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Coagulopatia induzida por trauma e níveis de fibrinogênio: por que precisamos medi-los e quais são as estratégias de suplementação?

INTRODUÇÃO

O fibrinogênio é uma grande glicoproteína produzida no fígado. Com concentração plasmática normal de 1,5 a 3,5g/L, é o fator de coagulação sanguínea mais abundante. O estágio final da formação do coágulo sanguíneo é a conversão do fibrinogênio solúvel em fibrina insolúvel, levando a um coágulo estável.(11 Litvinov RI, Pieters M, de Lange-Loots Z, Weisel JW. Fibrinogen and fibrin. Subcell Biochem. 2021;96:471-501.) Em casos de sangramento grave, o fibrinogênio atinge concentrações plasmáticas criticamente baixas em um estágio mais precoce do que outros fatores de coagulação.(22 Grottke O, Mallaiah S, Karkouti K, Saner F, Haas T. Fibrinogen supplementation and its indications. Semin Thromb Hemost. 2020;46(1):38-49.) O fibrinogênio também se liga aos receptores de glicoproteína IIb/IIIa na membrana plaquetária, promovendo a agregação plaquetária e a estabilização do coágulo.(33 Fullard JF. The role of the platelet glycoprotein IIb/IIIa in thrombosis and haemostasis. Curr Pharm Des. 2004;10(14):1567-76.) A importância do fibrinogênio na firmeza do coágulo pode ser melhor ilustrada por uma analogia com uma parede, conforme proposto por Lang e von Depka.(44 Lang T, von Depka M. [Possibilities and limitations of thrombelastometry/-graphy]. Hamostaseologie. 2006;26(3 Suppl 1):S20-9. German.) Se considerarmos as plaquetas como tijolos e o fibrinogênio como cimento, uma proporção equilibrada nos permite construir uma parede estável ou um coágulo estável. Por outro lado, se o número de tijolos for reduzido (trombocitopenia) e a quantidade de cimento for aumentada (hiperfibrinogenemia), a parede não se romperá e o coágulo será estável devido às concentrações mais altas de fibrinogênio. Entretanto, se houver tijolos, mas não houver cimento (hipofibrinogenemia), o risco de colapso da parede é alto ou, de forma análoga, o risco de sangramento também é alto.

COAGULOPATIA INDUZIDA POR TRAUMA

O trauma é uma das dez principais causas de morte e incapacidade no mundo e é a principal causa de morte na população jovem. Além disso, a hemorragia é responsável por pelo menos 40% das mortes após o trauma.(55 Faria I, Thivalapill N, Makin J, Puyana JC, Raykar N. Bleeding, hemorrhagic shock, and the global blood supply. Crit Care Clin. 2022;38(4):775-93.) Em um hospital brasileiro, foi realizado um estudo retrospectivo que incluiu 467 pacientes com trauma. Dos óbitos, 60% ocorreram em 24 horas. Desses pacientes, 18% morreram por hemorragia.(66 Trajano AD, Pereira BM, Fraga GP. Epidemiology of in-hospital trauma deaths in a Brazilian university hospital. BMC Emerg Med. 2014;14:22.) A coagulopatia induzida por trauma (CIT) é uma consequência da hipoperfusão tecidual e da lesão tecidual. O equilíbrio do sistema de coagulação muda rapidamente durante a lesão e a ressuscitação, e, consequentemente, o fenótipo da CIT pode mudar rapidamente ao longo do tempo, passando de um estado primariamente anticoagulante para um estado pró-coagulante dentro de horas ou dias, se o paciente sobreviver. Foram identificados vários processos, incluindo disfunção de anticoagulantes naturais, disfunção plaquetária, hiperfibrinólise e consumo de fibrinogênio, como componentes primários das CITs.(77 White NJ. Mechanisms of trauma-induced coagulopathy. Hematology Am Soc Hematol Educ Program. 2013;2013:660-3.) No trauma grave, os principais contribuintes para níveis baixos de fibrinogênio incluem hemodiluição (devido à ressuscitação com fluidos), perda de sangue, consumo na formação de coágulos nos locais das feridas, hipotermia e acidose.(88 Moore EE, Moore HB, Kornblith LZ, Neal MD, Hoffman M, Mutch NJ, et al. Trauma-induced coagulopathy. Nat Rev Dis Primers. 2021;7(1):30.) Além disso, na admissão, a hipofibrinogenemia em traumas graves está independentemente associada a um aumento da gravidade da lesão e do choque e é um preditor de mortalidade.(99 Rourke C, Curry N, Khan S, Taylor R, Raza I, Davenport R, et al. Fibrinogen levels during trauma hemorrhage, response to replacement therapy, and association with patient outcomes. J Thromb Haemost. 2012;10(7):1342-51.) Atualmente, a sexta edição das diretrizes europeias sobre o tratamento de grandes traumas após coagulopatia recomenda a suplementação de fibrinogênio para pacientes com sangramento e níveis de fibrinogênio abaixo de 1,5g/L.(1010 Rossaint R, Afshari A, Bouillon B, Cerny V, Cimpoesu D, Curry N, et al. The European guideline on management of major bleeding and coagulopathy following trauma: sixth edition. Crit Care. 2023;27(1):80.)

ESTRATÉGIAS DE SUPLEMENTAÇÃO DE FIBRINOGÊNIO

Há três fontes possíveis de fibrinogênio: plasma fresco congelado (PFC), crioprecipitado e concentrado de fibrinogênio (CF).

O PFC contém uma quantidade variável de fibrinogênio e outros fatores de coagulação. Um estudo de coorte prospectivo não encontrou correção consistente da função do coágulo ou aumentos nas concentrações de fatores pró-coagulantes após a transfusão de PFC durante a fase aguda do sangramento contínuo.(1111 Khan S, Davenport R, Raza I, Glasgow S, De’Ath HD, Johansson PI, et al. Damage control resuscitation using blood component therapy in standard doses has a limited effect on coagulopathy during trauma hemorrhage. Intensive Care Med. 2015;41(2):239-47.) Além disso, o estudo RETIC mostrou que o PFC foi insuficiente para corrigir a hipofibrinogenemia ou melhorar significativamente a força do coágulo em comparação com o CF em pacientes adultos com trauma. Além disso, o estudo foi encerrado precocemente por motivos de futilidade e segurança devido à alta proporção de pacientes no grupo PFC que necessitaram de terapia de resgate em comparação com os do grupo CF.(1212 Innerhofer P, Fries D, Mittermayr M, Innerhofer N, von Langen D, Hell T, et al. Reversal of trauma-induced coagulopathy using first-line coagulation factor concentrates or fresh frozen plasma (RETIC): a single-centre, parallel-group, open-label, randomised trial. Lancet Haematol. 2017;4(6):e258-71.) Além disso, o painel de especialistas das diretrizes europeias de trauma não recomenda a suplementação de fibrinogênio com PFC para corrigir a hipofibrinogenemia se o crioprecipitado ou o CF estiverem disponíveis. De acordo com as diretrizes,(1010 Rossaint R, Afshari A, Bouillon B, Cerny V, Cimpoesu D, Curry N, et al. The European guideline on management of major bleeding and coagulopathy following trauma: sixth edition. Crit Care. 2023;27(1):80.) a evidência foi de grau 1C.

O crioprecipitado é derivado do PFC e consiste em fator VIII, fibrinogênio, fator de von Willebrand, fator XIII, fibronectina e outras proteínas plasmáticas, como a alfa-2 antiplasmina, que diminui a fibrinólise. A variabilidade dos níveis de fatores de coagulação em doadores de sangue significa que a CF no crioprecipitado também varia.(1313 Callum JL, Karkouti K, Lin Y. Cryoprecipitate: the current state of knowledge. Transfus Med Rev. 2009;23(3):177-88.)

O CRYOSTAT-1 foi um estudo de viabilidade para um estudo multicêntrico, randomizado e controlado que avaliou os efeitos da administração precoce de crioprecipitado em altas doses em pacientes adultos com trauma. Esse estudo de 1 ano recrutou 43 pacientes, sendo que todos completaram uma visita de acompanhamento subsequente de 3 meses. Os autores concluíram que a terapia precoce com crioprecipitado manteve níveis aceitáveis de fibrinogênio no sangue durante o sangramento ativo, com sinal de redução da mortalidade no braço de tratamento do estudo.(1414 Curry N, Rourke C, Davenport R, Beer S, Pankhurst L, Deary A, et al. Early cryoprecipitate for major haemorrhage in trauma: a randomised controlled feasibility trial. Br J Anaesth. 2015;115(1):76-83.) O CRYOSTAT-1 facilitou o desenvolvimento do estudo CRYOSTAT-2. No estudo CRYOSTAT-2, foi testado o efeito do crioprecipitado precoce (dentro de 90 minutos após a admissão) em comparação com a terapia-padrão de transfusão de sangue em 1.605 pacientes com sangramento de trauma de 26 grandes centros de trauma. A análise dos dados está em andamento. Esse estudo fornecerá a resposta sobre se o crioprecipitado transfundido precocemente em casos de trauma grave reduz a mortalidade.(1515 Curry N, Davenport R, Lucas J, Deary A, Benger J, Edwards A, et al. The CRYOSTAT2 trial: the rationale and study protocol for a multi-centre, randomised, controlled trial evaluating the effects of early high-dose cryoprecipitate in adult patients with major trauma haemorrhage requiring major haemorrhage protocol activation. Transfus Med. 2023;33(2):123-31.) Atualmente, a forma mais difundida de reposição de fibrinogênio no Reino Unido, no Canadá e na Austrália é por meio da administração de crioprecipitado, o que contrasta com a maior parte da Europa, em que o CF é o método preferido de reposição.(1616 Novak A, Stanworth SJ, Curry N. Do we still need cryoprecipitate? Cryoprecipitate and fibrinogen concentrate as treatments for major hemorrhage - how do they compare? Expert Rev Hematol. 2018;11(5):351-60.)

Na maioria dos países europeus, o CF é o principal produto para substituir o fibrinogênio devido ao seu perfil de segurança viral aumentado, à concentração padronizada de fibrinogênio, ao menor risco de TRALI e TACO, aos benefícios da temperatura ambiente e à administração mais rápida.(1717 Jensen NH, Stensballe J, Afshari A. Comparing efficacy and safety of fibrinogen concentrate to cryoprecipitate in bleeding patients: a systematic review. Acta Anaesthesiol Scand. 2016;60(8):1033-42.)

O estudo FiiRST descreveu um estudo-piloto de viabilidade para avaliar o efeito sobre os resultados clínicos e laboratoriais e as complicações da infusão precoce de CF em casos de trauma. Foram randomizados 50 pacientes adultos hipotensos que necessitaram de transfusão de sangue para receber 6g de CF ou placebo. Os autores observaram que a infusão precoce de CF foi viável e levou a um aumento da concentração plasmática de fibrinogênio durante a ressuscitação do trauma.(1818 Nascimento B, Callum J, Tien H, Peng H, Rizoli S, Karanicolas P, et al. Fibrinogen in the initial resuscitation of severe trauma (FiiRST): a randomized feasibility trial. Br J Anaesth. 2016;117(6):775-82.)

Recentemente, o estudo FlinTIC(1919 Ziegler B, Bachler M, Haberfellner H, Niederwanger C, Innerhofer P, Hell T, Kaufmann M, Maegele M, Martinowitz U, Nebl C, Oswald E, Schöchl H, Schenk B, Thaler M, Treichl B, Voelckel W, Zykova I, Wimmer C, Fries D; FIinTIC study group. Efficacy of prehospital administration of fibrinogen concentrate in trauma patients bleeding or presumed to bleed (FIinTIC): A multicentre, double-blind, placebo-controlled, randomised pilot study. Eur J Anaesthesiol. 2021;38(4):348-57.) avaliou se o CF no ambiente pré-hospitalar poderia melhorar a estabilidade do coágulo sanguíneo em CITs. Os pacientes foram alocados para receber CF ou placebo no local do trauma ou durante o transporte. Uma dose de 3g do medicamento do estudo foi administrada a pacientes com peso corporal de 30 a 60kg, 4,5g a pacientes com peso corporal de 60 a 90kg e 6g a pacientes com peso corporal de 90 a 120kg. A diferença média entre os grupos na alteração do FIBTEM MCF foi de 5mm. Os autores concluíram que a administração precoce de CF era viável para o atendimento pré-hospitalar de traumas. Além disso, eles mencionaram que a suplementação de CF protege contra a depleção precoce de fibrinogênio e promove o início rápido e a estabilidade do coágulo sanguíneo.

CONCLUSÃO

A hipofibrinogenemia é uma causa importante de sangramento em pacientes com trauma. O tratamento continua sendo a reposição de fibrinogênio com crioprecipitado ou concentrado de fibrinogênio. Entretanto, não há evidências que demonstrem que o concentrado de fibrinogênio seja superior ao crioprecipitado em casos de coagulopatia induzida por trauma. São necessários estudos multicêntricos maiores para elucidar a melhor estratégia de suplementação de fibrinogênio em pacientes com trauma.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    27 Maio 2023
  • Aceito
    03 Jun 2023
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