Acessibilidade / Reportar erro

Percepções dos agricultores do sul do Brasil sobre a legislação de Proteção da Vegetação Ripária

Perceptions of farmers from the southern Brazil on the legislation to Protect Riparian Vegetation

Resumo

As áreas de vegetação ripária são consideradas, pela Lei de Proteção da Vegetação Nativa (LPVN) (Lei 12.651/2012), como Áreas de Preservação Permanente. Este estudo busca identificar as percepções de agricultores do Sul do Brasil sobre a LPVN e sua importância na conservação da vegetação ripária. O estudo foi desenvolvido no estado do Rio Grande do Sul, envolvendo 90 agricultores, residentes no bioma Mata Atlântica, e 90, no bioma Pampa. A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas semiestruturadas, enfatizando a LPVN e técnicas de recomposição de vegetação ripária. As informações foram registradas em um formulário, gravadas em meio digital e submetidas a um processo de análise de conteúdo e análise estatística. A maioria dos agricultores (86,11%) afirma conhecer as regras/orientações estabelecidas pela LPVN. Essa afirmação é maior entre os agricultores que possuem maior grau de instrução e maior quantidade de terra. Para 49,4% dos agricultores, a legislação apresenta importância para regrar as ações da população e, dessa forma, manter os serviços ecossistêmicos; porém, discordam das metragens estabelecidas, em razão de fatores econômicos. Os agricultores destacaram a importância de práticas de recomposição da vegetação ripária, por meio do plantio de mudas, em especial daquelas espécies que possuem um potencial para gerar benefícios financeiros. Os agricultores ignoram as diferenças entre espécies nativas e exóticas, para a recomposição da vegetação ripária.

Palavras-chave:
Legislação ambiental; Recomposição da vegetação; Serviços ecossistêmicos

Abstract

Areas of riparian vegetation are considered by the Native Vegetation Protection Law (NVPL) (Law 12.651/2012) as Permanent Preservation Areas (PPAs). This study seeks to identify the perceptions of farmers in southern Brazil about LPVN and its importance relevance in the conservation of riparian vegetation. The study was developed in the state of Rio Grande do Sul, involving 90 farmers residing in the Atlantic Forest biome and 90 in the Pampa biome. We conducted data collection by applying semi-structured interviews, emphasizing LPVN and riparian vegetation recovering techniques. We then submitted all data to a process of content and statistical analysis. Most farmers (86.11%) affirm to know the rules/guidelines established by LPVN. This statement is greater among farmers who have higher education and more land. For 49.4% of farmers the legislation is important to rule population actions and thus maintain ecosystem services; however The study was developed in the state of Rio Grande do Sul, involving 90 farmers residing in the Atlantic Forest biome and 90 in the Pampa biome ever, they disagree with the established footage, due to economic factors. They highlight the importance of riparian vegetation recovering practices, by planting seedlings, especially those with the potential to generate financial benefits. They ignore the differences between native and exotic species for the recovering of riparian vegetation.

Keywords:
Environmental legislation; Plant restoration; Ecosystem services

1 INTRODUÇÃO

A vegetação ripária, também conhecida como mata ciliar, mata de galeria, mata de várzea, floresta beiradeira, floresta ripícola e floresta ribeirinha (MARTINI; TRENTINI, 2011MARTINI, L. C. P.; TRENTINI, E. C. Agricultura em zonas ripárias do sul do Brasil: conflitos de uso da terra e impactos nos recursos hídricos. Sociedade e Estado, v. 26, n. 3, p. 613-630, 2011. Disponível em: https://www.scielo.br/j/se/a/XVyB9jGcmyzfYCQxLXRgCpt/abstract/?lang=pt. Acesso em 12 jun. 2019. DOI: 10.1590/S0102-69922011000300010.
https://www.scielo.br/j/se/a/XVyB9jGcmyz...
; TEIXEIRA; MOREIRA, 2013TEIXEIRA, J. R. B.; MOREIRA, R. M. Atividade agrícola e a mata ciliar do Rio Mato Grosso na Chapada Diamantina da Bahia. Revista Eletrônica Educação Ambiental em Ação, 2013. ) consiste em uma área de transição entre o ecossistema terrestre e o aquático, possuindo espécies típicas das margens de rio, assim como das formações vegetais onde estão inseridas, estando presentes em todos os domínios paisagísticos do Brasil (KIPPER et al., 2010KIPPER, J. et al. Levantamento florístico de um componente arbóreo de mata ciliar do Rio Paraná, Marechal Cândido Rondon, PR. Scientia Agraria Paranaensis, Curitiba, v. 9, n. 1, p. 82-92, 2010. Disponível em: https://e-revista.unioeste.br/index.php/scientiaagraria/article/view/4279. Acesso em 10 abr. 2019. DOI: 10.18188/sap.v9i1.4270.
https://e-revista.unioeste.br/index.php/...
; MARTINS, 2011MARTINS, S. V. Recuperação de matas ciliares. 2.ed. Viçosa: Editora Aprenda Fácil, 2011.). Essa vegetação desempenha diversos serviços do ponto de vista hidrológico e ecológico, contribuindo, assim, para a manutenção da saúde ambiental e da resiliência da bacia hidrográfica (BURKHARD et al., 2010BURKHARD, B.; PETROSILLO, I.; COSTANZA, R. Ecosystem services - bridging ecology, economy and social sciences. Ecological Complexity, v.7, p.257-259, 2010. Acesso em: 27 jan. 2020. DOI: 10.1016/j.ecocom.2010.07.001.
https://doi.org/10.1016/j.ecocom.2010.07...
; PERT et al., 2010PERT, P.L. et al. A catchment-based approach to mapping hydrological ecosystem services using riparian habitat: a case study from the Wet Tropics, Australia. Ecological Complexity , v.7, n.3, p.378-388, 2010. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S1476945X10000371.Acesso em 20 jul.2019. DOI: 10.1016/j.ecocom.2010.05.002.
https://www.sciencedirect.com/science/ar...
). Entre os serviços ecossistêmicos estão, por exemplo, a renovação da qualidade da água, o controle e a recarga dos aquíferos, a reposição da água retirada por evapotranspiração, o controle da sedimentação dos ecossistemas aquáticos, o suprimento de matéria orgânica para a fauna aquática e a manutenção da diversidade de fauna terrestre, além de servir como zona de reprodução (TUNDISI; MATSUMURA-TUNDISI, 2010TUNDISI, J. G.; MATSUMURA-TUNDISI, T. M. Impactos potenciais das alterações do Código Florestal nos recursos hídricos. Biota Neotropica , v. 10, n. 4, 2010. Disponível em: https://www.scielo.br/j/bn/a/9NFHqXk7LTh7gjJVGcPF34r/abstract/?lang=pt. Acesso em: 10 ago. 2019. DOI: 10.1590/S1676-06032010000400010.
https://www.scielo.br/j/bn/a/9NFHqXk7LTh...
; CASTRO; MELO; POESTER, 2012CASTRO, D.; MELO, R.S.P.; POESTER, G.C. Práticas para restauração da mata ciliar. Porto Alegre : Catarse - Coletivo de Comunicação, 2012. Disponível em: http://www.onganama.org.br/pesquisas/Livros/Livro_Praticas_Restauracao_Mata_Ciliar.pdf. Acesso em 5 jun. 2019.
http://www.onganama.org.br/pesquisas/Liv...
).

No Brasil, devido a sua importância ecológica, as áreas de vegetação ripária são consideradas, pela Lei de Proteção da Vegetação Nativa (LPVN) (Lei 12.651, de 2012), como Áreas de Preservação Permanente (APPs). A Lei define essas áreas como “áreas protegidas, cobertas ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas”. Dentre os principais fundamentos dessa legislação destacam-se as faixas (larguras mínimas) de preservação da vegetação ripária na margem de qualquer curso-d’água natural, perene ou intermitente, além do entorno de nascentes e olhos-d’água, perenes ou intermitentes, independentes do relevo. Além disso, a Lei 12.651, de 2012, também estabelece faixas mínimas de preservação para outras lâminas de água, como lagos e lagoas naturais, além de áreas úmidas (BRASIL, 2012BRASIL, 2012. Lei n⁰ 12.651 de 25 de maio de 2012. Dispõe sobre a proteção da vegetação nativa; altera as Leis nos 6.938, de 31 de agosto de 1981, 9.393, de 19 de dezembro de 1996, e 11.428, de 22 de dezembro de 2006; revoga as Leis nos 4.771, de 15 de setembro de 1965, e 7.754, de 14 de abril de 1989, e a Medida Provisória no 2.166-67, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12651.htm. Acesso em: 10 ago. 2016.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
).

Segundo a legislação vigente, a vegetação ripária deve ser mantida pelos proprietários de área, possuidores ou ocupantes a qualquer título, pessoas físicas ou jurídicas, de direito público, ou privado. A intervenção ou a supressão das áreas de vegetação ripária somente poderá ocorrer nas hipóteses de utilidade pública, de interesse social, ou atividades de baixo impacto ambiental (BRASIL, 2012BRASIL, 2012. Lei n⁰ 12.651 de 25 de maio de 2012. Dispõe sobre a proteção da vegetação nativa; altera as Leis nos 6.938, de 31 de agosto de 1981, 9.393, de 19 de dezembro de 1996, e 11.428, de 22 de dezembro de 2006; revoga as Leis nos 4.771, de 15 de setembro de 1965, e 7.754, de 14 de abril de 1989, e a Medida Provisória no 2.166-67, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12651.htm. Acesso em: 10 ago. 2016.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
). Caso tenha ocorrido a supressão da vegetação ripária, o proprietário da área é obrigado a promover a recomposição, ressalvado os casos autorizados pela Lei. No caso de o produtor rural ter feito a supressão da vegetação ripária, até 22 de julho de 2008, a metragem a ser recuperada dependerá do número de Módulos Fiscais que compõem o imóvel. Por exemplo, para imóveis rurais, com área de até um módulo fiscal (o módulo fiscal varia de acordo com o município) que possuam áreas consolidadas em área de preservação, permanente ao longo de cursos-d’água naturais, será obrigatória a recomposição de uma faixa de vegetação ripária de cinco (5) metros, contados da borda da calha do leito regular, independente da largura do leito do curso-d’água. No caso de nascentes e olhos-d’água perenes, será admitida a manutenção de atividades agrossilvipastoris, de ecoturismo ou de turismo rural, sendo obrigatória a recomposição do raio mínimo de 15 (quinze) metros de largura. Quanto maior a área da propriedade rural, maior é a metragem a ser recuperada (BRASIL, 2012BRASIL, 2012. Lei n⁰ 12.651 de 25 de maio de 2012. Dispõe sobre a proteção da vegetação nativa; altera as Leis nos 6.938, de 31 de agosto de 1981, 9.393, de 19 de dezembro de 1996, e 11.428, de 22 de dezembro de 2006; revoga as Leis nos 4.771, de 15 de setembro de 1965, e 7.754, de 14 de abril de 1989, e a Medida Provisória no 2.166-67, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12651.htm. Acesso em: 10 ago. 2016.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
).

Essa recomposição das áreas de vegetação ripária deve ser feita por meio da regeneração natural de espécies nativas, plantio de espécies nativas, ou por meio das duas técnicas simultaneamente. Em pequenas propriedades rurais familiares, é possível fazer a recomposição da vegetação ripária, associando espécies nativas e espécies exóticas lenhosas, perenes, e de ciclo longo em até 50% da área a ser recomposta. Também é admitido o plantio de culturas temporárias e sazonais, de ciclo curto, na faixa de terra que fica exposta no período de vazante dos rios ou lagos, desde que não implique a supressão de novas áreas de vegetação nativa, seja conservada a qualidade da água e do solo e seja protegida a fauna silvestre (BRASIL, 2012BRASIL, 2012. Lei n⁰ 12.651 de 25 de maio de 2012. Dispõe sobre a proteção da vegetação nativa; altera as Leis nos 6.938, de 31 de agosto de 1981, 9.393, de 19 de dezembro de 1996, e 11.428, de 22 de dezembro de 2006; revoga as Leis nos 4.771, de 15 de setembro de 1965, e 7.754, de 14 de abril de 1989, e a Medida Provisória no 2.166-67, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12651.htm. Acesso em: 10 ago. 2016.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
).

Para monitorar as áreas de preservação, dentre elas, a vegetação ripária, foi elaborada, pelo Ministério do Meio Ambiente, uma ferramenta digital, o Cadastro Ambiental Rural (CAR), para auxiliar no planejamento ambiental e econômico, no controle e no acompanhamento da recuperação de áreas degradadas na propriedade rural. O CAR foi instituído pela Lei 12.651/2012 como um registro eletrônico obrigatório para todos os imóveis rurais do país. Ele tem por finalidade a regularização ambiental e o acesso a benefícios como créditos rurais.

Dessa maneira, este estudo busca identificar as percepções de agricultores do Sul do Brasil sobre a LPVN e sua importância na conservação da vegetação ripária. Os estudos de percepção ambiental subsidiam o delineamento de estratégias para o gerenciamento de ecossistemas, bem como para a formulação de políticas voltadas à conservação ambiental. Na educação ambiental (EA), os estudos de Percepção Ambiental são apontados como uma etapa prévia para a elaboração de programas e projetos (MONTEIRO; RESTELLO; ZAKRZEVSKI, 2012MONTEIRO, D. E.; RESTELLO, R. M.; ZAKRZEVSKI, S. B. B. Conhecimentos, sentimentos, valores e expectativas sobre o Parque Natural Municipal Mata do Rio Uruguai Teixeira Soares/RS. Perspectiva, Erechim, v. 36, n. 133, p. 115-128, 2012. Disponível em: https://www.uricer.edu.br/site/pdfs/perspectiva/133_257.pdf. Acesso em 20 jul.2019.
https://www.uricer.edu.br/site/pdfs/pers...
), pois possibilitam conhecer os saberes, os interesses, as expectativas, as necessidades, as experiências, os significados do ambiente para diferentes indivíduos e grupos sociais.

2 MATERIAIS E MÉTODOS

O estudo foi desenvolvido no estado do Rio Grande do Sul, no território abrangido pela Bacia Hidrográfica dos Rios Apuaê-Inhandava e na Bacia Hidrográfica do Rio Santa Maria. São bacias que compõem a Região Hidrográfica do Uruguai, sendo, esta divisão, instituída para fins de gestão de Recursos Hídricos do Estado do Rio Grande do Sul.

A Bacia dos Rios Apuaê-Inhandava situa-se ao norte-nordeste do Estado, no bioma Mata Atlântica. Nela são encontradas três formações vegetacionais distintas: a Estepe, a Floresta Ombrófila Mista e a Floresta Estacional Decidual, com a existência de sistemas de transição, principalmente entre a Floresta Ombrófila Mista e a Floresta Estacional Decidual. Com área de 14.743,15 Km², abrange 52 municípios e uma população de 413.843 habitantes. Nela há o predomínio de pequenas propriedades rurais e da agricultura familiar. Em seu território, prevalece o cultivo de soja, fruticultura, erva-mate, a criação de gado e outros animais como, por exemplo, a suinocultura (RIO GRANDE DO SUL, 2019RIO GRANDE DO SUL. Plano da Bacia Hidrográfica dos Rios Apuaê-Inhandava. 2019. ). A Bacia Hidrográfica do Rio Santa Maria está localizada no sudoeste do Rio Grande do Sul, no bioma Pampa. É caracterizada por possuir um relevo de planície e vegetação predominantemente campestre. Com uma área de 15.740 km², abrange 7 municípios e uma população de 167.674 habitantes. Na Bacia existem grandes propriedades rurais, não familiares, que cultivam arroz irrigado, soja e pecuária de corte (RIO GRANDE DO SUL, 2016RIO GRANDE DO SUL. Plano de Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica do Rio Santa Maria. 2016.).

Participaram do estudo 180 agricultores, sendo 90 residentes em cada Bacia Hidrográfica. Destes, 90 são agricultores familiares, e 90 agricultores não familiares. Os agricultores familiares são aqueles que possuem até quatro módulos fiscais, que utilizam predominantemente mão de obra da própria família, assim como a base de sustentação da renda familiar tenha origem nas atividades vinculadas ao próprio empreendimento (BRASIL, 2006BRASIL, 2006. Lei n˚ 11.326 de 24 de julho de 2006. Estabelece as diretrizes para a formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11326.htm. Acesso em: 12 ago. 2016.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_At...
). Estes foram distribuídos, igualmente, entre as bacias hidrográficas e três categorias de município - Municípios Essencialmente rurais (MER - municípios em que mais de 50% da população habitam as unidades rurais); Municípios Relativamente Rurais (MRR - municípios em que 15% a 50% da população vivem em unidades rurais) e Municípios Essencialmente Urbanos (MEU - municípios em que menos de 15% da população vivem em unidades rurais) (Figura 1).

Figura 1
Mapa de localização dos municípios abrangidos pela pesquisa

A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas semiestruturadas, em data, horário e local agendado com os participantes, no período entre dezembro de 2016 e abril de 2017. As entrevistas foram gravadas por meio digital, com prévia autorização dos agricultores, e os dados também foram registrados em um formulário organizado para a sistematização de cada questão.

A análise dos dados combinou técnicas qualitativas e quantitativas. Inicialmente os dados foram submetidos a um processo de análise de conteúdo (BARDIN, 1977BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.). Após, o conjunto de dados qualitativos foram “quantitizados” (SANDELOWSKI, 2000 SANDELOWSKI, M. Focus on Research Methods Combining Qualitative and Quantitative Sampling, Data Collection, and Analysis Techniques in Mixed-Method Studies. Research in Nursing & Health. John Wiley & Sons, Inc. 23, p.246-255, 2000. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/10871540/. Acesso em: 6 abr. 2020. DOI: 10.1002/1098-240x(200006)23:3<246:aid-nur9>3.0.co;2-h
https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/10871540...
), ou seja, convertidos em informações quantitativas e submetidos a um processo de análise estatística descritiva, com o objetivo de evidenciar as características de distribuição das variáveis (cálculo de frequência e porcentagem). Também foi utilizado o teste do qui-quadrado (χ2) com p< 0,05, buscando verificar se os fatores mensurados (bioma em que a propriedade está situada, categorias de municípios, sexo, local de residência) influenciaram nas percepções dos agricultores sobre o tema em estudo. As análises foram realizadas utilizando o software Bioestat 5.0.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

3.1 Caracterização dos entrevistados e das propriedades participantes do estudo

Dos 180 participantes da pesquisa: i) 162 são do gênero masculino e 18 são do gênero feminino; ii) 106 residem no meio rural, e os demais moram em ambiente urbano; iii) 35% dos participantes apresentam apenas a primeira etapa do Ensino Fundamental, ou seja, cursaram os quatro primeiros anos da Educação Básica (Tabela 1).

Tabela 1
Caracterização dos agricultores participantes da pesquisa (%)

A principal atividade produtiva das propriedades é a monocultura da soja (51,1%), do milho (45%) e do arroz (19,4%), e 54,4% praticam a pecuária de corte, ou de leite. Em 96% das propriedades, há presença de recursos hídricos, como córregos (70,5%), reservatórios - como lagoas naturais e açudes (67,7%) e nascentes (48,3%). Em relação às áreas de vegetação ripária, 54,4% dos agricultores afirmam que suas propriedades atendem plenamente as metragens estabelecidas pela LPVN. Essa porcentagem é maior entre agricultores não familiares (61,1%) e entre agricultores com mais de 65 anos de idade (72,7%). Segundo 86% dos agricultores, no momento da pesquisa, já haviam realizado o Cadastro Ambiental Rural (CAR) de suas propriedades. Quando comparados os dois biomas, é possível verificar que o maior número de agricultores, que realizou o CAR, reside no bioma Mata Atlântica (χ2= 9,44 df=2, p=0,008). Esse resultado pode estar associado à atuação dos órgãos de assistência técnica nos diferentes biomas e aos tipos de uso dos imóveis, que demandam a realização do CAR para obtenção de crédito agrário.

3.2 Percepções sobre a Lei de Proteção da Vegetação Nativa e a vegetação ripária

Verificou-se que 91,5% dos participantes atribuem importância para a vegetação ripária, sendo que o valor atribuído aumenta conforme aumenta o nível de escolaridade do participante. Porém, observa-se diferença entre agricultores jovens, que possuem idade entre 18 e 30 anos, e agricultores idosos, com mais de 65 anos (χ2 = 11,5, df=3, p= 0,009). Os agricultores, com menor idade, atribuem maior importância ao ecossistema composto pela vegetação ripária.

Essa diferença entre as percepções talvez esteja relacionada ao histórico de exploração das áreas de vegetação ripária. Em 1880, no Sul do Brasil, com a chegada dos imigrantes alemães e posteriormente com os italianos, houve a substituição das florestas por culturas agrícolas. Nesse período, quando houve a formação das primeiras comunidades rurais, a eliminação da mata implicava na posse, de fato, da terra (MARTINI; TRENTINI, 2011MARTINI, L. C. P.; TRENTINI, E. C. Agricultura em zonas ripárias do sul do Brasil: conflitos de uso da terra e impactos nos recursos hídricos. Sociedade e Estado, v. 26, n. 3, p. 613-630, 2011. Disponível em: https://www.scielo.br/j/se/a/XVyB9jGcmyzfYCQxLXRgCpt/abstract/?lang=pt. Acesso em 12 jun. 2019. DOI: 10.1590/S0102-69922011000300010.
https://www.scielo.br/j/se/a/XVyB9jGcmyz...
). Até os anos de 1920, a legislação brasileira era liberal e garantia aos proprietários rurais autonomia e poder ilimitado sobre as propriedades, demonstrando omissão na exploração dos recursos naturais (JANUÁRIO et al., 2015JANUÁRIO, M. et al. Implantação de educação e gestão ambiental no Repovoamento Mello, distrito de Monte Real, para conservação de áreas de preservação permanente (APP). Revista ELO - Diálogos em Extensão, v. 3, n.1, 2015. Disponível em: https://periodicos.ufv.br/elo/article/view/1010. Acesso em: 10 abr. 2019. DOI: 10.21284/elo.v3i1.31.
https://periodicos.ufv.br/elo/article/vi...
). Mais tarde, em 1980, a retirada da vegetação ripária foi estimulada por políticas governamentais, como o Programa Nacional para Aproveitamento de Várzeas Irrigáveis - PROVARZEAS Nacional (BRASIL, 1981BRASIL, 2012. Lei n⁰ 12.651 de 25 de maio de 2012. Dispõe sobre a proteção da vegetação nativa; altera as Leis nos 6.938, de 31 de agosto de 1981, 9.393, de 19 de dezembro de 1996, e 11.428, de 22 de dezembro de 2006; revoga as Leis nos 4.771, de 15 de setembro de 1965, e 7.754, de 14 de abril de 1989, e a Medida Provisória no 2.166-67, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12651.htm. Acesso em: 10 ago. 2016.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
). Esse Programa garantiu suporte financeiro e técnico-administrativo para a drenagem e sistematização agrícola de várzeas, dando prioridade ao atendimento de agricultores familiares que possuíam uma infraestrutura básica implantada.

De certa forma, muitos agricultores que foram pesquisados ainda hoje consideram que áreas com florestas são reservas de valor econômico (madeira ou lenha) e que, após exploradas, deveriam ser transformadas em lavouras ou pastagens, independentemente se tal transformação fosse acrescentar renda ou não ao proprietário rural. O fato de o agricultor não estar utilizando, integralmente, a sua terra, para atividades produtivas, muitas vezes está associado ao desleixo, ao descuido com a propriedade. Fato, este, também evidenciado por Martini e Trentini (2011MARTINI, L. C. P.; TRENTINI, E. C. Agricultura em zonas ripárias do sul do Brasil: conflitos de uso da terra e impactos nos recursos hídricos. Sociedade e Estado, v. 26, n. 3, p. 613-630, 2011. Disponível em: https://www.scielo.br/j/se/a/XVyB9jGcmyzfYCQxLXRgCpt/abstract/?lang=pt. Acesso em 12 jun. 2019. DOI: 10.1590/S0102-69922011000300010.
https://www.scielo.br/j/se/a/XVyB9jGcmyz...
). Os agricultores idosos que participaram do estudo viveram um período em que a exploração da vegetação ripária era incentivada pelo Governo brasileiro, justificando a diferença entre as percepções com agricultores mais jovens.

A maioria dos agricultores (86,11%) afirma conhecer as regras/orientações estabelecidas pela LPVN. Com relação a esse tema, observam-se diferenças entre os agricultores que possuem o Ensino Fundamental incompleto e a pós-graduação (χ2= 21,05 df=1, p< 0,001). Também é possível identificar diferenças entre os agricultores que possuem pequenas e grandes propriedades rurais (χ2= 6,25 df=1, p=0,012). Em síntese, é possível afirmar que o grau de instrução e o tamanho das propriedades são fatores que influenciam o fato de os agricultores conhecerem a LPVN. Agricultores com maior escolaridade e com maiores propriedades rurais afirmam ter um maior conhecimento sobre a legislação, possivelmente devido às melhores condições financeiras para acesso à informação como, por exemplo, consultorias, compra de livros e acesso aos canais de TV por assinatura.

Bianchini e Schimidt (2016BIANCHINI, A.; SCHMIDT, C. A. P. Percepção Ambiental dos produtores rurais de Cruzeiro do Iguaçu, frente ao Novo Código Florestal. Educação Ambiental em Ação, v. 15, n. 56, 2016. Disponível em: http://www.revistaea.org/artigo.php?idartigo=2351. Acesso em: 10 dez. 2017.
http://www.revistaea.org/artigo.php?idar...
) encontraram um resultado semelhante na região sudoeste do estado do Paraná, onde 77% dos agricultores afirmaram conhecer a LVPN. Os autores afirmam que tal resultado não quer dizer que o agricultor já tenha lido sobre a nova legislação, ou sabe de todas as suas peculiaridades. A maioria dos agricultores conhece a LVPN pelos meios de comunicação, empresas de assessoria ambiental (nos momentos de busca para regularização) e também em conversas com profissionais da área.

Para 49,4% dos agricultores, a existência da legislação apresenta grande importância; porém, observam-se diferenças entre o grau de importância atribuído por agricultores familiares e agricultores não familiares (χ2= 6,25 df=1, p= 0,012); entre agricultores residentes no bioma Pampa e no bioma Mata Atlântica (χ2= 20,05 df=2, p< 0,001); entre agricultores residentes no meio urbano e no meio rural (χ2= 6,5 df=2, p<0,038) e entre agricultores residentes em diferentes categorias de municípios como, por exemplo, entre MER e MEU (χ2= 39,4 df=2, p< 0,001) (Figura 2).

Figura 2
Grau de importância, atribuído à Lei de Proteção da Vegetação Nativa, pelos agricultores abrangidos na pesquisa, RS, 2018

Dos agricultores que reconhecem a importância da LPVN, 58,4% afirmam que a existência da legislação é de grande importância para regrar as ações que incidem sobre o uso das APPs. Outros 40,4% afirmam que a LPVN auxilia na manutenção dos serviços ecossistêmicos como, por exemplo, na manutenção da água, no controle da erosão, na preservação da biodiversidade de fauna e flora e evita catástrofes naturais. Para 5% dos entrevistados, a implementação das regras da LPVN deveria ser mais fiscalizada pelos órgãos competentes. Os resultados indicam que os agricultores participantes do estudo reconhecem que, caso não houvesse a legislação, possivelmente o setor agrícola degradaria muito mais os ecossistemas do que o faz atualmente. E, dessa maneira, então, a LPVN é considerada pelos agricultores como responsável pela manutenção dos serviços ecossistêmicos essenciais prestados pelas florestas. Esses resultados contrariam outros estudos, por exemplo, o de Trevisan et al. (2016TREVISAN, A. C. D. et al. Farmer perceptions, policy and reforestation in Santa Catarina, Brazil. Ecological Economics, v. 130, p. 53-63, 2016. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0921800916307698. Acesso em: 13 mai. 2019. DOI: 10.1016/j.ecolecon.2016.06.024.
https://www.sciencedirect.com/science/ar...
), o qual revela que relativamente poucos agricultores do estado de Santa Catarina apoiam a lei.

Os principais motivos pelos quais os agricultores atribuem importância, ou não, às metragens estabelecidas são apresentados no Quadro 1.

Quadro 1
Depoimentos de agricultores do Sul do Brasil sobre a importância das metragens de vegetação ripária, estabelecidas pela Lei de Proteção da Vegetação Nativa, 2018

Em relação à importância atribuída às faixas de vegetação ripária, é possível observar diferenças entre as percepções de agricultores familiares e agricultores não familiares (χ2= 26,9 df=1, p<0,001); entre agricultores do gênero masculino e de feminino (χ2= 4,05 df=1, p= 0,043) e entre agricultores com diferentes níveis de escolaridade - entre agricultores que possuem o Ensino Fundamental incompleto e os que possuem a pós-graduação (χ2= 20,4 df=1, p<0,001). Pode-se afirmar que agricultores familiares e agricultores do sexo feminino atribuem maior importância às faixas de vegetação ripária, impostas pela legislação vigente. Além disso, quanto maior a escolaridade do agricultor, menor é a importância atribuída às metragens de vegetação ripária.

Dos agricultores que atribuem importância às faixas, muitos deles citam como justificativa os serviços ecossistêmicos prestados pelas áreas de vegetação ripária como, por exemplo, o controle da erosão, o barramento contra a entrada de sedimentos e a melhor qualidade da água. Porém, vários estudos destacam que as larguras estabelecidas pela LPVN ainda não são suficientes para a conservação da biodiversidade. Para a maioria das espécies de plantas e vertebrados, a faixa de trinta metros ao lado de cursos-d’água é insuficiente para assegurar a manutenção da biodiversidade em longo prazo e promover a conectividade da paisagem, por dois motivos principais: 1) redução de hábitat, e 2) efeito de borda (METZGER, 2010).

Galetti et al. (2010GALETTI, M. et al. Mudanças no Código Florestal e seu impacto na ecologia e diversidade dos mamíferos no Brasil. Biota Neotropica , v. 10, n. 4, 2010. Disponível em: http://old.scielo.br/scielo.php?pid=S1676-06032010000400006&script=sci_arttext. Acesso em: 14 abr. 2020. DOI: 10.1590/S1676-06032010000400006
http://old.scielo.br/scielo.php?pid=S167...
) discutem sobre como o empobrecimento das áreas de vegetação ripária afetará a produtividade primária da floresta (flores, frutos e folhas), tendo efeitos negativos sobre várias espécies de mamíferos associados a esses ambientes como, por exemplo, bugios (Alouatta spp. Lacépède, 1799), macacos-prego (Cebus spp. Linnaeus, 1766), mãos-pelada (Procyon cancrivorus Cuvier, 1798), quatis (Nasua nasua L., 1758), queixadas (Tayassu pecari Link, 1795), pacas (Cuniculus paca L. 1766), assim como espécies semiaquáticas, como lontras (Lontra longicaudis Olfers, 1818), ariranhas (Pteronura brasiliensis Gmelin, 1788), ratões-do-banhado (Myocastor coypus Molina, 1782), capivaras (Hydrochoerus hydrochaeris L., 1766) e cuícas-d’água (Chironectes minimus Zimmermann, 1780) e aquáticas.

Toledo et al. (2010TOLEDO, L. F. et al. A revisão do Código Florestal Brasileiro: impactos negativos para a conservação dos anfíbios. Biota Neotropica , v. 10, n. 4, p. 35, 2010. Disponível em: https://www.scielo.br/j/bn/a/P5vTxgyYn5ZFj8T9YpnMRbh/abstract/?lang=pt. Acesso em: 13 mai. 2019. DOI: 10.1590/S1676-06032010000400003.
https://www.scielo.br/j/bn/a/P5vTxgyYn5Z...
), em um estudo sobre os efeitos das mudanças na LPVN sobre a conservação de anfíbios, afirmam que as larguras de vegetação ripária menores do que trinta metros, geram declínios populacionais e eventualmente extinções de espécies de anfíbios reofílicos. Freitas (2010FREITAS, A. V. L. Impactos potenciais das mudanças propostas no Código Florestal Brasileiro sobre as borboletas. Biota Neotropica, v. 10, n. 4, 2010. Disponível em: https://www.scielo.br/j/bn/a/4kFwfhWXHFnqWjFCB47KXrk/?lang=pt. Acesso em: 12 mai. 2019. DOI: 10.1590/S1676-06032010000400007.
https://www.scielo.br/j/bn/a/4kFwfhWXHFn...
), em um estudo semelhante com borboletas, sustenta a ideia de que pouca metragem de vegetação ripária pode levar à extinção de diversas espécies de borboletas localmente.

Em seu estudo, Metzger (2010) apoia a necessidade de expansão das larguras de vegetação ripária, propostas pela LPVN para pelo menos 100 m (50 m de cada lado do rio), independentemente do bioma, do grupo taxonômico, do solo ou do tipo de topografia. E ainda comenta que o não cumprimento da legislação vigente certamente tem tido consequências severas não apenas para a biodiversidade, mas também para os serviços ambientais relacionados, como a qualidade de vida humana e a saúde pública.

Dos agricultores que discordam com as larguras estabelecidas, a maioria cita motivos relacionados com fatores econômicos como, por exemplo, diminuição da produção agrícola e falta de incentivos financeiros como, por exemplo, pagamentos por serviços ambientais. Em um estudo no sudoeste da Espanha, García-Llorente et al. (2012)GARCÍA-LLORENTE, M. et al. The role of multi-functionality in social preferences toward semi-arid rural landscapes: an ecosystem service approach. Environmental Science & Policy, v. 19, p. 136-146, 2012. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S1462901112000317. Acesso em: 10 ago. 2020. DOI: 10.1016/j.envsci.2012.01.006
https://www.sciencedirect.com/science/ar...
descobriram que os fatores econômicos geralmente são cruciais na motivação dos agricultores em proteger os ecossistemas. E em um estudo realizado com agricultores do estado de Santa Catarina, Trevisan et al. (2016TREVISAN, A. C. D. et al. Farmer perceptions, policy and reforestation in Santa Catarina, Brazil. Ecological Economics, v. 130, p. 53-63, 2016. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0921800916307698. Acesso em: 13 mai. 2019. DOI: 10.1016/j.ecolecon.2016.06.024.
https://www.sciencedirect.com/science/ar...
) evidenciaram que mais de 93% dos agricultores estavam dispostos a restaurar suas áreas de vegetação ripária se fossem recompensados por fazê-lo.

3.3 Percepções sobre a importância da recomposição da vegetação ripária

Os participantes do estudo destacam a importância de práticas de recomposição da vegetação ripária para a conservação do solo, da água e para a manutenção da biodiversidade da fauna, terrestre e aquática. 86% dos agricultores reconhecem que a recomposição da vegetação ripária traz diversos benefícios para o solo. Dentre os benefícios, estão: o controle da erosão, citado por 63,4%; a manutenção da umidade do solo, por 17,3%; o controle do assoreamento, por 14,7%; o aumento da matéria orgânica, por 14,1% e a manutenção da fauna do solo como, por exemplo, da biodiversidade de microrganismos e invertebrados, por 7%. Esse resultado condiz com a pesquisa de Holanda et al. (2010HOLANDA, F. S. R. et al. Crescimento inicial de espécies florestais na recomposição da mata ciliar em taludes submetidos à técnica da bioengenharia de solos. Ciência Florestal, Santa Maria, v. 20, n. 1, p. 157-166, 2010. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/cienciaflorestal/article/view/1770. Acesso em 17 jul. 2020. DOI:10.5902/198050981770.
https://periodicos.ufsm.br/cienciaflores...
), em que os autores afirmam que a vegetação ripária é indicada para a conservação de taludes e importante para evitar a formação de voçorocas e o assoreamento do leito do rio. Para Cândido et al. (2012CÂNDIDO, A. K. A. A.; et al. Fauna edáfica como bioindicadores de qualidade ambiental na nascente do Rio São Lourenço, Campo Verde - MT, Brasil. Engenharia Ambiental, v.9, n.1, p. 67-82, 2012. Disponível em: http://ferramentas.unipinhal.edu.br/engenhariaambiental/viewarticle.php?id=707. Acesso em: 12 abr. 2019.
http://ferramentas.unipinhal.edu.br/enge...
), as áreas de vegetação ripária são importantes para sustentar a grande biodiversidade de invertebrados do solo devido, principalmente, à heterogeneidade desses ambientes.

Em relação à água, 90% dos agricultores consideram que a recomposição da vegetação ripária é importante para a conservação dos processos hidrológicos. Desses agricultores, 50,6%, afirmam que a vegetação ripária contribui para a manutenção e recarga dos aquíferos; 33,3%, para a renovação da qualidade da água; 11,7%, para o controle da temperatura e 9,8% afirmam que evita a entrada de sedimentos e poluentes para o curso-d’água.

Vários estudos comprovam os serviços ecossistêmicos citados pelos agricultores como, por exemplo, os que discutem sobre a importância de vegetação ripária para a prevenção da entrada de nutrientes e poluentes para o curso-d’água (TUNDISI; MATSUMURA-TUNDISI, 2010TUNDISI, J. G.; MATSUMURA-TUNDISI, T. M. Impactos potenciais das alterações do Código Florestal nos recursos hídricos. Biota Neotropica , v. 10, n. 4, 2010. Disponível em: https://www.scielo.br/j/bn/a/9NFHqXk7LTh7gjJVGcPF34r/abstract/?lang=pt. Acesso em: 10 ago. 2019. DOI: 10.1590/S1676-06032010000400010.
https://www.scielo.br/j/bn/a/9NFHqXk7LTh...
; VAN LOOY et al., 2013VAN LOOY, K. et al. Benefits of riparian forest for the aquatic ecosystem assessed at a large geographic scale. Knowledge and Management of Aquatic Ecosystems, n. 408, 2013. Disponível em: https://www.kmae-journal.org/articles/kmae/abs/2013/01/kmae120075/kmae120075.html. Acesso em: 13 de maio. 2019. DOI: 10.1051/kmae/2013041.
https://www.kmae-journal.org/articles/km...
), a vegetação ripária como mantenedora da qualidade da água (TUNDISI; MATSUMURA-TUNDISI, 2010TUNDISI, J. G.; MATSUMURA-TUNDISI, T. M. Impactos potenciais das alterações do Código Florestal nos recursos hídricos. Biota Neotropica , v. 10, n. 4, 2010. Disponível em: https://www.scielo.br/j/bn/a/9NFHqXk7LTh7gjJVGcPF34r/abstract/?lang=pt. Acesso em: 10 ago. 2019. DOI: 10.1590/S1676-06032010000400010.
https://www.scielo.br/j/bn/a/9NFHqXk7LTh...
; CASTRO; MELO; POESTER, 2012CASTRO, D.; MELO, R.S.P.; POESTER, G.C. Práticas para restauração da mata ciliar. Porto Alegre : Catarse - Coletivo de Comunicação, 2012. Disponível em: http://www.onganama.org.br/pesquisas/Livros/Livro_Praticas_Restauracao_Mata_Ciliar.pdf. Acesso em 5 jun. 2019.
http://www.onganama.org.br/pesquisas/Liv...
) e, por fim, como reguladora do regime e fluxo hídrico (CASTRO; MELO; POESTER, 2012CASTRO, D.; MELO, R.S.P.; POESTER, G.C. Práticas para restauração da mata ciliar. Porto Alegre : Catarse - Coletivo de Comunicação, 2012. Disponível em: http://www.onganama.org.br/pesquisas/Livros/Livro_Praticas_Restauracao_Mata_Ciliar.pdf. Acesso em 5 jun. 2019.
http://www.onganama.org.br/pesquisas/Liv...
) e do ciclo e da composição química da água (TUNDISI; MATSUMURA-TUNDISI, 2010TUNDISI, J. G.; MATSUMURA-TUNDISI, T. M. Impactos potenciais das alterações do Código Florestal nos recursos hídricos. Biota Neotropica , v. 10, n. 4, 2010. Disponível em: https://www.scielo.br/j/bn/a/9NFHqXk7LTh7gjJVGcPF34r/abstract/?lang=pt. Acesso em: 10 ago. 2019. DOI: 10.1590/S1676-06032010000400010.
https://www.scielo.br/j/bn/a/9NFHqXk7LTh...
). Kuntschik et al. (2014KUNTSCHIK, D. P. et al. Matas Ciliares. 2 ed. São Paulo: SMA, 2014.) também discutem que, quando a vegetação ripária está localizada em áreas agrícolas, ela previne ou minimiza a entrada de poluentes, pesticidas agrícolas e sedimentos para os corpos-d’água, sendo chamada, portanto, de zona-tampão. E, em detrimento disso, também colabora para que menos resíduos cheguem ao oceano, contribuindo com a manutenção da biota marinha.

Para 91,1% dos agricultores, a recomposição da vegetação ripária é essencial para a manutenção da biodiversidade de organismos aquáticos, como peixes e macroinvertebrados, sendo que 51% afirmam que ela é a principal fornecedora de alimento para esses organismos. Conforme 21,9%, ela auxilia na manutenção da temperatura da água, e 18,2%, da sua qualidade. Segundo a literatura, a vegetação ripária regula as transferências de energia e nutrientes de um ecossistema ao outro (COLLINS, 2010COLLINS, A. L.; et al. A preliminary investigation of the efficacy of riparian fencing schemes for reducing contributions from eroding channel banks to the siltation of salmonid spawning gravels across the south west UK. Journal of environmental management, v. 91, n. 6, p. 1341-1349, 2010. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0301479710000435. Acesso em: 12 mai. 2019. DOI: 10.1016/j.jenvman.2010.02.015.
https://www.sciencedirect.com/science/ar...
), sendo muito importante para a fauna aquática (CASTRO; MELO; POESTER, 2012CASTRO, D.; MELO, R.S.P.; POESTER, G.C. Práticas para restauração da mata ciliar. Porto Alegre : Catarse - Coletivo de Comunicação, 2012. Disponível em: http://www.onganama.org.br/pesquisas/Livros/Livro_Praticas_Restauracao_Mata_Ciliar.pdf. Acesso em 5 jun. 2019.
http://www.onganama.org.br/pesquisas/Liv...
). Nesse sentido, a vegetação ripária promove estabilidade térmica da água através da sombra (CASTRO; MELO; POESTER, 2012CASTRO, D.; MELO, R.S.P.; POESTER, G.C. Práticas para restauração da mata ciliar. Porto Alegre : Catarse - Coletivo de Comunicação, 2012. Disponível em: http://www.onganama.org.br/pesquisas/Livros/Livro_Praticas_Restauracao_Mata_Ciliar.pdf. Acesso em 5 jun. 2019.
http://www.onganama.org.br/pesquisas/Liv...
), a regulação do suprimento de matéria orgânica (TUNDISI; MATSUMURA-TUNDISI, 2010TUNDISI, J. G.; MATSUMURA-TUNDISI, T. M. Impactos potenciais das alterações do Código Florestal nos recursos hídricos. Biota Neotropica , v. 10, n. 4, 2010. Disponível em: https://www.scielo.br/j/bn/a/9NFHqXk7LTh7gjJVGcPF34r/abstract/?lang=pt. Acesso em: 10 ago. 2019. DOI: 10.1590/S1676-06032010000400010.
https://www.scielo.br/j/bn/a/9NFHqXk7LTh...
) e a regulação da disponibilidade de alimento e abrigo, sendo promotora da estruturação dos habitats (CASTRO; MELO; POESTER, 2012CASTRO, D.; MELO, R.S.P.; POESTER, G.C. Práticas para restauração da mata ciliar. Porto Alegre : Catarse - Coletivo de Comunicação, 2012. Disponível em: http://www.onganama.org.br/pesquisas/Livros/Livro_Praticas_Restauracao_Mata_Ciliar.pdf. Acesso em 5 jun. 2019.
http://www.onganama.org.br/pesquisas/Liv...
; VAN LOOY et al., 2013VAN LOOY, K. et al. Benefits of riparian forest for the aquatic ecosystem assessed at a large geographic scale. Knowledge and Management of Aquatic Ecosystems, n. 408, 2013. Disponível em: https://www.kmae-journal.org/articles/kmae/abs/2013/01/kmae120075/kmae120075.html. Acesso em: 13 de maio. 2019. DOI: 10.1051/kmae/2013041.
https://www.kmae-journal.org/articles/km...
).

Além disso, para a maioria dos agricultores (95,5%), a recomposição da vegetação ripária contribui para a conservação da fauna terrestre. Segundo eles, a vegetação ripária serve como refúgio e como uma importante zona de alimentação. A percepção dos agricultores corrobora com os trabalhos de Tundisi e Matsumura-Tundisi (2010TUNDISI, J. G.; MATSUMURA-TUNDISI, T. M. Impactos potenciais das alterações do Código Florestal nos recursos hídricos. Biota Neotropica , v. 10, n. 4, 2010. Disponível em: https://www.scielo.br/j/bn/a/9NFHqXk7LTh7gjJVGcPF34r/abstract/?lang=pt. Acesso em: 10 ago. 2019. DOI: 10.1590/S1676-06032010000400010.
https://www.scielo.br/j/bn/a/9NFHqXk7LTh...
) e Kuntschik et al. (2014KUNTSCHIK, D. P. et al. Matas Ciliares. 2 ed. São Paulo: SMA, 2014.), em que ambos afirmam que a vegetação ripária contribui como zona de reprodução e abrigo para a fauna e mantém as cadeias alimentares.

3.4 Principais ações para a recomposição da vegetação ripária

Segundo 83,88% dos agricultores, nas suas propriedades são realizadas ações voltadas à preservação da vegetação ripária. Em relação à realização de ações de preservação, há diferenças entre os agricultores que residem nos dois biomas (χ2= 24,1; df=1, p< 0,001), com destaque para os que residem na Mata Atlântica. Também a escolaridade é um fator de diferença (χ2= 16,1 df=1 p< 0,001), sendo que os agricultores que possuem maior nível de instrução são os que, na sua maioria, asseguram realizar ações de preservação da vegetação ripária em suas propriedades.

Apesar de a maioria dos agricultores afirmar que preserva a vegetação ripária, apenas 37,7% informam que realizam ações voltadas à recomposição/restauração dessas áreas. E aqueles que a realizam, citam como principais motivos: i) a conservação dos recursos hídricos e a manutenção dos serviços por eles prestados; ii) adequação da propriedade à Legislação Ambiental Vigente; iii) aumento da renda da propriedade rural. As motivações são diferentes entre os agricultores que residem nos dois biomas (χ2= 34; df=1, p<0,001) e entre aqueles que residem em MEU e MER (χ2= 5,8; df=1, p=0,015). São os agricultores, que residem na Mata Atlântica e em MEU, os que afirmam realizar mais processos de recomposição.

Dentre as principais práticas de recomposição da vegetação ripária, é citado o plantio de espécies arbóreas. Os agricultores desconhecem, ou não praticam outras técnicas de recomposição da vegetação ripária, como por exemplo, a implantação de meliponários, transposição de galharia, poleiros artificiais, dentre outros. Esse resultado evidencia, como citado anteriormente, que os agricultores dispõem de pouco conhecimento, ou carecem de assistência técnica sobre o assunto. Por meio de 220 citações (média de 3,23 citações por agricultor), foram mencionadas 70 espécies de plantas que, na percepção dos participantes do estudo, são adequadas à recomposição do ambiente ripário, com destaque para: o Pinheiro-Brasileiro, Cedro, Pitanga, Angico, Eucalipto e Uva-do-Japão. Destas, 46 espécies são nativas e 24 exóticas (Tabela 2).

Tabela 2
Principais espécies vegetais que, segundo os participantes da pesquisa, são adequadas à recomposição das áreas de vegetação ripária no Sul do Brasil, 2018

Dos agricultores que realizam a recomposição, por meio do plantio de espécies arbóreas, poucos conhecem espécies adequadas para o plantio em áreas de vegetação ripária e sua relação com a sucessão ecológica. Muitos agricultores citam espécies exóticas, ou então, aquelas que não são adaptadas às áreas suscetíveis a alagamentos. Nota-se que os agricultores não citam espécies adaptadas à força da correnteza, ou eventual submersão por enchentes ocasionais (espécies reófitas) como, por exemplo, o sarandi-amarelo (Terminalia australis), sarandi-mole (Cephalanthus glabratus), sarandi-vermelho (Phyllanthus sellowianus), sarandi-mata-olho (Pouteria salicifolia), os angiquinhos ou quebra-foices (Calliandra brevipes, C. parvifolia e C. tweediei) e salso-crioulo (Salix humboldtiana); espécies de áreas mais altas, sem influência direta da linha-d’água, como os ingazeiros (Inga vera e Inga marginata), os branquilhos (Sebastiania brasiliensis e Gymnanthes klotzschiana), o catiguá (Trichilia claussenii), o cincho (Sorocea bonplandii) e os aguaís (Chrysophyllum marginatum e C. gonocarpum), bem como espécies que se estendem para as planícies de inundação, formando uma floresta aluvial. Também foram pouco citadas, pelos participantes da pesquisa, a tucaneira (Citharexylum montevidense), açoita-cavalo (Luehea divaricata), araticuns (Rollinia emarginata e R. neosalicifolia), canela-do-brejo (Ocotea pulchella), além de diversas outras espécies da família Myrtaceae. Essas espécies são destacadas por Castro, Melo e Poester (2012CASTRO, D.; MELO, R.S.P.; POESTER, G.C. Práticas para restauração da mata ciliar. Porto Alegre : Catarse - Coletivo de Comunicação, 2012. Disponível em: http://www.onganama.org.br/pesquisas/Livros/Livro_Praticas_Restauracao_Mata_Ciliar.pdf. Acesso em 5 jun. 2019.
http://www.onganama.org.br/pesquisas/Liv...
).

Apenas 39,7% dos agricultores, que desenvolvem ações de recomposição da vegetação ripária, reconhecem a importância da adoção de critérios para a definição de espécies a serem utilizadas. Os critérios adotados são: i) contribuir com a sustentabilidade da propriedade rural, através da geração de renda; ii) produzir alimentos para o consumo familiar (frutos e pinhão); iii) alimentar a fauna terrestre e aquática.

Segundo 52,2% dos agricultores, devem ser escolhidas espécies nativas, que ocorrem na Região, para a recomposição das áreas de vegetação ripária. Para 23,3%, é essencial o auxílio de profissionais capacitados nesse campo, como biólogos, engenheiros florestais e/ou agrônomos. Porém, 20% dos agricultores acreditam que não é necessário o plantio de espécies para fazer a recuperação das áreas de vegetação ripária. Na opinião destes, basta abandonar, cercar a área a ser recuperada e esperar ocorrer a regeneração natural do local. Mesmo aqueles que não adotam estratégias para a recomposição de áreas de vegetação ripária, reconhecem a importância da manutenção e respeito à diversidade vegetal local, bem como do apoio de assessoria técnica especializada para o sucesso de programas de restauração ecológica.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os agricultores, que residem nas regiões do Pampa e da Mata Atlântica, abrangidos pela pesquisa, reconhecem a importância da vegetação ripária e da LPVN. Segundo eles, a legislação auxilia a regrar as ações da população e a manter os serviços ecossistêmicos essenciais como, por exemplo, a manutenção dos recursos hídricos e o controle da erosão. Porém, em relação às larguras das margens dos corpos-d’água estabelecidas pela legislação, não houve consenso entre os agricultores.

Os agricultores também afirmam que realizam ações para preservar a vegetação ripária em suas propriedades; entretanto, apenas alguns praticam a recomposição dessas áreas. A maioria daqueles que as recompõem, utiliza o plantio de espécies arbóreas, porém poucos conseguem citar espécies adequadas para esse fim.

Diante dos resultados, é possível concluir que são necessários programas de educação ambiental que discutam a importância das larguras de vegetação ripária de acordo com a capacidade de drenagem dos corpos-d’água e também com o fluxo genético de fauna e flora. Também se constata que é necessária a capacitação dos órgãos de assistência técnica a fim de auxiliarem os agricultores com a recomposição das áreas de vegetação ripária nas propriedades rurais.

Referências

  • Agradecimentos

    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Os autores agradecem à Capes/PROSUP pelo apoio financeiro e pela bolsa de Mestrado concedida à primeira autora; à URI Erechim, aos agricultores e entidades que contribuíram com a realização da pesquisa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    04 Mar 2020
  • Aceito
    13 Set 2021
  • Publicado
    23 Nov 2022
Universidade Federal de Santa Maria Av. Roraima, 1.000, 97105-900 Santa Maria RS Brasil, Tel. : (55 55)3220-8444 r.37, Fax: (55 55)3220-8444 r.22 - Santa Maria - RS - Brazil
E-mail: cienciaflorestal@ufsm.br