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Por uma teoria crítica das tecnologias de gestão: a ambivalência da tecnologia, a moldura Feenbergiana e a possibilidade da racionalização subversiva

Por una teoría crítica de las tecnologías de gestión: la ambivalencia de la tecnología, el marco teórico feenbergiano y la posibilidad de una racionalización subversiva

Resumo

Nosso objetivo neste artigo é propor uma moldura teórica para compreender e ressignificar os conhecimentos tecnológicos de gestão à luz da teoria crítica da tecnologia proposta por Andrew Feenberg (1999, 2002). Discutimos a possibilidade de tecnologias de gestão por outra base ideológica, trazendo o posicionamento de autores clássicos e contemporâneos. Em seguida, são apresentados os conceitos centrais da teoria crítica da tecnologia, bem como as potencialidades desta visando à ressignificação dos conhecimentos tecnológicos nas organizações. Os principais conceitos trabalhados são: a tese da ambivalência da tecnologia, a racionalização subversiva e os momentos reificadores e integrativos da práxis tecnológica. Para reforçar nossa argumentação, apresentamos ao final um exemplo de tecnologia de gestão que poderia ser considerada crítica - o Dragon Dreaming. Concluímos que a teoria de Andrew Feenberg pode contribuir para avançar no pensamento sobre a práxis crítica da gestão enquanto tecnologia. Ademais, apontamos a necessidade de articulação das tecnologias no campo da gestão com outros sistemas tecnológicos libertadores, integrando um projeto político mais amplo.

Palavras-chave:
Teoria crítica da tecnologia; Tecnologias de gestão; Tecnologia crítica de gestão

Resumen

Nuestro objetivo en este artículo es proponer un marco teórico para comprender y resignificar el conocimiento tecnológico de la gestión a partir de la teoría crítica de la tecnología propuesta por Andrew Feenberg (1999, 2002). En su curso, se discutió la posibilidad de las tecnologías de gestión desde otra base ideológica, acercando la posición de autores clásicos y contemporáneos. Luego, se presentan los conceptos centrales de la teoría crítica de la tecnología, así como el potencial de esta teoría con miras a la resignificación del conocimiento tecnológico en las organizaciones. Los principales conceptos trabajados son: la tesis de la ambivalencia de la tecnología, la racionalización subversiva y los momentos cosificantes e integradores de la praxis tecnológica. Para reforzar nuestro argumento, presentamos al final un ejemplo de tecnología de gestión que podría considerarse crítica: el Dragon Dreaming. Concluimos que la teoría de Andrew Feenberg puede contribuir al avance del pensamiento sobre la praxis crítica de la gestión como tecnología. Además, señalamos la necesidad de articular las tecnologías en el campo de la gestión con otros sistemas tecnológicos libertadores, integrando un proyecto político más amplio.

Palabras clave:
Teoría crítica de la tecnología; Tecnologías de gestión; Tecnología crítica de gestión

Abstract

This article proposes a theoretical framework to understand and reframe technological and management knowledge in the light of the critical theory of technology proposed by Andrew Feenberg (1999, 2002). We discuss the possibility of management technologies on another ideological basis, bringing together the perspective of classic and contemporary authors. Subsequently, we present the central concepts of the critical theory of technology and their potential to reframe technological knowledge in organizations. The main concepts approached are the ambivalence of technology, the subversive rationalization, and the reifying and integrative moments of technical practice. To reinforce our argument, we present an example of management technology that could be considered critical -Dragon Dreaming. We conclude that Andrew Feenberg’s theory can contribute to discussions on the critical practice of management as a technology. In addition, we point out the need to link management technologies with other liberating technological systems, integrating a broader political project.

Keywords:
Critical theory of technology; Management technologies; Critical management technology

INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo é propor, à luz da teoria crítica da tecnologia de Andrew Feenberg (1999Feenberg, A. (1999). Questioning technology. New York, NY: Routledge., 2002), uma moldura teórica para compreender e ressignificar os conhecimentos tecnológicos de gestão. O intuito principal é contribuir para a elaboração de meios para que os estudos organizacionais críticos possam se aproximar mais da práxis tecnológica, ou seja, da compreensão, aplicação e proposição de conhecimentos capazes de orientar mais concretamente a construção de organizações alinhadas a ideais autogestionários, humanistas e sustentáveis.

Para isso, recorremos, em primeiro lugar, ao próprio conceito de tecnologia. De acordo com Pinto (2005Pinto, A. V. (2005). O Conceito da Tecnologia. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto., p. 220), a tecnologia é um “[...] conjunto de técnicas de que dispõe uma determinada sociedade, em qualquer fase histórica do seu desenvolvimento”, sendo meios pelos quais resultados são produzidos. De forma mais específica, neste artigo, com base na obra de Feenberg (1999Feenberg, A. (1999). Questioning technology. New York, NY: Routledge., 2002Feenberg, A. (2002). Transforming technology: a critical theory revisited. Nova York, NY: Oxford University Press.), entendemos a gestão como um conjunto de ideias e ferramentas que enfeixam as “tecnologias de gestão” e que buscam obter resultados dentro de contextos organizacionais, por intermédio da transformação do trabalho humano.

Tendo por base a tipologia habermasiana dos três tipos de conhecimentos (Habermas, 1982Habermas, J. (1982). Conhecimento e interesse: com um novo posfácio (1968). Rio de Janeiro, RJ: Zahar Editores.), entendemos por “tecnologia de gestão” o conhecimento técnico que orienta o agir sobre a realidade organizacional, de forma a alterá-la. Para atingir tal interesse, a realidade é objetivada, podendo ser experimentada pelo sujeito que busca conhecê-la. Dessa forma, torna-se possível ordenar abstratamente a experiência caótica do cotidiano das organizações, objetivando fatos que podem ser considerados como padrões ou fenômenos observáveis. Recorrendo a Feenberg (2002Feenberg, A. (2002). Transforming technology: a critical theory revisited. Nova York, NY: Oxford University Press.), entendemos que tal ordenamento e objetivação do real, preconizados pelo conhecimento tecnológico, não é neutro nem autônomo, mas sim guiado por valores determinados a priori, usualmente, pelos interesses de grupos sociais detentores de poder.

Historicamente, o mainstream das tecnologias de gestão tem sido influenciado por valores associados à performance financeira e à competitividade. A realidade objetivada por este tipo de tecnologia, frequentemente, configura-se por meio de indicadores quantitativos de performance e da naturalização das relações hierárquicas. Neste contexto, Tenório (1998Tenório, F. G. (1998). Gestão Social: uma perspectiva conceitual. Revista de Administração Pública, 32(5), 7-23.) descreve a gestão estratégica, ou gestão tradicional, como uma ação social utilitarista, na qual um indivíduo ou grupo possui algum tipo de autoridade formal sobre os outros, detendo unilateralmente o poder técnico. A hegemonia tecnocrática reifica a centralização das informações e a hierarquização das relações.

Cabe contextualizar que a palavra reificação deriva do latim: res = coisa; reifis = tornar coisa, coisificar. Remete, assim, à ideia de uma ação materializada que toma vida própria, à percepção de separação entre observador e objeto observado, ao tratamento coisificado (Bueno, 2013Bueno, N. L. (2013). Tecnologia educacional e reificação: uma abordagem crítica a partir de Marx e Lukács (Tese de Doutorado). Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR. ). Usamos aqui o conceito de reificação no sentido adotado por Feenberg (2002Feenberg, A. (2002). Transforming technology: a critical theory revisited. Nova York, NY: Oxford University Press.), que, embora baseie-se na concepção clássica de Georg Luckács, enfatiza-a como fenômeno apenas aparente, visto que sujeito e objeto se inter-relacionam e se autoconstituem sempre, mesmo que não haja consciência disso. Portanto a reificação seria uma forma distorcida de percepção da realidade, passível de reconstrução mediante reintegração do objeto ao seu contexto.

Para ressignificar a tecnologia em uma perspectiva crítica, Feenberg (2002Feenberg, A. (2002). Transforming technology: a critical theory revisited. Nova York, NY: Oxford University Press.) defende a tese da ambivalência da tecnologia: ela pode ser instrumento de reprodução do estado das coisas; ou pode contribuir para modificá-lo. Portanto valemo-nos, aqui, das ideias deste autor para propor caminhos para reflexão, construção e aplicação de tecnologias críticas de gestão. Propomos tomar como base pressupostos e valores da teoria crítica para que uma realidade organizacional subversiva possa ser constituída por intermédio instrumentos tecnológicos. Assim, é necessário objetivar e ordenar as experiências do cotidiano utilizando parâmetros não convencionais, tais como critérios de equidade, de participação e de autonomia dos indivíduos.

Após esta introdução, este artigo divide-se em cinco partes. Na próxima seção, discutimos brevemente a possibilidade de tecnologias de gestão por outra base ideológica, trazendo o posicionamento de autores clássicos e contemporâneos. Na seção seguinte, apresentamos os conceitos da teoria crítica da tecnologia em Feenberg (2002Feenberg, A. (2002). Transforming technology: a critical theory revisited. Nova York, NY: Oxford University Press.), com destaque para a racionalização subversiva e os momentos reificadores e integrativos da práxis tecnológica. Na quarta parte, abordamos as potencialidades da teoria crítica da tecnologia para a ressignificação das tecnologias de gestão, apresentando um exemplo de tecnologia de gestão - o Dragon Dreaming. Em seguida, apresentamos nossas considerações finais, as potenciais contribuições do artigo e a importância de um projeto político-tecnológico mais amplo.

SOBRE A POSSIBILIDADE DE UMA TECNOLOGIA DE GESTÃO POR OUTRA BASE IDEOLÓGICA

Tragtenberg (1971Tragtenberg, M. (1971). A teoria geral da Administração é uma ideologia? Revista de Administração de Empresas, 11(4), 7-21.) abordou a teoria geral da Administração como reflexo ideológico das formações socioeconômicas, representando os interesses dominantes de cada época. O autor rastreou as origens das categorias da atual teoria da Administração em um período histórico anterior ao capitalismo e à Revolução Industrial. Segundo ele, o padrão das organizações modernas teria suas raízes nos impérios asiáticos da Antiguidade, quando a burocracia deixou de exercer funções técnicas de coordenação para assumir as funções de exploração e de monopólio do poder político. Teria surgido assim a chamada “dominação burocrático-patrimonial”, um tipo sofisticado de dominação que ocorre “[...] não de um indivíduo sobre o outro, mas de um indivíduo que personifica uma função sobre a comunidade” (Tragtenberg, 1971Tragtenberg, M. (1971). A teoria geral da Administração é uma ideologia? Revista de Administração de Empresas, 11(4), 7-21., p. 8).

O autor relata a recorrência desse tipo de dominação em diversos contextos históricos. Entretanto teria sido no capitalismo que a burocracia patrimonial floresceu com mais rigor, passando da esfera pública para a privada. Neste contexto, Tragtenberg (1971Tragtenberg, M. (1971). A teoria geral da Administração é uma ideologia? Revista de Administração de Empresas, 11(4), 7-21.) aponta o surgimento da moderna teoria geral da Administração, com Taylor, passando por Mayo e chegando ao sistemismo. O autor demonstra que cada uma dessas teorias foram determinadas historicamente por necessidades específicas do sistema social, mas sempre baseadas no modelo da dominação burocrático-patrimonial. Assim, o autor conclui:

A teoria geral da Administração é ideológica, na medida em que traz em si a ambiguidade básica do processo ideológico, que consiste no seguinte: vincula-se ela às determinações sociais reais, enquanto técnica (de trabalho industrial, administrativo, comercial) por mediação do trabalho; e afasta-se dessas determinações reais, compondo-se em um universo sistemático, organizado, refletindo deformadamente o real, enquanto ideologia (Tragtenberg, 1971Tragtenberg, M. (1971). A teoria geral da Administração é uma ideologia? Revista de Administração de Empresas, 11(4), 7-21., p. 20, grifos nossos).

Tragtenberg (1971Tragtenberg, M. (1971). A teoria geral da Administração é uma ideologia? Revista de Administração de Empresas, 11(4), 7-21.) compreende as teorias da Administração como ideológicas, mas, ao mesmo tempo, enxerga nelas aspectos técnicos, vinculados a determinações reais do trabalho. Em virtude disso, o autor afirma ter a burocracia surgido de necessidades técnicas de organização do trabalho e apenas posteriormente ter se tornado instrumento de dominação. Tragtenberg dedicou grande parte de seu trabalho ao estudo de formatos organizacionais autogestionários e de relações sociais horizontalizadas (Misoczky, Flores, & Goulart, 2015Misoczky, M. C., Flores, R. K., & Goulart, S. (2015). An anti-management statement in dialogue with critical Brazilian authors. Revista de Administração de Empresas, 55(2), 130-138.; Paes de Paula, 2008Paes de Paula, A. P. (2008). Maurício Tragtenberg: contribuições de um marxista anarquizante para os estudos organizacionais críticos. Revista de Administração Pública, 42(5), 949-968. ). Observamos aqui, portanto, uma concepção ambivalente a respeito da gestão, pois notamos uma abertura por parte do autor para possibilidades de tecnologias de gestão diversas, baseadas em valores diferentes para um contexto social mais igualitário.

Um pouco mais tarde, Guerreiro Ramos (1989Ramos, A. G. (1989). A Nova Ciência das Organizações: uma reconstrução da riqueza das nações. Rio de Janeiro, RJ: Editora da FGV.) assumiu também o desafio de formular uma nova teoria da Administração, baseada em valores diferenciados em relação aos do mercado e em premissas diferentes daquelas das ciências da natureza. Neste caminho, o autor criticou a Escola das Relações Humanas como política cognitiva, por uma falsa preocupação com os fatores humanos na organização do trabalho, tendo como propósito expandir a submissão de indivíduos “alegres detentores de emprego” (Ramos, 1989Ramos, A. G. (1989). A Nova Ciência das Organizações: uma reconstrução da riqueza das nações. Rio de Janeiro, RJ: Editora da FGV., p. 98). No entanto, Guerreiro Ramos (1989Ramos, A. G. (1989). A Nova Ciência das Organizações: uma reconstrução da riqueza das nações. Rio de Janeiro, RJ: Editora da FGV., p. 82) teria reconhecido nos teóricos da Administração científica (de F. Taylor a L. Gulick) “[...] pontos básicos considerados permanentes da ciência administrativa”: a) trabalho e produtividade como objetos sistemáticos de estudo científico, visando aumentar a produtividade pelo conhecimento, e não pelo suor; b) normas técnicas para mensuração e avaliação dos produtos do trabalho; c) funções ou tarefas tecnicamente planejadas, levando em consideração a condição fisiológica e psicológica do homem; d) instrumentos técnicos e de experimentação para a detecção das potencialidades humanas, visto que estas não seriam intuitivamente óbvias; e e) treinamento sistemático para organização eficiente e melhoria no desempenho das tarefas: “Em outras palavras, o treinamento técnico não elimina nem sufoca, necessariamente, as diferenças individuais, mas antes as acentua” (Guerreiro Ramos, 1989Ramos, A. G. (1989). A Nova Ciência das Organizações: uma reconstrução da riqueza das nações. Rio de Janeiro, RJ: Editora da FGV., p. 82).

Notamos também em Guerreiro Ramos (1989Ramos, A. G. (1989). A Nova Ciência das Organizações: uma reconstrução da riqueza das nações. Rio de Janeiro, RJ: Editora da FGV.) uma concepção ambivalente da gestão como tecnologia: de um lado, instrumento de dominação ideológica; de outro, técnica capaz de aprimorar a harmonia na organização do trabalho humano. Guerreiro Ramos (1989) propôs modificar esta dicotomia por meio de um processo de instrumentalização de novos valores e de delimitações sociais. O autor entendeu que os pontos básicos da Administração técnica supracitados, livres da política cognitiva, deveriam ser limitados à esfera de produção econômica, na qual as organizações formais burocráticas deveriam operar. Contudo, em outras esferas da vida humana, deveriam prevalecer outros modelos de organização e de gestão, baseados em critérios e valores diferentes.

Apesar do posicionamento pioneiro desses importantes autores críticos brasileiros, parece que o caráter ambivalente da técnica e da gestão não tem sido considerado por pensadores críticos mais recentes nos estudos organizacionais, como Misoczky et al. (2015Misoczky, M. C., Flores, R. K., & Goulart, S. (2015). An anti-management statement in dialogue with critical Brazilian authors. Revista de Administração de Empresas, 55(2), 130-138.). Assumindo uma perspectiva anti-management, estes autores denunciam o management como corpo de conhecimentos técnicos cujos objetivos são apenas a maximização da performance e a manutenção das relações atuais de dominação.

Misoczky et al. (2015Misoczky, M. C., Flores, R. K., & Goulart, S. (2015). An anti-management statement in dialogue with critical Brazilian authors. Revista de Administração de Empresas, 55(2), 130-138.) prosseguem advogando a separação entre as áreas dos Estudos Organizacionais e da Administração, visto que os primeiros estariam fadados à subordinação ao management enquanto conhecimento dominante na Administração. Os autores reconhecem a importância de os pensadores brasileiros críticos (Guerreiro Ramos, Maurício Tragtenberg, Prestes Motta e José Henrique de Faria) denunciarem negativamente as armadilhas do discurso gerencial, mas acreditam que seus esforços positivos no sentido de pensar novas formas de gestão foram inválidos. Isso porque mesmo o conceito de autogestão não pode ser considerado como crítico, pois remete à reificação das organizações e não rompe com a gestão. Em última instância, a gestão, entendida como sinônimo do management, estaria sempre ligada à racionalidade econômica instrumental do capitalismo e só poderia ser heterogestão.

Sem usar o termo gestão, Misoczky et al. (2015Misoczky, M. C., Flores, R. K., & Goulart, S. (2015). An anti-management statement in dialogue with critical Brazilian authors. Revista de Administração de Empresas, 55(2), 130-138.) propõem o estudo de movimentos sociais em lugar da organização como unidade de análise. A organização deveria ser entendida como locus de estudo, um espaço para aprendizagem por meio da experimentação de práticas organizacionais libertadoras. Contudo os autores fazem a reconsideração da racionalidade instrumental com base no conceito de razão crítica-instrumental, de E. Dussel.

Ao não reconhecer a ambivalência da gestão como tecnologia, Misoczky et al. (2015Misoczky, M. C., Flores, R. K., & Goulart, S. (2015). An anti-management statement in dialogue with critical Brazilian authors. Revista de Administração de Empresas, 55(2), 130-138.) assumem uma posição radical em relação aos conceitos e pressupostos da Administração. No entanto, mesmo negando os termos gestão e organização, ao mesmo tempo que reconhecem a importância da práxis, os autores acabam assumindo a relevância de resgatar o debate sobre a racionalidade instrumental, visto que esta acaba sendo inerente ao ato de organizar. Apesar de válidos, os esforços de Misoczky et al. (2015)Misoczky, M. C., Flores, R. K., & Goulart, S. (2015). An anti-management statement in dialogue with critical Brazilian authors. Revista de Administração de Empresas, 55(2), 130-138. podem acabar sendo pouco efetivos, pois a gestão como tecnologia segundo Feenberg (2002Feenberg, A. (2002). Transforming technology: a critical theory revisited. Nova York, NY: Oxford University Press.), é um campo de luta social. Acreditamos não ser uma boa estratégia simplesmente relegá-lo em prol do uso de novos termos e do isolamento em territórios intelectuais.

A trajetória recente de um grupo de autores filiados ao Critical Management Studies (CMS) no contexto internacional parece ir no sentido oposto ao de Misoczky et al. (2015Misoczky, M. C., Flores, R. K., & Goulart, S. (2015). An anti-management statement in dialogue with critical Brazilian authors. Revista de Administração de Empresas, 55(2), 130-138.), buscando ampliar o diálogo com outras abordagens da Administração e com a prática da gestão (Spicer, Alvesson, & Karreman, 2009Spicer, A., Alvesson, M., & Karreman, D. (2009). Critical performativity: the unfinished business of critical management studies. Human Relations, 62(4), 537-560., 2016Spicer, A., Alvesson, M., & Karreman, D. (2016). Extending critical performativity. Human Relations, 69(2), 225-249.). Spicer et al. (2009) criticam o posicionamento excessivamente negativo, desconstrutivo e antiperformance dos autores do CMS, avaliando que seus discursos falham em produzir mudanças concretas no mundo da gestão, pois se fecham em discussões herméticas e descoladas da realidade.

Assim, os autores propõem a “performatividade” crítica (critical performativity) como forma mais construtiva de realizar pesquisas por intermédio da intervenção ativa e subversiva nas práticas e nos discursos gerenciais. Alguns anos mais tarde, Spicer et al. (2016Spicer, A., Alvesson, M., & Karreman, D. (2016). Extending critical performativity. Human Relations, 69(2), 225-249.) delineiam melhor este conceito, de modo que propõem combinar fins abstratos como emancipação, autonomia, equidade e justiça objetivando efeitos mais imediatamente específicos e identificáveis, balanceando o pensamento negativo com a proposição positiva de mudanças com o uso do diálogo e de práticas.

Os efeitos pretendidos seriam: a) diante do pensamento negativo, remover ideias prejudiciais, enganadoras ou obsoletas que impregnam o discurso e a prática da gestão nos dias de hoje; b) em um movimento construtivo e positivo, a proposição de alternativas, progressivamente reimaginando os arranjos sociais do futuro com base no conceito foucaultiano de heterotopia; e c) a criação deliberada de espaços para discussão e teste das propostas, envolvendo pesquisadores de diferentes posicionamentos, assim como praticantes da gestão nas organizações (Spicer et al., 2016Spicer, A., Alvesson, M., & Karreman, D. (2016). Extending critical performativity. Human Relations, 69(2), 225-249.).

Enquanto a proposta de Misoczky et al. (2015Misoczky, M. C., Flores, R. K., & Goulart, S. (2015). An anti-management statement in dialogue with critical Brazilian authors. Revista de Administração de Empresas, 55(2), 130-138.) seria atingir mudanças na práxis organizativa, posicionando-se de fora da Administração, a de Spicer et al. (2016Spicer, A., Alvesson, M., & Karreman, D. (2016). Extending critical performativity. Human Relations, 69(2), 225-249.) e seus colegas seria realizar as mudanças de dentro do universo gerencial, flexibilizando a crítica no sentido de ampliar o diálogo. Tais esforços parecem válidos, pois visam sair da cômoda posição de “crítica pela crítica” e se arriscam a propor formas mais concretas de atuação. No entanto, ao abrir mão do conceito de utopia, o risco pode estar em flexibilizar demais a crítica, descaracterizando-a e tornando-a o que Paes de Paula, Maranhão, e Barros (2009Paes de Paula, A. P., Maranhão, C. M. S. A., & Barros, A. N. (2009). Pluralismo, pós-estruturalismo e “gerencialismo engajado”: os limites do movimento critical management studies. Cadernos EBAPE.BR, 7(3), 393-404. , p. 397) denominaram de “gerencialismo engajado”.

O posicionamento assumido neste artigo comunga um pouco com cada um dos autores supracitados, pois nenhum deles abandonou a tentativa de repensar a racionalidade instrumental ou técnica, adicionando a ela valores, limitações e propósitos diferenciados daqueles imbuídos nas formas de gestão hegemônica. No entanto, a proposta defendida aqui é diferente, pois baseamo-nos na teoria crítica da tecnologia (Feenberg, 2002Feenberg, A. (2002). Transforming technology: a critical theory revisited. Nova York, NY: Oxford University Press.) para ressignificarmos, assim, as possibilidades de tecnologias de gestão. O objetivo foi possibilitar o diálogo mais próximo com a prática de sistemas técnicos alternativos de gestão, acreditando que o pensamento científico pode contribuir para uma reflexão mais ampla sobre eles. Tendo como base a teoria crítica da tecnologia, acreditamos ser possível construir sistemas técnicos de gestão baseados em pressupostos diferenciados. Trataremos a seguir dos principais conceitos desta teoria.

TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA

Feenberg (1999Feenberg, A. (1999). Questioning technology. New York, NY: Routledge., 2002Feenberg, A. (2002). Transforming technology: a critical theory revisited. Nova York, NY: Oxford University Press.) trata dos sistemas técnicos de gestão, basicamente, com duas conotações diferentes: a gestão democrática é apontada como instrumento para o alcance de novas formas de design tecnológico; e a gestão é compreendida como tecnologia cujo objeto de transformação é o próprio trabalho humano. Nesta seção, abordaremos o pensamento do autor relacionando-o às tecnologias de gestão tendo como base a segunda conotação.

Ao longo do século XX, vivenciamos tanto os benefícios quanto os malefícios do desenvolvimento científico e do aprimoramento tecnológico, o que leva a visões dicotômicas sobre o tema. Os otimistas enxergam a tecnologia como um instrumento neutro a serviço das necessidades humanas. Já os pessimistas entendem a tecnologia como autônoma em relação ao controle social, permeada por interesses e valores capitalistas, tendo se tornado uma ameaça à liberdade humana (Feenberg, 2002Feenberg, A. (2002). Transforming technology: a critical theory revisited. Nova York, NY: Oxford University Press., 2010aFeenberg, A. (2010a). Racionalização subversiva: tecnologia, poder e democracia. In R. T. Neder (Org.), Andrew Feenberg: racionalização democrática, poder e tecnologia (pp. 67-96). Brasília, DF: Observatório do Movimento pela Tecnologia Social na América Latina/CDS/UnB/Capes. Recuperado de https://www.sfu.ca/~andrewf/coletanea.pdf
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). Visando superar tais perspectivas, Feenberg (2002) formula a teoria crítica da tecnologia. Herdeiro do pensamento frankfurtiano, o autor parte das concepções de Theodor Adorno, Max Horkheimer e Jürgen Habermas e das discussões sobre racionalidade instrumental. Seu pensamento tem impulso com as ideias de Herbert Marcuse sobre o papel da tecnologia no capitalismo moderno.

Feenberg (2002Feenberg, A. (2002). Transforming technology: a critical theory revisited. Nova York, NY: Oxford University Press.) entende que a tecnologia não é neutra, mas nega sua autonomia em relação ao controle social, visto que ela é fruto da criação humana - poiesis. Neste ponto reside o diferencial de sua proposta: os valores subjacentes ao aparato tecnológico deveriam ser postos em discussão, para que pudessem ser reconstruídos e enriquecidos com outros valores que, até então, teriam sido reprimidos ou esquecidos durante a concepção dos códigos técnicos.

A ideia central é demonstrar a relatividade das alternativas técnicas, levando a uma reflexão sobre o “pluralismo tecnológico”: a tecnologia não avançaria linearmente, várias alternativas são possíveis, a depender dos valores diversos que são incorporados em seu projeto (Feenberg, 1999Feenberg, A. (1999). Questioning technology. New York, NY: Routledge.). Enfim, definir a tecnologia apenas em seu contexto capitalista, cujos objetivos supremos são a produtividade e a lucratividade, é etnocêntrico. Dessa forma, são excluídas muitas outras práticas tecnológicas utilizadas no passado e em outros contextos que poderiam ser essenciais para nosso desenvolvimento futuro (Feenberg, 1999Feenberg, A. (1999). Questioning technology. New York, NY: Routledge.).

Se a tecnologia poderia seguir por caminhos plurais, a escolha por um deles deveria ser posta em discussão democrática. A crítica de Feenberg (2002Feenberg, A. (2002). Transforming technology: a critical theory revisited. Nova York, NY: Oxford University Press.) reivindica tal democratização e questiona a hegemonia dos senhores dos sistemas técnicos, que atualmente são responsáveis pelas decisões (líderes de corporações, militares, associações profissionais, entre outros). Pela falta de sistemas regulares de consulta e de participação democrática entre esses senhores e a população, as decisões são tomadas obscuramente e as informações são divulgadas de forma distorcida e de acordo com interesses particulares.

Feenberg (2010bFeenberg, A. (2010b). Do essencialismo ao construtivismo - a filosofia da tecnologia em uma encruzilhada. In R. T. Neder (Org.), Andrew Feenberg: racionalização democrática, poder e tecnologia (pp. 203-252). Brasília, DF: Observatório do Movimento pela Tecnologia Social na América Latina/CDS/UnB/Capes. Recuperado de https://www.sfu.ca/~andrewf/coletanea.pdf
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) propõe, assim, a ideia de racionalização subversiva ou democrática, que, a nosso ver, contesta a dicotomia entre racionalidade instrumental e substantiva. Segundo o autor, seria possível ressignificar o aparato tecnológico das sociedades industriais de forma a democratizá-lo e garantir que ele atenda a necessidades humanas e ambientais mais amplas. Trata-se, portanto, de uma aplicação alternativa da racionalidade instrumental na sociedade, sem nos levar à “gaiola de ferro” de uma hierarquia social tecnocrática. A racionalização subversiva estaria “[...] baseada na responsabilidade da ação técnica quanto aos contextos humanos e naturais” (Feenberg, 2010aFeenberg, A. (2010b). Do essencialismo ao construtivismo - a filosofia da tecnologia em uma encruzilhada. In R. T. Neder (Org.), Andrew Feenberg: racionalização democrática, poder e tecnologia (pp. 203-252). Brasília, DF: Observatório do Movimento pela Tecnologia Social na América Latina/CDS/UnB/Capes. Recuperado de https://www.sfu.ca/~andrewf/coletanea.pdf
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, p. 97).

Para ressignificar a tecnologia em uma perspectiva crítica, Feenberg (2002Feenberg, A. (2002). Transforming technology: a critical theory revisited. Nova York, NY: Oxford University Press.) defende a tese da ambivalência da tecnologia, que se resume em dois princípios:

  1. conservação da hierarquia: a hierarquia social geralmente é capaz de se preservar e de se reproduzir ao longo do desenvolvimento tecnológico;

  2. racionalização subversiva: novas tecnologias podem minar a hierarquia social ou introduzir necessidades até então ignoradas.

Nesse sentido, a tecnologia é ambivalente: de um lado, pode ser instrumento de reprodução do estado das coisas; e, de outro, pode contribuir para modificá-lo. Para reverter os vieses valorativos dos sistemas técnicos atuais, seria necessário considerar como a racionalidade instrumental apresenta-se no cotidiano desses sistemas, buscando revelar quais valores e interesses são subjacentes a eles. Feenberg (1999Feenberg, A. (1999). Questioning technology. New York, NY: Routledge., p. 11, tradução nossa) toma como base os estudos construtivistas contemporâneos e tenta abrir a “caixa preta” dos códigos técnicos; isto é, compreender os detalhes do processo de construção dos sistemas técnicos.

Os códigos técnicos definem o objeto estritamente em termos técnicos, de acordo com o significado social que ele adquiriu. Esses códigos são usualmente invisíveis porque, como a própria cultura, eles parecem autoevidentes. [...] Os regimes tecnológicos refletem essa decisão social irrefletidamente, como se fosse normal, e somente a investigação científica social pode revelar a fonte dos padrões em que ele é incorporado (Feenberg, 1999Feenberg, A. (1999). Questioning technology. New York, NY: Routledge., p. 88, tradução nossa).

Em tese, qualquer um poderia decompor um objeto técnico e analisar cada um de seus elementos em termos de custo versus benefício, segurança, rapidez, confiabilidade, taxa de poluição, etc., mas, na prática, quase ninguém está interessado em abrir essa “caixa preta”, pois seu conteúdo parece autoevidente. No entanto, os códigos técnicos atuais refletem interesses de grupos sociais aos quais nós delegamos o poder de definir onde e como vivemos, como nos alimentamos, como nos comunicamos, como nos divertimos, como somos curados, como trabalhamos, etc. (Feenberg, 1999Feenberg, A. (1999). Questioning technology. New York, NY: Routledge.).

Ademais, os códigos técnicos influenciam a formação dos profissionais da área. Portanto estes não possuem a autonomia racional que, muitas vezes, aparentam ter. Suas escolhas são direcionadas pelo tipo de formação que tiveram. Tal formação é resultado de interesses específicos, que se incorporaram aos códigos técnicos em algum momento no passado (Feenberg, 1999Feenberg, A. (1999). Questioning technology. New York, NY: Routledge.).

Ao buscar compreender como os códigos técnicos são incorporados no processo de construção dos sistemas técnicos, Feenberg (2002Feenberg, A. (2002). Transforming technology: a critical theory revisited. Nova York, NY: Oxford University Press.) distingue as formas de instrumentalização, quais sejam: primária e secundária. Ambas se encontram mescladas no mesmo objeto tecnológico e em seu respectivo sistema produtivo. Na forma primária, somente são priorizadas a relação meio-fim do objeto e as possibilidades materiais de sua reprodução, considerando apenas os valores daqueles que concebem e produzem o objeto. A secundária está voltada a este objeto e se dá à medida que ele é submetido à implementação na sociedade, evidenciando desvios negativos e dimensões esquecidas em seu projeto original.

Ao passo que a instrumentalização primária reifica a relação meio-fim da tecnologia, a secundária contextualiza suas aplicações, reintegrando-a à sociedade. A ressignificação da tecnologia se daria pela dialética entre esses momentos reificadores e momentos integrativos. O que diferenciaria as tecnologias críticas seria a priorização dos momentos integrativos. Feenberg (1999Feenberg, A. (1999). Questioning technology. New York, NY: Routledge., 2002Feenberg, A. (2002). Transforming technology: a critical theory revisited. Nova York, NY: Oxford University Press.) destaca quatro pares de momentos que estabelecem relações entre sujeito e objeto da tecnologia, propondo uma moldura teórica que pode servir como referencial analítico para experiências concretas. No caso das tecnologias de gestão, o sujeito seria aquele que detém o saber técnico e o poder de aplicá-lo, e objeto seria aquele que participa das práticas de gestão instituídas pela tecnologia aplicada.

  1. Descontextualização e sistematização - enquanto a primeira consiste na separação do objeto técnico de seu contexto imediato, a segunda conecta os objetos descontextualizados entre si com os usuários e com a natureza, para formar dispositivos e organizações técnicas. A tecnologia capitalista baseia-se na descontextualização reificada dos objetos. Assim, como objetos abstratos, eles podem ser empregados em diversas situações, reforçando os interesses hegemônicos. Este processo harmoniza-se com a divisão fragmentada e autoritária do trabalho, pois esta se baseia na prática descontextualizada. Para Feenberg (2002Feenberg, A. (2002). Transforming technology: a critical theory revisited. Nova York, NY: Oxford University Press.), as sociedades socialistas teriam repetido o mesmo erro cometido pelas sociedades capitalistas, sem apresentar alternativas. A maior atenção à sistematização operada pela instrumentalização secundária pode trazer de volta aspectos relevantes que foram mutilados pela descontextualização. É a possibilidade de reconectar a tecnologia às questões sociais e ambientais.

  2. Reducionismo e mediação - o primeiro opera na redução do objeto a seus aspectos úteis e o último incorpora qualidades estéticas e éticas ao design do dispositivo técnico. Os meios técnicos tornam-se mais abstratos quando se subtraem complexas totalidades que lhes eram inerentes, reduzindo-os aos elementos pelos quais se pode exercer controle externo (abstração formal). Esses elementos são chamados por Feenberg (2002Feenberg, A. (2002). Transforming technology: a critical theory revisited. Nova York, NY: Oxford University Press.) de “qualidades primárias”. A abstração formal reduz e descontextualiza os indivíduos inseridos nos sistemas técnicos de gestão. Assim, de forma compensatória, as qualidades secundárias correspondem aos demais elementos do objeto que não foram considerados essenciais em seu projeto técnico. Estes elementos contextualizam e enriquecem novamente o objeto, adaptando-o ao seu ambiente.

  3. Autonomização e vocação - em decorrência da separação sujeito-objeto, o ator técnico torna-se autônomo em relação às consequências imediatas de suas ações. Ele não é afetado proporcionalmente pelo objeto por meio do qual ele age. Isso acontece porque a ação técnica atrasa o feedback do objeto para o sujeito. Para Feenberg (2002Feenberg, A. (2002). Transforming technology: a critical theory revisited. Nova York, NY: Oxford University Press.), tal atraso, ou dissipação, na reação experimentada pelo ator em relação ao efeito de sua ação é o que distingue uma atividade como técnica. O controle técnico estende o máximo possível o ciclo de feedback da ação para isolar o sujeito de seus efeitos. Em compensação, o sujeito técnico necessita de investimento vocacional para se formar como uma pessoa cuja ocupação são as ações técnicas em que ele se engaja. A vocação, portanto, é o momento integrativo que precederia e relativizaria a autonomização. Em um processo formativo para realizar a ação gerencial técnica, o sujeito não estaria mais isolado dos demais participantes, mas seria também transformado por sua própria relação com eles. “Essa relação excede a contemplação passiva e a manipulação externa envolve o trabalhador como sujeito corporificado e membro de uma comunidade” (Feenberg, 2002, p. 182, tradução nossa).

  4. Posicionamento e iniciativa - com base nos conceitos de Certeau (1994Certeau, M. (1994). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes.), Feenberg (2002Feenberg, A. (2002). Transforming technology: a critical theory revisited. Nova York, NY: Oxford University Press.) entende que o sujeito da ação técnica posiciona-se estrategicamente entre os objetos para ter maior controle sobre eles. Ele situa-se acima dos processos sociais, posicionando-se de forma vantajosa em relação às demais coisas. Assim, a autonomia operacional é obtida, podendo ocupar uma posição estratégica em relação a uma realidade reificada. Em correspondência, os objetos, ou os seres humanos subordinados, trabalhadores ou consumidores, podem ter iniciativa ao usufruir de certa liberdade tática. Feenberg (2002) vislumbra a possibilidade de aumentar os espaços de manobras táticas, levando à desalienação no trabalho e à cooperação consciente e voluntária. Dessa forma, o posicionamento estratégico dos sujeitos detentores da técnica poderia ser mais bem equilibrado por meio de manobras táticas daqueles aos quais a ação técnica se aplica.

Enquanto a instrumentalização primária seria a orientação técnica para uma realidade objetivada e reificada, a instrumentalização secundária seria a orientação técnica para um contexto social e ambiental mais amplo. A racionalidade subversiva seria um movimento da reificação para a reintegração. Ao contrário da visão hegemônica, que tende a priorizar os aspectos primários e descontextualizados da tecnologia, a teoria crítica da tecnologia tenta analisar os dois níveis de instrumentalização, demonstrando sua interdependência. Assim, a técnica é entendida de forma dialética. Esta visão assume um caminho desafiador entre utopia e resignação, indo além da avaliação negativa tradicional dos frankfurtianos sobre a tecnologia. Ao mesmo tempo que valida elementos positivos no aparato tecnológico existente, propõe o redesenho da tecnologia para se adaptar às necessidades de uma sociedade mais livre, justa e harmônica com a natureza (Feenberg, 2002Feenberg, A. (2002). Transforming technology: a critical theory revisited. Nova York, NY: Oxford University Press.).

Apesar de reconhecer a hegemonia dos senhores dos sistemas técnicos, Feenberg (2010aFeenberg, A. (2010a). Racionalização subversiva: tecnologia, poder e democracia. In R. T. Neder (Org.), Andrew Feenberg: racionalização democrática, poder e tecnologia (pp. 67-96). Brasília, DF: Observatório do Movimento pela Tecnologia Social na América Latina/CDS/UnB/Capes. Recuperado de https://www.sfu.ca/~andrewf/coletanea.pdf
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) identifica o aumento de possibilidades para metaescolhas - escolhas que determinam quais valores devem ser incorporados na estrutura técnica de nossas vidas. O autor acredita que, cada vez mais, as contradições da ideologia que prega o progresso e a eficiência como base para o desenvolvimento têm se tornado mais evidentes, abrindo espaço para demandas sociais por maior democratização dos padrões técnicos. Assim, a tecnologia deveria ser vista como um campo de lutas sociais, em que a racionalidade instrumental estaria em constante julgamento mediante perspectivas valorativas plurais da sociedade.

Feenberg (1999Feenberg, A. (1999). Questioning technology. New York, NY: Routledge.) entende que a teoria da racionalização subversiva continua a tradição da escola de Frankfurt, dando nova ênfase à possibilidade de agência na esfera técnica. O foco continua sendo a luta contra a tecnocracia e seu monopólio exclusivo da racionalidade. A solução proposta é encontrar formas de politizar o debate sobre os sistemas técnicos. A mudança nesses sistemas, de autoritários para democráticos, seria a principal e levaria a desencadear melhorias na sociedade em geral.

O movimento não é no sentido de voltar à natureza, e sim de progredir em direção à natureza, para uma totalidade conscientemente composta por uma gama maior de preocupações e necessidades. O conceito crítico de totalidade ajuda a perceber a contingência do sistema tecnológico existente, apontando para o que precisa ser integrado a novos valores e propósitos. Nenhum sistema social pode ser natural, mas é necessário ao menos reconhecer a interdependência com o meio ambiente que caracteriza qualquer ser vivo. Seria, então, um avanço em uma maior integração entre a humanidade e a natureza (Feenberg, 2002Feenberg, A. (2002). Transforming technology: a critical theory revisited. Nova York, NY: Oxford University Press.).

A proposta apresentada por Feenberg (2002Feenberg, A. (2002). Transforming technology: a critical theory revisited. Nova York, NY: Oxford University Press., 2010b) trata-se, portanto, de uma tentativa relevante de reconciliação crítica em relação a opiniões extremistas sobre a tecnologia. Com seu discurso, o autor busca abrir caminhos para novas formas de pensamento e de ação sobre as relações entre tecnologia e democratização. Assim, ele demarca a necessidade de espaço para discussão e reflexão envolvendo valores éticos, mas sem negar a possibilidade de um saber técnico e útil nas sociedades e, mais especificamente, na gestão das organizações.

Pela ressignificação tecnológica da gestão

Conforme discutimos, autores clássicos e contemporâneos da área da Administração e dos Estudos Organizacionais têm se ocupado de diversas formas de uma problemática similar, vislumbrando possibilidades de ressignificação da prática organizativa por meio do pensamento crítico. Desse modo, a teoria crítica da tecnologia de Feenberg (2002Feenberg, A. (2002). Transforming technology: a critical theory revisited. Nova York, NY: Oxford University Press.) pode contribuir conceitualmente para o debate ao propor a tese da ambivalência da tecnologia e a superação da dicotomia entre racionalidade instrumental e racionalidade substantiva, por meio da racionalização subversiva.

Ao buscar ressignificar a gestão por diversos meios, podemos entender que os autores da área citados neste artigo buscam enfatizar o processo de instrumentalização secundária das tecnologias de gestão. A crítica realizada por eles abre a “caixa preta” das práticas de gestão, evidenciando seus códigos técnicos, seus elementos constitutivos em termos de valores, prioridades e interesses. Com base em tal desconstrução, são propostas alterações radicais nas tecnologias de gestão, de forma a incorporar perspectivas sociais mais amplas. Dessa forma, notamos a ambivalência das tecnologias de gestão e as possibilidades de aplicação da racionalização subversiva.

Portanto, ao aplicar o pensamento de Feenberg (2002Feenberg, A. (2002). Transforming technology: a critical theory revisited. Nova York, NY: Oxford University Press.) às tecnologias de gestão, torna-se mais clara a importância da decomposição dos sistemas técnicos, observando quais valores estão presentes no design das ferramentas e dos códigos técnicos, possibilitando seu redesenho mediante novos propósitos. Podemos empreender, dessa forma, a desconstrução e a reconstrução das tecnologias de gestão, com vistas à sua ressignificação.

Considerando que a ressignificação de uma tecnologia requer sua interação e resposta do meio, reter em um determinado grupo os resultados desta interação garante a ele o controle e a influência sobre os demais membros da sociedade. Segundo Feenberg (2010aFeenberg, A. (2010a). Racionalização subversiva: tecnologia, poder e democracia. In R. T. Neder (Org.), Andrew Feenberg: racionalização democrática, poder e tecnologia (pp. 67-96). Brasília, DF: Observatório do Movimento pela Tecnologia Social na América Latina/CDS/UnB/Capes. Recuperado de https://www.sfu.ca/~andrewf/coletanea.pdf
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, p. 10), “[...] o gerenciamento age tecnicamente sobre pessoas, estendendo a hierarquia de sujeito e objetos técnicos em relações humanas em busca de eficiência”. Democratizar tal conhecimento e permitir a participação de novos indivíduos na (re)construção das tecnologias de gestão desestrutura essa relação de poder e pode promover uma mudança em seu design.

Entendemos que os momentos de reificação e integração são necessários ao desenvolvimento de quaisquer conhecimentos tecnológicos de gestão, pois permitem a abstração de experiências particulares e a orientação de ações técnicas futuras. Com a reificação, o saber técnico torna-se viável e replicável em tempos e espaços diferentes. Com a integração, este saber torna-se efetivamente útil e benéfico em determinado contexto. Tais fenômenos contrapostos devem emergir de maneira dialética. A compreensão e a reflexão sobre os momentos integrativos podem advir de reflexões críticas e de avaliações após a aplicação, adicionando ao conhecimento tecnológico perspectivas, critérios e valores novos.

Para a construção e aplicação de tecnologias críticas de gestão, acreditamos que a dinâmica entre momentos reificadores e momentos integrativos ocorre na definição de limites objetivos às subjetividades envolvidas e, ao mesmo tempo, na possibilidade de manifestação equitativa das mesmas, para que seja possível a tomada de decisão coletiva combinando eficiência e ampla participação. Neste cenário, Netto, Ferreira, Novaes, e Neiva (2016F Netto, A. F. N., Ferreira, V. C. P., Novaes, J. L. C., & Neiva, D. S. (2016). A Teoria Crítica no estudo da Administração. Revista de Carreira e Pessoas, 5(3), 282-302.) afirmam que seria necessário expandir os níveis de autonomia e responsabilidade dos indivíduos, atentando apenas para não se cair no estratagema da flexibilidade generalista, que atuará apenas como uma substituição superficial das tecnologias de gestão convencionais.

Em um primeiro momento, as tecnologias críticas de gestão são reificadas como corpos de conhecimento capazes de gerar transformações por meio da prescrição de estruturas flexíveis e consensuais de interação. Posteriormente, para que as transformações efetivamente ocorram, essas estruturas precisam ser integradas ao contexto de aplicação, havendo espaço nelas mesmas para negociações e adaptações. A possibilidade de ressignificação das tecnologias de gestão reside na existência desses tipos de estrutura, pois eles abrem espaço para que a reificação e a integração ocorram ao longo das interações, equilibrando as relações entre sujeitos e objetos envolvidos na ação técnica gerencial. Dessa forma, reificando e integrando, o uso das tecnologias críticas de gestão visa à construção de uma organização equitativa, flexível e vinculada ao real de sua tarefa. Uma gestão crítica deve, então, considerar constantemente todos os impactos (humanos, sociais e ambientais) de suas atividades, devendo atuar como produtora de bem-estar coletivo de forma sistêmica, atentando-se, inclusive, aos indivíduos que não pertencem àquele contexto diretamente (Rohm & Lopes, 2015Rohm, R. H. D., & Lopes, N. F. (2015). O novo sentido do trabalho para o sujeito pós-moderno: uma abordagem crítica. Cadernos EBAPE.BR, 13(2), 332-345.).

Para exemplificar, apontamos aqui como alternativa à gestão convencional a tecnologia de gestão do Dragon Dreaming (DD). Formulado pelo australiano John Croft, o DD é um conjunto de valores, conceitos, modelo e técnicas para apoiar a gestão colaborativa de projetos coletivos, sendo atualmente aplicado em diversos grupos e organizações por todo o mundo. No Brasil, vem sendo difundido desde 2011, e a comunidade brasileira de facilitadores, multiplicadores e treinadores do DD constitui-se atualmente como uma organização autogestionária denominada Rede DD Brasil1 1 Para mais informações sobre a Rede DD Brasil, acesse o site www.dragondreamingbr.org. . O DD também tem sido utilizado como recurso teórico-metodológico em diversos trabalhos acadêmicos no Brasil (por exemplo, Simas, 2013Simas, A. C. B. F. (2013). Comunicação e diferença: estudos em comunicação colaborativa para a sustentabilidade comunitária (Tese de Doutorado). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ.; Souza, 2016Souza, M. M. P. (2016). Reciclando a crítica nos estudos organizacionais: as tecnologias de gestão colaborativa no contexto da Associação Astriflores (Tese de Doutorado). Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG.).

Baseando-se em conceitos e valores da Ecologia Profunda (Naess, 2005Naess, A. (2005). Ecosophy, population, and sustainable development. The Trumpeter, 21(1), 72-89. ), da teoria dos sistemas (Bateson, 1972Bateson, G. (1972). Steps to an ecology of mind. New York, NY: Ballantine Books.), da Pedagogia do Oprimido (Freire, 2005Freire, P. (2005). Pedagogia do Oprimido (43a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra.) e da Economia da Dádiva (Mauss, 2001Mauss, M. (2001). Ensaio sobre a dádiva. Lisboa, Portugal: Edições 70.), entendemos que o DD orienta-se pela racionalização subversiva, redesenhando as técnicas convencionais de gestão de projetos e introduzindo necessidades muitas vezes ignoradas por estas. Aos ideais de eficiência e produtividade, são adicionadas perspectivas mais amplas: ambientais, comunitárias e humanistas. Em virtude disso, para que o DD seja aplicado em um projeto, três condições são necessárias: cuidado com a Terra, construção de comunidade e crescimento pessoal dos envolvidos (Croft, 2009Croft, J. (2009, fevereiro 19). Introdução: tornando os sonhos realidade. Recuperado de http://www.dragondreamingbr.org/portal/index.php/2012-10-25-17-02-40/fichas-tecnicas.html
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).

O modelo do DD baseia-se em quatro fases: sonhar, planejar, realizar e celebrar. Observamos que há uma inspiração nos modelos de gestão convencionais, que também se dividem em quatro fases, como o conhecido PDCA: planejar (plan), realizar (do), verificar (check) e agir (act) (Hosotani, 1992Hosotani, K. (1992). The QC problem solving approach: solving workspace problems the japanese way. Tokio, Japan: 3A Corporation.). Contudo as fases do sonhar e do celebrar trazem importantes contribuições aos modelos convencionais, visto que adicionam momentos de reflexão coletiva, seja em relação ao futuro (sonhar), seja em relação ao passado (celebrar). No sonhar, o indivíduo que lidera o processo permite que seu sonho individual torne-se um sonho coletivo ao incluir as perspectivas de todos os envolvidos. Já no celebrar, o convite é que todos os envolvidos reflitam sobre a experiência ocorrida, sobre os conhecimentos adquiridos e sobre os resultados obtidos à luz das três condições do DD supracitadas. Além disso, o celebrar também é uma fase dedicada ao cuidado dos laços afetivos do grupo.

As fases do planejar e do realizar também ocorrem de forma diferenciada em relação aos modelos convencionais. Assim como no sonhar e no celebrar, estas duas fases intermediárias preconizam o envolvimento equitativo de todos. Ademais, é conferida autonomia aos indivíduos para que possam sugerir ações a serem realizadas, responsabilizem-se por algumas delas e as realizem da forma como melhor desejarem. Ao final da fase do planejar, é criado um quadro com o fluxograma de ações, com estética lúdica e acessível para todos monitorarem o andamento das ações. O acompanhamento da execução das ações pode ser também realizado mediante um processo de autoavaliação por pares, numa relação simétrica.

Para as quatro fases do modelo do DD, diversas técnicas são propostas. Como, por exemplo, na fase do sonhar, constrói-se o “círculo dos sonhos”, uma espécie de brainstorm em que são realizadas rodadas entre todos os indivíduos para que estes adicionem seus sonhos ao sonho original. Ao contrário do brainstorm convencional, a oportunidade de fala é ordenada, passando sucessivamente por todos os indivíduos, que de preferência reúnem-se em círculo. As falas são rápidas e específicas, não havendo necessidade de justificativas e explanações sobre os sonhos relatados. Caso o indivíduo não tenha mais nada a acrescentar, simplesmente passa sua palavra ao próximo até que todos tenham esgotado suas contribuições. Dessa forma, garante-se a distribuição equitativa das falas.

Por meio desta breve descrição do DD, buscamos evidenciar que este se caracteriza como uma tecnologia crítica de gestão. Tanto nos conceitos, quanto no modelo e nas técnicas do DD, é possível observar a possibilidade de dialética entre os momentos reificadores e integrativos da práxis tecnológica, havendo espaço significativo para que estes últimos ocorram no processo de aplicação. A seguir, demonstramos como a moldura teórica feenbergiana pode servir como referencial analítico.

  1. Descontextualização e sistematização: em um primeiro momento, o DD se apresenta como uma tecnologia de gestão descontextualizada, originada na Austrália. Como objeto abstrato, o DD é aplicável em diversas situações. Contudo, ao trazer desde o início a importância dos três critérios para se realizar um projeto, relacionados a aspectos ambientais, comunitários e de desenvolvimento humano, o DD garante que sua aplicação seja sistematizada ao contexto de aplicação.

  2. Reducionismo e mediação: como qualquer tecnologia, o DD pode ser reduzido a um conjunto de elementos padronizados, cuja aplicação o caracteriza. No entanto, há aberturas importantes para que os projetos realizados sejam adaptados e enriquecidos com qualidades estéticas e éticas peculiares ao momento de aplicação. Por exemplo, é aconselhável que o fluxograma de ações seja construído com estética lúdica, de acordo com as preferências do grupo; no círculo dos sonhos, valores éticos dos indivíduos podem ser acrescentados ao sonho. Dessa forma, garante-se a mediação entre a tecnologia e o contexto em que é aplicada.

  3. Autonomização e vocação: apesar de não ser obrigatória, a tecnologia do DD é aplicada, muitas vezes, por meio de um facilitador externo. Este facilitador torna-se autônomo em relação às consequências imediatas do projeto, visto que ele não faz parte da equipe. Em compensação, a Rede DD Brasil tem desenvolvido uma série de processos formativos para capacitação de facilitadores, havendo a necessidade de investimento vocacional por parte destes. Isto é, o facilitador torna-se um membro de uma comunidade, que se vincula de maneira ampla aos efeitos de quaisquer aplicações do DD.

  4. Posicionamento e iniciativa: como no DD, todos os indivíduos são envolvidos nas quatro fases do projeto, do sonhar ao celebrar; desse modo, o posicionamento estratégico por parte de um líder ou grupo detentor do poder técnico é minimizado. Além disso, a liberdade para iniciativas táticas é ampla, visto que os indivíduos possuem autonomia na realização das ações pelas quais se responsabilizaram. No caso dos facilitadores, poderíamos entender que estes possuem, de certa forma, um posicionamento vantajoso com relação ao controle técnico do processo. Contudo é importante que o facilitador aplique a técnica com a maior neutralidade possível, respeitando os três critérios iniciais do DD e a necessidade de adaptação às demandas que possam surgir do grupo.

Portanto entendemos que o DD é um exemplo de tecnologia de gestão cuja proposta é a criação de estruturas organizativas que conferem limites objetivos às subjetividades envolvidas, mas, ao mesmo tempo, garantem a participação equitativa e a autonomia de todos os envolvidos. Dessa forma, são constituídas estruturas flexíveis e consensuais de gestão, que guardam valores éticos e estéticos mais amplos, conservando as necessidades por eficiência e pelo alcance dos resultados coletivamente desejados.

A aplicação de tecnologias críticas de gestão, como o Dragon Dreaming, segundo as ideias de Guerreiro Ramos (1989Ramos, A. G. (1989). A Nova Ciência das Organizações: uma reconstrução da riqueza das nações. Rio de Janeiro, RJ: Editora da FGV.), implica um novo modelo de relação organização-sujeito, que, ao conceber todos os indivíduos como seres pensantes, pode contribuir com a construção de novos modelos e propósitos organizacionais, minando a hierarquia social vigente. Entretanto, tendo em vista a tese da ambivalência da tecnologia de Feenberg (1999Feenberg, A. (1999). Questioning technology. New York, NY: Routledge., 2002), admitimos também a possibilidade de tecnologias como o DD serem apropriadas como meros instrumentos de reprodução de relações desiguais de poder. Isto dependerá dos valores e pressupostos tomados como base no momento de sua aplicação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nosso objetivo neste artigo foi propor uma moldura teórica para compreender e ressignificar os conhecimentos tecnológicos de gestão por intermédio da teoria crítica da tecnologia proposta por Feenberg (1999Feenberg, A. (1999). Questioning technology. New York, NY: Routledge., 2002Feenberg, A. (2002). Transforming technology: a critical theory revisited. Nova York, NY: Oxford University Press.). Entendemos que tal objetivo foi alcançado, visto que partimos de um diálogo com os teóricos da Administração, que realizaram críticas às práticas de gestão vigentes, evidenciando a necessidade de se repensarem valores e ideologias na práxis organizativa. Em seguida, apresentamos os conceitos da teoria crítica da tecnologia de Andrew Feenberg e demonstramos como tais conceitos poderiam apoiar em um possível redesenho crítico da gestão, enquanto tecnologia que transforma o trabalho humano. Além disso, para fortalecer nossa argumentação, finalizamos apresentando um exemplo de tecnologia de gestão que, segundo nossa análise utilizando a moldura teórica que derivamos de Feenberg, poderia ser considerada crítica, uma vez que é constituída pela dinâmica dialética entre os momentos de reificação e integração da práxis tecnológica, com ênfase clara nos momentos integrativos.

O presente artigo contribui para o avanço no campo teórico-reflexivo sobre a gestão como práxis tecnológica libertadora, visto que ainda são escassos os estudos na área que dialogam com a teoria crítica da tecnologia de Andrew Feenberg. Há também potenciais contribuições para a aplicação prática de tecnologias que buscam ressignificar os formatos convencionais de gestão, oferecendo conceitos e parâmetros para uma análise sobre as delimitações éticas e estéticas da racionalidade instrumental. Dessa forma, buscamos contribuir para a (re)construção de tecnologias de gestão com base na racionalização subversiva, atendendo a demandas mais amplas da sociedade.

Contudo salientamos que a ressignificação das tecnologias de gestão por meio de um viés crítico seria apenas parte de um projeto político-emancipatório mais amplo. Mediante o conceito de concretização tecnológica, que Feenberg (2010bFeenberg, A. (2010b). Do essencialismo ao construtivismo - a filosofia da tecnologia em uma encruzilhada. In R. T. Neder (Org.), Andrew Feenberg: racionalização democrática, poder e tecnologia (pp. 203-252). Brasília, DF: Observatório do Movimento pela Tecnologia Social na América Latina/CDS/UnB/Capes. Recuperado de https://www.sfu.ca/~andrewf/coletanea.pdf
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, p. 234) busca no pensamento de Gilbert Simondon, tal projeto vislumbra “[...] a descoberta de sinergias entre as várias funções que as tecnologias servem e entre as tecnologias e seus vários ambientes”. Toda funcionalização tecnológica deveria ser reconciliada com questões contextuais mais amplas, abrindo caminho para um novo tipo de desenvolvimento tecnológico, mais complexo e rico do que o simples crescimento econômico.

A transformação civilizacional necessita de novos sistemas tecnológicos, baseados em novos valores. Ao mesmo tempo precisamos de tecnologias que possam mediar as aspirações individuais e grupais por emancipação com a práxis. Portanto é importante combinar as tecnologias no campo da gestão com outros sistemas tecnológicos libertadores, caminhando no sentido da concretização tecnológica defendida por Feenberg (1999Feenberg, A. (1999). Questioning technology. New York, NY: Routledge., 2002). A gestão ressignificada em termos democráticos e libertadores precisa ser aliada a outras tecnologias que promovam a autonomia nas diversas esferas da vida, como habitação, saneamento básico, alimentação, saúde, etc. Dessa maneira, abrimos espaço para um contexto em que relações totalmente diferenciadas possam efetivamente acontecer entre sujeitos, promovendo desenvolvimento humano, regeneração ambiental e fortalecimento das comunidades. Vislumbrando nossa utopia, não advogamos pelo fim das contradições, mas sim pela busca em superá-las a cada momento, à luz da análise científica, técnica e crítica.

AGRADECIMENTOS

Agradecimentos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico pelo apoio financeiro recebido pela pesquisadora e professora Ana Paula Paes de Paula, Bolsista Produtividade em Pesquisa-2, projeto 303984/2018-0.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Feb 2022

Histórico

  • Recebido
    28 Out 2020
  • Aceito
    23 Fev 2021
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