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ENTRE RACKETS E MONOPÓLIOS

R. P., REGATIERI. Capitalismo sem peias. – a crítica da dominação nos debates no no Instituto de Pesquisa Social no início da década de 1940 e na elaboração da Dialética do Esclarecimento. São Paulo: Humanitas, 2019

Uma das maiores qualidades de um livro no âmbito da teoria social é sua capacidade de, sem descuidar do trato minucioso com os conceitos, saltar para fora do domínio específico da exegese e iluminar o presente histórico. Esse é o caso do livro Capitalismo sem peias , de Ricardo Pagliuso Regatieri.

Fruto de sua tese de doutorado, o livro tem como eixo central discutir a querela travada na Universidade de Columbia em 1941 entre alguns dos principais membros do Instituto de Pesquisa Social e como esta impregnaria decisivamente boa parte da obra posterior da Escola de Frankfurt. No cerne do debate estava a indagação de como avaliar o momento histórico, marcado especialmente pela experiência do nacional-socialismo. Tratar-se-ia de um novo modo de produção? Ou da continuação de uma lógica sistêmica capitalista por outros meios? Entre nazismo e capitalismo, seria possível encontrar afinidades eletivas ou rupturas insuperáveis? Ou o modo alternativo de formular a questão (ou isso ou aquilo) já seria uma forma inadequada de compreendê-la?

Como descreve o primeiro capítulo de Capitalismo sem peias , essas eram as questões subjacentes ao debate organizado por Max Horkheimer, cujos expositores foram F. Pollock, F. Neumann, H. Marcuse, O. Kirchheimer e A. Gurland. Por meio da reconstrução pormenorizada do debate, Regatieri escapa ao lugar comum de certa fortuna crítica que insistiu em reduzi-lo a uma polêmica dicotômica, com Pollock e seu conceito de capitalismo de Estado ocupando um dos polos, e Neumann e seu Behemoth , o outro. Desse modo, se é verdade que os escritos da dupla Pollock e Neumann de fato contrastavam em vários pontos, não se pode afirmar que os demais membros apenas gravitaram em torno deles, ou que teriam aderido sem reservas a apenas um.

O caso de Horkheimer, analisado em detalhe no segundo capítulo, parece ser elucidativo desse ponto. Por meio de um meticuloso trabalho de pesquisa em arquivos na Alemanha, Regatieri resgata, por exemplo, como seu texto publicado em 1942 que viria a ser publicado com o título de “Estado autoritário”, foi, na verdade, originalmente intitulado “capitalismo de Estado” e posteriormente alterado. Isso indicaria uma adesão inicial às teses de Pollock que seriam abandonadas. Contudo, Horkheimer mantém a nomenclatura em diversas passagens do texto, sem, entretanto, a positivação do capitalismo de Estado proposta por Pollock. Ao analisar cartas trocadas entre Neumann, Horkheimer e Adorno no período, Regatieri também revela como Horkheimer, embora crítico da noção de Pollock, recusava-se a abdicar totalmente da concepção engelsiana do Estado como “capitalista total”, que constituía um dos alicerces de Pollock. Regatieri alterna frequentemente entre análise teórica das fontes primárias, debate com a literatura secundária e explicitação do contexto em que se inserem os textos, tudo isso muito bem ancorado em uma pesquisa de arquivos e da correspondência que confere ao livro sólida potência argumentativa.

Os interlocutores contra os quais Regatieri escreve não são explicitados logo de saída, mas aparecem em notas de rodapé, em frases aparentemente menores ou apenas nas considerações finais. O embate teórico travado ao longo do livro como um todo por seu autor é contra uma interpretação corrente, se não hegemônica, segundo a qual a Escola de Frankfurt, especialmente Adorno e Horkheimer, teriam abandonado sem mais a crítica hard do capitalismo em nome de uma filosofia da história abstrata. Pode-se afirmar que Regatieri combate obstinadamente esse argumento em cada capítulo, explicitando como mesmo as formulações à primeira vista mais abstratas da teoria crítica estavam embasadas em uma avaliação da economia política de seu presente histórico. No argumento do livro, esse fundamento teria seu pontapé já nos anos 1930, passaria pelo debate de 1941 e continuaria a ecoar nas décadas seguintes. Teoria tradicional e teoria crítica , por exemplo, texto programático de Horkheimer de 1937, normalmente tomado como um texto eminentemente metodológico, é lido sob nova luz, mostrando como ele já está ancorado na avaliação a respeito do momento histórico, isto é, “a decomposição do capitalismo liberal e sua reconfiguração como capitalismo monopolista, com as implicações que isso tem para os indivíduos e para a cultura” ( Regatieri, 2019REGATIERI, R. P. Capitalismo sem peias – a crítica da dominação nos debates no Instituto de Pesquisa Social no início da década de 1940 e na elaboração da Dialética do Esclarecimento. São Paulo: Humanitas, 2019. , p. 81).

No terceiro capítulo, a investigação nos arquivos realizada pelo autor novamente vem à tona. Nele, Regatieri ressalta um ponto que começa agora a ser explorado na literatura brasileira sobre a Escola de Frankfurt, a saber, como Adorno e Horkheimer encontraram em seu exílio nos EUA um fenômeno e um termo capazes de descrever o mecanismo de dominação próprio da fase pós-liberal do capitalismo (inclusos aí tanto o 3º Reich quanto os EUA): racket. Retirado da literatura sobre o submundo do crime de Chicago, em que grupos de extorsão se valiam da violência física para oprimir populações específicas e concomitantemente vender-lhes proteção, o termo parecia captar a regressão do mecanismo de exploração social tipicamente liberal (a dominação puramente econômica, dada à revelia dos sujeitos sociais diagnosticada por Marx por meio dos conceitos de “mais-valia” e “fetichismo”) para uma forma mais abertamente espoliadora e violenta (tal qual exercida pelos grupos em disputa na Alemanha nazista ou pelos monopólios do capitalismo tardio). Como um bloco nunca plenamente coeso, mas relativamente unificado quando frente a seus inimigos declarados (o comunismo, os judeus, a classe trabalhadora etc.), as concertações de distintos bandos violentos no poder oprimiam a grande massa da sociedade – mesmo parte da pequena e média burguesia, minúscula perante os colossos do poder. Desse modo, a teoria dos rackets presente na Escola de Frankfurt configura-se como uma teoria das classes sociais adaptada à sua conformação no capitalismo pós-liberal – ou ainda como uma teoria das elites, argumenta Regatieri. Os desenvolvimentos históricos do século XX obrigavam os teóricos críticos a revisar os prognósticos marxianos de uma polarização social entre burguesia e proletariado e elaborar uma tese capaz de apreender como frações poderosas de classe dominavam a sociedade como um todo.

O autor persegue uma ideia fixa ao longo do livro inteiro, isto é, mostrar como um dos pontos altos da Escola de Frankfurt, a Dialética do esclarecimento , com todas as suas influências e interlocutores condensados (de Mauss a Freud, de Nietzsche a Sade e tantos outros), não constitui uma crítica civilizacional apartada do marxismo. No quarto capítulo, tal ideia é exposta em sua plenitude. Essa foi a obra que atraiu boa parte dos mal-entendidos relativos à Escola de Frankfurt: afastamento do marxismo, abandono da crítica da economia política, psicologismo, a-historicismo, entre tantas outras acusações. Eis porque Regatieri toma como missão mostrar que o livro escrito a quatro mãos por Adorno e Horkheimer (com a contribuição de Gretel Adorno, cabe não esquecer) estava imbuído de uma série de discussões travadas anteriormente em Columbia e das considerações prévias sobre os rackets e que diziam respeito ao modus operandi da dominação no capitalismo pós-liberal. Inspirada nas formulações de Marx e Engels de acordo com as quais ainda vivemos na pré-história da humanidade e mediada pela teoria da história de W. Benjamin (segundo a qual o mais recente episódio da dominação lança luz sobre o todo), a Dialética do esclarecimento , segundo o autor, mantém-se materialista – muito embora esse materialismo seja permeável a diversas outras influências. Por meio do cotejo das traduções brasileiras da obra em questão (outro exercício realizado a contento em Capitalismo sem peias , uma vez que com propósito e não como mera exibição de distinção intelectual), Regatieri mostra como ela não ficou imune à teoria dos rackets (por sua vez, nunca plenamente completada): o termo racket aparece diversas vezes na publicação original da obra pela editora Querido de Amsterdã, mas foi vertido de modo variado no Brasil, de modo que ao leitor lusófono passou despercebido à teoria das classes sociais e da dominação que embasava o livro. Tal omissão (e aqui não há crítica às valiosas traduções do livro) teria sido uma das responsáveis pela reputação da obra.

Para finalizar, cabe levantar algumas questões relativas ao nosso presente histórico, mediado por um ínterim de mais de um século desde que R. Hilferding e H. Grossman iniciaram a discussão sobre “capitalismo organizado” e “monopolista” que desaguaria posteriormente na teoria dos rackets dos anos 1930, no debate de Columbia de 41, e, finalmente, na Dialética do esclarecimento . Como afirmado acima, o livro de Regatieri, como todo bom exercício de teoria social (crítica), oferece não apenas um insight à teoria da Escola de Frankfurt, como ilumina o presente histórico a partir da própria análise imanente das questões tratadas. Cabe, portanto, mesmo que brevemente, examinar a atualidade do debate hoje.

Parece ser evidente a potência analítica para nossa época da reconstrução dos debates da Escola de Frankfurt relativos ao capitalismo monopolista realizada por Regatieri. Cada vez mais o capitalismo assume um caráter monopolista em que a concentração e a centralização de capital geraram corporações monstruosas nos mais distintos ramos da economia: do agronegócio aos bancos, do setor de tecnologia às petroleiras, praticamente não há hoje nenhum setor da economia que não seja monopolizado ou ao menos intensamente oligopolizado. Que o diga o capitalismo contemporâneo em sua versão de plataforma ( Srnicek, 2017SRNICEK, N. Platform capitalism. Cambridge, UK: Polity, 2017. ).

O mesmo pode ser dito sobre a teoria dos rackets . O fenômeno é nítido na recente ascensão de um bloco aparentemente desconjuntado de extrema-direita no Brasil e no mundo, congregando elementos de ultraneoliberalismo e hiperconservadorismo, determinadas ideologias raciais e teologias pró-mercado, setores das forças armadas e de uma masculinidade branca ressentida ( Brown, 2019BROWN, W. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. São Paulo: Politeia, 2019. ) que ganha coesão justamente em seu confronto com inimigos comuns (comunistas, globalistas, feministas, pessoas LGBTQIA+), em um equilíbrio precário e em constante movimento, mas sempre disposto a lançar mão das táticas mais violentas de opressão social para fazer valer sua agenda política e econômica. O conceito de racket parece ser apropriado para eviscerar como a pré-história da humanidade é uma realidade cara a nós.

Entretanto, assim como a Escola de Frankfurt partilhava certo diagnóstico da ruína do liberalismo, que havia se mostrado apenas um episódio transitório no cortejo triunfal dos vencedores da história (para se valer das teses de Benjamin), poderíamos afirmar que certas considerações contidas em textos como Reflexões sobre a teoria das classes e Capitalismo tardio ou sociedade industrial? , de Adorno, ou Sobre a sociologia das relações de classe , de Horkheimer, também vieram a caducar com a contrarrevolução neoliberal posta em marcha grosso modo desde 1973. Recorrendo a dados empíricos que de fato apontavam então não para uma degradação, mas para uma elevação dos padrões de vida da classe trabalhadora nos países do centro do capitalismo, Adorno e Horkheimer visavam refutar o prognóstico marxista da crescente pauperização da classe trabalhadora e do colapso imanente do sistema em virtude de uma crise final. Ora, nas últimas cinco décadas, os dados mostram que o movimento tendencial do sistema foi justamente na direção contrária, alastrando a pauperização e a precarização em massa na população mundial – paulatinamente até mesmo nos países do Norte Global, nas classes, raças e sexualidades que pareciam outrora salvaguardadas. A crise também voltou a dar as caras por toda a parte no último meio século; a última delas, de 2008, ainda faz sentir seus tremores no globo. Ainda que não como bancarrota total, certamente não foi às calendas gregas que ela foi enviada. O período dos pactos de classe na sociedade industrial avançada também se mostrou muito mais um interlúdio do que a regra – o trumpismo, vivo mesmo sem Trump na presidência, está aí para prová-lo.

De qualquer forma, ao examinar os debates sobre rackets , capitalismo monopolista e transformação do capitalismo pós-liberal travados pela Escola de Frankfurt, Capitalismo sem peias oferece uma excelente oportunidade para continuar a pensar sobre estas questões hoje. Vale citar o trecho resgatado por Regatieri que dá a chave de sua interpretação: “‘nós não temos nada além disso’, responde Horkheimer a Adorno numa conversa de 1956, na qual o primeiro é indagado sobre a utilização da terminologia marxista” ( Regatieri, 2019REGATIERI, R. P. Capitalismo sem peias – a crítica da dominação nos debates no Instituto de Pesquisa Social no início da década de 1940 e na elaboração da Dialética do Esclarecimento. São Paulo: Humanitas, 2019. , p. 165). É nesse espírito de um marxismo aberto para história que o livro ilumina a mais nova face de nossa (ainda) pré-história.

REFERÊNCIAS

  • BROWN, W. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. São Paulo: Politeia, 2019.
  • REGATIERI, R. P. Capitalismo sem peias – a crítica da dominação nos debates no Instituto de Pesquisa Social no início da década de 1940 e na elaboração da Dialética do Esclarecimento. São Paulo: Humanitas, 2019.
  • SRNICEK, N. Platform capitalism. Cambridge, UK: Polity, 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    01 Abr 2020
  • Aceito
    09 Abr 2021
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