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Reflexões sobre poder e controle nas Organizações da Economia Solidária (OES): um olhar à luz dos bichos de Orwell

Resumos

Partindo das nuances da fábula A Revolução dos Bichos de George Orwell e estendendo as reflexões para o campo organizacional, este ensaio tem como objetivo refletir sobre Poder e Controle no contexto específico das organizações produtivas que visam atender aos requisitos propostos pelo modelo econômico solidário, ou seja, as Organizações da Economia Solidária (OES). O texto está estruturado em cinco seções, sendo a Apresentação a primeira. Em seguida, a Introdução, que oferece as linhas gerais da temática das OES, assim como a questão central que norteia o ensaio. Na terceira seção, procede-se a Fundamentação Teórica, trazendo uma visão geral dos conceitos fundamentais - na concepção dos autores - para o entendimento dos principais pontos que serão tratados mais adiante, se constituindo como lastro a partir do qual é soerguida a quarta seção, Poder e Controle: Algumas Reflexões sobre a Práxis em OES. Por fim, retomamos as "lições" oriundas da obra Orwell para construir as Considerações Finais, discorrendo uma visão crítica sobre a problemática em questão, assim como levantando algumas possibilidades para estudos posteriores.

Economia solidária; Organizações da economia solidária; Poder; Controle


Starting from the nuances of Orwell´s book Animal Farm and extending reflections to the organizational field, this essay has as objective reflect about Power and Control in the specific context of the productive organizations which aims to attend solidary economic (ES) model proposed requisites, the Solidary Economy Organzations (OES). This text is structured in five sections, Presentation is the first one, followed by an Introduction which offers a general thematic idea about the essay and its central question. In the third section, we build the Theoretical Foundation, bringing a main vision of the basics concepts - in our idea - to the comprehension of the principal points that will be approached in the next section, Power and Control: Some Reflections about Práxis in OES. Finishing, we return to the "lessons" aroused from the Orwell's masterpiece to build our Final Considerations, bringing our critical view about the theme and uprising some possibilities for future studies.

Solidary economy; Solidary economy organizations; Power; Control


ARTIGOS

Reflexões sobre poder e controle nas Organizações da Economia Solidária (OES): um olhar à luz dos bichos de Orwell1 1 "Poder e Controle Nas Organizações Da Economia Solidária (OES): Aspectos Das Relações Intra-Organizacionais" foi uma versão preliminar deste trabalho apresentada no III Encontro Nacional de Estudos Organizacionais (III-ENEO), Atibaia, SP, 2004. "Reflexões sobre Poder e Controle nas Organizações da Economia Solidária" é uma versão aprimorada para esta publicação.

Marcio Gomes de SáI; Guilherme José de V. SoaresII

INúcleo de Marketing e Tecnologia de Negócios - Núcleo MTN/PROPAD/UFPE; Programa de Pós-Graduação em Administração/Departamento de Ciências Administrativas/Universidade Federal de Pernambuco - PROPAD/DCA/UFPE. E-mail: mgsa77@hotmail.com

IIPrograma de Pós-Graduação em Administração e Desenvolvimento Rural/Universidade Federal Rural de Pernambuco/Programa de Associativismo para Pesquisa, Ensino e Extensão - UFRPE/PAPE. E-mail: gvsoares@bol.com.br

RESUMO

Partindo das nuances da fábula A Revolução dos Bichos de George Orwell e estendendo as reflexões para o campo organizacional, este ensaio tem como objetivo refletir sobre Poder e Controle no contexto específico das organizações produtivas que visam atender aos requisitos propostos pelo modelo econômico solidário, ou seja, as Organizações da Economia Solidária (OES). O texto está estruturado em cinco seções, sendo a Apresentação a primeira. Em seguida, a Introdução, que oferece as linhas gerais da temática das OES, assim como a questão central que norteia o ensaio. Na terceira seção, procede-se a Fundamentação Teórica, trazendo uma visão geral dos conceitos fundamentais - na concepção dos autores - para o entendimento dos principais pontos que serão tratados mais adiante, se constituindo como lastro a partir do qual é soerguida a quarta seção, Poder e Controle: Algumas Reflexões sobre a Práxis em OES. Por fim, retomamos as "lições" oriundas da obra Orwell para construir as Considerações Finais, discorrendo uma visão crítica sobre a problemática em questão, assim como levantando algumas possibilidades para estudos posteriores.

Palavras-chave: Economia solidária. Organizações da economia solidária. Poder. Controle.

ABSTRACT

Starting from the nuances of Orwell´s book Animal Farm and extending reflections to the organizational field, this essay has as objective reflect about Power and Control in the specific context of the productive organizations which aims to attend solidary economic (ES) model proposed requisites, the Solidary Economy Organzations (OES). This text is structured in five sections, Presentation is the first one, followed by an Introduction which offers a general thematic idea about the essay and its central question. In the third section, we build the Theoretical Foundation, bringing a main vision of the basics concepts - in our idea - to the comprehension of the principal points that will be approached in the next section, Power and Control: Some Reflections about Práxis in OES. Finishing, we return to the "lessons" aroused from the Orwell's masterpiece to build our Final Considerations, bringing our critical view about the theme and uprising some possibilities for future studies.

Key-words: Solidary economy. Solidary economy organizations. Power. Control.

A idéia original

Originalmente publicado em 1945, A revolução dos bichos (Animal farm) é, como sugerido em Sá (2003), muito mais do que uma crítica ao totalitarismo. É também capaz de nos fazer refletir sobre diversos temas.

Orwell descreve as relações de produção numa granja, administrada por um humano, na qual os bichos - submetidos a condições de trabalho miseráveis - se revoltam. O caráter coletivista da revolução é claramente percebido no discurso dos porcos ao assumirem o comando do movimento: "o homem não busca interesses que não os dele. Que haja entre nós, animais, uma perfeita camaradagem na luta. Todos os homens são inimigos, todos os animais são camaradas" (1993, p.13).

Os porcos, mais articulados e inteligentes, trataram de orientar os demais bichos e sistematizaram os pensamentos do falecido Major em uma ideologia: o "animalismo". No entanto, rapidamente o poder dos comandantes começa a ser utilizado em benefício próprio, a manipulação torna-se tão evidente que, mesmo tendo aprendido a votar, os outros animais nunca foram capazes de expressar uma única idéia ou opinião diferente.

Após uma disputa entre seus pares, o porco que assume o poder determina que: "para o futuro, todos os problemas relacionados com o funcionamento da granja seriam resolvidos por uma comissão de porcos, presidida por ele, que se reuniriam em particular e depois comunicariam suas decisões aos demais [...] não haveria debates" (ORWELL, 1993, p.42). O poder de direito - anteriormente legitimado pelo apoio dos comandados - passa a ser de fato, dominador, coercitivo e imposto pelos dominantes.

As distorções do poder e do discurso político são evidentes na retórica que manipula os demais animais "menos preparados". Os direitos dos animais há muito já não são iguais. Os "não-porcos" trabalham muito e comem pouco e mal, pois os porcos ficam com as melhores rações. O antigo sonho de igualdade entre todos os bichos e independência do homem é substituído por anseios comerciais do porco tirano que inicia relacionamentos com os demais fazendeiros humanos. Os animais já desestimulados, com frio e fome, são submetidos a uma enorme carga de trabalho, maior até do que na época em que eram subjugados aos humanos. As práticas capitalistas, utilizadas em benefício próprio, fizeram com que os porcos se aproximassem cada vez mais dos homens, esquecendo os ideais igualitários da revolução.

Partindo de reflexões em torno desses (e de outros) aspectos apresentados por Orwell (1993), este ensaio fundamenta-se numa revisão da literatura que aborda o "poder e controle", relacionando o tema com estudos empíricos no campo das organizações da economia solidária. Dessa forma, é construída uma "ponte" metodológica relacionando características intra-organizacionais pertinentes a essas organizações com aspectos destacados na fábula de Orwell. A discussão gira em torno de possíveis distorções nas organizações da economia solidária, quanto ao poder e ao controle, e as analogias que podem ser feitas com A revolução dos bichos.

Introdução

A economia solidária é um tema cuja discussão vem ganhando evidência no meio acadêmico brasileiro. Desde a década passada, novos fenômenos no mundo do trabalho - decorrentes da globalização e da abertura do mercado à competição internacional - passaram a despertar o interesse da comunidade científica.

Uma implicação social direta dessa tão falada globalização tem sido o crescente desemprego, sobretudo no meio urbano, em conseqüência do fechamento de empresas e/ou de processos de reestruturação da produção. Particularmente na indústria, ocorre uma drástica queda na oferta de trabalho, com o setor de serviços assimilando grande parte dessa mão-de-obra disponível. Por sua vez, essa mão-de-obra vem passando por novos processos de aprendizagem, em que as novas habilidades e competências adquiridas tornam-se fundamentais para atender às atuais exigências do mercado de trabalho.

Nesse contexto, a mobilização dos movimentos sociais e de entidades representantes dos trabalhadores (como sindicatos e confederações) revelam a inquietação da sociedade na procura por novas formas de organização socioeconômica capazes de inserir na estrutura produtiva essa massa de desempregados. Conseqüentemente, muitas experiências de organização da produção surgem no Brasil, apontando para a criação de um modelo econômico baseado em novas relações de produção, pautadas pela solidariedade e a cooperação como princípios eticopolíticos e esteios de uma nova mundialização (GAIGER, 2003).

Algumas conhecidas formas de organização da produção têm surgido com mais vigor. Exemplo disso é o cooperativismo, que passa por um ciclo de expansão no meio urbano nunca visto no Brasil; tanto que as cooperativas de trabalho (para dar um exemplo) tiveram uma crescimento de 269% entre 1990 e 2000. Junto com as associações (de consumidores, de redes de pequenos comerciantes e industriais etc.) e diversas outras iniciativas (clubes de trocas, por exemplo), as cooperativas constituem a chamada economia solidária. Cabe ressaltar ainda a criação de inúmeras instituições da sociedade civil que apoiam o movimento de economia solidária no Brasil, tais como: a Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão (Anteag) e a Agência de Desenvolvimento Solidário da Central Única dos Trabalhadores (ADS/CUT). Mais recentemente, o poder público também tem atuado, através das diferentes instâncias de governo (federal, estadual e municipal). Essa participação ocorre através das universidades (com a criação de incubadoras de cooperativas), da participação do Ministério do Trabalho (com a criação da Secretaria Nacional de Economia Solidária - Senaes) e dos bancos oficiais (instituindo políticas de microcrédito), entre outras iniciativas.

O fortalecimento da dimensão política tem aberto novas perspectivas para a economia solidária no Brasil. A sociedade busca romper barreiras e constituir a economia solidária não só como uma possibilidade de resistência ao sistema econômico hegemônico, mas também como projeto de uma nova sociedade fundamentada na democratização da economia e não fortalecimento da cidadania (GAIGER, 2003).

Os inúmeros empreendimentos coletivos espalhados pelo país evidenciam o crescimento da economia solidária, ao mesmo tempo que esse quadro coloca inúmeros desafios. Dentre estes, o de ampliar e integrar as experiências bem-sucedidas para superar o isolamento, a dispersão e a condição preconcebida de que a economia solidária é um mero paliativo contra o desemprego. Outro desafio é o de construir um referencial de competências para a governança dessa experiência, sempre em sintonia com os preceitos democráticos e de eqüidade que devem caracterizar tal iniciativa (SINGER, 2002).

Das características da economia solidária, as relações intra-organizacionais lhe conferem uma identidade particular, distinta da verificada nas organizações produtivas da economia capitalista. Nesses termos, problemas peculiares das organizações da economia solidária, relacionados a poder e controle, são importante tema para reflexão, haja vista que a "razão de ser" dessas organizações - o que as define política e ideologicamente- ressalta a eqüidade, a democracia, a cooperação, a ajuda mútua e a participação espontânea. Logo, as formas de exercício do poder, assim como os instrumentos e mecanismos de controle, precisam estar alicerçados em bases distintas das existentes nas empresas capitalistas. Afinal, além da lucratividade necessária à organização, outros aspectos cruciais também estão em jogo.

Ao levar em conta as nuances da fábula de Orwell, é interesse deste estudo observar aspectos relacionados à incoerência entre a estrutura de poder e o controle - considerando essa estrutura como originalmente concebida para ser um meio de governança das organizações da economia solidária -e os desvios comportamentais das relações de poder nessas organizações. Portanto, levantamos a seguinte questão: as formas como as organizações da economia solidária estão hoje estruturadas, em termos de poder e controle, suscitam relações intra-organizacionais coerentes com o modelo econômico solidário original?

Muito mais do que responder a essa e a outras questões, queremos contribuir para a reflexão sobre as práticas de poder e controle - já relativamente bem investigadas nas organizações características da lógica hegemônica (CLEGG, 1989; MOTTA, 1990; PAGÉS et al., 1993) - nas relações entre os indivíduos nessas novas formas organizacionais.

Fundamentação teórica

Esta seção se divide em três tópicos que envolvem conceitos essenciais à compreensão teórica do tema abordado. O primeiro tópico apresenta as linhas gerais do modelo político-ideológico proposto pela economia solidária, assim como seus principais conceitos. O segundo aborda o poder e as relações intra-organizacionais, considerando, de um lado, as especificidades das organizações e, de outro, as ações que orientam os indivíduos nesse tipo de organização. No terceiro tópico, o objetivo é buscar uma melhor compreensão das mudanças nos arranjos organizacionais contemporâneos, e então contextualizar as questões relativas ao poder e ao controle nas organizações da economia solidária, principalmente, quanto ao respeito às formas de controle exercidas sobre os indivíduos integrados ao processo produtivo.

O modelo político-ideológico autogestionário da economia solidária

Uma realidade organizacional pode ser melhor compreendida a partir de sua contextualização econômica. A configuração atual da economia de mercado, inspirada em princípios do neoliberalismo econômico, produziu distorções na produção e distribuição de riquezas. Tal fato, tem como conseqüência direta uma significativa exclusão de pessoas da atividade econômica, aumentando a pobreza e a desigualdade social.

Apesar disso, simultaneamente, observa-se a (re)emergência de significativo número de experiências de formas organizacionais visando à inclusão socioeconômica (por exemplo, cooperativas e associações). Esse processo tende a uma renovação, tanto pela ampliação do seu projeto político-ideológico, quanto pela maior participação da sociedade através dos movimentos da sociedade civil. Nesses termos, a economia solidária está associada a tais experiências, vinculando-se a diferentes abordagens que ora se configuram como modelo de regulação econômica das relações de produção (constituindo ações de oposição à ordem vigente), ora concebem esse modelo como capaz de fomentar uma nova lógica de solidariedade.

Laville (2000) apresenta um primeiro entendimento, segundo o qual a economia solidária é um fenômeno sociopolítico e econômico, hoje, verificado em diferentes contextos internacionais. Esse autor defende a hipótese de que o conceito de economia solidária havia sido trabalhado, a partir da década de 1980, quase que simultaneamente, por pesquisadores europeus e latino-americanos, concluindo que essa diversidade de experiências não pode ser vista apenas como um fenômeno nacional. A concepção de que há uma pluralidade de formas de organização da produção e do trabalho, em diversos contextos, convivendo com o sistema econômico hegemônico capitalista, leva Laville à conclusão de que a economia real não pode ser tida apenas como o somatório do Estado e do mercado, uma vez que, a dimensão econômica envolve muitos outros agentes que se moldam a partir de uma lógica própria, contra-hegemônica.

De acordo com Singer (2002), o capitalismo tem como princípio o direito de propriedade individual em relação ao capital. A desigualdade e a competição generalizada seriam resultantes dessa forma de organização da atividade econômica. No entanto, esse modo de produção não impede a emergência de outros, afinal, é incapaz de absorver grande parte da população economicamente ativa. Em relação ao sistema econômico hegemônico, a economia solidária seria um modo de produção alternativo cujo princípio básico difere daquele sistema por estar baseado na propriedade coletiva ou associada do capital. Para Santos (2002b), a economia solidária também pode ser definida como modelo econômico que alcança uma diversidade de formas associativas de produção.2 2 Neste ensaio, "modelo" é concebido da seguinte forma: observa-se a economia solidária (ES) como representação de experiências que engendram aspectos que podem servir de referência para reprodução em grande escala.

Até aqui, as referências conceituais da economia solidária dizem respeito ao conjunto de práticas produtivas embasadas em novos arranjos organizativos, de uma perspectiva coletivista. Para França Filho (2004), a expressão economia solidária relaciona estreitamente iniciativa com solidariedade (historicamente dissociadas), ao mesmo tempo em que inscreve a solidariedade no cerne da ação coletiva da atividade econômica. Afirma-se então que solidariedade está relacionada à iniciativa cidadã, de modo diferente ao daquela solidariedade abstrata praticada pelo Estado, ou ainda da tradicional, de caráter comunitário. É possível afirmar, então, que a economia solidária compreende experiências organizacionais de caráter coletivo, inseridas nas chamadas novas formas de solidariedade.

Ao caracterizar os empreendimentos econômicos solidários, Santos (2002b) destaca que representam experiências de produção associativa com forma e objetivos diversos, envolvendo iniciativas de organização econômica e popular, da qual participam desde setores marginalizados e excluídos do processo social até cooperativas mais estruturadas. Os empreendimentos solidários, como assinala França Filho (2004), consistem em atividades econômicas com objetivos sociais e que afirmam a noção de cidadania. Gaiger (1996) aponta algumas características fundamentais das organizações da economia solidária: autogestão, democracia participativa, igualitarismo, cooperação no trabalho, auto-sustentação, desenvolvimento humano, além de responsabilidade social.

A idéia de autogestão -crucial no projeto político da economia solidária -está relacionada a uma concepção multidimensional que envolve aspectos técnicos, econômicos, sociais e políticos. Nesse sentido, seu significado não se vincula apenas à autonomia na governança da organização - no que se refere ao poder decisório exercido por seus associados. Agrega-se também o sentimento de libertação dos trabalhadores das estruturas verticalizadas e hierárquicas das empresas capitalistas. Assim, a prática autogestionária, em sua essência, representa a construção cotidiana da autonomia dos trabalhadores; algo que exige rupturas com as práticas autoritárias (ALBUQUERQUE, 2003).

Ao compatibilizar iniciativa cidadã com solidariedade, entendemos que, de modo subjacente, agrega-se duas perspectivas de ação, a individual e a coletiva. A primeira, representada pela capacidade do indivíduo de mobilizar seus recursos inatos e ser proativo; a segunda, pelo engajamento e a possibilidade efetiva de assumir processos de gestão coletiva. Numa estrutura organizacional capitalista -na qual poder e controle estão hierarquizados -, não há conotação cidadã. Nas empresas, determinados artifícios, como o da pseudoparticipação, podem fazer parecer que tais iniciativas apresentam possibilidades amplas.

O management tem como natureza ser uma prática social que visa ao melhor funcionamento de uma organização, sendo suas exigências marcadas com "o selo da eficácia" (CHANLAT, 2000). Nas empresas, essas exigências partem dos dirigentes; num empreendimento econômico solidário, a proposta organizacional está estruturada para práticas de gestão condizentes com o ideário da economia solidária. Dessa forma, esta pode ser entendida como um modelo coletivista de organização do trabalho, cujos princípios básicos apontam para a necessidade de um tipo de arranjo produtivo distinto do capitalista. A ideologia igualitária deve estar presente e repercutir na configuração das organizações da economia solidária genuinamente orientadas por esse preceito.

O foco deste ensaio está nas relações intra-organizacionais dos empreendimentos econômicos solidários, representados principalmente pelas cooperativas e pelas associações de produtores. O entendimento é o de que essas duas formas organizacionais têm sido mais representativas da dinâmica social e econômica da economia solidária, particularmente, do meio rural e das populações urbanas menos favorecidas.

Poder e relações intra-organizacionais

O poder é um aspecto das relações interpessoais no âmbito organizacional, e é importante entender como se manifesta e através de quais mecanismos. Abordá-lo em diferentes contextos acarreta uma dificuldade de ordem conceitual. Todavia, nos interessa observar as formas de poder que ocorrem no cotidiano organizacional, ou seja, os "micropoderes", conforme observado por Foucault (1979).

A classificação weberiana considera a autoridade como a representação de uma forma de poder, já que é reconhecidamente legitimada para exercê-lo. No âmbito das relações, o poder expressa capacidades para a ação, como também desencadeia comportamentos particulares. Para Stoppino (apud FISCHER, 2002), o poder está relacionado a capacidades de ação e produção de efeitos.

Para Foucault (1979), o poder emana das relações de produção existentes numa organização socioeconômica produtiva. Assim, é percebido numa diversidade de situações cotidianas nas quais é exercido pelos indivíduos, sob diversas formas. Nesses termos, o poder não é objeto pronto, concreto, e sim uma relação. Uma vez que tem esse caráter relacional, logo, a resistência a sua prática ocorre dentro da própria rede de poder, por uma multiplicidade de relações de força. Portanto, o poder é inerente à própria dinâmica social, constituindo um jogo de forças, por mais que o seu exercício seja legitimado e delegado coletivamente ao mandatário.

Desse modo, ao ser expresso através de ações e atitudes, o poder é concebido como exercício relacional que naturalmente confronta forças socialmente antagônicas. Essa afirmação nos leva a pensar sobre a hipótese de que práticas de poder, no âmbito da sociedade, estariam sendo também reproduzidas no interior das organizações.

Em um estudo sobre o papel das cooperativas do Nordeste brasileiro como agentes de mudança social, Rios (apud FLEURY, 1983) demonstrou que as cooperativas agropecuárias daquela região estão estruturadas segundo uma hierarquia de poder baseada na classe social de origem de seus membros. Essas cooperativas reúnem grandes e pequenos produtores, e os primeiros são beneficiados pela estrutura organizacional cooperativista. O autor conclui então que a estrutura de poder vigente na sociedade é reproduzida nessas organizações, ainda que estas preconizem o igualitarismo do voto e, por conseguinte, do poder de decisão. Isso significa que os mecanismos de gestão concedidos pelo poder coletivo da organização tornam-se instrumentos de controle e reprodução da diferenciação social. Poder e controle em organizações, portanto, são exercidos não apenas em função do modelo de gestão organizacional, mas também da própria natureza das relações sociais existentes no contexto social do qual essas organizações fazem parte.

Muito embora precisem se constituir de acordo com ideais igualitários e coletivos, as organizações da economia solidária não deixam de ser um palco no qual ocorrem jogos de poder. Entretanto, nessa organizações, o poder precisa se constituir com nuances específicas, devendo ser entendido como detentor de "[...] um caráter benigno e comunal, em que se acredita na capacidade humana de realização coletiva e harmoniosa perseguindo objetivos consensualmente determinados" (CARVALHO, 1998, p. 10).

Contudo, por mais que a arregimentação de uma estrutura de poder esteja baseada no consenso entre seus membros, podendo chegar próximo do ideal, não é impossível que haja manipulação de comportamento. Como as organizações da economia solidária têm um caráter ideológico muito presente, as bases do poder podem ser substituídas pela coerção e pela força, desvirtuando o ideal solidário.

A mudança na lógica dos papéis organizacionais - dirigentes sob o controle dos dirigidos e vice-versa - faz com que essas organizações coletivistas possam exemplificar o que diz Schein (apud CARVALHO, 1998, p.10): "as organizações podem ser consideradas estruturas de coordenação de esforços e de ajuda mútua entre os indivíduos que se unem para alcançar objetivos comuns, depois da constatação de que sós não o podem conseguir".

Em nossa compreensão, a concepção de poder nesse tipo de organização precisa ser considerada num sentido amplo, conforme aponta Giddens (1997), equivalendo à capacidade transformadora da ação humana, ou seja, à capacidade de intervir em acontecimentos, na ânsia de alterar seu curso. Um projeto autogestionário, que prevê rupturas com a lógica capitalista, está no cerne de uma prática social fundada na repartição do poder como expressão de um tipo de ação social coletivista (ALBUQUERQUE, 2003).

Entendendo a lógica hegemônica: um contraponto

Ao desenvolver um complexo estudo numa multinacional americana instalada na França, Max Pagès, Vicent de Gaulejac, Michel Bonetti e Daniel Descendre (1993) nos oferecem uma análise crítica que acreditamos ser pertinente ao objetivo de apresentar a lógica do modo de produção hegemônico - e suas estruturas organizacionais de poder e controle - à qual o modelo da economia solidária se opõe.

Os autores elaboram uma análise situando o poder no nível das relações entre a organização e o indivíduo, trazendo uma visão da organização como um sistema em que as mediações econômicas, políticas, ideológicas e psicológicas estão inter-relacionadas, produzindo uma realidade alienadora a serviço de uma lógica hegemônica dominante (PAGÈS et al, 1993).

A hierarquia do controle na organização é um tema também abordado por esses autores, assim como sua divisão em níveis e funções. Foucault (apud PAGÉS et al, 1993) adota as regras como uma das características de uma nova forma de poder, de uma mudança de comando de um chefe para uma lógica. Então, regras com força de lei dentro da organização são criadas e, da perspectiva dessa lógica totalizante, recorre-se a essas regras como mecanismo de controle dos indivíduos.

O sistema de valores, condizente com os dogmas organizacionais "prolonga a codificação das práticas no plano das representações, tendo como principal função à legitimação do sistema de regras" (PAGÈS et al, 1993, p.77). A ideologia corporativa tem papel fundamental nesse processo de dominação humana através da resignação obediente dos indivíduos desarticulados, isolados e impotentes.

Nesse sentido, as empresas capitalistas renovam seus arranjos organizacionais, mas engendram a mesma ideologia de dominação, mantendo o controle sobre os indivíduos. O apologismo à participação constitui artifício que dissimula esse objetivo, aparecendo, não raro, sob o nome de "processos de autogestão" cujo significado, nesses casos, é operacional, pois "são apresentados apenas como mais uma técnica gerencial que possibilita reduzir defeitos de produção e aumentar a produtividade" (ALBUQUERQUE, 2003, p.23). Além disso, cria-se um senso comum entre os funcionários de que eles efetivamente têm voz e participação ativa no processo de gestão da organização, quando, na realidade, estão apenas sendo "fantoches no teatro corporativo".

Controle e novas formas organizacionais

Da perspectiva de se compreender o controle como "redução da incerteza" (CARVALHO, 2002) -ao estabelecer mecanismos cada vez mais interligados -, a organização está sutilmente consolidando uma nova formatação para reduzir as incertezas das "peças humanas". Na realidade, tais mecanismos extrapolam o aspecto funcional dos indivíduos ao impor-lhes valores e padrões comportamentais, e fazer com que se tornem fiscais dos próprios pares no desempenho de suas funções no processo produtivo.

Nas novas formas organizacionais, baseadas na lógica hegemônica, percebe-se claramente que o controle, em momento algum, é esquecido ou abrandado, mas apenas adequado ao novo cenário. Novas tecnologias de controle são postas em prática, muitas vezes fazendo uso de ritos, signos, valores, numa tentativa de construção cultural.

Esses arranjos produtivos estimulam os indivíduos a exercerem controle entre si. A solidariedade no ambiente de trabalho é puramente orgânica, sendo difícil que surja qualquer sentimento de grupo quando ao seu lado pode estar o seu "algoz". A participação como regime de verdade também legitima a vigilância entre os indivíduos, exercendo-se um controle não apenas coercitivo, mas também participativo. Para Foucault, todo poder se relaciona e se garante a partir de regimes que o sustentam. Assim, a participação funciona como elemento que une trabalhadores a outros trabalhadores e todos eles à organização, com o mesmo objetivo e problemática: a sobrevivência/lucro da organização e, conseqüentemente, dos seus empregos (CARVALHO e ALCAPADINI, 2001).

Em um sistema de gestão, é muito óbvia a importância de mecanismos de controle em quaisquer organizações com objetivos definidos. Entretanto, é preciso ter o devido cuidado - principalmente quando se discute tais mecanismos nas organizações da economia solidária - quanto às modernas formas de controle; cuidado esse capaz de "domar" uma tentadora intromissão em outras dimensões (por exemplo, na social, na pessoal e na política), além da dimensão profissional do indivíduo.

Tenório (1997) aponta uma perigosa redução da existência humana ao apresentar uma metáfora de Lukács afirmando que a criatura (o mercado) assume o lugar do criador (o homem), o qual se vê reduzido à escravidão. O estranhamento dos homens em relação ao seu trabalho (a alienação) submete-o à força incontrolável das leis econômicas, as quais operam por si mesmas, sem interveniência humana.

No campo da economia solidária, a questão do controle é abordada principalmente a partir das experiências das cooperativas, enfocando o aspecto relacional entre propriedade e controle. Sob esse enfoque, a relação entre cooperativa e cooperados é mais do que uma simples relação contratual, é um contrato social cujo objetivo é integrar as economias individuais dos sócios cooperados a uma estrutura intermediária coletiva, a cooperativa. A intermediação coletiva, através da cooperativa, com o mercado pressupõe um arranjo organizativo voltado para tais objetivos. Entretanto, essa gestão coletiva traz consigo uma característica peculiar desse tipo de sociedade: a pessoa física (cooperado) é simultaneamente contratado e contratante do mesmo contrato social, ou seja, é usuário e proprietário da estrutura organizacional coletiva a qual pertence, participando de decisões estratégicas e da própria execução (BIALOSKORSKI, 1997). Nesse caso, o controle pode assumir uma vertente diferente ao ser exercido pelo próprio cooperado, servindo como ferramenta em benefício das economias particulares (de cada cooperado) em detrimento da organização, como uma gestão coletiva eqüitativa.

Essa é uma clara demonstração do que pode representar as distorções funcionais e estruturais de formas organizacionais autogestionárias. Tais distorções restringem os processos de autogestão apenas ao aspecto econômico-produtivo, não observando o caráter coletivista e igualitário (dimensões social e política) do projeto da economia solidária.

Assim, novos arranjos organizacionais podem estar associados a novas formas de controle do trabalho e da produção. Diferentes contextos pedem diferentes formas de se controlar os atores e suas performances. No entanto, as novas formas de controle a serem implementadas nas organizações da economia solidária devem se coadunar com a lógica do projeto da economia solidária.

Poder e controle: algumas reflexões sobre a práxis nas organizações da economia solidária

Com o objetivo de refletir sobre a congruência entre o discurso político-ideológico e as práticas de gestão, particularmente quanto às relações de poder e controle, esta seção apresenta estudos empíricos em organizações coletivas de produção (associações e cooperativas) caracterizadas como organizações da economia solidária, estabelecendo ligações com alguns dos aspectos destacados da fábula de Orwell (1993) e com a fundamentação teórica deste estudo.

É notável a disseminação de experiências de produção mediadas por estruturas coletivas. Nessa direção, recorremos aos estudos de Sabourin (1999) sobre a ação coletiva e suas formas de estruturação/lógicas de funcionamento, tomando como referências alguns tipos de organizações coletivas, especialmente, cooperativas e associações.

No caso das associações de produtores, seu funcionamento apresenta características reveladoras das relações de poder nessas organizações. Não se trata aqui apenas do aspecto administrativo e econômico, mas igualmente da dimensão sociocultural, que também é determinante. Geralmente, a configuração do poder nesse tipo de organização também tem origem no contexto das relações comunitárias, que acabam por influenciar as relações estabelecidas internamente. As associações de produtores rurais são organizações formalizadas, com um arranjo organizacional definido de acordo com cargos e funções. Não obstante, as relações de proximidade na origem do grupo influenciam no processo de gestão, já que a configuração do poder intra-organizacional reproduz as relações em sociedade.

Na fábula de Orwell, os porcos gozavam de prestígio e posição de comando entre os demais animais, antes mesmo da revolução igualitarista. Com a tomada do poder na granja, "naturalmente", eles assumiram as "rédeas" do novo regime. Recorrendo à Rios (apud FLEURY, 1983) -que demonstrou serem as cooperativas estruturadas segundo uma hierarquia de poder baseada nas classes sociais dos cooperados -, constata-se também que, em associações, a estrutura de poder tende a ser influenciada pelas relações consolidadas na sociedade. Assim, as organizações da economia solidária estão suscetíveis às nuances que desvirtuaram o poder na Revolução dos bichos, muito embora o princípio ideológico preconize o igualitarismo.

Outros aspectos relevantes a serem observados são os requisitos de conhecimentos e habilidades demandados por funções mercantis - embasados em valores da racionalidade instrumental capitalista (tais como: escala econômica, padronização, comercialização, negociação, entre outros), que também contribuem para a configuração do poder. Tais requisitos remetem a uma diferenciação pela competência, conduzindo a relações de poder centralizadoras e autoritárias (SABOURIN, 1999).

É o caso das cooperativas de produtores rurais de perímetros irrigados, citadas por Sabourin (1999). A atividade especializada dessas organizações suscitou modelos de gestão centralizadores e autoritários, não orientados por valores de cooperação e autonomia condizentes com os preceitos da autogestão proposta pela economia solidária. O caráter benéfico e comunal do poder, fundamental nas organizações coletivistas, como aponta Carvalho (1998), tende a ser ignorado nesses casos, da mesma forma como foi pelos porcos. Por possuírem habilidades diferenciadas em relação aos demais bichos (eram os únicos que sabiam ler, tinham habilidade para negociar, capacidade de articulação de idéias e uma retórica envolvente), os porcos as utilizaram em benefício próprio, transformando por completo o "animalismo" - a doutrina igualitária outrora instituída entre os bichos pelos próprios porcos. No lugar das premissas iniciais, uma nova (e única premissa) foi afixada na parede do estábulo: "todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que os outros" (ORWELL, 1993, p.93).

Tais práticas resultaram em apatia, afastamento e completa descrença dos bichos em relação ao ideário coletivista do projeto da granja. Albuquerque (2003) alerta para ocorrências similares em cooperativas, demonstrando que a construção de um projeto autogestionário, na perspectiva da economia solidária, é repleto de conflitos e contradições.

Bialoskorsky (1997) considera fundamental para a sobrevivência das sociedades cooperativas a separação entre propriedade e controle, como no caso da cooperativa Holambra. Essa organização buscou compatibilizar os preceitos do ideário cooperativista com mecanismos de eficiência econômica, através da profissionalização das gerências; ou seja, a gestão operacional passou para mãos de não-associados, modificando os mecanismos de controle e relativizando o poder. Este agora não mais está exclusivamente sob o domínio dos cooperados, o que faz surgir a figura do profissional de gestão que tem como obrigação gerir a organização conforme os preceitos da economia solidária, ao mesmo tempo em que busca atingir resultados econômicos para sua sobrevivência. Nesse arranjo organizacional, o "poder relativizado" é gerador de conflitos devido às diferentes perspectivas entre quem executa (gerente) e quem controla (cooperado).

Dilemas como esses são inerentes ao próprio desafio da autogestão. Entretanto, as divergências e disputas internas somente passam a prejudicar o desenvolvimento das organizações da economia solidária quando não são suficientemente interpretadas em seu significado político-ideológico.

A estrutura organizacional: poder e controle nas organizações da economia solidária

O processo de globalização e o domínio da tecnologia da informação são fatores fundamentais na definição de novas hegemonias na "era da informação" (BELL, 1973). Dessa forma, é preciso interpretar com cuidado as transformações que ocorrem nas estruturas das organizações produtivas brasileiras. Nesse processo, percebe-se um movimento contraditório na relação global/local. A globalização, contraditoriamente, desloca e fragiliza as organizações locais - que perdem espaço para as empresas globais -, ao mesmo tempo em que abre possibilidades para o surgimento de iniciativas locais.

As organizações coletivas que surgem a partir dessas iniciativas são formalizadas segundo a norma jurídica vigente (lei cooperativista nº 5.764/71; Código Civil) que preconiza a estruturação em instâncias coletivistas e democráticas (assembléia geral, diretoria e conselho fiscal). Esse aspecto formal das organizações da economia solidária (particularmente, cooperativas e associações), se, de um lado, concebe instâncias administrativas com propósitos democráticos e solidários, de outro, representa um modelo padronizado que engendra uma racionalidade administrativa burocrática, a qual, geralmente, dificulta decisões ágeis requeridas pelas condições de competição externa, além de personalizar o poder.

Necessariamente, não será a estrutura organizacional que vai regular os jogos de poder dentro da organização, mas, sim, a forma como seus participantes encaram essa nova proposta de organização do trabalho. Assim, as estruturas padronizadas podem implicar modelos de gestão cujo controle sobre os meios de produção determinam regras quanto aos propósitos da organização e, por conseguinte, das ações de cada associado.

O jogo de poder - inerente às organizações (CARVALHO, 1998) - foi dissimulado através da estruturação de uma comissão de porcos aceita por todos como instância detentora de amplos poderes na Revolução dos bichos. Dessa forma, os porcos sobrepuseram ao ideal igualitário, o desejo de permanecer no poder e controlar o comportamento dos demais.

Por sua vez, nas iniciativas coletivas informais, não há cargos predeterminados nas estruturas organizacionais. O poder e o controle sobre o grupo são exercidos a partir de referências construídas historicamente, oriundas das relações sociais. Desse aspecto decorre o argumento de Sabourin (1999) que afirma ser necessário atentar para os efeitos dessas relações internas de poder e controle desencadeadas por estruturas padronizadas capazes de diferenciar, por exemplo, um presidente eleito de um líder comunitário, assim como um secretário difere de um patriarca local. Nesses termos, a arregimentação de uma estrutura de poder baseada num consenso entre os membros da comunidade produtiva pode não ser capaz de impedir que alguns manipulem o comportamento de outros, como aconteceu na comissão dos porcos e em muitas estruturas formais existentes no âmbito das organizações da economia solidária (BIALOSKORSKI, 1998).

O dilema na forma como os trabalhadores encaram as questões relativas ao poder e ao controle nas organizações da economia solidária

Essas organizações -particularmente as cooperativas e associações -existem para viabilizar atividades produtivas, muito embora, como já vimos, não possam ter apenas esse propósito. Nesse sentido, a organização do trabalho em novas bases constitui um dos pilares da economia solidária, a qual pressupõe uma nova forma de relacionamento e exercício de funções e práticas produtivas, implementando um modelo autogestionário. Isso acarreta mudanças na postura do trabalhador no cotidiano organizacional. Em última instância, a participação como membro efetivo de uma organização da economia solidária torna necessária a aceitação desse projeto político ideológico coletivista.

Contudo, tal projeto encontra resistências por parte de membros do grupo, em função de diversos fatores, tais como a incompreensão da proposta político-ideológica coletivista e a mentalidade imediatista; questões que se refletem na forma como o trabalhador se vê, se envolve e se posiciona diante do projeto.

Quanto a esse aspecto, um estudo de Azambuja (2004) sobre uma cooperativa autogestionária no ramo da metalurgia pesada ajuda a entender como o trabalhador se posiciona diante da proposta da economia solidária. Esse estudo ajuda a compreender como o ele reage diante da centralidade do processo autogestionário, e como nessa nova relação de produção, o trabalhador não pode mais se ver apenas como força de trabalho alienada, mas como participante ativo da construção do projeto. Para Azambuja (2003), a autogestão possibilita a mediação do trabalhador, tanto em relação ao poder quanto no que se refere ao próprio trabalho, a partir do redimensionamento da sua relação com a hierarquia.

Nesse sentido, quatro perfis de trabalhadores podem ser caracterizados:

grupo de engajamento -que aceita o projeto político. Portanto, sua imagem do poder é igualitária, democrática, atendendo ao coletivo também engajado;

grupo de adesão - que acolhe o projeto político apenas pelo valor instrumental-operacional, praticando e reforçando sua idéia, sem imprimir significados ideológicos ao trabalho. Os trabalhadores desse grupo vêem o poder na economia solidária como justo e democrático, mas que seu exercício esteja condicionado à habilidade de cada indivíduo. A decisão do coletivo é acatada, respeitando-se as posições de cada um;

os trabalhadores que recuam são indiferentes à ideologia política do projeto. Sua imagem do poder é de "ordem e obediência"; logo, sua natureza é de imposição;

os trabalhadores que assumem uma postura de desvio criticam a ideologia e têm outra proposta para contrapor ao projeto da economia solidária. Para eles, o poder deve ser hierarquizado, com instrumentos de controle e coordenação, e sua natureza é de caráter meritocrático, em nome do progresso econômico da organização e da competência individual (AZAMBUJA, 2004).

Assim como na fábula, em algumas das situações de práxis observadas nas organizações da economia solidária, os trabalhadores podem ser agrupados segundo o perfil dos que recuam, conforme observa Azambuja (2003). Em nossa concepção, as imposições decorrentes de modelos centralizadores são aspectos determinantes da postura do trabalhador perante o projeto político-ideológico da economia solidária. Dessa forma, mais do que um dilema diante de uma nova relação com o trabalho e seus desdobramentos, observa-se um conflito ideológico quanto à proposta da economia solidária, uma vez que o sentido do trabalho se amplia, e com ele, o modo como cada um compreende a natureza e as práticas do poder.

Ao abordar a experiência de uma cooperativa industrial (a Bruscor) em Santa Catarina, Pedrini (2000) atenta para o fato de que o exercício do poder e do controle precisa de "terrenos férteis" para florescer; ou seja, de que é preciso dar condições aos trabalhadores de exercê-lo, mesmo que isso signifique alguma incerteza quanto à competência destes. Para tanto, a Bruscor cria instâncias de deliberação em sua estrutura organizacional, visando estimular o envolvimento dos trabalhadores na vida da empresa. Simultaneamente, adota a rotatividade funcional como estratégia de superação da hierarquia, principalmente da dicotomia do trabalho braçal/intelectual.

Essas estruturas intermediárias, deliberando aspectos operacionais do cotidiano, e a assembléia geral, deliberando temas mais estratégicos, agilizam o processo gerencial, preservando os preceitos autogestionários. Assim, são garantidas oportunidades para todos, ao mesmo tempo em que são oferecidas condições para o exercício do poder e o controle na cooperativa através de um processo de educação e formação continuada da força de trabalho. Segundo Pedrini (2000), devido a essa configuração, a autoridade assume outra conotação que tem a ver com legitimidade. Esta condiciona o exercício do poder e a prática do controle, visto que - na perspectiva de uma organização autogestionária - o poder é exercido pelos (e entre os) pares que os reconhecem como legítimos, em face de posturas coerentes e de responsabilidades assumidas, adquirindo naturalmente autoridade.

Considerações finais

A questão inicial que levantamos neste ensaio nos leva a refletir sobre o contexto complexo e plural das múltiplas formas organizacionais tidas como exemplos de organizações da economia solidária.

Observamos a necessidade de entender que o projeto político-ideológico da economia solidária é um processo (ainda em formação) de continuidade da luta histórica dos trabalhadores pela sua emancipação ante a exploração capitalista. Logo, este continuum histórico une experiências passadas de organização do trabalho com esforços contemporâneos de organização produtiva, através de estratégias econômicas alternativas. Tais estratégias englobam diversas formas de organização, seja pela forma jurídica ou pelos objetivos e/ou práticas produtivas.

Nessa diversidade, não é cabível um modelo operacional linear e padronizado. Cabe apenas a ideologia e os preceitos filosóficos orientadores para uma nova prática social. Dessa forma, o maior desafio parece ser o de manter-se coerente a tais preceitos, uma vez que a cultura capitalista hegemônica influencia fortemente o modo como os trabalhadores encaram o trabalho numa organização da economia solidária.

Isto posto, nos perguntamos: o que diria Orwell sobre as organizações da economia solidária? Obviamente, seu pensamento não estava voltado para isso, e sim para uma crítica ao totalitarismo soviético vigente naqueles tempos. No entanto, Orwell poderia dizer que as organizações da economia solidária precisam avançar na concretização do discurso político, pois como na fábula, o discurso sucumbe às práticas. Dessa perspectiva, o virtuosismo dá lugar à reprodução de velhas práticas camufladas por artifícios retóricos e políticos que apóiam sua legitimação. Portanto, os mecanismos democráticos do projeto político-ideológico da economia solidária são apropriados e distorcidos pela lógica capitalista, visando ao exercício do poder coercitivo. Essas distorções foram ilustradas pelos estudos observados neste ensaio, assim como nas inter-relações estabelecidas entre obra de Orwell e o universo em questão.

Nesses termos, as organizações da economia solidária ainda estão construindo seus processos autogestionários - umas mais avançadas, outras de forma ainda incipiente - buscando firmar uma base inicial desencadeadora de novas relações de produção. Todavia, parece que o projeto político-ideológico da economia solidária está condicionado à construção de suas próprias fórmulas autogestionárias, tanto nas ações quanto nas relações cotidianas dos trabalhadores, criando permanentemente condições para o exercício da práxis do poder e do controle através de estruturas organizacionais flexíveis.

Essa flexibilidade pode significar o caminho para superar velhas dicotomias (trabalho braçal/intelectual) e minimizar a heteronomia no tocante ao capital humano das organizações da economia solidária. Essas organizações estão inseridas no modo de produção capitalista que incessantemente influencia a mediação dos trabalhadores no projeto político da economia solidária, em suas mais variadas dimensões (relação com a hierarquia, com seus pares e com o projeto coletivo). Isso significa que no campo organizacional, o desafio da economia solidária será compatibilizar o discurso político-ideológico baseado no igualitarismo, na cooperação e na democracia com sua necessidade de sobrevivência econômica, sem se deixar "contaminar" pelos valores hierárquicos, verticalizados e centralizadores do capitalismo. Portanto, é preciso ficar alerta para a sedução do poder econômico e sua possível influência no poder intra-organizacional.. Nesse âmbito, o poder deve ser de direito e legitimado, nunca coercitivo e dominador. Essa é a principal lição que podemos associar à Revolução dos bichos.

Giddens (1997) destaca o poder não necessariamente como um obstáculo à liberdade ou à emancipação, mas como meio. Acrescentamos que, observando a macroestrutura político-econômica, o poder pode ser elemento propulsor para se produzir localismos estruturados em redes de empreendimentos solidários que poderão servir como referências para o surgimento de outros "localismos emancipadores" (SANTOS, 2002a). Obviamente, os aspectos intra-organizacionais são o tema central deste ensaio, mas eles não estão isolados, muitos menos dissociados de questões macroestruturais, tal como a articulação e a estruturação de redes de organizações da economia solidária.

A proposta diferenciada de geração e acumulação de riqueza representada por essas organizações é apontada por muitos como uma possibilidade de desenvolvimento global alternativo (SINGER, 2002; SANTOS, 2002a; GAIGER, 2003). Para os que fazem as organizações da economia solidária, é fundamental entender que o processo de globalização também pode ser encarado como uma oportunidade para aqueles grupos associativos que ainda não conseguiram uma inserção socioeconômica significativa. Com a estruturação e a organização da atividade produtiva fundamentadas na cooperação, esses grupos podem participar em condições sustentáveis das novas relações de produção decorrentes desse processo (SANTOS, 2002a).

Além da reflexão quanto ao poder e o controle, não podemos deixar de propor novos e mais aprofundados estudos sobre as organizações da economia solidária. A multidimensionalidade conceitual da autogestão e a especificidade dessas organizações constituem pontos de partida para pesquisarmos o poder e o controle nas relações intra-organizacionais vinculadas tanto ao trabalho e à identidade organizacional, como à cooperação e competição intra-organizacionais e à diferenciação profissional e ao igualitarismo, entre outros fatores.

Quanto à economia solidária e as suas formas organizacionais, cabe observar por fim, o fato de que parece existir uma necessidade latente de construção de uma base epistemológica. Nesse sentido, é importante expandir o campo de interesse dos estudos e teorizações organizacionais para além do âmbito das empresas e/ou da administração pública. Teorias, modelos e conceitos geralmente têm como foco principal o ambiente empresarial ou então a gestão pública, restando às demais formas organizacionais adaptar um conhecimento que muitas vezes não é adaptável. Em nossa concepção, essa construção é um desafio ser enfrentado pelos estudiosos de administração.

Artigo aceito para publicação em julho de 2004 e aceito em fevereiro de 2005.

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  • 1
    "Poder e Controle Nas Organizações Da Economia Solidária (OES): Aspectos Das Relações Intra-Organizacionais" foi uma versão preliminar deste trabalho apresentada no III Encontro Nacional de Estudos Organizacionais (III-ENEO), Atibaia, SP, 2004. "Reflexões sobre Poder e Controle nas Organizações da Economia Solidária" é uma versão aprimorada para esta publicação.
  • 2
    Neste ensaio, "modelo" é concebido da seguinte forma: observa-se a economia solidária (ES) como representação de experiências que engendram aspectos que podem servir de referência para reprodução em grande escala.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Jul 2012
    • Data do Fascículo
      Jul 2005

    Histórico

    • Aceito
      Fev 2005
    • Recebido
      Jul 2004
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