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Editorial: dê ao “demo” o “graphein” e o “logos”, e ele terá a “kratía

Editorial: give “demo” the “graphein” and “logos”, and they will have the “kratía

As complexas mudanças dos padrões de saúde e doença, bem como das interações entre esses padrões e seus determinantes econômicos e sociais, trazem à tona a emergência da discussão sobre o desenvolvimento de políticas de saúde que tenham por base os diagnósticos a partir da análise de dados demográficos. Trata-se de uma discussão, de partida, sobre a composição populacional e, no limite, uma análise de atividades que repercutam e partam da população, na qual se inclui a prática da vigilância em saúde como modelo de atenção.

Para o enfrentamento adequado dos principais problemas e desafios postos aos profissionais e gestores do Sistema Único de Saúde (SUS), é fundamental contar com o conhecimento sobre a situação de saúde e de seus determinantes e condicionantes, incluindo as mudanças na composição etária da população e o seu perfil de demanda, condições que requerem rearranjos consideráveis nas formas de organização e de prestação de serviços de saúde. Há, por exemplo, uma necessidade premente de discutir a heterogeneidade dos processos de envelhecimento e postergação da fecundidade, além de toda a repercussão desses fenômenos para as políticas públicas.

Neste aspecto, a interface entre a demografia e a saúde pública está em sua natureza comum de realizar estudos de população que descrevam o padrão e o nível dos principais fenômenos que caracterizam a dinâmica populacional. Ainda, a transição demográfica – e, consequentemente, a transição de saúde – proporciona desafios para o desenvolvimento de políticas que permitam o acesso universal à educação, à saúde e ao emprego e que superem a grande heterogeneidade estrutural do país, trazendo discussões de natureza econômica, social e política para a agenda da saúde.

A conexão entre a saúde e a demografia é, portanto, complexa. Para além de descrever a interface entre duas disciplinas, como a epidemiologia e a demografia, é preciso descrever a articulação entre dois conceitos: saúde e população. A história mostra que essa abordagem conjunta é adequada e representa um avanço do ponto de vista da análise de situação de saúde. Os esforços para a redução da mortalidade infantil, a compreensão dos fenômenos ligados à transmissão do HIV e à incidência de AIDS e a repercussão do desenvolvimento social na explicação para a transição epidemiológica são alguns dos temas sobre os quais a associação entre os estudos de população e saúde pública se mostrou relevante. Adicionalmente, vale destacar que a formulação das medidas em saúde pública, expressas, principalmente, por meio de indicadores, requer o conhecimento sobre as principais fontes de informação, bem como sobre o desenvolvimento de métodos capazes de operacionalizar certos conceitos de ordem mais teórica. Desta forma, entende-se que este fascículo pode oferecer uma importante contribuição para a análise de situação e tendências no Brasil.

Ainda, há, de forma controversa, um discurso, por parte de determinadas linhas teóricas da saúde, de que a demografia não se alinha ao escopo conceitual da saúde. Na esteira de estratificar os estudos em saúde pública entre aqueles que possuem relevância ou não – referimo-nos à saúde pública, e não apenas à coletiva, vale mencionar –, surge um esforço em disputar territórios e, por que não dizer, em realizar certa grilagem na evidência científica. A natural consequência disso, em um primeiro momento, é alimentar a histórica cisão que se faz entre as abordagens qualitativa e quantitativa dos estudos em saúde. Essa segregação, cabe destacar, igualmente é compartilhada pela demografia, na virtual – e incoerente – disputa entre a demografia formal e os estudos de população. Fato é que, seja a demografia, oriunda das ciências sociais aplicadas, seja a saúde coletiva, consolidada na ruptura do modelo biomédico cartesiano, o campo da pesquisa ainda é permeado por essa dicotomia. A fim de marcar uma posição contrária a isso, este número procurou ainda reunir artigos cujos objetos e técnicas tenham a maior variedade possível, de forma a abarcar o estado da arte nacional e internacional dessas áreas do conhecimento.

A este respeito, destaca-se que há, nesta edição, artigos de grupos nacionais – respeitando a diversidade regional brasileira – e internacionais – demonstrando o potencial das análises do nosso país em perspectiva comparada. Além de autores de grande parte das macrorregiões brasileiras e dos principais grupos de investigação de demografia do país, há importante contribuição de autores da América Latina, Estados Unidos e Europa. Foram priorizados temas de interesse comum à saúde pública e à demografia, procurando sempre estabelecer o diálogo entre elas, tais como: análise espacial da mortalidade; debate sobre o curso de vida e lifespan; demografia e iniquidades em saúde; diferenciais de mortalidade e desigualdades em saúde; gênero, desigualdade e saúde da população; longevidade e envelhecimento saudável; métodos de avaliação de políticas de saúde; migração e saúde; modelos de microssimulação de processos demográficos; processos intergeracionais e saúde da população; qualidade de dados em saúde; transição demográfica e epidemiológica, com foco na tripla carga de doenças no Brasil; e o uso de Big Data para modelagens de desfechos em saúde.

O conceito em torno do “poder do povo”, por ora, encontra-se esvaziado pela conjuntura adversa pela qual o Brasil passou, em 2019. Ao final, esperamos que este número especial represente um ponto de partida para a convergência de estudos nesses dois campos, qualificando as análises populacionais em torno das mudanças sociais esperadas para o novo milênio. Diante do ponto crítico em que a comunidade acadêmica se encontra, é preciso recuperar a ideia central do fazer científico, de forma inclusiva e aberta à sociedade. Desta forma, dando ao povo a escrita (graphein) e o estudo (logos), esperamos conquistar de volta nosso poder político (kratía) de mudança.

Boa leitura!

  • Trabalho realizado na Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
  • Fonte de financiamento: nenhuma.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021
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