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Repensando os estudos organizacionais: por uma nova teoria do conhecimento

Rethinking organizational studies: a new theory of knowledge

Repensando los estudios organizacionales: por una nueva teoría del conocimiento

PAULA, A. P. P. .Repensando Os Estudos Organizacionais- Por Uma Nova Teoria do Conhecimento. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015. 279p.

Um dos primeiros dilemas enfrentados por quase todo pesquisador da linha dos estudos organizacionais concerne a seu posicionamento paradigmático em escritos e pesquisas e, mais amplamente, à sua maneira de entender e fazer ciência no campo. Talvez possa se dizer que essa é a principal questão discutida por Ana Paula Paes de Paula em sua obra Repensando os estudos organizacionais: por uma nova teoria do conhecimento (2015). Já nas primeiras páginas, a autora salienta que essa escolha traz uma série de consequências para os estudantes de mestrado e doutorado que resolvem se aventurar nesse campo a respeito, por exemplo, dos veículos de publicação, da escolha de orientadores e de eventos para a exposição de ideias e debates. Escolher um paradigma no campo dos estudos organizacionais tem se constituído em tarefa árdua e pouco profícua para a área em geral, dada a forma como se desenvolveram as discussões epistemológicas nele. Usando uma metáfora da autora, é como se escolhêssemos um time de futebol pelo qual teríamos de defender e jogar ao longo de toda a vida.

Para Paes de Paula, o grande fundamento da guerra paradigmática existente no campo, hoje, resulta de ideias e conceitos consolidados advindos de duas obras consagradas na área dos estudos organizacionais. O primeiro é a noção de paradigma, extraído da obra A estrutura das revoluções científicas, de Thomas S. Kuhn (1998). O segundo é o esquema quadricular de paradigmas dos estudos organizacionais, realizado por Gibson Burrel e Gareth Morgan no livro Sociological paradigms and organizational analysis (1979). Paes de Paula contesta a tese da incomensurabilidade paradigmática nos estudos organizacionais formulada por Burrel e Morgan a partir da aplicação da noção dos paradigmas científicos khuninos na administração. O esforço da autora é mostrar que existem caminhos para a interação de diferentes abordagens sociológicas e que a “guerra paradigmática”, clima resultante da tese da incomensurabilidade, foi uma ação estratégica perpetrada por certos pensadores na área. A autora argumenta que a incomensurabilidade paradigmática não se sustenta cientificamente, como muitas vezes se fez crer. Paes de Paula vale-se da discussão feita por Jürgen Habermas, no livro Conhecimento e interesse (1968), no qual busca fontes para a superação da noção de paradigmas sociológicos, propondo, em substituição, a expressão “abordagens sociológicas”. De forma diversa dos paradigmas, as abordagens sociológicas podem pertencer a uma (abordagens puras) ou mais matrizes epistêmicas (abordagens híbridas), e para cada uma das matrizes epistêmicas há um interesse cognitivo específico correspondente. Assim, a autora entrelaça o que chama de círculo das matrizes epistêmicas baseando-se em duas teses: a tese da incompletude cognitiva e a tese das reconstruções epistêmicas, desenvolvidas e defendidas na obra, a fim de propor uma nova teoria do conhecimento para os estudos organizacionais.

A partir da tese da incompletude cognitiva, ela defende que uma matriz epistêmica só pode ter parte do conhecimento em relação ao todo, dado que a ela se liga um interesse cognitivo específico (seja técnico, prático ou emancipatório) e que os limites que se apresentam hoje nos estudos organizacionais não têm nada a ver com incomensurabilidade de paradigmas, ou melhor, têm, sim, mas não da forma que propõem Burrel e Morgan. A incompletude do conhecimento se mantém nos estudos organizacionais na medida em que não se permite construir pontes entre as diferentes matrizes epistêmicas para se formarem abordagens híbridas que perpassem mais interesses cognitivos, que se criem abordagens mais complexas e “completas”, processo que a autora chama de reconstrução epistêmica.

No âmbito de uma ciência social aplicada, a tese das reconstruções epistemológicas é baseada no caráter processual e dinâmico da produção de conhecimento. As recombinações entre teorias e metodologias devem ser empreendidas com o fim de aprimorar suas abordagens e possibilitar maior amplitude no conhecimento da realidade social. Essa tese fortalece o argumento de que o conhecimento nas ciências sociais não se dá, como gostariam os seguidores de Thomas Kuhn, a partir de “rupturas paradigmáticas”, mas de um processo sistemático de “escavação”, que procura superar a incompletude cognitiva a partir de um aprofundamento teórico-metodológico.

Segundo Paes de Paula, o conhecimento se desenvolve em razão de três principais interesses cognitivos, o técnico, o prático (compreensão e comunicação) e o emancipatório, que guiarão cada uma das matrizes epistêmicas e que se constituem em mecanismo propulsor da formação do conhecimento. Toda pesquisa e/ou estudo realizado parte desses três interesses concomitantemente, ainda que em diferentes graus. Isso porque os interesses se complementam e se constituem em partes de um mesmo todo - interligados e indissociáveis entre si. Esses três interesses darão forma a três matrizes: a) a matriz empírico-analítica, ou nomológica, que diz respeito ao interesse técnico e busca a predição e o controle dos fatos sociais; b) a matriz hermenêutica, que é orientada pelo interesse prático e que busca a compreensão social por meio da comunicação e interpretação; e c) a matriz crítica, que é motivada pelo interesse emancipatório, voltando-se para a transformação social.

Figura 1
Círculo das matrizes epistêmicas.

A autora reconstrói a formação das abordagens sociológicas nos estudos organizacionais a partir do círculo das matrizes epistêmicas utilizando-se de obras seminais e de autores relevantes da área. São discutidas por ela as abordagens funcionalista, interpretativista, humanista, estruturalista, pós-estruturalista e realista crítica no âmbito dos estudos organizacionais. Paes de Paula entende, e mostra como muitas vezes ocorreu, que teorias e metodologias extrapolam as matrizes epistêmicas das quais surgiram e nota que elas podem transitar ou cruzar mais de uma matriz - as por ela chamadas abordagens híbridas.

A autora ainda propõe, como exemplo de sua tese das reconstruções epistemológicas, a possibilidade de uma abordagem baseada na epistemologia freudiana e nas elucidações da Escola de Frankfurt sobre a pesquisa social. A abordagem freudo-frankfurtiana para os estudos organizacionais é desenvolvida em três instâncias: (i) suporte teórico-analítico; (ii) caminhos metodológicos; e (iii) estratégias de investigação. No suporte teórico-analítico, amplamente desenvolvido e fundamentado na exposição das epistemologias freudiana e frankfurtiana, a autora sugere uma nova forma de pensar a ciência e de explicar o mundo, tanto quanto a busca de premissas epistemológicas, metodológicas, filosóficas e analíticas coerentes com a abordagem freudo-frankfurtiana. Nos caminhos metodológicos, revisa amplamente as contribuições da psicossociologia e da socioanálise tanto nos trabalhos de autores brasileiros quanto nos de autores estrangeiros para propor a socioanálise baseada em Lourau como forma de análise institucional e intervenção organizacional, na condição de análise funcional, política e psicanalítica que torna possível a orientação para os três tipos de interesse: técnico, prático e emancipatório. Já no campo das estratégias de investigação, a autora propõe a pesquisa teórico-analítica e a pesquisa-ação como caminhos possíveis para abordar os fenômenos organizacionais observados e intervir direta e explicitamente na realidade social, visando à emancipação.

Paes de Paula, embora proponha uma nova teoria do conhecimento que não só possibilita, mas busca o diálogo entre as matrizes epistêmicas, não o faz à custa das diferenças que existem e que talvez continuarão existindo de forma irredutível entre as diversas abordagens sociológicas. Entendemos que, mais do que dirimir ou sufocar as diferenças entre as abordagens, o que sua tese busca é recolocá-las sob outra perspectiva e fazê-lo de forma tal que as diferenças não sejam empecilhos, mas motor para o debate e o desenvolvimento do conhecimento na área. A nova teoria do conhecimento proposta a partir dos círculos das matrizes epistêmicas baseada na tese da incompletude do conhecimento e na tese das reconstruções epistêmicas apresenta para a área de administração um chão alternativo e profícuo para as discussões, interações entre abordagens de matrizes diferentes, criação de interações alternativas entre teorias e metodologias, hibridações diversas, enfim, multiplica as possibilidades de artesanato intelectual para abordar a complexa realidade do campo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul 2017

Histórico

  • Recebido
    19 Mar 2017
  • Aceito
    29 Jun 2017
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