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Racismo, sexismo e resquícios do escravismo em anúncios de empregos

Racismo, sexismo y resquicios de la esclavitud en los anuncios de empleo

Resumo

Anúncios de empregos podem apresentar elementos de opressão de raça, ainda que sutilmente, em expressões como ‘boa aparência’ e ‘boa higiene’. Tal constatação nos faz refletir que o mercado de trabalho, assim como a sociedade em geral, é racialmente estruturado não apenas na permanência e ascensão profissional de mulheres negras, mas até mesmo no recrutamento, do qual os anúncios de emprego on-line fazem parte. Na presente pesquisa, partimos do objetivo de compreender como a publicação de anúncios de emprego que trazem em si características fenotípicas e relacionadas a ‘boa aparência’ contribuem para a perpetuação do racismo e do sexismo. Especificamente, almejamos compreender como se dá a resistência às práticas e à estrutura racista do mercado de trabalho. Recorremos a referenciais de decolonialidade e interseccionalidade e utilizamos a análise temática em um corpus de 285 anúncios de emprego, 4 sites de classificados e 4 iniciativas de empregabilidade negra presentes no LinkedIn. Nos resultados e discussão, indicamos que um ideal de trabalhadora branca perpetua-se no mercado de trabalho doméstico e que boa imagem e boa higiene são expressões eufemísticas que mascaram o racismo presente no mercado de trabalho, manifestando resquícios do escravismo. Ainda assim, iniciativas atuais de empregabilidade negra buscam trazer à tona a necessidade de pensar ações afirmativas para homens e mulheres negros, historicamente excluídos de empregos de maior prestígio e remuneração, assim como de espaços de decisão. Esse movimento entre opressão, resistência e existência negra opera um projeto decolonial de intervenção na realidade, principal contribuição da presente pesquisa.

Palavras-chave:
Mercado de Trabalho; Raça; Gênero; Decolonialidade

Resumen

Los anuncios de empleo pueden presentar elementos de opresión racial, aunque sutilmente, como en las expresiones “buena apariencia” y “buena higiene”. Esta constatación nos hace reflexionar que tanto el mercado laboral como la sociedad en general están racialmente estructurados, no solo en la permanencia y promoción profesional de las mujeres negras, sino incluso en el reclutamiento, del cual forman parte los anuncios online de empleo. En la presente investigación, partimos del objetivo de comprender cómo la publicación de anuncios de empleo con características fenotípicas y relacionadas con “buena apariencia” contribuye a la perpetuación del racismo y el sexismo. Específicamente, nos proponemos comprender cómo se produce la resistencia a las prácticas y a la estructura racista del mercado laboral. Recurrimos a referencias de decolonialidad e interseccionalidad y utilizamos el análisis temático en un corpus de 285 anuncios de empleo en 4 sitios de anuncios y 4 iniciativas de empleabilidad negra presentes en LinkedIn. En los resultados y discusión, indicamos que se perpetúa un ideal de trabajadora blanca en el mercado de trabajo doméstico y que “buena imagen” y “buena higiene” son expresiones eufemísticas que enmascaran el racismo presente en el mercado laboral, con resquicios de esclavitud. Aun así, las iniciativas actuales de empleabilidad de los negros buscan sacar a la luz la necesidad de pensar en acciones afirmativas para hombres y mujeres negros, históricamente excluidos de los trabajos más prestigiosos y mejor remunerados, así como de los espacios de decisiones. Este movimiento entre opresión, resistencia y existencia negra opera un proyecto decolonial de intervención en la realidad, principal aporte de esta investigación.

Palabras clave:
Mercado de trabajo; Raza; Género; Decolonialidad

Abstract

Job advertisements may present elements of racial oppression, albeit in subtle ways, as in the expressions “good looks” and “good hygiene.” This acknowledgment makes us reflect that the job market, and society in general, is racially structured, not only in the permanence and professional advancement of black women but even in recruitment, including online job advertisements. This research aims to understand how the publication of job advertisements with phenotypic characteristics such as “good looks” contribute to the perpetuation of racism and sexism. Specifically, we aim to understand how resistance to racist labor market practices and structure occurs. We invoke references of decoloniality and intersectionality and use thematic analysis in a corpus of 285 job advertisements on four classified sites and four black employability initiatives present on LinkedIn. In the results and discussion, we indicate that an ideal of a white worker is perpetuated in the domestic work market and that good image and good hygiene are euphemistic expressions that mask racism in the labor market, which is a remnant of slavery. Current black employability initiatives highlight the need to think about affirmative action for black men and women, historically excluded from more prestigious and remunerative jobs and decision-making spaces. This movement, between oppression, resistance, and black existence, operates a decolonial project of intervention in reality, the main contribution of this research.

Keywords:
Job Market; Race; Gender; Decoloniality

Introdução

“A home angels centro sul me ligou agora requisitando 10 folguistas para trabalhar como plantonistas [...]. Únicas exigências: não podem ser negras e gordas e precisam ter, pelo menos, 3 meses de experiência” (Alves, 2019Alves, L. (2019, novembro 13). Anúncio de emprego em BH exige candidatas que não sejam ‘negras ou gordas’. O Tempo. Recuperado dehttps://www.otempo.com.br/cidades/anuncio-de-emprego-em-bh-exige-candidatas-que-nao-sejam-negras-ou-gordas-1.2261344
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). Lobo (1985Lobo, E. S. (1985). Desventuras das mulheres em busca de emprego. Lua Nova, 2(1), 68-72. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/S0102-64451985000200017
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, p. 69) já nos alertava, há mais de três décadas, que “[...] o sexismo (e o racismo) é, às vezes, transparente”, bem como os critérios não são os mesmos para homens e mulheres, ocorrendo um processo de desqualificação do trabalho feminino, que já é visto nos próprios anúncios e classificados de emprego, e, mesmo que utilizem expressões eufemísticas como ‘boa aparência’, mascaram práticas racistas e sexistas. A partir da leitura de Alves (2019)Alves, L. (2019, novembro 13). Anúncio de emprego em BH exige candidatas que não sejam ‘negras ou gordas’. O Tempo. Recuperado dehttps://www.otempo.com.br/cidades/anuncio-de-emprego-em-bh-exige-candidatas-que-nao-sejam-negras-ou-gordas-1.2261344
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, surgiu a seguinte pergunta de pesquisa: como, atualmente, o racismo e o sexismo manifestam-se no mercado de trabalho brasileiro e como eles são enfrentados?

Entendemos que a manifestação do racismo no mercado de trabalho se dá desde o acesso a ele, continuando em sua permanência e ascensão. No presente artigo, tratamos de elementos do acesso ao mercado de trabalho por mulheres negras e temos como objetivo principal compreender como a publicação de anúncios de emprego com características fenotípicas e relativas a ‘boa aparência’ contribuem para a perpetuação do racismo e do sexismo. Especificamente, almejamos compreender como se dá a resistência às práticas e estrutura racista do mercado de trabalho.

Historicamente, a escravização dos negros no Brasil, que perdurou até 1888, elemento de um projeto de colonialismo, ainda traz marcas profundas no que diz respeito à sociabilidade dos negros, especialmente às mulheres negras, para as quais ocorre um processo de tríplice discriminação (raça, classe e sexo), uma vez que os estereótipos gerados pelo racismo e pelo sexismo as colocam no nível mais alto de opressão (Gonzalez, 2020Gonzalez, L. (2020). Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro, RJ : Zahar.). Em uma perspectiva interseccional, entendemos que as categorias de raça e gênero estão conectadas e essas ligações operam distintas formas de discriminação contra as mulheres negras.

Pensando também em uma proposta de decolonialidade, ao considerar o racismo como um “[...] princípio constitutivo que organiza, a partir de dentro, todas as relações de dominação da modernidade, desde a divisão internacional do trabalho até as hierarquias epistêmicas, sexuais, de gênero, religiosas” (Bernardino-Costa, Maldonado-Torres, & Grosfoguel, 2020Aronson, J. (1995). A pragmatic view of thematic analysis. The Qualitative Report, 2(1), 1-3. Recuperado dehttps://doi.org/10.46743/2160-3715/1995.2069
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), entendemos também que esses processos da colonialidade não se dão sem resistência. Forças contrárias manifestam-se, atualmente, em um projeto decolonial, para que homens e mulheres negros possam ascender profissional e socialmente, ocupando posições historicamente reservadas aos brancos.

Em nossa pesquisa, enfatizamos esses movimentos de opressão e resistência, indicando a presença de racismo em anúncios de emprego, mas também o surgimento de iniciativas de empregabilidade negra, que são uma resposta à estrutura racista e sexista do mercado de trabalho. Ainda que um número reduzido de pesquisas tenha apresentado as dificuldades de acesso de mulheres (Costa & Silva, 2020Costa, L. Jr., & Silva, L. C. (2020). Homens e mulheres: desvantagens em decisão de emprego a cargos administrativos. Revista Eletrônica de Administração e Turismo, 14(1), 59-74. Recuperado dehttps://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/AT/article/view/16572/11364
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) e de negros (Costa & Silva, 2021Costa, L. Jr., & Silva, L. C. (2021). Brancos e negros: vantagens em decisões de emprego. Economia & Gestão, 21(58), 223-235. Recuperado dehttps://doi.org/10.5752/P.1984-6606.2021v21n58p223-235
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) ao mercado de trabalho, assim como o julgamento de aparência física com viés racista na seleção de pessoas (Paim & Pereira, 2018Paim, A. S., & Pereira, M. E. (2018). Judging good appearance in personnel selection. Organizações & Sociedade, 25(87), 656-675. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/1984-9250876
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), entendemos que a originalidade e contribuição do presente artigo repousa no fato de que buscamos identificar elementos sutis do racismo nos anúncios de emprego como expressão de opressões de raça e gênero, e também porque, orientados por um projeto decolonial, apresentamos como se opera a resistência à estrutura racista do mercado de trabalho em espaços divididos com os mesmos anúncios anteriormente citados.

Após esta introdução, na seção dois indicamos as relações entre trabalho, raça e gênero de uma perspectiva decolonial e afrodiaspórica, para, em seguida, na seção três, discutir as especificidades dos anúncios de emprego. Na quarta seção, dedicada à metodologia, indicamos todo o percurso trilhado na escolha dos anúncios, assim como na quinta seção, voltada à análise dos dados. Apresentamos, na sexta seção, os resultados e discussões e considerações finais.

TRABALHO, RAÇA E GÊNERO A PARTIR DA DECOLONIALIDADE E DO PENSAMENTO AFRODIASPÓRICO

Consideramos que a opção decolonial e o pensamento afrodiaspórico apresentam contribuições relevantes para a abordagem de trabalho, raça, classe e gênero no (e baseado no) Brasil. A teoria decolonial, como tratada por Maldonado-Torres (2020Maldonado-Torres, N. (2020). Analítica da colonialidade e da decolonialidade: algumas dimensões básicas. InJ. Bernardino-Costa , N. Maldonado-Torres , & R. Grosfoguel (Orgs.), Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico (2a ed., 3a reimp.). Belo Horizonte, BH: Autêntica ., p. 29), é uma ‘luta viva’ contra o colonialismo e a colonialidade, o primeiro entendido como a formação histórica dos territórios das colônias; a segunda vista como “[...] uma lógica global de desumanização que é capaz de existir até mesmo na ausência de colônias formais”, visto que a ‘descoberta’ do Novo Mundo e as formas de escravização tornam-se elementos centrais e fundantes da modernidade eurocêntrica e da colonialidade (Maldonado-Torres, 2020Maldonado-Torres, N. (2020). Analítica da colonialidade e da decolonialidade: algumas dimensões básicas. InJ. Bernardino-Costa , N. Maldonado-Torres , & R. Grosfoguel (Orgs.), Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico (2a ed., 3a reimp.). Belo Horizonte, BH: Autêntica .).

A colonialidade, portanto, refere-se à imposição de um modelo de classificação social que se sustenta por meio de discriminações sociais - raciais, étnicas e nacionais (Quijano, 2005Quijano, A. (2005). Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In E. Lander (Coord.), La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires, Argentina: CLACSO. Recuperado dehttp://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/sur-sur/20100708034410/lander.pdf
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) e de gênero (Lugones, 2020Lugones, M. (2020). Colonialidade e gênero. In H. B. Hollanda(Ed.), Pensamento feminista hoje: Perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro, RJ : Bazar do Tempo.) - entre colonizadores e colonizados. Na trajetória do negro no Brasil, se o processo de colonização foi fundamental, a desigualdade que lhe deu suporte e condições de avanço ainda está presente na perspectiva da colonialidade, uma vez que, de acordo com Quijano (2005),Quijano, A. (2005). Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In E. Lander (Coord.), La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires, Argentina: CLACSO. Recuperado dehttp://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/sur-sur/20100708034410/lander.pdf
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há uma construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial e que, desde então, permeia as dimensões mais importantes do poder mundial. Nesse contexto, Aníbal Quijano elaborou o conceito de colonialidade do poder no intuito de compreender o quadro histórico de desigualdades na América Latina (Bernadino-Costa, 2013Costa, L. Jr., & Silva, L. C. (2020). Homens e mulheres: desvantagens em decisão de emprego a cargos administrativos. Revista Eletrônica de Administração e Turismo, 14(1), 59-74. Recuperado dehttps://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/AT/article/view/16572/11364
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).

A colonialidade do poder vincula-se a um padrão de poder que se constitui no sistema do mundo moderno e/ou colonial que se iniciou em 1942, com a conquista da América. A partir de então, originou-se um padrão de poder mundial pautado na ideia de raça (Quijano, 2005Quijano, A. (2005). Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In E. Lander (Coord.), La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires, Argentina: CLACSO. Recuperado dehttp://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/sur-sur/20100708034410/lander.pdf
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). Com o fim das relações coloniais e a abolição da escravização, a construção social do conceito de raça passou a ser reforçada pela instauração do racismo (Quijano & Wallerstein, 1992Quijano, A., & Wallerstein, I. (1992). Americanity as a concept, or the Americas in the modern world. International Social Science Journal, 134(4), 549-557. Recuperado dehttps://www.javeriana.edu.co/blogs/syie/files/Quijano-and-Wallerstein-Americanity-as-a-Concept.pdf
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). Assim, na medida em que as relações sociais que estavam se configurando eram relações de dominação, raça e identidade racial, foram assim estabelecidas como instrumentos de classificação social básica da população (Quijano, 2005Quijano, A. (2005). Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In E. Lander (Coord.), La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires, Argentina: CLACSO. Recuperado dehttp://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/sur-sur/20100708034410/lander.pdf
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).

A diferenciação de raça deu legitimidade às relações de dominação impostas: “[...] historicamente, isso significou uma nova maneira de legitimar as já antigas ideias e práticas de relações de superioridade/inferioridade entre dominantes e dominados” (Quijano, 2005Quijano, A. (2005). Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In E. Lander (Coord.), La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires, Argentina: CLACSO. Recuperado dehttp://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/sur-sur/20100708034410/lander.pdf
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, p. 107). Houve uma divisão racial e sexual do trabalho desde os tempos coloniais até o presente, legitimando lugares e papéis sociais de mulheres e homens brancos, bem como de mulheres e homens negros e indígenas. Mesmo após abandonarem a condição legal de escravizados, mulheres e homens negros ainda tinham suas imagens e corpos sob controle do padrão de dominação oriundo da colonialidade do poder (Bernadino-Costa, 2015Costa, L. Jr., & Silva, L. C. (2020). Homens e mulheres: desvantagens em decisão de emprego a cargos administrativos. Revista Eletrônica de Administração e Turismo, 14(1), 59-74. Recuperado dehttps://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/AT/article/view/16572/11364
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). Em relação aos efeitos do colonialismo, Fanon (1968Fanon, F. (1968). Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro, RJ : Civilização Brasileira.) alerta que a Europa reconheceu um modelo civilizatório que colocou a África em um não lugar e, consequentemente, condenou as pessoas negras que têm a África como origem ancestral. Nesse contexto, é necessário que o negro afirme a sua identidade e seu corpo para que, assim, possa se tornar visível.

Cabe aqui destacar que, para nosso presente propósito, as considerações de Bernardino-Costa et al. (2020Costa, L. Jr., & Silva, L. C. (2020). Homens e mulheres: desvantagens em decisão de emprego a cargos administrativos. Revista Eletrônica de Administração e Turismo, 14(1), 59-74. Recuperado dehttps://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/AT/article/view/16572/11364
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) são especialmente importantes por utilizar uma definição ampla de decolonialidade, não restrita ao grupo Modernidade/Colonialidade, que abarca a tradição da luta política e acadêmica das populações negras, especialmente a brasileira, em “[...] processos e resistência e a luta pela reexistência das populações afrodiaspóricas” (Grosfoguel, 2020Grosfoguel, R. (2020). Para uma visão decolonial da crise civilizatória e dos paradigmas da esquerda ocidentalizada. In J. Bernardino-Costa, N. Maldonado-Torres, & R. Grosfoguel (Orgs.), Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico (2a ed., 3a reimp.). Belo Horizonte, BH: Autêntica., p. 9). O projeto decolonial, portanto, busca superar esta estrutura da colonialidade do poder (Bernadino-Costa, 2016Costa, L. Jr., & Silva, L. C. (2020). Homens e mulheres: desvantagens em decisão de emprego a cargos administrativos. Revista Eletrônica de Administração e Turismo, 14(1), 59-74. Recuperado dehttps://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/AT/article/view/16572/11364
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).

Considerando a discussão sobre trabalho, raça e gênero com base em um pensamento afrodiaspórico, consideramos que a esfera do trabalho é central para se pensar a cidadania. Aos negros brasileiros foi negado o acesso ao trabalho, uma vez que, na passagem do trabalho escravizado para o trabalho assalariado, foram criadas legislações que impediam oficialmente homens e mulheres negros a ter acesso ao trabalho (Prudente, 1988Prudente, E. A. J. (1988). O negro na ordem jurídica brasileira. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 83, 135-149. Recuperado dehttps://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67119/69729
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). Ademais, outro movimento que intensificou tais questões foi o processo de miscigenação, visto que ajudou a criar o mito da democracia racial. O racismo no Brasil “[...] opera com a ideologia de raça biológica, travestida no mito da democracia racial (harmonia racial) que se nutre, entre outras coisas, do potencial da miscigenação brasileira” (Gomes, 2019Gomes, N. L. (2019). O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis, RJ: Vozes., p. 98).

Hasenbalg (2022Hasenbalg, C. (2022). Raça, Classe e Mobilidade. In L. Gonzalez, & C. Hasenbalg. Lugar de negro. Rio de Janeiro, RJ : Zahar.) explica que a noção de democracia racial foi criada por Gilberto Freyre, o qual recorreu à flexibilidade cultural do colonizador português e ao avançado grau de mistura racial da população brasileira para desenvolver essa ideia. Tendo como base a democracia racial, passou-se a acreditar na ausência de preconceito e de discriminação raciais no Brasil e, portanto, em iguais oportunidades econômicas e sociais para negros e brancos. Entretanto uma análise histórica revela que a verdadeira natureza da nossa estrutura social, cultural e política é essencialmente racista. “Tal discriminação utiliza as diferentes tonalidades de cor epidérmica do negro como mecanismo para conseguir que o homem negro desapareça através da ideologia do branqueamento como busca do homem ideal” (Nascimento, 2019Nascimento, A. (2019). O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. São Paulo, SP: Perspectiva., p. 55). Nesse contexto, ao eliminar a categoria política de raça, o discurso nacional de democracia racial fez o mesmo com a linguagem que poderia descrever as desigualdades raciais que afetam a vida das pessoas negras brasileiras (Collins & Bilge, 2021Collins, P. H.; & Bilge, S. (2021). Interseccionalidade. São Paulo, SP: Boitempo.).

Apesar de a questão racial recair sobre homens e mulheres negros, vale ressaltar que “[...] a conjunção do racismo com o sexismo produz sobre as mulheres negras uma espécie de asfixia social com desdobramentos negativos sobre todas as dimensões da vida [...]” (Carneiro, 2011Carneiro, S. (2011). Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo, SP: Selo Negro Edições., p. 127). Ao mencionar todas as dimensões da vida, a autora também se refere ao trabalho. Para as mulheres negras restam, de forma esmagadora, as ocupações de menor prestígio e remuneração, uma vez que elas são preteridas (no acesso, em promoções e na ocupação de bons cargos) com base no eufemismo da ‘boa aparência’, cujo significado prático é: preferem-se as brancas, melhor ainda se forem louras (Carneiro, 2011Carneiro, S. (2011). Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo, SP: Selo Negro Edições.). Gonzalez (2020Gonzalez, L. (2020). Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro, RJ : Zahar.) reforça que, em anúncios de jornais, seção de oferta de empregos, também aparecem expressões como ‘boa aparência’, ‘ótima aparência’ entre outras, que, na verdade, significam: “que não se apresentem candidatas negras, não serão admitidas” (Gonzalez, 2020Gonzalez, L. (2020). Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro, RJ : Zahar., p. 57).

Para tratar da mulher negra, recorremos ao uso da interseccionalidade como ferramenta analítica, ou seja, como as categorias de relações de poder, de raça, gênero, classe, nação e sexualidade se interconectam (Collins & Bilge, 2021Collins, P. H.; & Bilge, S. (2021). Interseccionalidade. São Paulo, SP: Boitempo.). De acordo com Crenshaw (1990Crenshaw, K. (1990). Mapping the margins: Intersectionality, identity politics, and violence against women of color. Stanford Law Review, 43, 1241-1299. Recuperado dehttps://supportnewyork.files.wordpress.com/2018/04/mapping-the-margins.pdf
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), o conceito de interseccionalidade é usado para se referir às várias maneiras pelas quais raça e gênero interagem para moldar as múltiplas dimensões das experiências de mulheres negras. A autora afirma, ainda, que as categorias raça e gênero carregam consigo um grande e contínuo projeto para pessoas subordinadas, em virtude de “[...] valores particulares que lhes são inerentes e [...] forma como esses valores promovem e criam hierarquias sociais” (Crenshaw, 1990Crenshaw, K. (1990). Mapping the margins: Intersectionality, identity politics, and violence against women of color. Stanford Law Review, 43, 1241-1299. Recuperado dehttps://supportnewyork.files.wordpress.com/2018/04/mapping-the-margins.pdf
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, p. 1297, tradução nossa). Assim, a discriminação interseccional coloca em primeiro plano as dimensões raciais e/ou de gênero, que são parte da estrutura social e fatores que contribuem para a produção da subordinação.

É preciso que vejamos as pessoas como uma massa não homogênea e diferenciada de indivíduos (Collins & Bilge, 2021Collins, P. H.; & Bilge, S. (2021). Interseccionalidade. São Paulo, SP: Boitempo.). Nesse sentido, a interseccionalidade contribui ao explicar como os vários eixos de opressão posicionam as pessoas de maneira diferente no mundo. Mulheres negras e outras minorias enfrentam barreiras no acesso a empregos seguros, bem remunerados e com benefícios; afinal, a interseccionalidade é uma ferramenta analítica que proporciona o entendimento da estrutura de interseção entre desigualdades sociais e econômicas, em uma perspectiva social e globalmente construída (Collins & Bilge, 2021Collins, P. H.; & Bilge, S. (2021). Interseccionalidade. São Paulo, SP: Boitempo.).

Bernardino-Costa (2013Bernardino-Costa, J. (2013). Colonialidade e interseccionalidade: o trabalho doméstico no brasil e seus desafios para o século XXI. In T. D. Silva, & F. L. Goes(Org.), Igualdade racial no Brasil: reflexões no Ano Internacional dos Afrodescendentes. Rio de Janeiro, RJ: IPEA. Recuperado de https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/livro_igualdade_racialbrasil01.pdf
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, 2015Bernardino-Costa, J. (2015). Decolonialidade e interseccionalidade emancipadora: a organização política das trabalhadoras domésticas no Brasil. Sociedade e Estado, 30, 147-163. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/S0102-69922015000100009
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) propõe uma correlação entre colonialidade do poder e interseccionalidade. Para ele, essas duas categorias relacionam-se em virtude de a primeira tratar de um padrão de poder mais estático, que se mantém até hoje, e a segunda remeter a uma dimensão mais dinâmica de produção, manutenção e das lutas e resistências às desigualdades e às identidades estigmatizadas e subalternizadas. Assim, a colonialidade do poder e a noção de interseccionalidade permitem aprofundar o entendimento do sistema hierárquico e as desigualdades vivenciadas pelas mulheres negras no mercado de trabalho, bem como considerar as relações de empoderamento, uma vez que os membros dos grupos marginalizados são capazes de resistir, gerar mobilizações políticas individuais e/ou coletivas. Percebe-se que a dimensão de gênero não é suficiente para explicar a realidade de todas as mulheres, já que a inseparabilidade estrutural entre patriarcado, sexismo, racismo e suas articulações implicam múltiplas situações de opressão sofridas pelas mulheres negras. Nesse contexto, o feminismo hegemônico nas sociedades ocidentais modernas não é capaz de tratar os vários eixos de poder e discriminação responsáveis por criar desigualdades.

PRECONCEITO E DISCRIMINAÇÃO RACIAIS EM ANÚNCIOS DE VAGAS DE EMPREGOS

Preconceito e discriminação raciais são meios pelos quais se manifesta o racismo. Apoiados em Grosfoguel (2020Grosfoguel, R. (2020). Para uma visão decolonial da crise civilizatória e dos paradigmas da esquerda ocidentalizada. In J. Bernardino-Costa, N. Maldonado-Torres, & R. Grosfoguel (Orgs.), Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico (2a ed., 3a reimp.). Belo Horizonte, BH: Autêntica.), consideramos o racismo não apenas como ideologia ou superestrutura, mas um princípio organizativo de todas as relações sociais que ocorrem na modernidade e, de dentro, das relações de dominação, passando obviamente pela divisão internacional do trabalho. O preconceito e a discriminação raciais adquirem novas funções e significados dentro da estrutura social após a Abolição, isto é “[...] as práticas racistas do grupo racial dominante, longe de serem meras sobrevivências do passado, estão relacionadas aos benefícios materiais e simbólicos que os brancos obtêm da desqualificação competitiva do grupo negro” (Hasenbalg, 2022Hasenbalg, C. (2022). Raça, Classe e Mobilidade. In L. Gonzalez, & C. Hasenbalg. Lugar de negro. Rio de Janeiro, RJ : Zahar., p. 111).

Especificamente no caso do Brasil, a categoria raça tem a cor da pele como o principal articulador de diferenças entre os sujeitos, isto é, “[...] para os brasileiros, a cor da pele representa uma marca que identifica quem é e quem não é negro [...]” (Rosa, 2014Rosa, A. R. (2014). Relações raciais e estudos organizacionais no Brasil. RAC - Revista de Administração Contemporânea, 18(3), 240-260. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/1982-7849rac20141085
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, p. 252). O mestiço, fruto da miscigenação, caso nasça com lábios finos, cabelos lisos, nariz pouco largo ou com uma cor mais clara, pode ser lido socialmente como branco e receber alguns dos privilégios resguardados aos brancos, uma vez que, conforme assevera Nogueira (2007Nogueira, O. (2007). Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem. Sugestão de um quadro de referência para a interpretação sobre relações raciais no Brasil. Tempo Social, 19(1), 287-308. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/S0103-20702007000100015
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), a intensidade do preconceito é diretamente proporcional aos traços negroides. Tal dinâmica se justifica pelo fato de os negros terem sua cultura e traços fenotípicos tratados como inferiores em comparação ao dos brancos - é o que Fanon (2008Fanon, F. (2008). Pele negra, máscaras brancas. Salvador, BA: EDUFBA.) chama de epidermização da inferioridade. A sociedade colonialista tratou de incutir nos negros, de tal forma, a interiorização de uma inferioridade associada à cor da pele, que as características negroides passaram a enfeiar o seu portador, além de impor-lhe um desvio existencial.

No mercado de trabalho, importante esfera de sociabilidade e espaço da vida moderna, o “[...] racismo tem destinado aos negros as tarefas consideradas diletantes ou periféricas da sociedade”; em circunstâncias de igual qualificação, os negros são preteridos em relação aos brancos e, quando escolhidos, recebem menores rendimentos pelo exercício das mesmas funções (Carneiro, 2011Carneiro, S. (2011). Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo, SP: Selo Negro Edições., p. 125). O racismo pode ser percebido, historicamente, em uma importante etapa da seleção e/ou recrutamento de pessoas, tanto no anúncio de vagas de emprego em classificados de jornais, desde o início do século XX, quanto em sites de empregos nos dias atuais.

Nessa direção, Paim e Pereira (2018Paim, A. S., & Pereira, M. E. (2018). Judging good appearance in personnel selection. Organizações & Sociedade, 25(87), 656-675. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/1984-9250876
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) consideram que, em uma sociedade marcada pelo racismo estrutural, atributos tais como beleza, competência e inteligência seriam supostamente dados de acordo com a raça percebida, indicando a presença de racismo e preconceitos nos processos seletivos das organizações. Complementarmente, Oliveira e Pimenta (2016Oliveira, K. C., & Pimenta, S. M. O. (2016) O racismo nos anúncios de emprego do século XX. Linguagem em (Dis)curso - LemD, 16(3), 381-399. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/1982- 4017-160301-4615
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) consideram que os jornais tiveram papel fundamental na discriminação dos negros e negras, uma vez que, ainda no período de escravização, os tratavam como mercadorias em anúncios de venda e troca. Já em outro contexto histórico, após a Abolição, o negro representaria o atraso e a barbárie de um passado colonial, enquanto o imigrante branco europeu seria a esperança de progresso e desenvolvimento para o país (Moura, 2019Moura, C. (2019). Sociologia do Negro Brasileiro (2a ed.). São Paulo, SP: Perspectiva.). Posteriormente, na publicidade, os negros foram invisibilizados diante de uma autoimagem embranquecida do Brasil, que se comprometeu com a perpetuação de uma estética branca carregada de implicações racistas (Hasenbalg, 2022Hasenbalg, C. (2022). Raça, Classe e Mobilidade. In L. Gonzalez, & C. Hasenbalg. Lugar de negro. Rio de Janeiro, RJ : Zahar.). Apesar de, atualmente, ser possível encontrar negras e negros em campanhas publicitárias, eles ainda são sub-representados.

Ainda em relação às vagas de emprego, Damasceno (2013Damasceno, C. M. (2013, julho). ‘Cor’ e ‘boa aparência’ no mundo do trabalho doméstico: problemas de pesquisa da curta à longa duração. In Anais do 17ºSimpósio Nacional de História, Natal, RN. Recuperado dehttp://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1364682879_ARQUIVO_2013_TEXTOanpuh_CaetanaDamasceno.pdf
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, p. 1) indica que houve uma substituição, ou deslizamento semântico, das categorias raciais explícitas nos anúncios de emprego em jornais pela “noção moral de ‘boa aparência’, como metáfora de cor”. Para a autora, ‘boa aparência’ não pode ser simplesmente considerada ‘só para brancos’; antes de tudo, trata-se de uma construção social negociada, comumente utilizada desde as décadas de 1930 e 1940 até os dias atuais - conforme apresentado neste texto. O uso de ‘boa aparência’ dá-se, inicialmente, junto de cor (branca) e origem (europeia), até que se desprende desses termos e muda de categoria de anúncio: antes, para o trabalho doméstico, buscavam-se pessoas adequadas para ‘famílias de fino tratamento’, ou seja, não negras. Posteriormente, a ‘boa aparência’ começa a ser vinculada a anúncios para os lugares mais valorizados socialmente do mercado de trabalho e, ainda que alguns anúncios sejam direcionados a meninos e rapazes, a maioria esmagadora dos anúncios de boa aparência refere-se a postos de trabalho oferecidos às mulheres (Damasceno, 2013Damasceno, C. M. (2013, julho). ‘Cor’ e ‘boa aparência’ no mundo do trabalho doméstico: problemas de pesquisa da curta à longa duração. In Anais do 17ºSimpósio Nacional de História, Natal, RN. Recuperado dehttp://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1364682879_ARQUIVO_2013_TEXTOanpuh_CaetanaDamasceno.pdf
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).

Alguns avanços legais ocorreram a fim de coibir a prática de anúncios com características fenotípicas ou pautados na ‘boa aparência’. A própria Consolidação das Leis do Trabalho [CLT] (Decreto-Lei nº 5.452, de 01 de maio de 1943Decreto-Lei nº 5.452, de 01 de maio de 1943. (1943). Aprova a Consolidação das Leis de Trabalho. Rio de Janeiro, RJ. Recuperado dehttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm
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) veda publicar ou fazer publicar anúncio de emprego, assim como recusar emprego em razão de cor, sexo ou situação familiar. Paim e Pereira (2018Paim, A. S., & Pereira, M. E. (2018). Judging good appearance in personnel selection. Organizações & Sociedade, 25(87), 656-675. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/1984-9250876
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) indicam que, em Mato Grosso do Sul, por meio da Lei nº 1.905, de 24 de novembro de 1998Lei nº 1.905, de 24 de novembro de 1998. (1998). Veda a utilização da expressão ‘Exige-se boa aparência’ em anúncios de recrutamento ou seleção de pessoal, e da outras providências. Campo Grande, MS. Recuperado dehttps://leisestaduais.com.br/ms/lei-ordinaria-n-1905-1998-mato-grosso-do-sul-veda-a-utilizacao-da-expressao-exige-se-boa-aparencia-em-anuncios-de-recrutamento-ou-selecao-de-pessoal-e-da-outras-providencias
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e, na cidade do Rio de Janeiro, por meio da Lei nº 5.876, de 06 de julho de 2015, é proibido o uso da expressão ‘boa aparência’ em anúncios de emprego. Situação similar ocorre em Salvador, em virtude da Lei Ordinária nº 5.420, de 04 de setembro de 1998Lei Ordinária nº 5.420, de 04 de setembro de 1998. (1998). Dispõe sobre a proibição da subjetiva expressão ‘boa aparência’ ou equivalente, em anúncios que objetivem selecionar candidatos para o preenchimento de vagas em quaisquer estabelecimentos, empresas, ou similares e dá outras providências. Salvador, BA. Recuperado dehttps://leismunicipais.com.br/a/ba/s/salvador/lei-ordinaria/1998/542/5420/lei-ordinaria-n-5420-1998-
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.

Ainda que esses avanços sejam relevantes, até então persistem anúncios de empregos discriminatórios, principalmente para mulheres. Conforme ressalta Lobo (1985Lobo, E. S. (1985). Desventuras das mulheres em busca de emprego. Lua Nova, 2(1), 68-72. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/S0102-64451985000200017
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, p. 69), a mulher não vende apenas sua força de trabalho ao assinar um contrato. Sua avaliação para ocupar determinado posto de trabalho passa por critérios que incidem sobre suas qualidades (principalmente físicas) como mulher: “[...] por isso é que a mulher grávida não serve, mulher gorda não serve, mulher negra não serve”. Desse modo, esse processo discriminatório, tão presente em anúncios de emprego, apesar das tentativas legais de coibi-lo, reitera o sexismo presente no mercado de trabalho, também refletindo o próprio racismo que molda as relações sociais e, consequentemente, de trabalho na modernidade.

METODOLOGIA

A presente pesquisa pode ser caracterizada como qualitativa descritiva. Para a coleta de dados, utilizamos a pesquisa documental em sites de classificados de emprego. Tratando do percurso metodológico, primeiramente, o contato com a reportagem sobre vagas de cuidadora de idosos que não poderiam ser negras nem gordas (Alves, 2019Alves, L. (2019, novembro 13). Anúncio de emprego em BH exige candidatas que não sejam ‘negras ou gordas’. O Tempo. Recuperado dehttps://www.otempo.com.br/cidades/anuncio-de-emprego-em-bh-exige-candidatas-que-nao-sejam-negras-ou-gordas-1.2261344
https://www.otempo.com.br/cidades/anunci...
) fez-nos buscar por mais anúncios semelhantes. Essa busca levou-nos à pesquisa de Damasceno (2013Damasceno, C. M. (2013, julho). ‘Cor’ e ‘boa aparência’ no mundo do trabalho doméstico: problemas de pesquisa da curta à longa duração. In Anais do 17ºSimpósio Nacional de História, Natal, RN. Recuperado dehttp://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1364682879_ARQUIVO_2013_TEXTOanpuh_CaetanaDamasceno.pdf
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), que trata do deslizamento semântico, em anúncios expressamente racistas, com o uso da expressão ‘boa aparência’, o que nos levou a buscar por termos que expressam raça e características fenotípicas de mulheres (branca, negra, preta, tipo de cabelo, nariz, pele), assim como ‘boa aparência’, em sites de classificados de emprego.

Selecionamos quatro sites de classificados de empregos, três deles por serem listados entre os sites mais pesquisados para buscas de emprego: LinkedIn (2022)LinkedIn. (2022). Site. Recuperado dehttps://www.linkedin.com/
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, Catho (2022)Catho. (2022). Site. Recuperado dehttps://www.catho.com.br/area-candidato
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e Vagas.com (2022)Vagas.com. (2022). Site. Recuperado de https://www.vagas.com.br/
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. Também realizamos buscas no siteTrovit (2022)Trovit. (2022). Site. Recuperado dehttps://empregos.trovit.com.br/
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por dois motivos centrais: é um agregador de anúncios de outros sites (como Caderno Nacional, Infojobs, Jobleads, Empregosbr, Netvagas, dentre outros classificados locais), bem como o único dentre os buscadores que apresenta vagas para trabalhadoras domésticas e do cuidado em geral, ponto crucial ao se tratar de relações de trabalho para mulheres negras. No site de classificados de emprego Trovit (2022)Trovit. (2022). Site. Recuperado dehttps://empregos.trovit.com.br/
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, foram encontrados 213 anúncios com a expressão ‘boa aparência’ dos(as) candidatos(as). Com a palavra ‘branca’, foram encontrados 8 anúncios. Com as palavras ‘negra’ e ‘preta’, 5 e 1 resultados respectivamente. Todos, no entanto, englobam ações afirmativas das empresas e, por isso, foram desconsiderados. Nos sites LinkedIn, Catho e Vagas.com, foram encontrados, respectivamente, 13, 48 e 3 anúncios com a expressão ‘boa aparência’. Nesses sites não foram encontrados anúncios que continham as palavras que expressam características raciais das mulheres de modo a discriminá-las negativamente, apenas dentro de ações afirmativas. Após esses filtros, foram tabulados e analisados 285 anúncios no total.

A partir de uma leitura decolonial, conforme expressamos anteriormente, entendemos que os movimentos de resistência às práticas racistas também são centrais para nossa análise, de modo que realizamos buscas no LinkedIn (2022)LinkedIn. (2022). Site. Recuperado dehttps://www.linkedin.com/
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por iniciativas de empregabilidade negra. Encontramos quatro iniciativas no referido site: EmpregueAfro, Indique, Afro Presença e Afro Oportunidades, os quais são parte de um movimento contrário ao racismo existente no mercado de trabalho. Partimos das iniciativas de empregabilidade negra e não de vagas isoladas, com base no entendimento de que mudanças nas relações de trabalho dão-se por meio de iniciativas coletivas e movimentos sociais e não apenas da atuação individual. No Quadro 1, sintetizamos os dados encontrados e selecionados.

Quadro 1
Fontes de dados utilizados na pesquisa

Realizamos a análise dos dados, por meio da análise temática [AT] (Aronson, 1995Aronson, J. (1995). A pragmatic view of thematic analysis. The Qualitative Report, 2(1), 1-3. Recuperado dehttps://doi.org/10.46743/2160-3715/1995.2069
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; Braun & Clarke, 2006Braun, V.; & Clarke, V. (2006). Using thematic analysis in psychology. Qualitative Research in Psychology, 3(2), 77-101. Recuperado dehttps://doi.org/10.1191/1478088706qp063oa
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), um método analítico qualitativo, para identificar, analisar e reportar padrões (temas) em um conjunto de dados (Braun & Clarke, 2006). A AT pode ser orientada por dados ou por teoria, há ainda um caminho intermediário, em que ocorre um movimento circular entre teoria e dados, em uma abordagem mista (Braun & Clarke, 2006), a qual utilizamos na presente pesquisa. Consideramos dois temas a priori no estudo: ‘racismo explícito na predileção pela mulher branca’, ‘boa aparência como causa da boa imagem da empresa’. Conforme discutido por Braun e Clarke (2006), um tema captura algo importante sobre os dados em relação à questão de pesquisa e aos objetivos do estudo, representando, portanto, uma resposta sistematizada ou significado dentro dos dados coletados. Conforme destacado pelas autoras, a importância de um tema não é dada em medidas quantitativas, mas se ele captura algo importante em relação à pergunta de pesquisa e aos objetivos.

A AT compreende as etapas de (1) familiarização; (2) geração de códigos e sistematização dos dados; (3) mapeamento, classificação e agrupamento de temas; (4) revisão dos temas; e (5) definição e denominação das categorias de análise. A familiarização deu-se por imersão nos dados, em um processo de leitura e releitura destes, de modo a conhecer em profundidade a amostra. Como dois temas foram definidos a priori (‘racismo explícito na predileção pela mulher branca’, ‘boa aparência como causa da boa imagem da empresa’), realizou-se esse processo já buscando elementos que comprovassem (ou refutassem) a centralidade desses temas potenciais para o estudo.

A geração de códigos e sistematização de dados ocorreram por meio da criação de uma planilha na qual foram inseridas informações sobre os anúncios, como data, setor da vaga, local, palavras discriminatórias e observações relevantes sobre os anúncios. Aqui realizamos a codificação entendendo código como características dos dados que parecem interessantes para o analista (Braun & Clarke, 2006Braun, V.; & Clarke, V. (2006). Using thematic analysis in psychology. Qualitative Research in Psychology, 3(2), 77-101. Recuperado dehttps://doi.org/10.1191/1478088706qp063oa
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), de modo que trabalhamos com os seguintes códigos na amostra: boa aparência, aparência profissional, higiene, traços negroides, imagem organizacional, branquitude, trabalho de cuidado, trabalho doméstico, prostituição, políticas afirmativas, empregabilidade negra e combate ao racismo.

Finalizada a codificação, realizamos a classificação e o agrupamento dos códigos, de modo que criamos dois novos potenciais temas, ‘boa aparência, estética e prostituição’ e ‘produção de resistência’. Após extensa revisão dos temas, de sua pertinência e adequação aos objetivos do presente artigo, chegamos a três temas finais, que correspondem às nossas três categorias de análise do artigo, discutidas a seguir: (1) boa aparência e boa imagem da empresa, (2) trabalho doméstico e ideal da trabalhadora branca e (3) produção de resistência em face de um mercado de trabalho racista.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os anúncios categorizados em boa aparência e boa imagem da empresa estão distribuídos nos sites de emprego LinkedIn (2022)LinkedIn. (2022). Site. Recuperado dehttps://www.linkedin.com/
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, Catho (2022), Vagas.com (2022)Vagas.com. (2022). Site. Recuperado de https://www.vagas.com.br/
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e Trovit (2022)Trovit. (2022). Site. Recuperado dehttps://empregos.trovit.com.br/
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. Neles são utilizados os termos ‘possuir boa aparência’, ‘possuir aparência cuidada’, ‘possuir ótima aparência’, ‘boa aparência profissional’ (essa característica é inegociável), ‘manter/possuir boa aparência visual’, ‘cuidados com a apresentação pessoal’, ou ‘cuidar da aparência física e mental perante a equipe e o público’. Os anúncios remetem-nos ao que Carneiro (2011Carneiro, S. (2011). Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo, SP: Selo Negro Edições.) e Gonzalez (2020Gonzalez, L. (2020). Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro, RJ : Zahar.) já afirmaram: o eufemismo ‘boa aparência’ (e suas variações), que se mantém mesmo com o desvio semântico (Damasceno, 2013Damasceno, C. M. (2013, julho). ‘Cor’ e ‘boa aparência’ no mundo do trabalho doméstico: problemas de pesquisa da curta à longa duração. In Anais do 17ºSimpósio Nacional de História, Natal, RN. Recuperado dehttp://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1364682879_ARQUIVO_2013_TEXTOanpuh_CaetanaDamasceno.pdf
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), tem como significado prático a preferência por pessoas brancas em detrimento das negras.

A maioria das vagas que utilizam esses termos eram destinadas a cargos que envolviam contato direto com o público, ou seja, pressupõe-se que a imagem da empresa pode ser influenciada pela ‘boa aparência’ de seus funcionários, ou, em outros termos, quanto mais o funcionário aproxima-se do fenótipo branco, melhor para a imagem do negócio, uma vez que, como afirma Nogueira (2007Nogueira, O. (2007). Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem. Sugestão de um quadro de referência para a interpretação sobre relações raciais no Brasil. Tempo Social, 19(1), 287-308. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/S0103-20702007000100015
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), no Brasil, a intensidade do preconceito varia em proporção direta aos traços negroides. Ademais, o negro é incessantemente associado a determinadas posições sociais, econômicas e intelectuais, sempre inferiores em relação àquelas ocupadas pelo branco (Moura, 2019Moura, C. (2019). Sociologia do Negro Brasileiro (2a ed.). São Paulo, SP: Perspectiva.), e, por isso, muitas vezes, não é visto como intelectualmente capaz de exercer determinadas profissões.

Antes que se busque justificar o uso de termos que são iguais ou remetem à ‘boa aparência’ como uma descrição que trate de higiene pessoal e/ou vestuário e não de características fenotípicas, é importante ressaltar que os empregadores que tentam se afastar de uma postura discriminatória utilizam expressões como ‘possuir boa aparência de higiene pessoal’, ‘higiene pessoal zelando pela imagem da empresa’, ‘vaidosa e preocupada com a própria aparência’, ou então, ‘asseio com a aparência e ao vestuário de acordo com procedimento operacional padrão e manual de boas práticas’. É possível notar, em alguns anúncios, que existem aqueles empregadores que fazem distinção entre ‘boa aparência’ e exigências acerca da higiene pessoal e/ou vestuário. Por exemplo, em anúncios que buscavam contratar motoristas e/ou ajudantes de entregas, era comum observar no perfil desejado: ‘possuir boa aparência’ e ‘higiene pessoal zelando pela imagem da empresa’. Ou seja, ambos os atributos não são sinônimos, o que nos leva a acreditar que ‘boa aparência’, aqui, mais uma vez, refere-se a características físicas.

A respeito do cuidado com o corpo e/ou aparência física ou recorrendo às nomenclaturas usadas pelas vagas analisadas: ‘higiene pessoal’, ‘ser cuidadoso com a aparência’, ‘aparência profissional’, ‘cuidado com a apresentação pessoal’, Gomes (2020Gomes, N. L. (2020).Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Belo Horizonte, BH: Autêntica.) explica que, em nossa sociedade, esse tipo de cuidado é um comportamento considerado desejável por parte de qualquer grupo social, bem como tal expectativa nem sempre está associada ao racismo. Entretanto, se esse cuidado for atribuído a sujeitos que possuem uma aparência física específica que se relaciona a determinado pertencimento étnico e/ou racial, existe uma preocupação. A autora exemplifica tal dinâmica ao falar do penteado no estilo dreadlocks, muito usado por vários negros e visto por alguns como sujo e sem higiene. É de longa data a associação da aparência do negro a sujeira, uma vez que a falta de integração do negro na sociedade resulta em um elevado número de pessoas negras expostas a: situações indignas de vida, pobreza, subempregos ou “bicos”, empregos que exigem esforço físico. Nesse contexto, no senso comum, não é difícil o negro ser associado à sujeira, uma vez que descontextualizações “[...] das condições de trabalho e socioeconômicas [...] reforçam o pensamento racista de que o cheiro de suor é o odor natural dos pretos e dos pobres” (Gomes, 2020Gomes, N. L. (2019). O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis, RJ: Vozes., p. 156).

Em relação à relevância das características fenotípicas, um dos anúncios publicados no siteTrovit (2022)Trovit. (2022). Site. Recuperado dehttps://empregos.trovit.com.br/
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, que buscava contratar atores, descreve as características fenotípicas desejadas: ‘mulheres brancas e morenas com cabelo escuro e comprido’. Uma das características fenotípicas das mulheres negras é o cabelo crespo ou cacheado, que se apresenta como importante elemento constitutivo da identidade negra, e, por isso, uma vez negado, impõe uma barreira ao enfrentamento da inferioridade e pode até reforçar o racismo (Rezende, Mafra, & Pereira, 2018Rezende, A. F., Mafra, F. L. N., & Pereira, J. J. (2018). Black entrepre­neurship and ethnic beauty salons: possibilities for resistance in the social (re)construction of black identity. Organização & Sociedade, 25(87), 589-609. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/1984-9250873
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). Esse tipo de cabelo, quando não transformado por químicas de alisamento ou alisamento mecânico, apesar de possuir crescimento semelhante ao do cabelo liso, aparenta ser mais curto devido ao fator encolhimento; isto é, devido à curvatura que decorre do fator encolhimento desse tipo de fio, é mais difícil a percepção do seu crescimento, fazendo-o parecer mais curto do que realmente é. À luz dessa reflexão, é possível inferir que, quando se apresenta uma exigência para uma vaga de emprego tal como ‘mulheres com cabelo comprido’, ela exclui as mulheres negras com o cabelo crespo. Além disso, a terminologia ‘morena’ ou ‘moreno’ também é complexa nas análises raciais.

Para além de brancos e negros, especialmente no Brasil, tem-se uma outra categoria racial conhecida como mestiça. O povo genuinamente brasileiro é fruto da mistura entre europeus, africanos e indígenas, o que veio a originar a ideia de democracia racial (Gomes, 2019Gomes, N. L. (2019). O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis, RJ: Vozes.; Hasenbalg, 2022Hasenbalg, C. (2022). Raça, Classe e Mobilidade. In L. Gonzalez, & C. Hasenbalg. Lugar de negro. Rio de Janeiro, RJ : Zahar.). As características únicas do escravismo de cada país determinaram o grau de miscigenação entre as raças. O processo em países como Espanha e Portugal, que foram colonizadores e não tiveram uma população de escravizados no interior de suas fronteiras, ou nas colônias que mantiveram uma política de separação (apartheid) entre brancos e negros, como aconteceu nos Estados Unidos e na África do Sul, difere do processo brasileiro, no qual a miscigenação foi uma das grandes ferramentas utilizadas (Camino, Silva, Machado, & Pereira, 2001Camino, L; Silva, P.; Machado, A; & Pereira, C. (2001). A face oculta do racismo no Brasil: Uma análise psicossociológica. Revista de psicologia política, 1(1), 13-36. Recuperado dehttps://abpsicologiapolitica.files.wordpress.com/2019/06/revista-psicologia-politica-v1n1.pdf
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) para legitimar o discurso de ausência de preconceito e de discriminação raciais, bem como mascarar o projeto político que buscou o embranquecimento gradativo da população (Hasenbalg, 2022).

Muitos negros utilizam a classificação ‘moreno’ para se afastar dos significados negativos da categoria ‘preto’, ‘negro’. Nota-se que “[...] essa ideologia, caracterizada entre outros pelo ideário do branqueamento, roubou dos movimentos negros o ditado ‘a união faz a força’ ao dividir negros e mestiços e ao alienar o processo de identidade de ambos” (Munanga, 1999Munanga, K. (1999). Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis, RJ: Vozes ., p. 15). Ao versar sobre ‘mulheres morenas com cabelo escuro e compridos’, aproximamo-nos do ideal de identidade branca (baseado no tipo somático dos brancos - cabelos lisos e pele clara), que se coloca como superior (Munanga, 1999) e, por consequência, relega àqueles que não possuem tais características um lugar marginal. No caso do anúncio analisado, um tipo não ideal para ocupar uma determinada vaga de trabalho.

Na categoria trabalho doméstico e ideal da trabalhadora branca, recorremos à pesquisa de Damasceno (2013Damasceno, C. M. (2013, julho). ‘Cor’ e ‘boa aparência’ no mundo do trabalho doméstico: problemas de pesquisa da curta à longa duração. In Anais do 17ºSimpósio Nacional de História, Natal, RN. Recuperado dehttp://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1364682879_ARQUIVO_2013_TEXTOanpuh_CaetanaDamasceno.pdf
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, p. 3), que, ao investigar os anúncios de empregos nos classificados de jornais cariocas das décadas de 1930, 1940 até meados de 1950, percebeu que o serviço doméstico é um “[...] lugar privilegiado de explicitação da condição racial e, em especial, da preferência dos empregadores anunciantes por pessoas ‘brancas’, muitas vezes de nacionalidade portuguesa ou de outras nacionalidades europeias (portanto, potencialmente ‘brancas’)”. Contextualizando essa discussão hodiernamente, nos anúncios compartilhados no siteTrovit (2022)Trovit. (2022). Site. Recuperado dehttps://empregos.trovit.com.br/
https://empregos.trovit.com.br/...
, além de se colocar como atributo desejável a ‘boa aparência’, também se faz menção explícita à preferência por funcionárias brancas.

Nas vagas em se que buscava contratar cuidadoras de idosos ou babá para crianças, algumas, além de exigir que a candidata (preferência por mulheres) fosse ‘jovem’ ou ‘de meia idade’, ter ‘disponibilidade para trabalhar todos os dias de semana’ (das 8 às 18h) e ‘realizar todo o trabalho doméstico’, havia também a preferência por ‘brasileira branca’. Ressaltou-se, ainda, que a preferência racial se justificava pelo fato de a pessoa a ser cuidada ‘ter limitações imutáveis nesta altura de sua vida’, em decorrência de Alzheimer.

Os anúncios de vagas de emprego que possuem categorias raciais mais explícitas remetem ao ideal da trabalhadora branca para o trabalho doméstico. Teixeira (2021Teixeira, J. (2021). Trabalho doméstico. São Paulo, SP: Jandaíra.) explica que, durante o período de escravização no Brasil, eram as negras consideradas bonitas, ou seja, altas, com todos os dentes, atraentes de rosto e de corpo, a escolha preferida para o trabalho doméstico. Tal dinâmica justificava-se pelo fato de essas mulheres ficarem mais próximas das famílias e dos senhores.

Enquanto escravizadas, as mulheres negras responsáveis pelo trabalho doméstico eram conhecidas como mucamas, isto é “[...] a escrava negra moça e de estimação que era escolhida para auxiliar nos serviços caseiros ou acompanhar pessoas da família e que, por vezes, era ama-de-leite” (Gonzalez, 1984Gonzalez, L. (1984). Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, 2(1), 223-244.). Nos dias de hoje, apesar de o termo mucama ter caído em certo desuso, ele ainda concebe a mulher negra em um papel de servidão e submissão tal qual o daquelas mulheres negras escravizadas que tinham a função de cuidar de todo o trabalho reprodutivo (doméstico) da casa grande (Nogueira, 2017Nogueira, T. P. C. C. R. (2017). Mucama Permitida: a identidade negra do trabalho doméstico no Brasil.Cadernos de Gênero e Diversidade, 3(4), 47-58. Recuperado dehttps://doi.org/10.9771/cgd.v3i4.22482
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).

Com a passagem do trabalho escravo para o trabalho assalariado, as ex-escravizadas não foram absorvidas nessa nova ordem econômica, uma vez que foram consideradas (assim como os homens negros) não aptas ao trabalho remunerado (Hasenbalg, 2022Hasenbalg, C. (2022). Raça, Classe e Mobilidade. In L. Gonzalez, & C. Hasenbalg. Lugar de negro. Rio de Janeiro, RJ : Zahar.). Teixeira (2021Teixeira, J. (2021). Trabalho doméstico. São Paulo, SP: Jandaíra.) ressalta ainda que, com o fim da escravização, as criadas negras passaram a ser vistas como ameaça física às famílias, por serem consideradas portadoras de doenças, além de também representarem ameaça à integridade moral, na possível transmissão de maus costumes presentes na população negra e pobre. No contexto de trabalho doméstico, também podemos pensar a ‘boa aparência’ representada, preferencialmente, por brancas ou, então, negras atraentes de rosto e de corpo (Teixeira, 2021Teixeira, J. (2021). Trabalho doméstico. São Paulo, SP: Jandaíra.), o que, em tempos atuais, pode remeter à mulher negra com traços negroides mais suavizados em decorrência do processo de miscigenação.

Carneiro (2011Carneiro, S. (2011). Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo, SP: Selo Negro Edições., p. 119) já dizia: “[...] em um conjunto de aproximadamente metade da população feminina do país, apenas uma ou outra negra ocupa posição de importância”. Enquanto escravizadas, as mulheres negras, consideradas como coisa, foram desprovidas de qualquer humanidade e, quando interessava aos senhores, eram desprovidas também do gênero e assim exploradas como se fossem homens (Davis, 2016Davis, A. (2016). Mulheres, raça e classe. São Paulo, SP: Boitempo.). Com o fim do colonialismo e a falta de integração das pessoas negras na sociedade, essas mulheres encontram no trabalho doméstico uma das poucas opções de garantir sua subsistência e a de suas famílias. À medida que o Brasil afastou-se do seu passado escravocrata, as mulheres negras ficaram presas a um destino histórico que se sustenta no racismo e no sexismo, daí a importância do olhar interseccional.

Por meio da interseccionalidade, passamos a considerar como as várias categorias de relações de poder, como raça, gênero e classe, interseccionam-se na vida das mulheres negras, condicionando certo aprisionamento das negras brasileiras a determinados papéis, uma vez que garante um desempoderamento que remete “[...] à maneira pela qual o racismo, as relações patriarcais, a opressão de classe e outros eixos possíveis de poder e discriminação criam desigualdades” (Bernardino-Costa, 2013Bernardino-Costa, J. (2013). Colonialidade e interseccionalidade: o trabalho doméstico no brasil e seus desafios para o século XXI. In T. D. Silva, & F. L. Goes(Org.), Igualdade racial no Brasil: reflexões no Ano Internacional dos Afrodescendentes. Rio de Janeiro, RJ: IPEA. Recuperado de https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/livro_igualdade_racialbrasil01.pdf
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, p. 474) e se perpetuam pela estrutura desigual de oportunidades sociais a que brancos e negros estão expostos no presente.

As vagas encontradas por trabalhadoras domésticas, para além de definir como perfil desejado ‘possuir boa aparência’, também indicavam a preferência por ‘mulher’. Uma das vagas de babá ainda acrescenta ao perfil desejado: ‘sem filhos pequenos’ e ‘sem marido’, já a segunda vaga explicitava que o ideal era que a candidata fosse ‘mãe’. A vaga para cuidadora de idosos, por sua vez, acrescenta ao perfil ideal que a mulher seja ‘jovem’ (entre 25 a 35 anos), tenha ‘disponibilidade para trabalhar todos os dias de semana (inclusive finais de semana) e dormir no trabalho’, que faça ‘todo o trabalho doméstico’ e que possua ‘formação de nível técnico em enfermagem’. Para além do recorte racial, essas vagas chamam atenção pelo não cumprimento da legislação que proíbe a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para acesso ou manutenção de relações de trabalho, por motivo de estado civil (‘sem marido’) ou situação familiar (‘sem filhos pequenos’ ou ‘ser mãe’).

Destacamos também a exploração desmedida da mão de obra, uma vez que a candidata deve ter disponibilidade sete dias por semana e vinte quatro horas por dia, além de cuidar de todo o trabalho doméstico. “Durante um bom tempo no Brasil, foi comum às trabalhadoras domésticas residirem na casa dos patrões [...]. Isso ampliava as dinâmicas de violência, pois ficavam disponíveis a todo o momento para satisfazer as necessidades dos patrões” (Teixeira, 2021Teixeira, J. (2021). Trabalho doméstico. São Paulo, SP: Jandaíra., p. 40). Percebe-se que, mesmo hoje, as dinâmicas de superexploração das trabalhadoras domésticas são mantidas, o que reafirma o trabalho doméstico como um lugar natural de servidão e leva a categoria à precarização e a um grau acentuado de vulnerabilidade.

Se os anúncios de vagas de emprego analisados reafirmam que os negros sofrem uma desvantagem competitiva em todas as etapas do processo de mobilidade social individual, a situação fica ainda mais crítica se recorrermos à dimensão do desempoderamento relacionada à interseccionalidade. Bernardino-Costa (2013Bernardino-Costa, J. (2013). Colonialidade e interseccionalidade: o trabalho doméstico no brasil e seus desafios para o século XXI. In T. D. Silva, & F. L. Goes(Org.), Igualdade racial no Brasil: reflexões no Ano Internacional dos Afrodescendentes. Rio de Janeiro, RJ: IPEA. Recuperado de https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/livro_igualdade_racialbrasil01.pdf
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) convida-nos a olhar para a dimensão do empoderamento, ou seja, a capacidade dos membros dos grupos marginalizados de resistir e gerar mobilizações políticas individuais e/ou coletivas.

Se o colonialismo moderno foi responsável por instaurar toda uma lógica global de desumanização, capaz de existir até mesmo na ausência de colônias formais (Maldonado-Torres, 2020Maldonado-Torres, N. (2020). Analítica da colonialidade e da decolonialidade: algumas dimensões básicas. InJ. Bernardino-Costa , N. Maldonado-Torres , & R. Grosfoguel (Orgs.), Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico (2a ed., 3a reimp.). Belo Horizonte, BH: Autêntica .), baseada na ideia de diferença pautada em raça, gênero e outros marcadores, essa mesma diferença que cria desigualdade, exploração e opressão pode ser mobilizada para gerar igualitarismo, diversidade e formas democráticas de agência política (Brah, 2006Brah, A. (2006). Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, 26, 329-376. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/S0104-83332006000100014
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). Nesse sentido, na categoria “produção de resistência em face de um mercado de trabalho racista”, fazemos o movimento de trazer a decolonialidade como um projeto de intervenção da realidade (Bernardino-Costa et al., 2018Bernardino-Costa, J. (2016). A prece de Frantz Fanon: oh, meu corpo, faça sempre de mim um homem que questiona! Civitas-Revista de Ciências Sociais, 16, 504-521. Recuperado dehttps://doi.org/10.15448/1984-7289.2016.3.22915
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).

Para além de compreender como a publicação de anúncios de emprego com características fenotípicas e relativas a ‘boa aparência’ contribuem para a perpetuação do racismo e do sexismo, buscamos, nesse momento, evidenciar a luta política das populações afrodiaspóricas, uma vez que, somente a partir de mobilizações sociais, é possível reinventar práticas coloniais. Apresentamos, assim, quatro iniciativas de empregabilidade negra, divididas entre serviços de recursos humanos e organizações cívicas e sociais, presentes no LinkedIn (2022): EmpregueAfro, Indique, Afro Presença e Afro Oportunidades.

O EmpregueAfro nasceu, em 2004, com a proposta de ser uma consultoria de recursos humanos focada em diversidade étnico-racial. O objetivo era capacitar jovens negros para processos seletivos de grandes multinacionais. Atualmente, diante de uma demanda do mercado para serviços de recrutamento e seleção, treinamentos e workshops sobre a temática, especializaram-se e se reconhecem como a única consultoria de recursos humanos do país com a expertise em diversidade étnico-racial (EmpregueAfro, 2022EmpregueAfro. (2022). Quem somos. Recuperado dehttps://empregueafro.com.br/quem-somos/
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). A iniciativa tem como objetivo identificar e enriquecer o conjunto de competências e habilidades do profissional afrodescendente para, assim, promover a inclusão profissional desses sujeitos no mercado de trabalho (LinkedIn, 2022LinkedIn. (2022). Site. Recuperado dehttps://www.linkedin.com/
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).

O Indique é “[...] uma consultoria de conexões entre a comunidade negra e o mercado de trabalho”, na qual são divulgadas inúmeras vagas de emprego para esse grupo minoritário (LinkedIn, 2022LinkedIn. (2022). Site. Recuperado dehttps://www.linkedin.com/
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). A iniciativa, além de buscar conscientizar as organizações para a construção de um espaço diverso e inclusivo, também presta consultoria auxiliando as organizações na construção de um posicionamento genuíno relacionado à diversidade. O Indique nasceu em 2016, focado na conexão e desenvolvimento de mulheres negras; atualmente trabalha com a questão racial de forma ampla. Entretanto toda a estrutura da empresa continua a ser liderada, gerida e desenvolvida por mulheres pretas. As idealizadoras da iniciativa afirmam acreditar nas palavras ditas por Ângela Davis, “[...] quando uma mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta junto com ela” (Indique, 2022Nascimento, A. (2019). O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. São Paulo, SP: Perspectiva.).

O movimento Afro Presença é originário do Projeto Nacional de Inclusão de Jovens Negras e Negros Universitários no Mercado de Trabalho, promovido pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). “Desde 2017 o MPT trabalha na construção de uma grande rede pela equidade étnico-racial, em âmbito nacional, e seus parceiros são a base do Afro Presença” (LinkedIn, 2022). O projeto tem como objetivo:

[...] fortalecer as ações voltadas à população negra, buscando ampliar a sua inserção e ascensão ao mercado de trabalho. As instituições que aderem ao Pacto passam a fazer parte da rede de inclusão constituída por entidades dos movimentos negros, empresas, associações de classe, universidades, organizações nacionais e internacionais (Afro Presença, 2022Afro Presença. (2022). Sobre o movimento. Recuperado dehttps://afropresenca.com.br/sobre-o-movimento/
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).

Já o Afro Oportunidades é uma empresa especializada na diversidade étnica, que tem como objetivo ampliar a empregabilidade dos afrodescendentes. A iniciativa faz parte do Grupo Favela Holding, primeira holding social, composta por 21 empresas, focada na transformação social das favelas e periferias brasileiras. Acreditam que, quando uma organização leva em conta a estratégia de crescimento e sucesso para suas equipes, ela também precisa fazê-lo em relação a diversidade étnico-racial. A iniciativa promove o encontro entre essas organizações e o público afrodescendente que busca se inserir no mercado de trabalho (LinkedIn, 2022LinkedIn. (2022). Site. Recuperado dehttps://www.linkedin.com/
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).

Para Gomes (2019Gomes, N. L. (2019). O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis, RJ: Vozes.), são essas negras e negros em movimento, ou seja, cidadãs e cidadãos, que possuem uma consciência racial afirmativa, que lutam contra o racismo. Se, por um lado, os eixos interseccionais geram opressão; por outro, membros dos grupos marginalizados reconstroem identidades e ressignificam a realidade social da população negra por meio de propostas que são verdadeiras práticas decoloniais. São ações como EmpregueAfro, Indique, Afro Presença e Afro Oportunidades que, ao mesmo tempo que produzem resistência em face de um mercado de trabalho racista, contribuem para que negras e negros possam viver em plenitude, uma vez que, como afirma Carneiro (2011Carneiro, S. (2011). Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo, SP: Selo Negro Edições.), o acesso ao emprego é condição primordial para a reprodução da vida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na presente pesquisa, tratamos de manifestações do racismo no mercado de trabalho, o qual se apresenta como elemento estruturante de nossa sociedade. Em anúncios de empregos, seja de maneira evidente, na predileção por mulheres brancas para o exercício do trabalho de cuidado, seja de modo sutil, nas expressões ‘boa aparência’, ‘higiene’ e ‘cabelos compridos’, é exposta a predileção pela ausência de traços negroides, em consonância à classificação subalterna e inferiorizante de homens negros e, principalmente, mulheres negras.

As principais contribuições do presente artigo estão no movimento entre o desvelamento de uma realidade opressora e suas nuances e as possibilidades de resistência e invenção de novas práticas e relações de trabalho que valorizem a presença negra. Esse caminhar é relevante para que não nos atentemos apenas à denúncia, elemento, todavia, importante, mas também à forma como negras e negros se organizam para existir, resistir e reinventar o cotidiano diante das opressões expostas nesta pesquisa. Desse modo, as iniciativas de empregabilidade negra podem ser lidas como ações de um projeto decolonial de intervenção na realidade.

Além disso, considerando o campo da Administração e, especificamente, da Gestão de Pessoas, o presente artigo contribui para o aprofundamento de discussões acerca de recrutamento de pessoas e questões raciais e de gênero, trazendo os deslizamentos semânticos, as nuances e sutilezas do racismo no mercado de trabalho, o que possibilita tratar com maior assertividade os erros cometidos em um importante elemento do recrutamento: os anúncios de emprego. Tratando da sociedade e das organizações, as discussões aqui realizadas podem contribuir para que os processos de recrutamento de empresa não sejam permeados por manifestações de racismo, assim como dão destaque às iniciativas de empregabilidade negra, as quais se apresentam como importante elemento de um projeto decolonial que vai além da simples denúncia: busca, de fato, interferir na realidade.

A principal limitação do artigo, considerando o desenho da pesquisa, é o uso exclusivo de dados secundários, o que limita as interpretações propostas, já que não são tratadas experiências tanto de indivíduos racializados quanto de setores de gestão de pessoas em processos de recrutamento. Essa limitação aponta também diretrizes para pesquisas futuras: consideramos ser relevante ir além dos anúncios enquanto materialização do racismo estrutural e estudar a fundo as vivências dos indivíduos racializados, assim como os processos de recrutamento que envolvem os anúncios de emprego e as iniciativas de empregabilidade negra, de modo que seja possível compreender de forma mais completa as complexas relações de trabalho em um país como o Brasil, cujas marcas do escravismo manifestam-se na colonialidade do poder.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    14 Fev 2022
  • Aceito
    13 Ago 2022
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