista da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia, Lisboa, v. 37, n. 1, p. 1-9, 2013. Disponível em: <https://revistas.rcaap.pt/index.php/oftalmologia/article/view/6153>. Acesso em: 12 out. 2018.
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; BRANDÃO, 2017BRANDÃO, A. O. et al. Instrumentos para avaliação da funcionalidade da criança com baixa visão: uma revisão da literatura. Arquivos Brasileiros de Oftalmologia, São Paulo, v. 80, n. 1, p. 59-63, 2017. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S000427492017000100016&lng=en&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 12 nov. 2016.
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).

Para avaliar a funcionalidade em diversas condições a terapia ocupacional contribui com o mesmo raciocínio e traz diversos instrumentos. Desses, Silva e Martinez (2002SILVA, D. B. R.; MARTINEZ, C. M. S. Modelos de avaliação em terapia ocupacional: estudos dos hábitos funcionais e de auto-suficiência de crianças. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, São Carlos, v. 10, n. 2, p. 78-93, 2002. Disponível em: <http://www.cadernosdeterapiaocupacional.ufscar.br/index.php/cadernos/article/view/210>. Acesso em: 20 out. 2018.
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) destacam por exemplo o SIPT (Sensory Integration and Praxis) de Ayres (1989AYRES, A. J. Sensory integration and praxis tests. Los Angeles: Western Psychological Services, 1989.), Além desse, e outros, é importante ressaltar a versão brasileira do Inventário de Avaliação Pediátrica de Incapacidade (PEDI) de Mancini (2005MANCINI, M. C. Inventário de avaliação pediátrica de incapacidade (PEDI): manual da versão brasileira adaptada. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. ) com sua contribuição valiosa para a avaliação funcional de crianças, utilizado para diversas condições de saúde.

O presente estudo tem por objetivo avaliar a funcionalidade visual e global de uma coorte de crianças com toxoplasmose congênita e lesão ocular através da aplicação dos instrumentos PEDI e AVIF-2 a 6 anos e comparar seus resultados com os níveis de acuidade visual.

2 Metodologia

2.1 Método

Estudo observacional, transversal, de crianças com toxoplasmose congênita atendidas no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais.

Esse estudo é parte de uma pesquisa sobre avaliação da qualidade de vida de uma coorte de 190 crianças com toxoplasmose congênita diagnosticadas no período neonatal em Minas Gerais (2006-2007) e tratadas durante o primeiro ano de vida. Essa coorte é reavaliada anualmente, ou a intervalos mais curtos se necessário (queixas oftalmológicas e/ou comprometimento neurológico), por equipe multidisciplinar. Ao final de seis anos de seguimento, essa coorte compareceu para avaliação rotineira no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC-UFMG), Brasil, e foi convidada a participar do estudo.

2.2 Participantes

Foram elegíveis 96 crianças com toxoplasmose congênita e idade entre 4 e 6 anos. Foram incluídas as crianças que apresentaram desenvolvimento neuropsicomotor adequado de acordo com o Teste de Desenvolvimento de Denver II; realizaram o exame oftalmológico no setor de Baixa Visão Infantil (BVI); e foram avaliadas com os dois testes, AVIF-2 a 6 anos e PEDI, no mesmo dia. As crianças com prescrição de óculos para correção da refração deveriam estar em uso dos mesmos na data de avaliação.

Foram excluídas as crianças que tiveram resultado anormal na triagem para atraso no desenvolvimento neuropsicomotor avaliada pelo Teste de Desenvolvimento de Denver II, as que não usavam os óculos prescritos, aquelas cujo acompanhante não sabia informar sobre a rotina da criança e as que não foram avaliadas pelos dois testes (AVIF-2 a 6 anos e PEDI) no mesmo dia.

2.3 Instrumentos para coleta

Para avaliação das tarefas do autocuidado, foi optado pelo uso do instrumento Inventário de Avaliação Pediátrica de Incapacidade, versão brasileira do Pediatric Evaluation of Disability Inventory (PEDI) (MANCINI, 2005MANCINI, M. C. Inventário de avaliação pediátrica de incapacidade (PEDI): manual da versão brasileira adaptada. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. ), utilizado nesse estudo no formato de entrevista. O teste PEDI (versão brasileira) é constituído por três partes: 1) Habilidades funcionais; 2) Assistência do cuidador; e 3) Modificações, e três escalas: autocuidado, de mobilidade e função social.

Para avaliar a capacidade e a funcionalidade visual foi aplicado o teste denominado AVIF- 2 a 6 anos. Ele é observacional e constituído por sete domínios: fixação visual, seguimento visual, campo visual funcional, coordenação olho-mão, localização de objetos na superfície, deslocamento no ambiente e percepção de cores.

2.4 Procedimentos

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa (COEP - UFMG) (CAAE/05040.0.203.000-11). Os pais ou responsáveis foram convidados a participar e expressaram sua concordância assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

A coleta dos dados foi feita no Setor de Baixa Visão Infantil (BVI) e Setor de Uveíte do Hospital São Geraldo - Hospital das Clínicas da UFMG (HC-UFMG), durante consulta de rotina para avaliação visual.

Os exames oftalmológicos foram realizados nos Setores de Uveíte e Baixa Visão Infantil do Hospital São Geraldo por oftalmologistas especializados no atendimento de crianças com patologias oculares. Na Uveíte, foi realizada oftalmoscopia indireta para observar a existência ou não de lesões de retinocoroidite e descrever suas características: localização (macular ou periférica), tamanho e atividade inflamatória; no Setor de BVI, foi realizada ectoscopia, avaliação do estrabismo, medida de refração, medida da acuidade visual, visão de cores e sensibilidade ao contraste.

Para avaliação da funcionalidade visual foram aplicados os instrumentos AVIF-2 a 6 anos e PEDI, especificamente as habilidades funcionais em autocuidado, pela pesquisadora principal (terapeuta ocupacional) e outra pesquisadora do grupo (fisioterapeuta). Para garantir maior fidedignidade à coleta dos dados, antes do início da pesquisa foi feita análise de confiabilidade entre examinadores. Após treinamento prévio na aplicação dos dois testes, as examinadoras aplicaram cada instrumento duas vezes separadamente, no mesmo dia, em um mesmo grupo de crianças (n=11) clientes do setor de BVI do Hospital São Geraldo (HC-UFMG) e que não participavam do presente estudo. Os resultados obtidos com as duas examinadoras foram comparados quanto à consistência e concordância.

Em seguida os testes foram aplicados pelas duas examinadoras. O teste AVIF-2 a 6 anos foi aplicado e pontuado de acordo com as orientações do trabalho original (ROSSI, 2010ROSSI, L. D. F. Avaliação da Visão Funcional (AVIF) para crianças de dois a seis anos com baixa visão: exame de confiabilidade e de validade. 2010. 139 f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Saúde da Criança e do Adolescente) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2010.). Observava-se a resposta demonstrada pela criança ao realizar a tarefa solicitada e pontuava-se de acordo com duas categorias, qualitativa e quantitativa. Um exemplo disso é a avaliação da fixação da visão em um objeto, categoria qualitativa: (1) não fixa o objeto; (2) fixação breve; (3) fixação completa ou sustentada por mais de 3 segundos; e quantitativa pela somatória dos valores (entre parênteses) associados à resposta observada. Assim, obtém-se o somatório dos escores por domínios e o escore total. O teste PEDI versão brasileira foi aplicado no presente estudo no formato de entrevista com o cuidador e utilizou-se apenas a parte 1, na escala de autocuidado, com 73 itens que avaliavam a capacidade de a criança realizar sem ajuda a tarefa solicitada. Para pontuação, foi seguida a orientação do autor do teste (MANCINI, 2005MANCINI, M. C. Inventário de avaliação pediátrica de incapacidade (PEDI): manual da versão brasileira adaptada. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. ): (0) incapaz de realizar a tarefa e (1) capaz de realizar a tarefa. O escore bruto foi transformado em escore contínuo e utilizado nas análises dessa pesquisa.

O estudo foi cego para as examinadoras que aplicaram os testes da funcionalidade, ou seja, no momento da aplicação dos testes elas não tinham conhecimento do resultado do exame oftalmológico.

2.5 Análise dos dados

Para cálculo do índice de confiabilidade entre examinadores foi utilizado o Coeficiente de Correlação Intraclasse (ICC). Valores maiores que 0,81 indicam consistência entre os dados (MARÔCO, 2011MARÔCO, J. Análise estatística com o SPSS Statistics. Lisboa: Report Number, 2011.). Foi realizada análise estatística descritiva, avaliação da associação entre as variáveis categóricas utilizando o teste Qui-quadrado de Pearson assintótico, comparações utilizando Análise de Variância (ANOVA) entre as variáveis quantitativas (escores do teste AVIF- 2 a 6 anos) e as medidas da acuidade visual, classificadas de acordo com o Conselho Internacional de Oftalmologia (ICO) (INTERNATIONAL..., 2002) em perda visual moderada/grave, perda visual leve e visão normal. Ainda em relação ao AVIF-2 a 6 anos, para análise de comparação múltipla, ou seja, verificar a diferença dos resultados de cada grupo entre si foi utilizado o Least Significant Difference (LSD) (MARÔCO, 2011).

Como os resultados do teste PEDI não apresentavam distribuição normal, foi utilizada a análise de Kruskal Wallis para compará-los com os valores da acuidade visual (classificação em grupos de acordo com o Conselho Internacional de Oftalmologia). Para analisar a correlação entre os resultados (escores do AVIF-2 a 6 anos e escores do PEDI) realizou-se a correlação de Spearman porque as variáveis não tinham distribuição normal. A regressão linear avaliou a influência das variáveis idade, lesão macular e classificação da acuidade visual de acordo com o Conselho Internacional de Oftalmologia - ICO (INTERNATIONAL..., 2002) sobre os testes. Considerou-se como significativo p<0,05.

3 Resultados

A análise da confiabilidade entre examinadores, quanto aos resultados das escalas dos testes PEDI e AVIF, mostrou resultado bom ou quase perfeito (ICC>0,81) para todos os itens, exceto para “textura dos alimentos” (item do teste PEDI), que obteve valor 0,00.

A população estudada, 96 crianças com toxoplasmose congênita e idade entre 4 e 6 anos, foi classificada e dividida em grupos conforme a acuidade visual e os critérios estabelecidos pelo Conselho Internacional de Oftalmologia e a Organização Mundial de Saúde. Essa classificação foi então baseada nas informações (valores de referência) demonstrados no Tabela 1. Já as características da amostra são apresentadas na Tabela 2.

Tabela 1
Valores de referência da classificação da Acuidade Visual, de acordo com o Conselho Internacional de Oftalmologia (ICO).
Tabela 2
Características da amostra e classificação de acuidade visual em uma coorte de crianças com toxoplasmose congênita em Minas Gerais.

Em relação à localização da lesão de retinocoroidite, 56 crianças tinham lesão macular bilateral, 27 unilateral e 13 não tinham lesão.

Quando comparados os escores totais médios dos resultados do teste AVIF-2 a 6 anos de acordo com a classificação por grupos de acuidade visual, observou-se diferença significativa entre os grupos (p=0,001), com destaque para a diferença entre os grupos de visão normal e perda visual moderada/grave (p<0,0001) e os grupos com perda visual leve e perda moderada/grave (p=0,003). Quando comparados os escores por domínios do teste, apenas o domínio seguimento visual apresentou diferença significativa (p=0,022) entre os grupos (Tabela 3). A diferença foi observada na comparação entre os grupos visão normal e perda visual moderada/grave (p=0,007) e entre os grupos perda visual leve e perda visual moderada/grave (p=0,018). Não foi observada diferença significativa na comparação entre os grupos visão normal e perda visual leve em relação ao escore total e ao seguimento visual.

Tabela 3
Comparação das médias dos domínios do AVIF-2 a 6 anos de acordo com a classificação da acuidade visual.

Os resultados dos escores totais (medianas) e por itens do teste PEDI para o autocuidado não apresentaram diferença significativa na comparação por grupos de acuidade visual (Kruskal Wallis, p>0,05).

O resultado da análise da correlação de Spearman apontou pequena correlação entre o escore total contínuo dos testes PEDI e AVIF-2 a 6 anos (rs=0,198) e, em relação aos itens, apenas para o domínio deslocamento no ambiente (rs=0,337). No resultado da regressão linear, realizada com os dois instrumentos, AVIF-2 a 6 anos demonstrou ser influenciado apenas pela variável acuidade visual (β=-0,150; p=0,006) e IC95% β [-2,56; -0,45] (Tabela 4). Já o PEDI, não demonstrou ter sido influenciado por nenhuma das variáveis.

Tabela 4
Resultado do ajuste de regressão linear do teste AVIF-2 a 6 anos.

4 Discussão

A população estudada apresenta uma doença específica, toxoplasmose congênita, principal responsável pela deficiência visual infantil no Brasil (FURTADO et al., 2016FURTADO, J. M.; SILVA, J. C. Cegueira infantil como prioridade do Programa Vision 2020. In: CARVALHO, K. M. et al. Prevenção da cegueira e deficiência visual na infância. Rio de Janeiro: Cultura Médica, 2016. p. 1-3.). Serviços de referência para avaliação ocular de crianças com toxoplasmose congênita utilizam em seus protocolos apenas a oftalmoscopia indireta para avaliação rotineira do comprometimento ocular e associam a presença de retinocoroidite macular ao risco de deficiência visual (SILVA; FURTADO, 2016SILVA, M. S. F.; FURTADO, J. M. Toxoplasmose congênita. In: CARVALHO, K. M. et al. Prevenção da cegueira e deficiência visual na infância. Rio de Janeiro: Cultura Médica, 2016. p. 75-80.; LAGO, 2006LAGO, E. G. Estratégias de controle da toxoplasmose congênita. 2006. 168 f. Tese (Doutorado em Medicina) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.). No presente estudo, embora a população estudada apresentasse comprometimento visual frequente e macular, com 58% (56/96) de lesões maculares bilaterais, observou-se perda visual moderada/grave em uma proporção relativamente pequena de casos (16,7%). Naturalmente devemos considerar a variabilidade do comprometimento macular, com diferentes tamanhos de cicatrizes retinocoroideanas, mas esse resultado alerta para a importância de a avaliação visual incluir, rotineiramente, além da oftalmoscopia indireta, a avaliação da acuidade visual e os teste de funcionalidade, sendo estes últimos de competência do terapeuta ocupacional e de suma importância para avaliar o impacto da disfunção sobre o desempenho ocupacional da criança.

Como o objetivo do presente estudo é avaliar a funcionalidade e, para tal, a função visual mais importante é a acuidade visual, não se detalhou as características das lesões de retinocoroidite, aspecto já descrito em outros estudos (VASCONCELOS-SANTOS et al., 2009VASCONCELOS-SANTOS, D. V. et al. Congenital toxoplasmosis in southeastern Brazil: results of early ophthalmologic examination of a large cohort of neonates. Ophthalmology, Rochester, v. 116, n. 11, p. 2199-2205, 2009. http://dx.doi.org/10.1016/j.ophtha.2009.04.042. PMid:19744724.
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; TIBÚRCIO, 2016TIBÚRCIO, J. D. Propriedades psicométricas do children’s visual function questionnaire adaptado para avaliação da qualidade de vida relacionada à visão de crianças com toxoplasmose congênita. 2016. 128 f. Tese (Doutorado em Ciências da Saúde) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016.).

Em relação à escolha dos testes para avaliação da funcionalidade das crianças com toxoplasmose congênita e lesão ocular, deparou-se com limitações da faixa etária e especificidades da avaliação do comprometimento visual. Alguns testes validados disponíveis avaliavam ao mesmo tempo funcionalidade visual e global, como, por exemplo, LV Prasad-Functional Vision Questionnaire (LVP- FQV) (GOTHWAL; LOVIE-KITCHIN; NUTHETI, 2003GOTHWAL, V. K.; LOVIE-KITCHIN, J. E.; NUTHETI, R. The development of the LV Prasad-functional vision questionnaire: a measure of functional vision performance of visually impaired children. Investigative Ophthalmology & Visual Science, St. Louis, v. 44, n. 9, p. 4131-4139, 2003. http://dx.doi.org/10.1167/iovs.02-1238. PMid:12939337.
http://dx.doi.org/10.1167/iovs.02-1238....
), mas era voltado para crianças com idade superior a 8 anos. O questionário Visual Ability Score (VAS) (KATSUMI et al., 1998KATSUMI, O. et al. Visual Ability Score: a new method to analyze ability in visually impaired children. Acta Ophthalmologica Scandinavica, Hvidovre, v. 76, n. 1, p. 50-55, 1998. http://dx.doi.org/10.1034/j.1600-0420.1998.760109.x. PMid:9541434.
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) apresentava alta correlação com a acuidade visual, mas o seu formato não possibilitava ao examinador observar e pontuar o uso da visão funcional diante de uma tarefa. O Visual Assessment Procedure - Capacity, Attention and Processing (VAP-CAP) (BLANKSBY; LANGFORD, 1993BLANKSBY, D. C.; LANGFORD, P. E. VAP-CAP: a procedure to assess the visual functioning of young visually impaired children. Journal of Visual Impairment & Blindness, New York, v. 87, n. 2, p. 46-49, 1993.) permitia observar a criança, mas não pontuava de forma quantitativa. Já o teste Avaliação da Visão Funcional (AVIF- 2 a 6 anos) (ROSSI, 2010ROSSI, L. D. F. Avaliação da Visão Funcional (AVIF) para crianças de dois a seis anos com baixa visão: exame de confiabilidade e de validade. 2010. 139 f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Saúde da Criança e do Adolescente) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2010.) permitia ao observador pontuar as tarefas executadas e abrangia a faixa etária de interesse para a Habilitação visual, razão para sua escolha para aplicação no presente estudo. Outro motivo para sua escolha deveu-se ao seu planejamento específico para crianças com baixa visão e por ter mostrado capacidade de discriminar as crianças com baixa visão daquelas com visão normal. O instrumento (PEDI), selecionado para aplicação no estudo, não foi concebido para avaliar crianças com baixa visão, mas foi aplicado, nessa população, em poucos estudos e com casuísticas pequenas, sendo observados resultados significativos para escala de autocuidado (p<0,001) e mobilidade (p<0,001) (MANCINI et al., 2010MANCINI, M. C. et al. Comparação do desempenho funcional de crianças com visão subnormal e crianças com desenvolvimento normal aos 2 e 6 anos de idade. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 21, n. 3, p. 215-222, 2010. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2238-6149.v21i3p215-222.
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). Estudo comparando os grupos de crianças deficientes visuais e os controles também mostraram resultados significativos para autocuidado (p<0,01) e mobilidade (p<0,01) (MALTA et al., 2006MALTA, J. et al. Desempenho funcional de crianças com deficiência visual, atendidas no Departamento de Estimulação Visual da Fundação Altino Ventura. Arquivos Brasileiros de Oftalmologia, São Paulo, v. 69, n. 4, p. 571-574, 2006. http://dx.doi.org/10.1590/S0004-27492006000400021. PMid:17119733.
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). Infelizmente os autores não correlacionaram os resultados do teste com a classificação das crianças em grupos de acordo com a acuidade visual ou com algum outro teste específico para crianças com baixa visão. Os vários testes disponíveis para avaliação da funcionalidade são discutidos na revisão da literatura realizada por Brandão et al. (2017BRANDÃO, A. O. et al. Instrumentos para avaliação da funcionalidade da criança com baixa visão: uma revisão da literatura. Arquivos Brasileiros de Oftalmologia, São Paulo, v. 80, n. 1, p. 59-63, 2017. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S000427492017000100016&lng=en&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 12 nov. 2016.
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).

O teste AVIF-2 a 6 anos apresentou diferença significativa no resultado do escore total do teste no grupo de crianças com acuidade visual normal comparado àquelas com perda visual moderada/grave, mostrando que a maior gravidade na perda visual está associada a maior prejuízo no uso da visão funcional (p<0,0001). Ao analisar o domínio/função com pior pontuação, destacou-se a dificuldade no seguimento visual, o que pode ser justificado pela presença de cicatriz na região macular. Na população estudada não se observou prejuízo na fixação visual e na coordenação olho mão, o que talvez possa ser observado nos casos com comprometimento visual por outras patologias. A ampliação do tamanho da amostra estudada poderia contribuir para reforçar os achados encontrados. Outros estudos, em coortes de crianças com doenças oculares distintas e diferentes faixas etárias, são necessários para avanços na área da habilitação visual.

O teste AVIF - 2 a 6 anos mostrou-se capaz de discriminar o impacto do déficit visual em crianças com toxoplasmose congênita nesse estudo. Além de evidenciar o comprometimento no uso da visão funcional, identificou o domínio comprometido (seguimento visual) e mostrou associação direta com a classificação da acuidade visual. Isso direciona o trabalho da equipe multidisciplinar em habilitação e reabilitação visual, permitindo maior objetividade no programa de intervenção e na orientação aos pais.

O PEDI não apresentou diferença nos resultados (medianas) em relação aos grupos classificados por perda visual, o que já era esperado, visto que o instrumento não foi desenvolvido nem validado para crianças com deficiência visual, e que apesar de ter bons resultados em estudos anteriores, com crianças com baixa visão, há nesse caso o diferencial que nessa amostra, a maioria das crianças apresenta perda visual leve (que pode sim ter impacto no autocuidado) mas principalmente por ser referente à dificuldade da visão de mácula, que é bem específico e diferente de se avaliar perda visual que atinge outra área. A visão de mácula leva à posição compensatória de cabeça para utilizar a visão lateral já que a central é prejudicada, pode haver dificuldade na percepção de detalhes como já citado e outras. Assim, a criança pode apresentar limitação não na tarefa em si, mas em etapas do processo, o que não é contemplado pelo questionário. O PEDI é amplamente utilizado pelos profissionais de reabilitação que atuam com crianças com atraso no desenvolvimento neuropsicomotor. Embora pudesse ser uma interessante fonte de informação na prática de habilitação visual para avaliar o autocuidado, ficou evidente a necessidade de adequações específicas para a área de deficiência visual no caso de lesão macular.

A correlação fraca (demonstrada pela análise de correlação de Spearman) entre o AVIF- 2 a 6 anos e o PEDI indica que eles não forneceram informações complementares sobre a população avaliada, referente ao déficit da visão de mácula, responsável pela percepção de detalhes e outros. Isso levou os pesquisadores a questionarem se é necessária a utilização de ambos os instrumentos concomitantemente para avaliar a funcionalidade da criança com toxoplasmose congênita ou pode-se recorrer à coleta de informações de forma direcionada (etapas, detalhes) pelo terapeuta, sabendo das limitações e potencialidades da criança com toxoplasmose congênita a fim de verificar como essa condição está impactando no desempenho de atividades de autocuidado pela criança.

Em relação à cicatriz macular, nenhum dos testes mostrou influência das lesões nos seus resultados de escores, independente das lesões serem unilaterais ou bilaterais. Apesar de ser claro que a cicatriz pode interferir no resultado da acuidade visual e na classificação da perda visual (INTERNATIONAL..., 2002), sabe-se que essa interferência é dependente de outras características das lesões, como extensão, por exemplo. Como no estudo, a informação sobre a existência e localização da lesão de retinocoroidite não influenciou nos resultados das avaliações da funcionalidade visual, isso ressalta a importância da soma das informações anatômicas e funcionais sobre a visão da criança, para prosseguir com seu tratamento.

Como a maioria das crianças estudadas não apresentou média muito baixa na pontuação total do teste AVIF-2 a 6 anos, investigou-se a influência das demais variáveis nesse resultado (viés de confundimento), especialmente a idade. Os resultados da regressão linear demonstraram que não houve influência da variável idade e nem da localização da lesão de retinocoroidite, sendo o resultado do teste influenciado apenas pela acuidade visual (p=0,006).

Em relação ao autocuidado, a população estudada não apresentou dificuldades de desempenho em autocuidado de acordo com os itens medidos pelo teste PEDI e do modo como deve ser aplicado. Silva e Airoldi (2014SILVA, M. R.; AIROLDI, M. J. Influência do familiar na aquisição de habilidades funcionais da criança com deficiência visual. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 36-42, 2014. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2238-6149.v25i1p36-42.
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) aplicaram o PEDI em criança com baixa visão secundária à toxoplasmose congênita a fim de estudar a influência dos familiares na aquisição de habilidades funcionais em autocuidado, mobilidade e função social, incluindo a parte II, de assistência do cuidador. Os resultados dos escores bruto e contínuo demonstraram que há uma dificuldade por parte dos pais de uma criança com deficiência visual em compreender suas limitações e potencialidades, o que interfere na estimulação à aquisição dessas habilidades.

5 Conclusão

Embora a população estudada tenha apresentado número reduzido de crianças com perda visual moderada/grave (apenas uma criança apresentou perda grave) em relação ao número daquelas com perda visual leve e visão normal, o que poderia constituir uma limitação do estudo, o teste AVIF-2 a 6 anos conseguiu discriminar os grupos e mostrou-se aplicável na população estudada, podendo ser utilizado nesse público específico e na faixa etária próxima ao limite superior de abrangência do teste original. Há necessidade de outros estudos, com a aplicação do teste AVIF-2 a 6 anos em crianças com toxoplasmose congênita pertencentes a faixas etárias menores e também naquelas com atraso no desenvolvimento neuropsicomotor, o que poderia modificar os resultados encontrados. No primeiro caso, os resultados do teste poderiam contribuir para habilitação mais precoce dessa clientela, em momento ótimo para essa intervenção, além de consolidar o uso do teste.

Em relação à funcionalidade global, observou-se a necessidade de adequação de instrumentos para essa avaliação, especificamente nas tarefas de autocuidado, que têm muita importância na vida diária da criança, podem complementar as informações da avaliação de funcionalidade visual e constituem área de grande interesse para atuação da terapia ocupacional.

Os autores consideram que o presente estudo possibilita o conhecimento de especificidades da deficiência visual em crianças com toxoplasmose congênita, condição clínica frequente e uma das principais causas de deficiência visual no Brasil. Também mostra resultados do uso de um instrumento de avaliação da funcionalidade visual (AVIF-2 a 6 anos) que já está disponível para aplicação em serviços de referência para atendimento de crianças com deficiência visual. Finalmente, mostra a importância da correlação entre as informações sobre a estrutura do olho, funções visuais e o desempenho da criança nas atividades da vida diária, para o planejamento de um programa de intervenção visual que contemple todos os domínios da Classificação Internacional de Funcionalidade e Incapacidade (CIF). Esse planejamento amplia e dá objetividade à atuação do terapeuta ocupacional nos quesitos em que a funcionalidade visual e o autocuidado estão com maior prejuízo, favorecendo o desenvolvimento infantil.

Agradecimentos

Agradecemos carinhosamente à Grace Rego Saliba por contribuir durante a elaboração e revisão do texto com sua expertise em baixa visão infantil. À Maria de Fátima Pinto Coelho por sua disponibilidade em auxiliar e direcionar as buscas nas bases de dados e referências.

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  • Fonte de Financiamento

    CAPES.

Notas

  • 1
    Este artigo é parte integrante da Dissertação de Mestrado de Aline de Oliveira Brandão no Programa de Pós-graduação em Saúde da Criança e do Adolescente da Universidade Federal de Minas Gerais. Todos os procedimentos éticos foram cumpridos. Projeto aprovado COEP-UFMG nº CAAE 0540.0.203.000.11

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan 2019

Histórico

  • Recebido
    22 Out 2017
  • Revisado
    26 Set 2018
  • Aceito
    13 Dez 2018
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