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O “DISCRETO CHARME” DA EXPLORAÇÃO DIGITAL

ANTUNES, R. Riqueza e miséria do trabalho no Brasil IV: trabalho digital, autogestão e expropriação da vida. São Paulo: Boitempo, 2019

Dando continuidade à série de elaborações sobre o mundo do trabalho, vem a público o quarto volume de Riqueza e miséria do trabalho no Brasil, dessa vez, marcado pelo subtítulo “Trabalho digital, autogestão e expropriação da vida” (ANTUNES, 2019ANTUNES, R. (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil IV: trabalho digital, autogestão e expropriação da vida. São Paulo: Boitempo, 2019.). O novo livro organizado por Ricardo Antunes busca traçar um panorama das formas de exploração do trabalho e de expropriação da vida, observando as distintas dinâmicas em continentes, regiões e países, a partir da divisão internacional do trabalho, inserindo o Brasil nesse panorama e aprofundando a reflexão sobre as particularidades nacionais. O novo volume oferece uma contribuição bastante original, na medida em que visa contribuir para a decifração dos enigmas da exploração digital, ou seja, as transformações no mundo do trabalho que vêm caracterizando o capitalismo da era tecnológica.

A obra de Ricardo Antunes tem buscado se contrapor às teses que emergiram de forma vigorosa nos anos neoliberais, segundo as quais a era do trabalho estaria chegando ao fim e, com isso, desapareceria também o conjunto da classe trabalhadora (Antunes, 2008), o que levava a concluir (não sem interesse) que as lutas, seus instrumentos, bem como a perspectiva emancipatória dos trabalhadores, seriam relegados aos livros de história. O novo livro atualiza esse debate, não mais tratando das antigas teses do “fim do trabalho”, mas das suas novas formas de manifestação, agora ligadas à defesa, por parte de economistas do mainstream, de que estaríamos vivenciando uma “quarta revolução industrial” (Schwab, 2016SCHWAB, K. A quarta revolução industrial. São Paulo: Edipro, 2016.): uma era da “comunicatividade”, da robótica, da automação, da inteligência artificial, da internet das coisas e que, com todos esses mecanismos, novamente se revitalizariam as possibilidades de autonomização da produção e reprodução societal a partir das tecnologias, reduzindo a expressão do trabalho na sociedade. Contrapondo-se a essa visão, a obra de Antunes lança luz sobre os novos movimentos da reestruturação do capital, as novas morfologias do trabalho, as novas manifestações laborativas da era digital, ou do cibertariado, como denominou Ursula Huws (2018)HUWS, U. A formação do cibertariado: trabalho virtual em um mundo real. Trad. Murillo van der Laan. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.. Com isso, a obra oferece um quadro que possibilita ao leitor perceber que, diferente de uma produção e reprodução mais autônoma, a realidade é que, sob novas formas, a dimensão da classe trabalhadora tem se reafirmado, evidenciando-se a cada momento seu papel essencial e, acrescentaríamos, sua força relativa e absoluta no conjunto da sociedade, já que se totalizam, segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), cerca de 3,3 bilhões de trabalhadores no mundo (Badaró, 2020, p. 74).

Para fazer essa abordagem, o livro Riqueza e miséria do trabalho no Brasil IV é dividido em três partes. A primeira, intitulada “Trabalho digital, imigração e derrelição do trabalho”, traz contribuições sobre o trabalho digital, a expansão global da terceirização total, a superexploração do trabalho imigrante e a explosão do trabalho intermitente no mundo. No âmbito dessa temática, Ricardo Antunes aborda o plano teórico mais amplo e balizador das pesquisas sobre o proletariado digital, serviços e valor, em que se reflete o trabalho intermitente, o trabalho produtivo e improdutivo na atualidade e a conformação de um novo proletariado de serviços. Uma das teses mais centrais do sociólogo, que nos parece ter sido um fio condutor para a reflexão sobre as principais transformações no mundo do trabalho atual, se refere ao processo de industrialização que vem ocorrendo nesse setor e reconfigurando a morfologia do trabalho, uma vez que a inserção de processos industrias de controle do trabalho tem sido característica nas grandes redes de serviços e redes de comércio, especialmente nos monopólios como Amazon ou Walmart (Rocha, 2019). Esse pode ser também fundamento para pensar a incorporação das técnicas da chamada indústria 4.0 no interior do mundo do trabalho informatizado (Pinto, 2020PINTO, A. Indústria 4.0 na cadeia automotiva: a Mercedes-Benz em São Bernardo do Campo. In: ANTUNES, R. (org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020. p. 193-215.), o que tem levado ao processo chamado de uberização do trabalho, isto é, novas formas de precarização laboral pela via de plataformas, de algoritmos, em aplicativos para o celular (Abilio, 2020bABILIO, L. Uberização: gerenciamento e controle do trabalhador just-in-time. In: ANTUNES, R. (org.) Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020b. p. 111-124.).

Tendo em vista essas teses principais, vejamos o panorama das principais contribuições do livro. Ainda na primeira parte, encontram-se outras pesquisas que sintetizaremos brevemente: Jenny Chan, Ngai Pun e Mark Selden analisam as cadeias de valor da empresa Apple, adentrando no mundo do trabalho chinês, com foco na Foxconn, a exploração do trabalho e a nova classe trabalhadora chinesa; Renán Vega analisa a expropriação do tempo dos trabalhadores, enfatizando o papel das tecnologias de informação e comunicação no capitalismo atual e a forma mais expressiva dessa expropriação simbolizada na permanente “falta de tempo” dos trabalhadores; Raquel Varela e Luísa Pereira abordam a situação do trabalho em Portugal e a questão da segurança social, revisitando o plano histórico, observando a nova massa de trabalho precário no país e seu papel no valor geral e, por fim, fazendo a leitura do papel que o Estado vem assumindo na reconfiguração do mercado de trabalho; Rosana Cillo e Fabio Perocco abordam o fenômeno da subcontratação e da exploração diferenciada de trabalhadores imigrados por meio da análise de três casos na Itália; Mariana Roncato aborda o nó ontológico, ou seja, o estudo da junção na morfologia do trabalho atual entre as dimensões de classe, etnia e gênero, tomando o caso dos trabalhadores brasileiros que emigraram para o Japão a partir do início dos anos de 1990, os chamados dekassegui; por fim, Patrícia Maeda trata da forma específica da precarização que vem ocorrendo, particularmente no Reino Unido, com o “contrato de zero-hora” (zero-hour contract, em inglês), uma forma de contrato flexível surgida já nos anos de 1980, mas difundida no país após os anos 2000, que significa que os trabalhadores ficam de plantão para trabalhar quando o empresário precisa deles.

Intitulada “Gênero, geração e adoecimento: o mosaico da exploração”, a parte seguinte volta a reflexão para a realidade brasileira, buscando adentrar na dinâmica de um conjunto de categorias que explicitam as formas de superexploração do trabalho em nosso país, que levam ao adoecimento, particularmente, da mulher trabalhadora. Assim, começando com duas pesquisas que focam nas relações entre gênero e exploração do trabalho, Bárbara Castro analisa a condição da mulher no setor de tecnologia da informação, expondo as fraudes nas formas de flexibilização e os dilemas e as angústias que esses tipos de contrato suscitam para a vida da mulher trabalhadora, processo no qual o gênero revela a classe; Claudia Mazzei e Marina Pereira partem do setor portuário de Santos para refletir a força de trabalho feminina, a saúde das trabalhadoras e os problemas do adoecimento no contexto da modernização portuária nessa cidade do litoral paulista.

Essa segunda parte continua com um conjunto de quatro pesquisas voltadas à área industrial: Luci Praun apresenta parte de sua investigação sobre a saúde dos trabalhadores da General Motors do Brasil (GMB), particularmente nas plantas de São José dos Campos (SP) e em São Caetano do Sul (SP), buscando estabelecer a conexão entre trabalho, adoecimento e descartabilidade humana; Fagner Santos analisa a reestruturação produtiva em metalúrgicas de Campinas (SP) e o impacto desse processo no corpo e na mente dos trabalhadores, também apresentando os efeitos de adoecimento; José Soares, a partir da Mitsubishi, apresenta o caso da reestruturação e descentralização na indústria de Catalão (GO) e suas subsequentes formas de precarização e flexibilização do trabalho; finalmente, Filipe Raslan (que recebeu uma justa homenagem no livro, dado seu recente falecimento) contribui com o estudo sobre a indústria de calçados de Nova Serrana (MG), expondo as formas de precarização laboral, em particular, o trabalho informal e domiciliar.

Além dessas exposições sobre a indústria, o setor da cana tem dois estudos importantes apresentados: Juliana Guanais desvela a conexão indesatável entre o pagamento por produção e a intensificação do trabalho e superexploração na agroindústria canavieira brasileira, com pesquisas realizadas em usinas localizadas em Piracicaba e Santa Bárbara d’Oeste (SP); Luciano Rodrigues-Filho estuda as transformações na indústria canavieira desde a crise dos 1970, particularmente nos processos de mecanização dos canaviais e as mutações da gestão organizacional, que podem colocar fim à atividade do cortador de cana. O mosaico das categorias é, por fim, enriquecido com a pesquisa de Lívia Godoy, com o estudo sobre o setor aeronáutico, particularmente sobre o processo internacional de financeirização pós-crise estrutural que se abre a partir dos anos de 1970 e os impactos na Embraer; e um estudo de Rodrigo Martoni sobre a precariedade do trabalho em atividades características da área de turismo. Ainda, para completar essa parte do livro, apresentam-se outros dois estudos teóricos: Michelangelo Torres traz uma contribuição sobre a intervenção social das corporações empresariais no Brasil, como nova estratégia nos negócios corporativos; e Cílson Fagiani e Fabiane Previtali abordam, no contexto da era da acumulação flexível, as transformações na educação no Brasil e a formação para o trabalho precário.

Para finalizar, na terceira parte do livro, intitulada “Autogestão, greve, sindicato e rebelião”, depois de traçado um panorama teórico geral sobre as últimas tendências da precarização, é analisada dimensão da rebeldia do trabalho, ou seja, a forma com a qual o mundo do trabalho vem reagindo a essa situação. Nesse sentido, Hermes Augusto e Hugo Dias analisam a atividade grevista, partindo de em uma visão mais ampla do processo de greves em Portugal (“sul do norte”) e Índia (“norte do sul”). Ricardo Festi analisa uma das mais importantes experiências de ocupação de fábrica da América Latina, o caso da indústria ceramista Zanon, na Argentina; Pedro Queiroz foca em um caso de lutas no período do lulismo, no complexo de Suape, em Pernambuco, entre 2008-2012. Bruna Martinelli estuda o caso da resistência no trabalho em call centers e as primeiras experiências sindicais nesse setor, buscando, a partir de entrevistas, entender a percepção dos teleoperadores sobre a atuação de sindicatos da categoria; Claudete Pagotto trata do caso das cooperativas de trabalho, com uma abordagem nos distintos aspectos, tanto sobre a funcionalidade no processo de precarização, como, em alguns casos, a reafirmação de valores coletivos para a construção de uma nova sociedade; Patrícia Lemos aborda as contradições do sindicalismo entre o mercado e a sociedade, com o caso da União Geral dos Trabalhadores; por fim, Ricardo Lara e Mauri Silva estudam as dimensões do trabalho e da crise social no Brasil contemporâneo.

Dessa forma, a importância desse novo livro está em buscar desvelar, precisamente em um momento em que já atingimos mais de 4 milhões de trabalhadores em plataformas no país (Abilio, 2020aABILIO, L. Uberização: a era do trabalhador just-in-time?1. Estudos avançados, São Paulo, v. 34, n. 98, p. 111-126, 2020a.), as dimensões do trabalho pejotizado, informatizado e uberizado, que no “discreto charme” da economia atual são qualificadas como empreendedorismo. Mas a obra também permite novas reflexões, uma vez que tal abordagem não se faz por fora das tendências da economia mundial, que se encontra em plena transformação em um sentido distinto a anterior dinâmica “globalizante” dos anos 1990 (Duménil; Levy, 2014). Um dos desafios que se colocam, a partir dessas teses, é de aprofundar uma visão sistemática do significado da crise de 2008 e tais transformações que se derivam no mundo do trabalho, avançando a seguinte indagação: estaríamos vivenciando tendências, pensando na indústria 4.0 e a uberização do trabalho, que conformariam uma nova reestruturação produtiva na atualidade? Vivenciamos uma reestruturação que aprofunda, mas ao mesmo tempo permite um status próprio, diante das formas toyotistas e de acumulação flexível? Talvez aqui seja um dos caminhos de debate para as próximas pesquisas, algumas das questões instigantes que se podem desdobrar do livro.

Constituindo-se em uma nova contribuição do Grupo de Pesquisa Mundo do Trabalho e suas Metamorfoses (GPMT), fundado em 1986 e que já atua há mais de 30 anos no campo dos estudos sobre o mundo do trabalho, o novo Riqueza e miséria do trabalho no Brasil conta com um amplo quadro de pesquisadores qualificados que investigam minuciosamente essas formas de ser do labor brasileiro, com pesquisas que não se restringem ao horizonte da análise distanciada, mas trazem a marca de engajamento teórico e político de muitos pesquisadores com o objeto estudado, ou seja, a classe trabalhadora. Para os que querem decifrar o sentido que apontam as novas tecnologias no mundo do trabalho, recomendamos como uma obra de referência sobre o tema.

REFERÊNCIAS

  • ABILIO, L. Uberização: a era do trabalhador just-in-time?1. Estudos avançados, São Paulo, v. 34, n. 98, p. 111-126, 2020a.
  • ABILIO, L. Uberização: gerenciamento e controle do trabalhador just-in-time. In: ANTUNES, R. (org.) Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020b. p. 111-124.
  • ANTUNES, R. (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil IV: trabalho digital, autogestão e expropriação da vida. São Paulo: Boitempo, 2019.
  • ANTUNES, R. Adeus ao trabalho?: Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 2008.
  • BADARÓ, M. A classe trabalhadora: de Marx ao nosso tempo. São Paulo: Boitempo, 2019.
  • DUMÉNIL, G; LÉVY, D. L. A crise do neoliberalismo. Trad. Paulo Castanheira. São Paulo, Boitempo, 2014.
  • HUWS, U. A formação do cibertariado: trabalho virtual em um mundo real. Trad. Murillo van der Laan. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.
  • LEMOS, P. R. “Custo baixo todo dia”: redes globais de produção e regime de trabalho no Walmart Brasil. 2019. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP, 2019.
  • PINTO, A. Indústria 4.0 na cadeia automotiva: a Mercedes-Benz em São Bernardo do Campo. In: ANTUNES, R. (org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020. p. 193-215.
  • SCHWAB, K. A quarta revolução industrial. São Paulo: Edipro, 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    04 Nov 2019
  • Aceito
    22 Mar 2022
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