RESUMO
Nesta entrevista o professor Licínio Lima levanta questões importantes sobre os cenários que compõem o contexto histórico e político atual marcado pelo ideário neoliberal e por mudanças culturais em curso no campo da educação. A introdução das tecnologias digitais; a hiperburocratização crescente dos processos de gestão da educação, própria do gerencialismo; a agenda complexa de valores e opções políticas favoráveis ao processo de privatização da educação pública: estes são alguns cenários que marcam o contexto atual e, à medida que avançam, colocam em risco a garantia do direito humano à educação e fragilizam a relação entre democracia e educação como prática humanizadora.
Palavras-chave
Administração educacional; Gestão democrática; Privatização da educação; Dominação digital
ABSTRACT
In this interview, Professor Licínio Lima raises important questions about the scenarios that make up the current historical and political context, marked by neoliberal ideology and ongoing cultural changes in the field of education. The introduction of digital technologies, the increasing hyperbureaucratization of educational management processes, typical of managerialism, the complex agenda of values and political options favorable to the privatization of public education, are some scenarios that mark the current context and, as they advance, put at risk the guarantee of the human right to education and weaken the relationship between democracy and education as a humanizing practice.
Keywords
Educational administration; Democratic management; Privatization of education; Digital domination
RESUMEN
En esta entrevista, el profesor Licínio Lima plantea importantes preguntas sobre los escenarios que conforman el contexto histórico y político actual, marcado por la ideología neoliberal y los continuos cambios culturales en el ámbito educativo. La introducción de las tecnologías digitales; la creciente hiperburocratización de los procesos de gestión educativa, propia del gerencialismo; la compleja agenda de valores y opciones políticas favorables a la privatización de la educación pública: estos son algunos de los escenarios que caracterizan el contexto actual y, a medida que avanzan, ponen en peligro la garantía del derecho humano a la educación y debilitan la relación entre la democracia y la educación como práctica humanizadora.
Palabras clave
Administración educativa; Gestión democrática; Privatización de la educación; Dominación digital
A entrevista, realizada em maio de 2024 para compor o presente dossiê, contempla temas estudados profundamente pelo professor Licínio Lima e presentes em seus escritos sobre educação. Nos limites desta entrevista o professor analisa o contexto político-econômico atual marcado pela racionalidade técnica de orientação neoliberal e alerta para o processo de naturalização da lógica empresarial que vem impregnando o mundo da educação, a gestão educacional, as formas de ensinar e aprender, a formação de professores e os processos de avaliação em favor da racionalidade econômica, competitiva e desumanizadora. Diante desse cenário, o professor Licínio nos provoca a pensarmos uma educação que mantenha seus laços com a democracia e se realize como prática concreta na garantia futura da educação como direito fundamental.
Nadia Drabach (ND): No texto “Máquinas de Administrar a Educação: Dominação Digital e Burocracia Aumentada” (Lima, 2021) o senhor critica as promessas gerencialistas de desburocratização dos processos administrativos, mostrando que, na verdade, o que o gerencialismo faz é justamente o contrário, provocando um processo de hiperburocratização que representa um aumento exagerado da burocracia – viabilizada pelo uso das tecnologias da informação e comunicação. Em que ponto neoliberalismo e burocracia se encontram?
Licínio Lima (LL): Os pontos de encontro são vários, entre a reforma neoliberal do Estado e da administração pública, por um lado, e a burocracia, por outro. Um dos aspectos que me têm interessado é, justamente, o paradoxo que releva do anunciado combate à burocracia, prometendo organizações pós-burocráticas e uma administração mais livre, mais eficaz e eficiente, mais descentralizada e participada, quando, pelo contrário, o âmago da burocracia não apenas permanece, mas se intensifica e generaliza, agora digitalmente. De certo modo, a tese de Max Weber (1964) de que a burocracia, como forma de autoridade racional-legal, se encontraria permanentemente em expansão parece sair confirmada até mesmo no contexto de doutrinas gestionárias, de políticas sociais e de práticas administrativas que anunciam a burocracia zero ou a desburocratização. Apesar das pretensas alternativas apresentadas pela “Reinvenção do Governo”, pela “Nova Gestão Pública”, ou pela “Nova Governança” – todas coincidindo na substituição de um Estado que “rema” (hierárquico, centralizado, subordinado às regras do Direito Público, assente em lógicas de provisão e dotação orçamental) por um Estado que “dirige” (estratégico, supervisor, avaliador, assente na criatividade e na flexibilidade do mercado, bem como em contratos, parcerias e orçamentos competitivos) –, a burocracia, no seu quadro de racionalidade formal, não chega a ser destronada; pelo contrário, sai reforçada.
Na investigação dessas questões, algumas das quais contraditórias e paradoxais, creio que é indispensável evitar algumas práticas que, em minha opinião, nem sempre nos têm ajudado a avançar, aqui as enunciando muito brevemente. Destacaria, em primeiro lugar, o recurso generalizado, mas por vezes pouco claro, à categoria “gerencialismo”, ou, menos frequentemente, “novo gerencialismo”. Trata-se já do recurso a categorias críticas que são úteis e que se encontram em uso há décadas, recobrindo um vasto número de significados. Também tenho recorrido a elas, tendo-me até confrontado com os problemas da sua tradução para a língua portuguesa, uma vez que a sua origem é inglesa (managerialism) e que alguns autores preferiram recorrer ao anglicismo “managerialismo”. A questão não reside tanto no uso, mas no abuso, contribuindo para uma certa reificação, para um recurso que de tanto ser repetido parece dispensar outras elaborações mais críticas e menos sincréticas. Mas, sobretudo, que tende a constituir-se como uma categoria de sentido crítico e tranquilizador, que por essa razão dispensaria maiores esclarecimentos e a crítica às fontes primárias, por vezes ausentes, ou apenas implicitamente presentes.
Por isso – segunda observação –, creio que nada dispensa o estudo das obras mais emblemáticas que estão na origem da “Reinvenção do Governo”, da “Nova Gestão Pública” ou da “Nova Governança”, que evidenciam semelhanças e diferenças, mas que tendem a exagerar o poder transformador da gestão, do “direito de gerir”, das lideranças – tomando como arquétipo o mercado, a empresa e o mundo dos negócios (e por isso o elemento “ismo”, de doutrina, tendência, ideologia, gestão privada, gestores profissionais, etc.).
Em terceiro lugar, lidas seriamente as fontes primárias de autores como Michel Massenet (1975) (um precursor francês que em meados da década de 1970 já propunha um “Estado sem burocracia”), Al Gore (1996), Osborne e Gaebler (1992), Milton Friedman e Rose Friedman (2012), Lester Salamon (2000), entre tantos outros – para além de obras seminais na educação, como a de John Chubb e Terry Moe (1990), publicada na América –, é possível compreender que já não são apenas as organizações o alvo da “revolução permanente” que é proposta, mas sobretudo o Estado, reformado por essa via, justificando a referência de Clarke e Newman (1997) ao “Estado gerencial”, ou gestionário.
Os custos do Estado Social são considerados insuportáveis em vários países, com a Inglaterra a destacar-se historicamente através dos governos da Nova Direita. A reforma do Estado-providência que é proposta é uma reforma neoliberal do Estado e do aparelho da administração pública, criticando a sua ineficiência; o seu caráter monopolista; a sua indiferença às escolhas por parte dos cidadãos, agora vistos como clientes; os seus funcionários resistentes à mudança; a sua burocracia inoperante; um poder cristalizado que seria, aliás, reforçado por regras democráticas indiferentes à racionalidade técnica. Assim se compreende o lema “mais e melhor gestão”, que tenho criticamente interpretado como mais gestão para menos democracia, ou, quando muito, como alguma tolerância perante mínimos democráticos, a par da defesa do empreendedorismo, da competitividade e, em suma, da libertação ante a burocracia opressora. Uma libertação através da introdução da racionalidade do mercado e do mundo dos negócios no domínio público, único caminho que restaria a este para ser resgatado das garras da burocracia.
Aqui – quarta observação –, a burocracia é claramente associada a estatal, público, subordinado a regras democráticas, ineficaz e ineficiente, dominado por funcionários especializados. Ou seja, existe uma interpretação ideológica muito própria do conceito de burocracia, recusando algumas das dimensões assinaladas por Weber (1964) – também um crítico da burocracia, mas um seu profundo conhecedor que, por essa razão, nunca aceitou a naturalização da relação entre burocracia e setor público, desburocratização e setor privado, sabendo ele como a burocracia foi crucial para o desenvolvimento do capitalismo e da empresa privada. Para além disso, as ideologias pós-burocráticas ignoram, intencionalmente, que o império da racionalidade técnica é exatamente o que as une, e não o que as separa, perante o fenômeno burocrático criticado por Weber e por outros autores. A racionalização e formalização são consideradas dimensões incontornáveis à obtenção da otimização, da eficácia e da eficiência, através do conhecimento científico e técnico, da velocidade e da fiabilidade, da certeza, da objetividade e da mensuração. Tudo aquilo que é reclamado pelo que se vem criticamente designando por “novo gerencialismo”, uma constelação de novas doutrinas de gestão que é uma expressão do neoliberalismo.
Finalmente, convém recordar que a história, a cultura, a economia e a sociedade interferem profundamente na propagação e eventual adoção das propostas acima referidas, tal como sucede no caso da educação. Se é hoje difícil encontrar contextos onde aquelas influências não se façam sentir, até porque circulam velozmente e atravessam distintas escalas – incorporando-se no que vem sendo conhecido por reforma global da educação –, nada autoriza a concluir pela sua mera reprodução, sem resistências, sem recepções diferenciadas, sem recontextualizações complexas que exigem estudos aprofundados.
ND: Em sua obra A escola como organização educativa: uma abordagem sociológica (Lima, 2011) o senhor desenvolve a ideia de que a escola se organiza em funcionamento díptico enquanto organização, que compreende dimensões de natureza burocrática e anárquicas. Sob esta perspectiva, considera haver possibilidades de atualizações inusitadas para as orientações de caráter hiperburocrático?
LL: Certamente que sim. O modo de funcionamento díptico da escola como organização é uma proposta teórica, com variadas confirmações empíricas, que apresentei há mais de trinta anos. Creio que continua a ser utilizada em trabalhos de investigação por duas razões principais. Em primeiro lugar porque a considerável diversidade de perspectivas teóricas de análise das organizações educativas chega a ser dilemática para estudantes e jovens pesquisadores, com suas metáforas insinuantes e em elevado número. A esse propósito, Mats Alvesson (Alvesson; Willmott, 1996) chegou a falar, criticamente, de uma espécie de “supermercado de metáforas” que desafia as escolhas de quem investiga. A combinação de abordagens teóricas é uma possibilidade, crescentemente usada, mas exige uma elevada compreensão dos distintos referenciais teóricos, procurando evitar articulações incongruentes e, sobretudo, mutuamente excludentes. É aqui que a proposta teórica de um díptico organizacional pode ser útil, no sentido em que procura abarcar as alternativas teóricas no interior de um continuum, isto é, ao longo de uma linha que é provisoriamente demarcada por dois extremos, ou por dois polos de atração: de um lado, uma abordagem racionalista e formalista, concedendo protagonismo às regras formais legais e às estruturas oficiais e jurídicas das organizações, associadas à interpretação das organizações educativas como burocracias; no lado oposto do continuum, encontraremos interpretações teóricas que remetem para a incerteza; para um mundo organizacional marcado pela articulação débil entre elementos constituintes; para uma racionalidade a posteriori que as abordagens racionalistas tendem a considerar como uma irracionalidade; para a imagem de uma “anarquia organizada”, onde se destacam objetivos pouco claros e, por vezes, em disputa, tecnologias incertas e pouco compreendidas, formas de participação fluída na vida organizacional.
Insisto que não se trata de operar a partir de uma dicotomia, e muito menos de uma antinomia, mas, antes, de tentar representar a diversidade de abordagens teóricas ao longo, e em distintos pontos, dessa linha teórica imaginada. Se, por facilidade de compreensão, aceitarmos que aquela linha pode ser dividida em duas faces – ou seja, do meio da linha em direção ao polo da burocracia racional (face B) e também do meio da linha em direção à “anarquia organizada” (face A) –, obteremos uma possível organização de, potencialmente, todos os modelos teóricos de análise através de uma configuração díptica, isto é, organizada em duas faces, como no caso de um díptico na pintura; duas faces distintas mas complementares, que formam uma unidade.
Por exemplo, no caso de uma análise estruturalista das organizações educativas, restam poucas dúvidas quanto a localizá-la no interior da face B, ao passo que uma interpretação política que destaque o conflito e a diversidade de agendas e interesses na organização se localizará na face A, mais próxima da “anarquia organizada”. Esta opção tem a vantagem de se manter em aberto para incluir novas perspectivas de análise, até mesmo no caso de ser necessário alterar os extremos do continuum, os quais em nenhum momento devem ser admitidos como definitivos, fixos, invariantes na sua posição. Tal como é possível admitir a emergência de interpretações teóricas mais anárquicas, indeterminadas ou caóticas do que a atual abordagem da “anarquia organizada” – sendo em tal caso necessário prolongar a linha contínua nessa direção, acrescentando-lhe um novo polo ou extremo –, também o mesmo se poderá passar no caso da face B do díptico. Nesse caso, a burocracia racional deixaria de constituir-se como extremo racionalista do continuum, ficaria a ocupar uma posição próxima desse polo, mas seria substituída por outra, já que a organização díptica nunca foi construída com o propósito de representar um número limitado de abordagens teóricas e, muito menos, de as manter enclausuradas entre dois polos rígidos ou fixos (burocracia/anarquia organizada). Dada a plasticidade da representação díptica proposta, admite-se que possa estar sujeita a movimentações mais ou menos profundas. Menos, nos casos em que é possível integrar as novas perspectivas de análise dentro dos limites estabelecidos em dado momento para o díptico, optando pela sua localização numa das faces. Mais, no caso de se revelar necessário “alongar” a linha contínua e localizar um novo referencial teórico para além do polo anteriormente selecionado. É exatamente esse movimento que estou a propor, para integrar no díptico organizacional aquilo que tenho designado por hiperburocracia (Lima, 2012), ou burocracia aumentada.
Tal como refere a pergunta, trata-se, com efeito, de uma atualização, de um desenvolvimento do modelo inicialmente proposto (Lima, 1992). Não, do meu ponto de vista, porque a interpretação hiperburocrática rompa teoricamente como os principais pressupostos teóricos da burocracia, sobretudo se considerarmos as dimensões teóricas do tipo-ideal proposto por Weber, tal como as críticas que ele formulou à burocracia a partir da sua já considerada paixão antiburocrática ou do seu horror à burocracia, segundo biografia mais recente (Radkau, 2011). No entanto, trata-se, segundo creio, de um movimento de recomposição de alguns dos elementos teóricos que constituíram a constelação de dimensões a que Weber chamou burocracia – constituição nunca por ele fechada ou considerada definitiva. Nalguns casos perdendo centralidade, noutros ganhando em intensidade, e muito para além do que o sociólogo alemão poderia ter imaginado; noutros, ainda, despontando como dimensões possivelmente novas.
A segunda razão pela qual, creio eu, o modo de funcionamento díptico das organizações educativas continua a ser usado como recurso prende-se com a sua vocação interpretativa relativamente a dados empíricos, dados provenientes do estudo do plano da ação organizacional concreta. Todo o movimento inerente às duas faces do díptico é realizado através daquilo a que chamei o eixo da ação. As duas faces teóricas do díptico movem-se por inciativa de quem investiga, mas não por razões apenas teóricas, nem sequer devido a eventuais sobredeterminações do plano das orientações para a ação organizacional (leis, normativos, regulamentos e outros documentos injuntivos). Movem-se para permitir uma compreensão e interpretação teoricamente ancoradas da ação organizacional, razão pela qual entendo que a escola, ou a universidade, sob estudo, não é imanentemente burocrática, anárquica, política, cultural, etc.; podendo, de resto, ser interpretada através de mais do que um referencial teórico. É a organização em ação, a organização que está sendo, e não apenas a organização que deve ser, de acordo com a legislação escolar, por exemplo, aquilo que se pretende estudar e interpretar teoricamente. Com frequência, as investigações realizadas justificam o acionamento das duas faces do díptico e, não raramente, de mais do que duas perspectivas de análise – situação que em nada é incompatível com a organização em duas faces, uma vez que em cada uma delas se integram diversas abordagens analíticas.
ND: O processo de privatização da educação nas suas diversas formas é um fenômeno cada vez mais globalizado, endossado pela ideologia neoliberal, pela inserção dos princípios da Nova Gestão Pública na administração da educação ao mesmo tempo que atores privados ganham relevância na definição de políticas educacionais. Como vê esse movimento acontecer na América Latina?
LL: Sou um leitor atento da produção científica sobre a multiforme privatização da educação na América Latina e acompanho particularmente os trabalhos acadêmicos publicados no Brasil. Tenho bastante mais a aprender com os trabalhos de pesquisa realizados por diversos grupos de investigação do que a ensinar sobre essa matéria, tendo já me beneficiado, por diversas vezes, do diálogo com autores e autoras do Brasil.
Sendo certo, como já revela a pergunta, que o fenômeno da privatização da educação é cada vez mais globalizado, o que não deixa de me surpreender é a incessante criatividade, mas também a agressividade comercial, das orientações privatistas e dos interesses econômicos; a insidiosa capacidade de penetração em todas as áreas do mundo educacional; o contraste brutal que ocorre em contextos onde a educação pública e de qualidade social para todos e todas é mais necessária, até para resgatar uma dívida histórica para com populações, classes sociais, etnias, grupos etários, etc.; e a força das ofertas privadas que, por definição, são segmentadas e se dirigem sobretudo a alguns destinatários. Essa força é tal que, na linha do mundo dos negócios, ela não se limita à oferta, destacando-se também na construção e mobilização da procura social de educação, já para além das elites e das classes mais afluentes. E quando se questiona sobre onde estará a clientela de pais e de mães, e de estudantes, com poder aquisitivo suficiente para participar ativamente nas escolhas oferecidas por esse mercado da aprendizagem, encontramos um novo paradoxo: muitas das escolhas e das aquisições são realizadas pelas autoridades centrais, estaduais, municipais, da educação.
É o domínio público que abre a educação, sobretudo a educação escolar, ao domínio privado, que anima e fortalece a competição de um mercado que, por vezes, recusa o seu carácter mercantil e empresarial, apresentando-se sob a capa de fundações, de organizações não governamentais e de outras instâncias formalmente não lucrativas do terceiro sector. Trata-se de outra conhecida dimensão da “Nova Governança”, por exemplo, a partir de lógicas contratualistas realizadas na base das relações entre um “principal” e um “agente”. E, noutros casos, trata-se da influência de novos poderes e interesses, a partir de lógicas de mecenato, de filantropia, de pensamento elaborado por think tanks, etc. Em qualquer das situações, subordinando a educação e os educadores e educadoras a uma outra pedagogia; uma pedagogia que dispensa o seu conhecimento e a sua participação no processo de concepção; uma pedagogia heterônoma, empreendedorista, padronizada e que, de resto, tende a conceber professoras e educadores como profissionais incapazes de construírem autonomamente e contextualizadamente as suas propostas e os seus processos de trabalho pedagógico. São antes considerados grupos-alvo que será necessário socializar, formar, persuadir, garantindo a sua adesão a instrumentos que, paradoxalmente, os apoucam e desprofissionalizam, reservando-lhes o papel de executores sob monitorização, de prestadores de contas, ou, de acordo com a hiperburocracia, de produtores de evidências e de dados que devem ser carreados para plataformas eletrônicas – os novos instrumentos de extração de contas.
Sem diminuir a importância da privatização da educação em sentido restrito e do respectivo mercado, tanto mais quanto penso que a educação e a formação serão uma das maiores áreas de negócio deste século – que iniciamos sob o signo da formação vocacional, da aquisição de competências para competir, das habilidades economicamente valorizáveis, da aprendizagem individual e para a otimização pessoal, da promoção de um self empreendedor e em permanente compita –, têm sido a privatização a que tenho chamado lato sensu e a impregnação empresarial da educação pública as questões a que tenho dedicado maior atenção (Lima, 2018). Isso deve-se não só ao meu continuado interesse em estudar as relações entre política e administração da educação, mas também, no caso em apreço, à centralidade que as teorias da gestão adquiriram no campo da educação. Pode-se dizer que isso aconteceu desde sempre, desde o velho gerencialismo, através do taylorismo e do projeto de uma “administração científica”, mas nunca com a atual intensidade e extensão. A tal ponto que tenho defendido que, hoje, a pesquisa em política educacional já não dispensa o conhecimento das teorias organizacionais e da gestão empresarial, à margem das quais se torna mais difícil interpretar os racionais políticos apresentados, a sua linguagem, as suas concepções de Estado, as reformas organizacionais propostas, etc. Mesmo a linguagem de educadoras e educadores profissionais vai sendo progressivamente marcada por referências a conceitos oriundos da economia e da gestão, acompanhando os discursos políticos e os normativos produzidos pelos diversos governos.
O campo educativo e pedagógico, com as suas teorias, escolas, conceitos e até controvérsias, foi ficando para trás, já a partir de uma formação inicial frequentemente subordinada a orientações técnicas e instrumentais, a um didatismo refém do mundo das novas tecnologias e de suas possíveis derivas “gamificadoras” – incluindo a produção comercial e em larga escala de uma vasta gama de materiais, de pacotes de avaliação e de gestão, de kits didáticos, e de outras ferramentas desintelectualizantes.
Mas tão ou mais importante do que tudo isso é, em meu entender, a profunda mudança cultural que vem sendo operada no mundo da educação, naturalizando não apenas teorias e conceitos de extração privada, típicos do mundo dos negócios; produzindo e reproduzindo uma impregnação empresarial da educação, da pedagogia e da didática, da gestão educacional e da avaliação, da própria formação inicial e continuada de educadores profissionais. Ao produzir uma nova hegemonia, a privatização lato sensu vai-se sucedendo, de forma quase silenciosa e sem obstáculos de maior, na mudança da educação em termos axiológicos, políticos e éticos, introduzindo modas e modelos pós-pedagógicos, a competitividade e o empreendedorismo, a mensuração e a demonstração de evidências empíricas, a meritocracia, o lideracionismo e o inovacionismo. A privatização lato sensu resulta da introdução na educação pública dos princípios considerados mais típicos da gestão privada empresarial, na linha da “Nova Gestão Pública”, por exemplo, de tal sorte que, no limite, se teria de concluir que quanto mais privada fosse uma escola em termos de organização e gestão, de liderança e de avaliação, de seleção e remuneração do pessoal, etc., maior qualidade ganharia enquanto escola pública. O paradoxo resultante poderia, por outro lado, ser considerado por muitos como mais aceitável se construído a partir de estatutos híbridos – que são frequentes em certos países e em Portugal no âmbito das instituições de educação superior –, resultando em escolas públicas sob regime de direito privado, ou escolas públicas de gestão compartilhada ou em parceria público-privada, ou escolas privadas de interesse público, também aqui remetendo para um longo continuum demarcado, nos seus polos, pelo público e pelo privado.
ND: Voltando ao texto “Máquinas de administrar a educação: dominação digital e burocracia aumentada”, no trecho “Na educação, não se tratará apenas do recurso às há muito anunciadas máquinas de ensinar, mas, sobretudo, às máquinas de aprender e, nomeadamente, de aprender a administrar os sistemas e as organizações de educação [...]” (Lima, 2021, p. 3). Pode-se dizer que está em curso um processo de subordinação da administração da educação à lógica introduzida pelas máquinas? Quais seriam as formas de subordinação? Quais as consequências disso para a construção de uma educação humanizadora?
LL: A questão é complexa e, nalguns casos, é ainda cedo para arriscar conclusões. A minha perspectiva tem sido de indagação, problematização, investigação; partindo de uma posição inicial que rejeita a diabolização das novas tecnologias da informação e comunicação, das máquinas digitais de administração e de tomada de decisões automáticas, da inteligência artificial, etc. Trata-se, em todos os casos, de espantosas criações humanas, muitas das quais já disponíveis e em uso há bastante tempo, tendo-se tornado extensões nossas, sem as quais já não seria possível operar e resolver problemas em certas áreas. Em determinados campos, os especialistas admitem desenvolvimentos com enorme potencial de desenvolvimento humano, por exemplo, na medicina, entre outros. O que sabemos, de um ponto de vista histórico, é que quando tivemos acesso a novas tecnologias acabamos quase sempre por usá-las, também no caso da educação. Parto da hipótese de trabalho de que assim será também quanto às novas máquinas inteligentes, até porque é isso que já vem sucedendo. Dito isso, se jamais diabolizo a chamada “revolução digital”, jamais a naturalizo através de uma posição ingénua, aceitando sem exame crítico os discursos épicos e grandiloquentes de um novo maravilhoso digital que, pretensamente, pairaria nas nuvens, olimpicamente, acima e para além de agendas e interesses específicos, de relações de poder, de opções políticas. Como sabemos já, não existem tecnologias neutras, nem no processo da sua construção nem no processo da sua utilização, sendo no domínio das aplicações concretas – nem sempre totalmente previstas inicialmente – que emergem usos e impactos com potencial democrático e humanista; ou, pelo contrário, com vocação opressora, controladora e desumanizadora.
Uma das razões pelas quais continuo a insistir na designação “máquinas de administrar”, “máquinas digitais”, etc. reside exatamente nas vantagens, em termos de compreensão e investigação, de se remeter para as dimensões materiais e artificiais do mundo digital enquanto construções resultantes de ações humanas concretas, históricas, contingentes. Tentando, dessa forma, evitar representações que frequentemente parecem assumir traços antropomórficos, quando não mesmo laivos de uma certa deificação. Estaríamos, em tais cenários, perante instâncias inteligentes supra-humanas, capazes de superar a racionalidade humana e de a substituir com vantagens, uma vez considerada a sua condição de racionalidade limitada, como lhe chamou Herbert Simon (1958), perante uma racionalidade olímpica, típica de deuses, capaz de engendrar decisões ótimas e de, demiurgicamente, recriar o mundo segundo uma nova ordem digital e inteligente.
No contexto histórico e político que tem servido de referência a esta entrevista, marcado por ideários neoliberais e por concepções instrumentais de educação e formação, ao serviço de uma racionalidade econômica, formal, competitiva – que nas organizações educativas vem acentuando os valores da eficácia e da eficiência em busca incessante da “melhor solução” e das “melhores práticas”, incluindo fusões organizacionais e a grande escala como princípio organizador considerado mais racional –, parece ser razoável admitir como hipótese de trabalho a subordinação da educação e da sua organização e administração a lógicas que são mais potentemente servidas pelo recurso a máquinas digitais. Não porque isso esteja forçosamente e naturalmente inscrito nas regras do mundo digital, ou em qualquer código que seria imanente às plataformas eletrônicas e às decisões algorítmicas, mas porque um determinado projeto de educação assim o justifica. E por isso, quando me é perguntado se poderemos “dizer que está em curso um processo de subordinação da administração da educação à lógica introduzida pelas máquinas”, a minha resposta é afirmativa quanto ao processo de subordinação da educação, mas tal subordinação é relativa a uma complexa agenda de valores e de interesses, e não tanto a uma “lógica introduzida pelas máquinas”. Embora assim pareça, realmente, e assim tendamos a exprimir-nos, em rigor as máquinas incorporam processos e regras de subordinação, mas não são elas que definem autonomamente a agenda e os valores, isto é, a política. Atribuir-lhes tais capacidades e, eventualmente, responsabilidades fará parte de um processo de naturalização da decisão política, no qual a solução digitalmente considerada ótima, ou mais adequada, seria transferida da ação humana baseada em preferências que dependem de um referencial axiológico para a decisão automática de uma máquina digital pretensamente neutra, puramente instrumental, apolítica.
É claro que estaremos sempre perante várias formas de subordinação de uma racionalidade educativa substantiva, material; perante novas formas e instrumentos típicos de uma racionalidade técnica, formal, que no limite pode vir a ser considerada irracional, desumanizadora, alienante. Mas tudo isso também aconteceu historicamente, na ausência de máquinas digitais de administrar a educação. O que afirmo, sem ignorar as potencialidades democráticas das máquinas digitais, é que as máquinas de administrar uma educação subordinada à razão técnica, ao controle e à vigilância das práticas educativas, com capacidade de estender essas ações a praticamente todas as áreas do fazer educacional, racionalizando e formalizando todos os processos (pedagógicos, relacionais, curriculares, avaliativos, didáticos, de organização e de gestão, etc.), serão máquinas hiperburocráticas sem paralelo na história da educação. Neste momento, mesmo sem considerar os impactos futuros, por exemplo na sala de aula, das tecnologias de reconhecimento facial, entre outras de reconhecimento sensorial e de monitorização de movimentos e ações em diversos ambientes digitais, as máquinas hiperburocráticas e as novas formas de dominação digital comportam riscos inéditos para a democracia e para a educação enquanto processo de humanização dos seres humanos.
Parafraseando Shoshana Zuboff (2019), poderemos vir a estar perante uma era da educação de vigilância, com a agravante de que não será, sequer, de educação que estaremos a falar, mas mais plausivelmente de mudanças comportamentais associadas a competências e habilidades consideradas de alto valor instrumental. Contexto em que o treinamento, o condicionamento, a inculcação e a programação dos seres humanos seriam resultantes de processos de otimização pessoal e de adaptação isomórfica por parte dos novos “apêndices das máquinas”, agora digitais e infinitamente mais inteligentes do que quando aquela expressão começou a ser usada como crítica à produção capitalista. E agora compreendendo, no caso da educação, não apenas estudantes, mas igualmente e forçosamente seus professores e suas educadoras.
Perante estes cenários, aqui só vagamente esboçados, qualquer desconexão entre democracia e educação poderá vir a ser fatal no futuro, tal como a afirmação continuada da educação como direito humano fundamental, como prática de liberdade, não apenas outorgadas nas grandes declarações e na ordem jurídica, mas efetivamente praticadas e aprofundadas, se poderão vir a revelar decisivas para o futuro dos seres humanos e da sua humanização em contextos de dominação digital.
Agradecimentos
Não se aplica.
-
Financiamento
Não se aplica.
Disponibilidade de dados de pesquisa
Não se aplica.
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Editado por
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Editoras Associadas:
Alessandra Arce Hai https://orcid.org/0000-0002-9275-1201 e Ana Clara Bortoleto Nery https://orcid.org/0000-0001-6316-3243
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
22 Set 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
10 Jan 2025 -
Aceito
16 Jun 2025
