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DEMOCRATAS TÊM MEDO DO POVO? O populismo como resistência política 1 1 Este artigo recebeu financiamento do Programa Pesquisador Gaúcho – Edital 02/2017 – PqG, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS).

DO DEMOCRATS HAVE AFRAID OF PEOPLE? A defense of populism as political resistance

LES DEMOCRATES ONT-ILS PEUR DU PEUPLE? Une defense du populisme comme resistance politique

Resumos

O objetivo deste artigo é apresentar o populismo de esquerda como resistência política contra regimes estabelecidos. Para cumprir esse objetivo, o texto está dividido em três seções principais. Primeiramente, discorremos acerca do atual estado das democracias liberais. Na sequência, tratamos dos impasses teóricos e práticos do populismo para, após, apresentar nossa visão conceitual do fenômeno, ou seja, uma lógica político-discursiva que constitui o povo antagonicamente a seus inimigos. Na última seção, apresentamos a noção de vontade dos iguais, primeiramente discorrendo sobre a dualidade da igualdade: a invenção democrática da igualdade como princípio e a igualdade como horizonte. A seguir, analisamos a estrutura da vontade dos iguais, um tipo específico de populismo de esquerda, o qual entendemos ser capaz de iluminar aspectos referentes às distintas manifestações que têm tido lugar no mundo desde a Primavera Árabe.

Populismo; Democracia; Resistência política; Vontade dos iguais


This article aims at presenting left-wing populism as political resistance against established regimes. For that, the text is divided into three main parts. Firstly, we discuss the current situation of liberal democracies. After we treat some theoretical and practical deadlocks of populism to present our conceptual vision of this phenomenon, that is, a discursive political logic which constitutes the people antagonistically against their enemies. In the last part, we introduce the notion of the will of equals, firstly discussing the duality of equality (the democratic invention of equality as principle and equality as the horizon). Following, we analyse the structure of the will of equals, a particular type of left-wing populism, which we understand to be able to uncover aspects referring to different demonstrations that have been occurring around the World since Arab Spring.

Populism; Democracy; Political resistance; The will of equals


Cet article vise à présenter le populisme de gauche comme résistance politique contre les régimes établis. Pour cela, le texte est divisé en trois parties principales. Tout d’abord, nous discutons de la situation actuelle des démocraties libérales. Après,nous traitons certaines impasses théoriques et pratiques du populisme pour présenter notre vision conceptuelle de ce phénomène, il s’agit, une logique politique discursive qui constitue le peuple de manière antagoniste contre ses ennemis. Dans la dernière partie, nous introduisons la notion de volonté des égaux, en abordant d’abord la dualité de l’égalité (la invention démocratique de l’égalité comme principe et de l’égalité comme horizon). Nous analysons ensuite la structure de la volonté des égaux, un type particulier de populisme de gauche, que nous pensons pouvoir découvrir des aspects faisant référence aux différentes manifestations qui se sont déroulées dans le monde depuis le Printemps arabe.

Populisme; Démocratie; Résistance politique; Volonté des égaux


A luta política é também a luta pela apropriação das palavras.

Jacques Rancière

1 INTRODUÇÃO

O mundo tem assistido ao surgimento de imensas manifestações populares a partir dos episódios que marcaram a Primavera Árabe em 2011. Além dos levantes no mundo islâmico – ocorridos no norte da África e no Oriente Médio, que demandaram o fim de regimes repressivos que, até então, vigoravam há décadas, especialmente na Tunísia, no Egito, na Líbia e na Síria –, suas sementes foram levadas a países democrático-liberais do norte, tais como os Estados Unidos ( Occupy Wall Street ) e a alguns Estados do continente europeu, principalmente a Espanha ( 15M e Podemos ) e a Grécia ( Syriza ). Em 2013, os ares da Primavera chegaram ao Brasil, quando assistimos, perplexos, às impressionantes manifestações de junho. Junho veio, assim, como um autêntico evento inesperado, e teve como uma de suas muitas consequências justamente o fim do sentimento de bonança econômica e social que havia no ar em nosso país.

Se considerarmos as manifestações citadas acima, veremos, primeiramente, que elas são muito distintas entre si. Não há, portanto, se tomados os conteúdos de suas demandas, medidas de comparação entre, por exemplo, o que ocorreu na Tunísia, no Brasil e nos Estados Unidos. Qualquer tentativa de estabelecer paralelos, tendo em vista as demandas específicas de cada evento, encontrará poucos traços comuns.

No entanto, ainda que seus conteúdos sejam distintos, entendemos que essas manifestações possuem uma estrutura de articulação marcada por três elementos comuns. Primeiramente, em todas elas, os manifestantes demandaram políticas redistributivas ou de reconhecimento. Numa palavra: o que eles buscavam, independentemente dos diversos conteúdos das demandas, era igualdade.

O segundo elemento estrutural que perpassou tais manifestações foi seu caráter elusivo. Tais manifestações resultaram de múltiplas demandas e identidades articuladas. Seus “símbolos” foram, entre outros, “a luta pela democratização do país”, “contra os efeitos do capitalismo global”, “mais e melhor distribuição de renda”. Tais exigências foram muito além de quaisquer demandas laborais ou identitárias específicas: são demandas universais por excelência.

O terceiro e último elemento estrutural comum, derivado dos dois primeiros (demandas por igualdade e multiplicidade de movimentos), é que, em todos esses eventos, há a construção de uma identidade que, a despeito de sua especificidade em cada um dos casos acima mencionados, pode ser aqui chamada de identidade popular. Assim, todos esses discursos, como defenderemos ao longo do texto, representaram um tipo de construção do povo, uma forma específica de populismo, o de esquerda, mobilizado pelo que denominaremos aqui e desenvolveremos a seguir: a articulação da “vontade dos iguais”.

Nesse sentido, o objetivo central de nossa análise é apresentar o populismo como resistência política contra regimes estabelecidos. Para tanto, o presente texto está dividido em três seções principais. Primeiramente, discorreremos acerca do atual estado das democracias existentes, visando, entre outros objetivos, a estabelecer a diferença entre cidadão liberal e cidadão democrático. Na seção seguinte, trataremos dos impasses teóricos e práticos do populismo para, em seguida, apresentar nossa visão acerca desse fenômeno político. Na última seção, apresentaremos nossa noção de vontade dos iguais, primeiramente discorrendo sobre a dualidade da igualdade: igualdade como princípio e invenção democrática e igualdade como horizonte. A seguir, analisaremos a estrutura da vontade dos iguais, um tipo específico de populismo igualitário, o qual entendemos ser capaz de iluminar aspectos referentes às distintas manifestações que têm tido lugar nos mais diversos lugares desde a Primavera Árabe.

DEMOCRACIA E PÓS-DEMOCRACIA

A política é uma luta constante para a atribuição e fixação de sentidos, o que vai muito além do que simplesmente nomear algo até então desconhecido. Um novo sentido é, ao mesmo tempo, um ato de batismo e uma tarefa de descrição, os quais jamais ocorrem de forma imparcial ou desinteressada. O processo semântico sempre confere uma posição do significado em relação ao significante na ordem do discurso. Assim, considerando que o discurso é o resultado de uma ordem estabelecida pela articulação sempre contingente de momentos diferenciais, poderíamos dizer, inclusive, que não somente a política é uma luta constante para a atribuição e fixação de sentidos, mas que também a construção de sentidos é, constantemente, um processo de luta política.

Um sentido somente pode ser compreendido no contexto de uma estrutura discursiva. Pensemos, por exemplo, no significante “liberdade”. O que, de fato, significa liberdade? Tal resposta, sempre contextualizada, depende de uma estrutura em que esse significante tem um lugar. Dessa forma, é possível articular discursivamente a palavra liberdade a contextos tão díspares como, por exemplo, no discurso pela independência de uma colônia em relação à metrópole, ou num discurso populista de direita, que articula a libertação de um povo a partir da perseguição xenófoba de imigrantes pobres que ocupam as posições mais baixas no mercado de trabalho.

O ponto fundamental – relativamente óbvio, ainda que passe, não raras vezes, despercebido –, é que não há significantes com significados inequívocos: esses últimos só podem ser conhecidos de forma contingente. E a atribuição contingente de sentidos é sempre resultado de uma luta política. Pensemos sobre o atual estado das democracias realmente existentes a partir da contingência a que estamos nos referindo. Tomaremos o modelo democrático de Robert Dahl (2001)DAHL, R. A. Sobre a democracia. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2001. como exemplar, não somente como um representante do discurso hegemônico da teoria democrática, mas também como exemplo da forma como os regimes democráticos ocidentais estão estruturados.

O modelo da poliarquia de Dahl (2001)DAHL, R. A. Sobre a democracia. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2001. é exemplar, pois ele se assenta numa indisfarçada tentativa de realmente explicar as democracias representativas liberais. O elemento normativo dahlsiano diz respeito ao quão mais ou menos distantes os Estados estão dos critérios que os classificam, ou não, como poliarquias. Dahl é absolutamente consciente do fato de que tais critérios nunca serão suficientemente alcançados, o que indica uma distância entre democracias reais e ideais. 2 2 Em “Sobre a democracia”, Dahl (2001, p. 97, 50), ao descrever o que ele denomina de “a verdadeira democracia”, apresenta a seguinte advertência: “todas as verdadeiras democracias jamais corresponderam aos critérios democráticos descritos na Parte II e apresentados na Figura 4”. Tais critérios apresentados na referida figura são: “1. Participação efetiva; 2. Igualdade de voto; 3. Aquisição de entendimento esclarecido; 4. Exercer o controle definitivo do planejamento; e 5. Inclusão de adultos”. Assim, a poliarquia é medida pela distância entre a experiência (ou realidade empírica) e o ideal, ou seja, um Estado será ou não poliárquico sempre em relação aos demais Estados que supostamente cumpram os requisitos normativos estatuídos pelo modelo normativo.

Nesse sentido, segundo Dahl (2001DAHL, R. A. Sobre a democracia. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2001., p. 99), as seis instituições necessárias e bem conhecidas para qualquer poliarquia são: “funcionários eleitos; eleições livres, justas e frequentes; liberdade de expressão; fontes de informação diversificadas; autonomia para as associações e; cidadania inclusiva”. Tais instituições são, a princípio, tão somente políticas, no sentido de que, conforme o autor, é possível isolar a política de outros âmbitos, tais como o econômico, o social, o cultural etc. O modelo de Dahl opera num registro formal, o que possibilita classificar como poliarquias, por exemplo, a Índia e o Brasil, países com imensas desigualdades sociais, da mesma forma que Dinamarca e Inglaterra. Tal classificação “formal” – minimalista por não ser mais compreensiva, por exemplo, com respeito à busca por igualdade econômica entre os cidadãos – não pode ser simplesmente considerada “formal”, como se o “formal” fosse, a despeito de todas as instituições ausentes e que poderíamos incluir, “imparcial”. A maneira como o “formal” de uma classificação minimalista da democracia se apresenta não tem nada de imparcial: é uma decisão política. E aqui retornamos ao argumento inicial desta seção. Articular elementos diferenciais formais, excluindo outros, é uma forma parcial e contingente de construção de um discurso particular sobre a democracia. Quando democracia é um discurso que compreende tão somente as instituições da lista de Dahl, certamente ele exclui outros. Incluir e excluir são decisões que marcam um comprometimento político específico. No caso das democracias existentes, não há a rigor, por exemplo, qualquer compromisso formal dos regimes com a erradicação da pobreza de uma parte nada irrelevante de seus cidadãos.

O exercício de “isolar” a política em um compartimento específico, como se ela não fosse constantemente contaminada pelas relações reais estabelecidas com outras dimensões – tais como a economia e, mais especificamente, com o capitalismo neoliberal em escala global –, pode ser comparado com a tentativa de analisar o corpo de um animal decepado. Dito de outra forma: a política não existe como um reino que pode ser simplesmente isolado e conhecido de forma independente. É notório que os regimes democráticos sofrem influências de fatores sociais, culturais e econômicos, de modo que considerar “meramente” descritivas as instituições presentes no modelo poliárquico de Dahl (2001)DAHL, R. A. Sobre a democracia. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2001. é tomar uma decisão por não discutir mais profundamente as democracias realmente existentes. Não que cientistas e teóricos políticos não percebam as limitações dos regimes democráticos e da noção de poliarquia: é evidente que percebem. Entretanto, não há, no mainstream da ciência política hegemônica e realista, um compromisso efetivo no sentido de alargar normativamente as instituições democráticas e tornar tais regimes mais inclusivos, sobretudo, do ponto de vista econômico.

Uma consequência imediata das democracias existentes é o tipo de cidadão. O cidadão democrático é tomado sempre de forma isolada, seja pelo mainstream da ciência política, seja no dia a dia do funcionamento dos regimes. Ainda que possamos empiricamente e de forma nada contraintuitiva identificar a fórmula “um indivíduo = um cidadão”, como se ela fosse óbvia e neutra, também não há, aqui, qualquer neutralidade. Novamente estamos diante de uma decisão política, de uma maneira de considerar uma ideia particular de cidadão em um modelo particular de democracia. Vejamos, em linhas gerais, quem é esse cidadão democrático e suas consequências políticas.

O cidadão é, no contexto das democracias ocidentais e das teorias políticas liberais que lhes dão suporte, essencialmente um adulto com direitos políticos. É fundamental ainda levar em consideração que tais direitos são individualmente atribuídos, mesmo aqueles considerados coletivos, como a “autonomia para as associações”. No caso desse último, autonomia para associar-se significa que cada indivíduo tem o direito de associar-se com outros indivíduos, ou seja, o ato associativo é fruto de uma soma de decisões individuais. 3 3 No limite, algo dramaticamente egoísta como Thomas Hobbes (2002, p. 28), mencionou no Do cidadão: “Toda associação, portanto, ou é para o ganho ou para a glória – isto é: não tanto para o amor de nossos próximos, quanto pelo amor de nós mesmos”. Nesse sentido, é crucial considerar que a relação política nas democracias é aquela do Estado com cada um de seus cidadãos. Os direitos são sempre e, desde já, individuais e aqueles considerados coletivos são sempre e, desde já, coletivos, no sentido de serem o resultado da soma de individualidades. A relação entre Estado e cidadão é, assim, pois o cidadão democrático é visto exclusivamente como um indivíduo atomizado e que persegue seus interesses individuais e familiares. Dessa forma, quando o mainstream da ciência política contemporânea está mencionando o “cidadão democrático”, devemos ler, mais exatamente, o “cidadão liberal”. Há uma operação de equivalência entre ambos os termos, que é resultado de uma forma parcial de considerar os significantes “democracia” e “cidadão” a partir de uma perspectiva liberal.

Assim, entendemos ser fundamental para a imaginação democrática “libertar” o significante “cidadão democrático” das amarras do liberalismo, visto que ele é historicamente anterior ao liberalismo, além de guardar sentidos distintos daqueles estabelecidos pela hegemonia liberal. Não há qualquer novidade teórica na promoção dessa separação, visto que diversos autores já discorreram sobre a articulação entre os princípios democrático (igualdade) e liberal (liberdade). 4 4 Chantal Mouffe (2000), por exemplo, em vários trabalhos, menciona essa articulação contingente entre os princípios da liberdade liberal e da igualdade democrática. O que apontaremos aqui é algo diferente: podemos, ao mesmo tempo, falar em “cidadão democrático” e “cidadão liberal” como significantes distintos, mesmo no contexto das democracias representativas liberais. Vejamos, portanto, o que os distingue.

Além de atomizado e perseguidor de seus próprios interesses, o cidadão liberal – ao contrário do democrático, como veremos mais adiante – é politicamente inerte. Também não há qualquer novidade aqui, visto que a teoria elitista da democracia parte desse pressuposto. Joseph Schumpeter (1984)SCHUMPETER, J. A. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1984., por exemplo, afirma claramente que, excetuando os assuntos concernentes a seu interesse imediato, de sua família, de seu local de trabalho, o “cidadão típico”, nas democracias, não tem capacidade de refletir sobre a política. Tal incapacidade não está associada à ignorância, à falta de cultura ou à estupidez, mas ao desinteresse desse indivíduo em relação aos assuntos políticos. A consequência é descrita de forma crua e implacável pelo economista austríaco:

Desse modo, o cidadão típico cai para um nível mais baixo de desempenho mental assim que entra no campo político. Argumenta e analisa de maneira que prontamente reconheceria como infantil, se fosse na esfera de seus interesses reais. Mais uma vez se torna primitivo. Seu pensamento torna-se associativo e afetivo. (Schumpeter, 1984SCHUMPETER, J. A. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1984., p. 328)

Schumpeter, o pai fundador do paradigma elitista e realista da democracia, não está sozinho nesse diagnóstico. Sartori (1965SARTORI, G. Teoria democrática. São Paulo: Lisboa: Editora Fundo de Cultura, 1965., p. 93), ao falar desse mesmo cidadão, quer que “[S]ejamos francos. O eleitor comum é convocado a decidir sobre questões das quais ele nada sabe. Em outras palavras, é incompetente”. Como resultado dessa incompetência, Schumpeter (1984)SCHUMPETER, J. A. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1984. e Sartori (1965)SARTORI, G. Teoria democrática. São Paulo: Lisboa: Editora Fundo de Cultura, 1965. argumentam que a única forma de considerar a possibilidade de uma democracia é a partir da representação, mas não de uma representação que seja a expressão de uma vontade do povo (vontade entendida simplesmente como a soma dos votos de cidadãos incapazes), mas aquela que atribui, como Michels, a centralidade do papel à liderança política. Democracia, a partir de então, deixa de considerar o elemento demos como prioritário, dando-se centralidade ao papel de liderança e governo da elite política, essa última interessada e especializada na condução dos negócios públicos. Schumpeter (1984)SCHUMPETER, J. A. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1984. é, “maquiavelicamente” franco quando afirma que, numa democracia real, o papel do povo se reduz simplesmente a “produzir um governo”, sendo que, a partir de então, todas as decisões realmente importantes devem ser tomadas por esse governo. Literalmente, o povo, como uma identidade politicamente ativa, sai de cena.

O cidadão liberal, no contexto da teoria política elitista liberal, é incompetente não só politicamente, mas também num sentido ontológico. Faz parte da essência desse cidadão a incapacidade política, e não há nada a se fazer para aplacar este fato. Trata-se de uma incompetência constitutiva das democracias contemporâneas, segundo as leituras de Schumpeter, Sartori e seguidores. Daí a necessidade da existência de elites para salvar a democracia. Nada mais irônicodo que uma solução como essa: a salvação do governo do demos está justamente na necessidade de afastar o demos do governo. A salvação do governo popular reside na instituição de uma aristocracia, ou a real democracia, em nosso tempo, é um “governo do povo”, apesar do povo.

Schumpeter (1984)SCHUMPETER, J. A. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1984., Sartori (1965)SARTORI, G. Teoria democrática. São Paulo: Lisboa: Editora Fundo de Cultura, 1965. e os demais representantes do elitismo democrático até poderiam estar certos no diagnóstico do cidadão liberal desinteressado se esse fosse, de fato, um diagnóstico, e não um prognóstico. Eles argumentam que as democracias realmente existentes são como são por serem consequências necessárias do tipo de cidadão “democrático”, e não o contrário: os cidadãos são como são por causa de séculos de um processo de “aculturação” política liberal. O laissez-faire político, assim como o econômico, são reflexos e uma construção discursiva que remonta a heróis como Thomas Hobbes, John Locke e Adam Smith. Assim, o cidadão liberal, oportunamente confundido com o democrático pelas democracias atuais, é fruto de uma estruturação secular, e não um dado de uma essência individual.

“Ajustar” as democracias a essas “essências” individuais dos cidadãos liberais não é, portanto, uma inexorabilidade, mas uma muito bem-vinda conveniência, tanto para as democracias realmente existentes, como para a teoria democrática elitista que lhes dá suporte. Focar nos regimes democráticos respostas “democráticas” para a “essência” dos cidadãos liberais é justificar o discurso do liberalismo clássico de John Locke, o qual previa que os indivíduos deveriam perseguir seus interesses particulares e deixar a política para seus representantes. Tal prescrição lockeana encontra seu ponto mais alto no neoliberalismo o qual, literalmente, privatiza a política segundo os interesses das grandes corporações e do mercado financeiro.

Mencionamos acima a articulação entre política e economia, num nível mais amplo, e entre democracia representativa e capitalismo neoliberal global, de forma mais estrita. Dizíamos que não há possibilidade de se considerar a democracia isoladamente, mas sempre na relação com outros domínios da experiência humana, tais como o social, o cultural e, sobretudo, o econômico. Há uma série de abordagens teóricas e empíricas críticas às democracias existentes por serem elas avessas à vontade popular e fundadas antes no império da lei do que no do demos. O ponto é que a lei não é uma decisão imparcial, mas sempre o resultado do que Rousseau (1978)ROUSSEAU, J-J. Do contrato social. São Paulo: Abril cultural, 1978. chamou de o “direito do mais forte”. Em nossas sociedades, a lei e a democracia liberal estão diretamente a serviço dos “mercados”, ou seja, dos mais ricos, numa inversão olímpica do que um dia representou a ideia de democracia como o governo do povo, dos mais pobres. É, nesse sentido, que o termo pós-democracia, cunhado por Colin Crouch (2004)CROUCH, C. Post-democracy. Cambridge: Polity press, 2004., demonstra claramente a quem interessam e se destinam os regimes democráticos realmente existentes:

Sob esse modelo [a pós-democracia], enquanto eleições certamente existem e podem mudar governos, o debate público eleitoral é um espetáculo rigidamente controlado, conduzido por equipes rivais de profissionais peritos em técnicas de persuasão, considerando-se ainda uma pequena variedade de assuntos selecionados por essas equipes. A massa de cidadãos participa de forma passiva, silenciosa e mesmo apática, respondendo apenas aos sinais apresentados a ela. Por trás do espetáculo do jogo eleitoral, a política é de fato feita de forma privada na interação entre os governos eleitos e as elites que esmagadoramente representam os interesses empresariais. (Crouch, 2004CROUCH, C. Post-democracy. Cambridge: Polity press, 2004., p. 4, tradução nossa)

As pós-democracias em que vivemos formalmente remetem-se à vontade do povo, como se essa vontade pudesse ser representada simplesmente pela eleição de “representantes” em processos eleitorais em que cidadãos desinformados são instados a decidir entre candidatos, forjados em convenções partidárias, e que estão intimamente vinculados aos interesses de grandes empresas e investidores financeiros. Um dos sinais mais cínicos de nossas (pós) democracias reside na não discussão sobre a efetividade da representação. No Brasil, escândalos de corrupção em escala monumental, envolvendo políticos, donos e altos funcionários de grandes corporações empresariais são provas diárias de que os “representantes do povo” representam, na verdade, seus próprios interesses privados e os do capitalismo nacional e internacional. A representação parece ser uma mera formalidade sem qualquer compromisso do representante para com os seus pretensos representados. É aqui que a sinceridade de um conservador como Robert Michels (1982)MICHELS, R. Sociologia dos partidos políticos. Brasília: UnB, 1982. ilumina um aspecto que é evidente, porém mantido comodamente na escuridão. Para Michels (1982)MICHELS, R. Sociologia dos partidos políticos. Brasília: UnB, 1982., a democracia é o autogoverno das massas. No entanto, como argumentou o sociólogo alemão, quando o cidadão vota em um representante, ele simplesmente aliena sua soberania. Deixa de governar. O regime, portanto, deixa de ser uma democracia. Nada mais óbvio. Ou, “nada é mais traiçoeiro que o óbvio”, como certa feita nos disse Schumpeter (1984SCHUMPETER, J. A. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1984., p. 295).

POPULISMO E CONSTRUÇÃO DA VONTADE DO DEMOS

A partir do exposto, define-se que o objetivo central deste texto é o de apresentar o populismo como resistência política contra situações de desigualdade e de injustiça no contexto das (pós) democracias existentes. Para que possamos chegar a esse ponto, precisamos antes esclarecer o que entendemos por populismo. Parte desse esclarecimento tem a necessária tarefa de desmistificar esse termo que, não raras vezes, sob os pontos de vista teórico e político, é também visto como uma ofensa. “Populismo” é uma categoria carregada de ideologia(s), usada para descrever distintas experiências políticas, o que tornou esse termo polissêmico, enfraquecendo sobremaneira seu potencial heurístico para estudos de fenômenos sociopolíticos.

Desmistificar o populismo é, como dissemos, primeiramente, realizar a operação da retirada da carga negativa que pré-noções à esquerda e à direita lhe atribuíram. À esquerda, a acusação mais comum é a de que, a despeito de o populismo articular politicamente o povo, tal articulação nunca é, em última análise, com o objetivo da emancipação desse povo, mas para o próprio benefício do líder e da elite política a ele associada. A “verdadeira” emancipação popular deveria, ao contrário, prescindir de líderes carismáticos que iludem o povo para promover políticas que, ao fim e ao cabo, não seriam nada populares.

À direita, temos a crítica liberal. Para os liberais, o maior problema de qualquer experiência populista é a constante afronta e o desrespeito às instituições democráticas representativas. O populismo promove uma perigosa ligação entre o líder e a massa, passando por cima das normas legais, cujo respeito, defendem os liberais, é fundamental para que possamos assegurar a normalidade democrática. O populismo seria uma forma perigosa e enganosa de “pular etapas”, ou seja, com a promessa de “dar ao povo o que é do povo” de forma imediata, líderes populistas desrespeitam instituições e enfraquecem a democracia. 5 5 Os liberais partem de um pressuposto idealista de que as instituições políticas são neutras e que, se bem conduzidas, garantem o funcionamento normal do regime democrático.

O que há em comum nas críticas apresentadas acima é a associação que ambas fazem entre as experiências populistas e o “engano” que essas dolosamente provocam no povo. É de se perguntar, no entanto, o que “enganar” de fato significa? E o cidadão liberal, por exemplo, está livre de idêntico engano nas democracias ocidentais? E se as instituições estiverem à serviço dos interesses daqueles que as ocupam? 6 6 O caso do processo de impeachment contra Dilma Rousseff é o típico exemplo do uso das instituições para o interesse privado da maioria dos parlamentares de ambas as casas legislativas. Tais críticas – poderíamos dizer, políticas – às experiências populistas, a despeito de serem constantemente repetidas, não necessitam de muito esforço para serem repelidas. Basta que façamos a mesma pergunta em relação ao lugar de onde partem os críticos. O problema realmente importante sobre as experiências populistas refere-se à polissemia interpretativa que as envolve. É nesse sentido que se faz necessário olhar para esses fenômenos de forma mais acurada sob o ponto de vista teórico.

Antes de chegar à nossa compreensão de populismo, é importante lembrar, mesmo de forma sucinta, que esse tema interessa particularmente às Ciências Sociais latino-americanas, seja pelos exemplos clássicos de lideranças populistas – como a de Getúlio Vargas, no Brasil, e a de Juan Domingos Perón, na Argentina –, seja pela rica literatura sociológica e política produzida (por ex. Di Tella, 1969DI TELLA, T. Para uma política latino-americana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.; Germani, 1973GERMANI, G. Democracia representativa y clases populares. In: GERMANI, G.; DI TELLA, T.; IANNI, O. Populismo y contradicciones de clase en latinoamérica. México: Ediciones Era, 1973.; Ianni, 1987IANNI, O. O colapso do populismo no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.; Weffort, 1980WEFFORT, F. O populismo na política brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.). As abordagens clássicas sobre o populismo na América Latina consideram o fenômeno como uma particularidade histórica do desenvolvimento de um processo incipiente e tardio de industrialização na região na primeira metade do século passado, aliado a uma massa urbana desorganizada, recentemente saída do campo e completamente alheia a seus interesses de classe. A despeito das diferentes interpretações teóricas que têm esse pano de fundo, principalmente nas análises do populismo brasileiro, o que há de comum entre elas é o fato de que o fenômeno era considerado transitório e, portanto, próprio do momento de um capitalismo subdesenvolvido.

Tal característica, presente nessas análises clássicas do populismo latino-americano, fez com que, mais recentemente, o teórico político uruguaio Francisco Panizza (2005)PANIZZA, F. Introduction: populism and the mirror of democracy. In: PANIZZA, F. Populism and the mirror of democracy. London: Verso, 2005. as classificasse como abordagens historicistas. O problema, no entanto, é que as análises historicistas, ainda que tenham tido o mérito de iluminar o desenvolvimento político, econômico e social de distintas realidades latino-americanas, esbarraram na tarefa de tornar o populismo uma categoria heurística para além dessas experiências específicas.

Recentemente, o populismo tem sido teoricamente revigorado. Abordagens mais recentes, que remontam mais ou menos à década de 1990, têm enfrentado o fenômeno, não a partir de novas tentativas frustradas de generalizações de experiências conhecidas por esse nome, mas buscando conhecer a especificidade populista presente em todas elas. Tal tarefa é complexa, visto que os estudos empíricos sobre o assunto indicam que ele ocorre em zonas urbanas (peronismo, varguismo) e rurais (o narodniki , na Rússia, o People’s Party , nos Estados Unidos) e pode ser de esquerda (chavismo, kirchnerismo) ou de direita (Jean-Marie Le Pen, na França, Pim Fortuyn, na Holanda). Assim, primeiramente, as pesquisas empíricas indicam que uma teorização geral sobre o populismo deve ir além dessas experiências, no sentido de que elas nos fornecem, ao mesmo tempo, elementos que, por um lado, devem ser abandonados para a elaboração de uma teoria geral do populismo (tais como, por exemplo, a atribuição de uma ideologia ao populismo) e, por outro lado, nos permitem realmente pensar o populismo teoricamente, de uma forma ampla, que torne possível revigorar essa categoria, tornando-a heuristicamente útil.

Vários autores têm pensado o populismo para além de suas experiências concretas. 7 7 As análises de Margaret Canovan (1999), Cas Mudde (2004) e Paul Taggart (2000) são exemplos de empreitadas que buscam estabelecer elementos teóricos gerais do populismo para além de experiências específicas. No entanto, não há formulação teórica contemporânea tão consistente como a elaborada por Ernesto Laclau. Entendemos que, a partir de A razão populista (Laclau, 2013LACLAU, E. A razão populista. São Paulo: Três Estrelas, 2013.), o populismo alcançou o ápice de sua formulação como categoria analítica. A estratégia laclauniana isolou o cerne de seu sentido, ou seja, aquele que está presente em todas as experiências chamadas de populistas. O populismo é percebido pelo autor como uma lógica política que divide antagonicamente o campo social entre o povo e o seu inimigo. Assim, independentemente dos conteúdos políticos reais articulados, o populismo é sempre a construção política de um povo. O que Laclau (2013) percebe com muita clareza é que o populismo é uma lógica que compreende múltiplas possibilidades ideológicas nacionais cuja ocorrência se dá nos lugares mais distintos. Portanto, não há qualquer possibilidade a priori de estabelecer se o populismo é positivo ou negativo: experiências populistas podem ser conservadoras ou progressistas, de direita ou de esquerda, e assim por diante.

O ponto fundamental para chegarmos na especificidade do populismo está, nesse sentido, no entendimento da categoria povo. Comumente, a partir da hegemonização da tradição jurídico-liberal, a expressão povo remete-se ao conjunto dos cidadãos de um Estado democrático. Essa concepção numérica não é somente hegemônica nos regimes democráticos: ela está também sedimentada. 8 8 A ideia de sedimentação, conforme Laclau, inspirado em Husserl, pressupõe um esquecimento das origens, ou seja, a naturalização de uma decisão que não tem nada de natural, pois que é fruto de uma contingência política (Laclau, 1990). Trata-se de uma forma despolitizada (ou que visa a evitar a politização) de considerar o povo por três razões principais. Primeiramente, por partir do indivíduo liberal, um sujeito atomizado que, como vimos a partir dos próprios próceres teóricos elitistas, não tem qualquer interesse em questões políticas. Além disso, considera e restringe a expressão da vontade popular simplesmente ao voto, um expediente esporádico que não retrata necessariamente a vontade de um povo, mas o resultado de uma soma de votos de cidadãos liberais desarticulados e mal informados. Por fim, considerar povo como meramente o conjunto de todos os cidadãos de um Estado legitima que um governante simplesmente desconsidere ou não reconheça uma manifestação pública como popular, visto que, em manifestações, sempre haverá, considerando o conjunto da população, uma pequena parcela do que, segundo essa concepção jurídico-liberal, seria o povo.

Aqui chegamos ao momento crucial em que discernimos o que acima chamamos de “cidadão liberal” do que chamaremos, a partir de agora, de “cidadão democrático”. O cidadão liberal, como vimos, é apático, egoísta, atomizado e inerte em relação à política. Já o cidadão democrático é politicamente engajado a ponto de, no limite, ser antissistêmico, como veremos mais adiante. O povo é o resultado da articulação dos cidadãos democráticos. Voltando à lógica laclauniana, o povo é a construção exitosa da parte (a plebs ) que assume a condição do todo (o populus ). Tal construção é sempre política, precária e contingente. Isso quer dizer que o povo nunca está dado a priori ; ele necessita ser constituído, podendo, nesse sentido, assumir diversas conformações discursivo-ideológicas (progressistas ou conservadoras), nacionais (emancipatórias ou xenófobas), entre outras. Daí a causa da existência de distintas formas de populismo, as quais, dependendo do compromisso ético de quem as observa, serão positivas ou negativas.

Para os objetivos deste artigo, portanto, povo é sempre uma categoria política sem qualquer conteúdo determinado de forma apriorística. Povo é uma identidade coletiva, que se autonomeia como tal – cujas partes se articulam contra um inimigo comum – e que tem seu status reconhecido hegemonicamente pela comunidade política à qual pertence . O reconhecimento do povo tem, portanto, de ser duplo: um autorrreconhecimento e um reconhecimento externo, ainda que esse último sofra resistências. O reconhecimento externo resulta da impossibilidade de um governo, no âmbito da comunidade política, negar a condição de povo àqueles que se reivindicam como tal.

Num primeiro olhar, pode parecer estranha a necessidade de reconhecimento externo a uma identidade popular. Por essa razão, torna-se necessário precisar o sentido que estamos atribuindo à ideia de reconhecimento. Nesse contexto, reconhecimento é o resultado de um processo discursivo que se torna hegemônico, ou seja, uma força política que obriga a comunidade política a reconhecê-la como tal. Como, em maior ou menor grau, o discurso populista é antissistêmico ou anti-institucional, a primeira e mais óbvia reação de uma instituição (governo) é a de negar ao povo o status de povo. Assumir claramente que o movimento é popular é admitir que a instituição – ou o governo – é inimiga do povo, o que seria um ônus democraticamente inaceitável até mesmo para os mais cínicos e reacionários políticos.

Na seção seguinte, trataremos da construção do populismo de esquerda, o qual chamaremos de igualitário. Veremos que, a partir de um processo de articulação hegemônica (Laclau; Mouffe, 2015LACLAU, E; MOUFFE, C. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios; Brasília: CNPq, 2015.), é possível a construção de uma identidade coletiva, ou seja, a “vontade dos iguais”.

O POPULISMO COMO RESISTÊNCIA POLÍTICA: A VONTADE DOS IGUAIS

Na seção anterior, focamos nossa atenção nos aspectos centrais das noções de populismo e de povo, com ênfase especial no seu “núcleo duro”, ou seja, o de ser uma lógica político-discursiva que constitui o povo de modo antagônico a seu inimigo, ou inimigos. Vimos, também, que não podemos determinar a priori uma “ideologia do populismo”, uma vez que o fenômeno abarca um sem número de experiências com distintos graus ideológicos, sociais, culturais, econômicos. Nesta seção, trataremos do que chamamos de populismo igualitário ou de esquerda, o qual é evocado como forma de resistência política a partir da vontade dos iguais.

As democracias liberais, como também vimos, são marcadas pelo distanciamento dos representantes em relação a seus pretensos representados. Decisões fundamentais e que atingem a todos são tomadas em gabinetes fechados e simplesmente apresentadas como as únicas soluções possíveis, devido sempre à “urgência” do momento. Governos à mercê dos “mercados” e de suas exigências, de fato, não podem representar seus cidadãos, cujas necessidades são diametralmente opostas. A política é também uma dimensão longínqua do cidadão liberal, e uma de suas consequências é a apatia política ou o “niilismo passivo”, conforme sugere Simon Critchley (2012)CRITCHLEY, S. Infinitely demanding: ethics of commitment, politics of resistance. London: New York: Verso, 2012..

O populismo quebra esse cenário de apatia e de ausência de representação. No entanto, como enfatizamos, as experiências, por um lado, nos apresentam populismos resultantes de discursos excludentes e xenófobos, tais como notadamente a Europa tem testemunhado nos últimos anos, e, por outro lado, populismos igualitários, como os que têm ocorrido na América Latina. Nossa intenção, conduzida por um compromisso ético em nome da política e da democracia, é defender o populismo de esquerda como forma de resistência política em nome de políticas de reconhecimento e de inclusão social. Essa articulação político-discursiva populista é, conforme nossa leitura, resultado da vontade dos iguais.

A vontade dos iguais é a expressão daqueles que se autointitulam povo e são reconhecidos como tal pela comunidade política. A vontade dos iguais apresenta-se a partir de um discurso hegemônico. A ocorrência populista da vontade dos iguais, até mesmo pelo fato de ser um discurso de resistência política, dá-se necessariamente à parte e contra as estruturas políticas institucionalizadas, inclusive questionando as próprias instituições como locais efetivamente representativos da vontade do povo.

Assim, comecemos pela ideia de igualdade. No contexto de nossa discussão, igualdade pressupõe uma dualidade de sentidos: igualdade como fundamento democrático e igualdade como horizonte de uma democracia ainda não cumprida . Na democracia, portanto, igualdade é o princípio e também o fim. Começa-se igual e busca-se insistentemente a igualdade.

A igualdade, como fundamento, é literalmente uma invenção democrática . Nas demais formas de governo – se tomarmos as clássicas, de onde a democracia também surgiu –, são distintos os fundamentos: linhagem (monarquia), liderança militar (timocracia), homens de bem (aristocracia), riqueza (oligarquia). A democracia pressupõe igualdade entre os cidadãos, mas não uma igualdade de bens, de recursos, de posição, não sendo, portanto, uma homogeneização que possa supor uma sociedade planificada. A igualdade democrática é aquela expressa pela fórmula “cidadão = cidadão”. Tal fórmula, ainda que presente num nível formal nos regimes assumidamente democráticos, só pode ser verdadeiramente considerada se tomarmos a democracia não como um regime político, mas como uma forma específica de socialização que coloca exatamente no mesmo patamar indivíduos diferentes (em distintos aspectos) como cidadãos. Nos regimes democráticos realmente existentes, esse mesmo patamar não se verifica. Um cidadão, na prática, é diferente em direitos de outro, o que nos leva à conclusão de que a democracia, como forma de socialização, é impossível de ser verificada, de fato, em regimes políticos estabelecidos. Impossível, porém, como veremos, necessária.

É difícil lidar com a questão democrática, ainda mais se ela é posta em relação com as demais formas de governo e regimes políticos. O fato é que ela se assenta em um fundamento que, na verdade, é sem fundamento ou, para usar uma expressão heideggeriana, o fundamento que é um abismo, um Abgrund (Heidegger, 1999HEIDEGGER, M. O princípio do fundamento. Lisboa: Instituto Piaget, 1999.). 9 9 A noção heideggeriana de Abgrund e sua utilidade para a teoria política foi desenvolvida em detalhes por Laclau (2014) e Marchart (2007). Não há, assim, na democracia, um princípio de governo baseado em qualidades (riqueza, honra, linhagem, capacidade distintiva). O que há, de fato, é um nivelamento a partir da ideia de igualdade, tal como observou Rancière (1996)RANCIÈRE, J. O desentendimento: política e Filosofia. São Paulo: Editora 34, 1996.. A igualdade é o fundamento que nivela a todos democraticamente, justamente porque parte do pressuposto de que são iguais inclusive àqueles que, em outros aspectos, são desiguais. Isso não se refere, por exemplo, à desigualdade entre os que são cidadãos distintos (princípio da aristocracia) em comparação aos ricos (princípio da oligarquia), mas à inclusão, nessa “estranha igualdade”, daqueles que não são nem distintos, nem ricos, nem nada. Simplesmente são, em suas próprias existências (Rancière, 1996RANCIÈRE, J. O desentendimento: política e Filosofia. São Paulo: Editora 34, 1996.). Esse argumento está claramente presente em Platão e em Aristóteles, para os quais os indivíduos são naturalmente desiguais, e tais desigualdades podiam ser verificadas politicamente em todas as formas de governo, exceto na democrática. Parece que, nesse sentido, a democracia representava uma quebra na hierarquia derivada da natureza das coisas, o que leva Platão, inclusive e de forma indignada, na ordem das formas de governo, a relegar a democracia à condição de antessala da tirania.

A igualdade como fundamento da democracia é, num sentido heideggeriano, um Abgrund , uma vez que esse fundamento é, como dissemos há pouco, um abismo. Assim, se a igualdade é fundamento e o fundamento é igualdade – para tomarmos de empréstimo o quiasmo do filósofo alemão e aplicá-lo à igualdade –, a igualdade não pode ter seu fundamento fora de si mesma, o que significa, no limite, que o sentido de igualdade varia de experiência para experiência democrática. Nas democracias representativas liberais, a igualdade está baseada no princípio “todos são iguais perante a lei”, o que significa algo diferente de “todos são iguais”. Nesse caso, a lei é o meio de ser igual; um meio que, na verdade, não é propriamente um meio, mas um obstáculo à igualdade.

A percepção da igualdade democrática como Abgrund é fundamental à compreensão da dualidade de sentidos acima expressa. Por um lado, a igualdade, vista como fundamento da democracia, deve ser entendida no sentido de que a “igualdade” nunca alcançará um significado último, pois é sempre um significante à espera de significados provisórios e contingentes. É justamente por essa impossibilidade de fechamento de sentidos – pelo fato de a igualdade ser um significante que não tem qualquer significado a priori , mas sempre dependente de uma situação contingente e precária para ser significada – que diferentes regimes democráticos enunciam distintas formas de igualdade. Por outro lado, no que tange à igualdade como horizonte de uma democracia ainda não cumprida, novas possibilidades de significação constituem discursos emancipatórios e igualitários em nome daqueles cuja distribuição da igualdade não é verificada, como veremos a seguir.

Antes, passemos para o último ponto a respeito da igualdade como fundamento democrático, que se refere ao lugar da igualdade em todo regime autonomeado democrático. Nosso ponto de partida para estabelecer esse lugar é novamente Rancière (1996RANCIÈRE, J. O desentendimento: política e Filosofia. São Paulo: Editora 34, 1996., 2004RANCIÈRE, J. Sur le maitre ignorant. Multitudes: revue politique, artistique, philosophique, Paris, nov. 2004. Disponível em: < http://www.multitudes.net/Sur-Le-maitre-ignorant/> . Acesso em: 21 jun. 2016.
http://www.multitudes.net/Sur-Le-maitre-...
). Para o filósofo francês, a igualdade não é um locus onde devemos chegar ou uma condição a alcançar, mas um ponto de partida. Aliás, para Rancière, a desigualdade é somente possível tendo em vista a igualdade: “a igualdade é a condição da própria desigualdade. Para obedecer a uma ordem, é preciso compreendê-la e compreender que devemos obedecê-la. Então, precisamos de um mínimo de igualdade sem a qual a desigualdade se tornaria vazia” (Rancière, 2004, tradução nossa). A igualdade, portanto, se dá sobre o conteúdo do mandato entre aquele que manda e aquele que obedece; só se produz a desigualdade a partir de um consentimento originado na igualdade. Tal compreensão mútua (entre quem manda e quem obedece) está fundada no que Rancière – inspirado no educador francês do século XIX, Joseph Jacotot – chama de igualdade das inteligências. Tal princípio, originalmente pedagógico, é levado por Rancière para o campo social. Assim, se, por um lado, a igualdade é a própria causa da desigualdade, por outro lado, é também a igualdade o meio de romper com a forma pela qual está estabelecida a partilha sempre desigual do sensível: “[E]xiste política porque – quando – a ordem natural dos reis pastores, dos senhores de guerra ou das pessoas de posse é interrompida por uma liberdade que vem atualizar a igualdade última na qual assenta toda ordem social” (Rancière, 1996RANCIÈRE, J. O desentendimento: política e Filosofia. São Paulo: Editora 34, 1996., p. 31, grifo nosso). Essa igualdade última se deve à igualdade das inteligências, que se reflete na idêntica compreensão da ordem entre “superiores” e “inferiores”. Um pouco mais à frente no mesmo parágrafo: “É essa igualdade que corrói toda ordem natural ” (Rancière, 1996RANCIÈRE, J. O desentendimento: política e Filosofia. São Paulo: Editora 34, 1996., p. 31, grifo nosso).

Ainda que, com Rancière, concordemos de que devemos partir da igualdade como princípio democrático (para ele, em realidade, um princípio da política), ao contrário dele, não acreditamos que esse fundamento se dê com base na pressuposição da igualdade das inteligências. Essa forma de conceber a igualdade é onipresente no argumento rancièreano: a política é possível pela igualdade das inteligências, da mesma forma que a polícia também é, visto que a desigualdade depende da igualdade. Assim, a igualdade transgride ao mesmo tempo em que legitima a ordem. Mas, por que uma condição meramente psíquica, como a da igualdade das inteligências, seria um fundamento suficiente, ou, ainda, válido para as igualdade e desigualdade políticas?

Para nós, a igualdade é, literalmente, uma invenção, uma criação da democracia. É uma decisão radical, que torna politicamente iguais aqueles que, em outras dimensões, são “naturalmente” diferentes. Para ser cidadão numa democracia, basta ser uma presença; não é necessário qualquer título, posse ou qualidade. A democracia é o reino da quantidade, das decisões tomadas por pessoas comuns, que estão em número maior, em qualquer sociedade, quando comparadas com aquelas que detêm riquezas, sabedoria, linhagem etc. A decisão da igualdade democrática é a mais radical e, por essa razão, a única verdadeiramente política, sem qualquer interferência ou fundamento externo a ela. Por exemplo, sabemos, desde Platão, que, numa oligarquia, é necessário que existam ricos para que a forma de governo seja um reflexo de tal princípio, que é econômico e só depois se torna político. Numa aristocracia, é preciso haver cidadãos sábios e a própria ideia de sabedoria, para, depois, um governo ser fundado a partir desse princípio. Na democracia, no entanto, não há fundamento, além da política, que a fundamente. A igualdade, sendo esse princípio, é uma decisão propriamente política, um fundamento politicamente criado: uma invenção.

A igualdade democrática é a decisão de ignorar as desigualdades e as diferenças como princípio de poder. Notemos, no entanto, que ignorá-las não é o mesmo que negá-las: a democracia não apaga as desigualdades e as diferenças; ao contrário, as evidencia, ainda que não de forma “natural”, como nas demais formas de governo. É por essa razão que não basta enunciar a igualdade como fundamento democrático para vivermos em um mundo entre “iguais”. A igualdade democrática possível é a da enunciação de um fundamento político que sempre pode ser evocado quando situações de iniquidade ou de injustiça são percebidas. Sendo a igualdade uma invenção da democracia, ela é evocada em situações que não são, em princípio, políticas como, por exemplo, as diferenças econômicas entre ricos e pobres. Quando afirmamos que a desigualdade econômica é um problema a ser enfrentado, somos, já, sujeitos de uma operação política, ou seja, um processo de significação de um tipo de desigualdade que deve ser reduzido ou extinto. A igualdade como fundamento democrático é o dispositivo acionado sempre quando a pergunta “Por que existe esse tipo de desigualdade?” torna-se uma questão política, uma vez que a igualdade, por princípio, sempre autoriza qualquer sujeito a questionar distintas formas de desigualdade. Nesse sentido, ainda que a igualdade como fundamento não seja a verificação fática da igualdade – e nem deveria, pois, como vimos, a própria igualdade não possui um sentido final –, ela autoriza a sua atualização a partir do sentido contingente daqueles que a evocam.

É nesse momento que surge a segunda face da dualidade acima aludida, a qual chamamos de a igualdade como horizonte de uma democracia ainda não cumprida . Para compreender tal horizonte, é preciso analisar a construção da “vontade” dos iguais, a qual se dá a partir da articulação política de um povo (Laclau, 2013LACLAU, E. A razão populista. São Paulo: Três Estrelas, 2013.; Laclau; Mouffe, 2015LACLAU, E; MOUFFE, C. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios; Brasília: CNPq, 2015.).

Em nossos termos, horizonte não é absolutamente um ponto de chegada definido, um projeto delimitado a ser cumprido. Nesse sentido, não há qualquer possibilidade de efetivação de uma “democracia” completa, da mesma forma que resulta impossível uma “igualdade” final. O horizonte aponta, ao mesmo tempo, para o impossível e para o necessário: democracia e igualdade, nesse sentido, são impossíveis e necessárias. A impossibilidade se dá pelo mesmo argumento acima exposto do Abgrund heideggeriano: não há fundamento tanto para a democracia como para a igualdade, e é justamente essa ausência de fundamento final que torna possível a existência de fundamentos precários e contingentes em experiências democráticas e igualitárias. A necessidade está na tentativa sempre ineficaz de fechamento de sentidos, que permanecem estruturalmente abertos, incapazes de dominar o campo da discursividade que eles ocupam. A política, nesse particular, é uma possibilidade presente em um mundo de sentidos sempre abertos. Esse é o caráter do horizonte: uma permanente abertura a um futuro imprevisível.

Tendo em vista a abertura radical que indica a ideia de horizonte, torna-se possível a produção de vontade, essa última, da mesma forma, radicalmente aberta. No contexto dessa discussão, vontade é sempre coletiva, a expressão de uma subjetividade popular contingente. Dessa forma, a vontade dos iguais é o resultado da articulação de sentidos a partir da construção de significantes vazios 10 10 Para Ernesto Laclau, significantes vazios são significantes sem significado, que, ainda assim, fazem parte de um processo discursivo de significação. No ensaio “Por que os significantes vazios são importantes para a política”, Laclau (2011, p. 77) estabelece uma relação de igualdade entre significantes vazios e hegemonia. No decorrer deste artigo, utilizaremos precipuamente o termo hegemonia, o qual, chamamos aqui a atenção, poderá, grosso modo, ser substituído por significantes vazios. que simplificam um sem número de demandas até então dispersas.

A questão fundamental acerca da vontade dos iguais refere-se à estrutura de sua ocorrência. Trata-se, primeiramente, da constituição de uma subjetividade política sistemicamente elusiva. Assim, a vontade produzida depende da hegemonização de certos significantes presentes em uma cadeia de equivalências, cujos sentidos, se somados, são mais ricos e heterogêneos do que aqueles expressos pela vontade dos iguais. Ela exerce um papel de representação, no sentido que Laclau e Mouffe (2015)LACLAU, E; MOUFFE, C. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios; Brasília: CNPq, 2015. atribuem a toda hegemonia, cuja operação será vista adiante. Antes, porém, duas questões merecem destaque: a primeira chamaremos de imagem da vontade dos iguais, e a segunda, quem são, de fato, os “iguais” que a evocam.

A imagem da vontade dos iguais é a de uma manifestação de tipo populista, ou seja, aquela que se reivindica “o povo” contra seus inimigos. Dessa forma, um protesto de professores por aumento de salários e pela qualificação do ensino não é um exemplo da expressão da vontade dos iguais, assim como qualquer manifestação identitária não pode ser igualmente confundida como tal. O que marca a construção da vontade dos iguais é a articulação de múltiplas demandas em nome de uma igualdade que não está sendo verificada pelo poder político. A vontade dos iguais redunda na constituição de um espaço político de enunciação discursiva apartado e antagônico em relação aos canais ordinários da representação política. Não há qualquer conteúdo político dado antes da articulação diferencial que produz o discurso populista da vontade dos iguais; ele será conhecido como resultante da própria articulação, como veremos na sequência desta seção. Já os “iguais” que evocam a vontade dos iguais são, de fato, aqueles que reivindicam a igualdade como fundamento da democracia. Reivindicam a igualdade, alegando que, por serem iguais, já deveriam tê-la, ainda que, de fato, pelas circunstâncias em que vivem, sejam desiguais. A vontade dos iguais é sempre um discurso político de inclusão, de combate às injustiças e, nesse sentido, configura um movimento populista igualitário.

Vejamos, agora, a estrutura da articulação política da vontade dos iguais. Como dissemos acima, ela é inspirada nas lógicas da hegemonia de Laclau e Mouffe (2015)LACLAU, E; MOUFFE, C. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios; Brasília: CNPq, 2015. e do populismo de Laclau (2013)LACLAU, E. A razão populista. São Paulo: Três Estrelas, 2013., com variações que serão oportunamente aqui apontadas. Assim, primeiramente, para o filósofo argentino, uma formação populista origina-se a partir de demandas específicas – tais como, por exemplo, a ausência de saneamento básico, de escola, de posto de saúde em uma comunidade carente –, que se articulam, tendo em vista a frustração gerada pelo seu não acolhimento pelas instâncias de poder. 11 11 Laclau parte da “demanda social” como unidade mínima de análise. Demanda tem dois sentidos: solicitação e exigência. Assim, primeiramente, é demandado (solicitado) da institucionalidade determinadas medidas, as quais, se não satisfeitas, podem gerar o segundo nível da demanda que é o da exigência. Este segundo nível, fruto da frustração de uma solicitação, é, para Laclau, condição fundamental do início da constituição de uma lógica populista (Laclau, 2013). Ainda que concordemos com a noção de “demanda social” como unidade mínima da análise de uma lógica populista que evoca a vontade dos iguais, entendemos ser desnecessária a ideia original do filósofo com respeito à conversão da demanda de “solicitação” para “exigência”. Pois entendemos ser irrelevante saber se, primeiramente, houve um pedido que, em seguida, se converteu em exigência, até pelo fato de que muitas demandas já nascem como exigências desde o princípio. Sendo a análise laclauniana do populismo de caráter ontológico, 12 12 A análise do autor sobre o populismo teve o objetivo de ir além de qualquer empirismo, focando-se nos aspectos formais e ontológicos: “o conceito de populismo que estou propondo é estritamente formal, já que todas as suas características definidoras estão relacionadas exclusivamente a um modo específico de articulação – a privilégio da lógica equivalencial sobre a lógica diferencial – independentemente dos conteúdos reais que se articulam. Este é o motivo pelo qual [...] afirmei que o ‘populismo’ é uma categoria ontológica e não ôntica” (Laclau, 2005, p. 44, tradução nossa). não haveria qualquer razão para tal conversão, o que denota um estranho “etapismo”. Só interessa à formação populista demandas no sentido de exigências e, nesse sentido, em nossa análise, toda demanda é, sempre e já, uma exigência.

As demandas que compõem a vontade dos iguais são demandas por igualdade e por inclusão. 13 13 Isso significa que a vontade dos iguais é um tipo de populismo de esquerda cujo objetivo, ao contrário de experiências populistas conservadoras e retrógadas, é incluir os “iguais” excluídos, no sentido da dualidade da igualdade, como abordamos acima. São demandas daqueles que reivindicam que a igualdade, como fundamento democrático, reflita políticas de inclusão, de reconhecimento: que os iguais sejam percebidos pelo Estado e não somente sejam iguais “em tese” (formalmente iguais), mas que essa igualdade, como fundamento da democracia, seja o meio para acessar recursos que lhes são negados. Nesse sentido, existem desigualdades materiais de toda ordem que os “iguais” buscam minimizar, pois, politicamente, existe esse espaço (o direito de manifestação) ainda que formalmente construído.

Não é, por exemplo, seguindo as leis e a estrutura da economia que haverá inclusão econômica e social; é somente pelo rompimento do que a política representa (no sentido que estamos propondo) que se tornam possíveis mudanças efetivas. Rompimento político significa a necessidade de construir novos canais de expressão em relação aos canais tradicionais, tais como os parlamentos. Não há condição de mudar o jogo seguindo suas regras; é necessário que o tabuleiro seja lançado para o ar ou que suas regras sejam drasticamente alteradas e ambas as alternativas são possíveis somente se o que está dado como certo for questionado e deslocado.

Dito isso, vejamos agora a articulação entre as demandas que geram o discurso populista igualitário da vontade dos iguais. Primeiramente, a articulação é sempre entre demandas distintas, no sentido que Laclau e Mouffe (2015)LACLAU, E; MOUFFE, C. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios; Brasília: CNPq, 2015. atribuem ao processo equivalencial como aquele que é estabelecido entre diferenças. Tal processo é sempre contingente, ou seja, não há previsibilidade, condição a priori , ou ainda identidade com privilégio de liderança. As demandas estabelecem uma relação de articulação, pois têm ponto ou pontos de antagonismo em comum. Esses pontos de antagonismo igualmente não podem ser determinados de forma apriorística, pois também dependem dos tipos de demandas articuladas (ainda que o Estado sempre exerça o papel destacado no polo antagônico, visto que as características inclusivas das demandas que evocam a vontade dos iguais direcionam-se ao Estado em suas mais distintas esferas de ação).

A articulação de demandas é uma operação que pressupõe a ocorrência concomitante de duas lógicas distintas: a da equivalência e a da diferença (Laclau, 2013LACLAU, E. A razão populista. São Paulo: Três Estrelas, 2013.; Laclau; Mouffe, 2015LACLAU, E; MOUFFE, C. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios; Brasília: CNPq, 2015.). A primeira representa a suspensão da diferença de cada demanda articulada (tal suspensão é essencial para que haja a própria articulação). Já a lógica da diferença indica justamente que a articulação é um processo que ocorre entre diferenças, o que sugere uma prática sempre instável, precária e contingente.

Figura 1
Representação de um processo articulatório

No diagrama acima, temos a representação de um processo articulatório. A linha contínua, que separa “Autoritarismo” e “Democracia”, é chamada de antagonismo. Segundo Laclau e Mouffe (2015)LACLAU, E; MOUFFE, C. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios; Brasília: CNPq, 2015., só há política na medida em que existem relações antagônicas. O antagonismo é uma presença que nega uma existência. No caso de nosso exemplo, as demandas articuladas abaixo da linha antagônica têm em comum a luta contra o regime autoritário que as nega ou que é incapaz de satisfazê-las. O antagonismo, portanto, é a prima ratio para a existência da política.

Os círculos acima de “D1=D2=D3…D6...” representam cada uma das demandas articuladas. Notemos que cada círculo possui duas metades divididas por uma linha central. A metade superior indica a relação equivalencial, ou seja, cada uma das demandas articuladas suspende suas particularidades para tornar-se um polo da relação equivalencial. Já a metade inferior indica que, ainda que articuladas, cada demanda mantém sua diferença em relação às demais. “D” é o ponto nodal, o qual, na linguagem de Laclau e Mouffe (2015)LACLAU, E; MOUFFE, C. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios; Brasília: CNPq, 2015., é um ponto discursivo privilegiado, que representa todas as demandas articuladas na cadeia. Ele assume a função da representação hegemônica, ou seja, uma representação que não é o resultado da soma das demandas, num sentido quantitativo, mas, sob um ponto de vista qualitativo, exerce a tarefa de representar o que lhe é incomensurável (Laclau, 1990LACLAU, E. New reflections on the revolution of our time. London: Verso, 1990.). Em nosso exemplo hipotético, a democracia é esse ponto nodal que unifica as demandas contra o inimigo comum, o autoritarismo. A luta pela democracia, nesse sentido, é vista, por cada demanda, como a possibilidade de seu cumprimento, mesmo que “democracia” não signifique (tampouco significará) o cumprimento específico de cada uma delas.

Uma questão fundamental no processo articulatório é que ele deve ser visto sempre como precário e contingente. Dessa forma, não há demanda ou identidade que tenha, de antemão, prioridade no processo de representação hegemônica. Em nosso exemplo, o fato de a luta pela democracia ter se tornado o ponto nodal significou que, entre as demandas articuladas, essa, insistimos, de forma contingente, passou a exercer a tarefa de representação hegemônica que poderia ter sido exercida por qualquer outra, mas que coube, naquelas circunstâncias, à luta pela democratização de um Estado que passava por um regime autoritário.

Entendemos ser o processo articulatório, no sentido expresso por Laclau e Mouffe (2015)LACLAU, E; MOUFFE, C. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios; Brasília: CNPq, 2015., o meio mais adequado para compreender manifestações políticas que evocam a vontade dos iguais. Esse processo redunda na constituição de um povo, uma identidade política que reivindica ser a expressão de uma totalidade, em última medida, impossível, ainda que necessária.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    Este artigo recebeu financiamento do Programa Pesquisador Gaúcho – Edital 02/2017 – PqG, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS).
  • 2
    Em “Sobre a democracia”, Dahl (2001DAHL, R. A. Sobre a democracia. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2001., p. 97, 50), ao descrever o que ele denomina de “a verdadeira democracia”, apresenta a seguinte advertência: “todas as verdadeiras democracias jamais corresponderam aos critérios democráticos descritos na Parte II e apresentados na Figura 4”. Tais critérios apresentados na referida figura são: “1. Participação efetiva; 2. Igualdade de voto; 3. Aquisição de entendimento esclarecido; 4. Exercer o controle definitivo do planejamento; e 5. Inclusão de adultos”.
  • 3
    No limite, algo dramaticamente egoísta como Thomas Hobbes (2002HOBBES, T. Do cidadão. São Paulo: Martins Fontes, 2002., p. 28), mencionou no Do cidadão: “Toda associação, portanto, ou é para o ganho ou para a glória – isto é: não tanto para o amor de nossos próximos, quanto pelo amor de nós mesmos”.
  • 4
    Chantal Mouffe (2000)MOUFFE, C. The democratic paradox. London: Verso, 2000., por exemplo, em vários trabalhos, menciona essa articulação contingente entre os princípios da liberdade liberal e da igualdade democrática.
  • 5
    Os liberais partem de um pressuposto idealista de que as instituições políticas são neutras e que, se bem conduzidas, garantem o funcionamento normal do regime democrático.
  • 6
    O caso do processo de impeachment contra Dilma Rousseff é o típico exemplo do uso das instituições para o interesse privado da maioria dos parlamentares de ambas as casas legislativas.
  • 7
    As análises de Margaret Canovan (1999)CANOVAN, M. Trust the people! Populism and the two faces of democracy. Political studies, v. 47, n. 1, p. 2-16, 1999., Cas Mudde (2004)MUDDE, C. The populist zeigeist. Government and opposition, v. 39, n. 4, p. 541-563, 2004. e Paul Taggart (2000)TAGGART, P. Populism. Buckingham: Open University Press, 2000. são exemplos de empreitadas que buscam estabelecer elementos teóricos gerais do populismo para além de experiências específicas.
  • 8
    A ideia de sedimentação, conforme Laclau, inspirado em Husserl, pressupõe um esquecimento das origens, ou seja, a naturalização de uma decisão que não tem nada de natural, pois que é fruto de uma contingência política (Laclau, 1990LACLAU, E. New reflections on the revolution of our time. London: Verso, 1990.).
  • 9
    A noção heideggeriana de Abgrund e sua utilidade para a teoria política foi desenvolvida em detalhes por Laclau (2014)LACLAU, E. Los fundamentos retóricos de la sociedad. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2014. e Marchart (2007)MARCHART, O. Post-foundational political thought: political difference in Nancy, Lefort, Badiou and Laclau. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2007..
  • 10
    Para Ernesto Laclau, significantes vazios são significantes sem significado, que, ainda assim, fazem parte de um processo discursivo de significação. No ensaio “Por que os significantes vazios são importantes para a política”, Laclau (2011LACLAU, E. Emancipação e diferença. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011., p. 77) estabelece uma relação de igualdade entre significantes vazios e hegemonia. No decorrer deste artigo, utilizaremos precipuamente o termo hegemonia, o qual, chamamos aqui a atenção, poderá, grosso modo, ser substituído por significantes vazios.
  • 11
    Laclau parte da “demanda social” como unidade mínima de análise. Demanda tem dois sentidos: solicitação e exigência. Assim, primeiramente, é demandado (solicitado) da institucionalidade determinadas medidas, as quais, se não satisfeitas, podem gerar o segundo nível da demanda que é o da exigência. Este segundo nível, fruto da frustração de uma solicitação, é, para Laclau, condição fundamental do início da constituição de uma lógica populista (Laclau, 2013LACLAU, E. A razão populista. São Paulo: Três Estrelas, 2013.).
  • 12
    A análise do autor sobre o populismo teve o objetivo de ir além de qualquer empirismo, focando-se nos aspectos formais e ontológicos: “o conceito de populismo que estou propondo é estritamente formal, já que todas as suas características definidoras estão relacionadas exclusivamente a um modo específico de articulação – a privilégio da lógica equivalencial sobre a lógica diferencial – independentemente dos conteúdos reais que se articulam. Este é o motivo pelo qual [...] afirmei que o ‘populismo’ é uma categoria ontológica e não ôntica” (Laclau, 2005LACLAU, E. Populism: what’s in a name? In: PANIZZA, F. (Ed.). Populism and the mirror of democracy. London: Verso, 2005. p. 32-49., p. 44, tradução nossa).
  • 13
    Isso significa que a vontade dos iguais é um tipo de populismo de esquerda cujo objetivo, ao contrário de experiências populistas conservadoras e retrógadas, é incluir os “iguais” excluídos, no sentido da dualidade da igualdade, como abordamos acima.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jun 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    29 Maio 2017
  • Aceito
    08 Abr 2019
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