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RESPOSTAS INDÍGENAS À PANDEMIA: AÇÃO PÚBLICA EM CONTEXTOS DE EMERGÊNCIA

Indigenous responses to the pandemic: Public action in contexts of emergency

Respuestas indígenas a la pandemia: Acción pública en situaciones de emergencia

RESUMO

A política de saúde indígena no Brasil é composta de um ecossistema de organizações diversas que abarca desde órgãos governamentais até associações indígenas, indigenistas e religiosas. As diversidades regionais e étnicas, somadas às diferenças nas naturezas das parcerias, trazem desafios para a garantia dos direitos dos povos indígenas. O presente trabalho fundamenta-se em uma perspectiva multicêntrica da ação pública para compreender como essa rede de atores articulou respostas para os efeitos da pandemia de Covid-19 e do governo conservador de Jair Bolsonaro nas Terras Indígenas. Apresentamos dois estudos de caso baseados nas experiências de agentes e organizações voltados à saúde indígena nos municípios de São Paulo (SP) e São Gabriel da Cachoeira (AM). Os resultados apontam que as redes criadas entre agentes solidários às pautas indígenas foram o fator central para o enfrentamento das crises e funcionam como uma malha de proteção aos direitos das populações indígenas em contextos de retrocesso democrático. Ficaram patentes a importância e os desafios da manutenção de um diálogo intercultural com as comunidades indígenas e do comprometimento ético e político das organizações parceiras para a efetividade do modelo.

Palavras-chave:
sociedade civil; Estado; participação; saúde indígena; Covid-19

ABSTRACT

The indigenous health policy in Brazil is composed of an ecosystem of diverse organizations, including government agencies and indigenous, indigenist, and religious associations. Regional and ethnic diversities and the differences in the nature of the partnerships bring challenges to guaranteeing the rights of indigenous peoples. This paper adopts a multi-centric perspective of public action to understand how this network of actors articulated responses to the impacts of the COVID-19 pandemic and the conservative government of President Jair Bolsonaro on indigenous lands. We present two case studies based on the experiences of agents and organizations focused on indigenous health in the municipalities of São Paulo (SP) and São Gabriel da Cachoeira (AM), both in Brazil. The results indicate that the networks created among agents supporting indigenous agendas played a central role in confronting the crises and worked as a protective web for indigenous populations’ rights during periods of democratic regression. The study highlights the importance and challenges of maintaining an intercultural dialogue with indigenous communities and partner organizations’ ethical and political commitment to the effectiveness of this model of indigenous health policy.

Keywords:
civil society; State; participation; indigenous health; COVID-19

RESUMEN

La política de salud indígena en Brasil está compuesta por un ecosistema de organizaciones diversas, que van desde organismos gubernamentales hasta asociaciones indígenas, indigenistas y religiosas. Las diversidades regionales y étnicas, sumadas a las diferencias en la naturaleza de las alianzas, plantean desafíos a la garantía de los derechos de los pueblos indígenas. El presente trabajo parte de una perspectiva multicéntrica de la acción pública para entender cómo esta red de actores articuló respuestas a los efectos de la pandemia de COVID-19 y del gobierno conservador de Jair Bolsonaro en las tierras indígenas (TI). Presentamos dos estudios de caso basados en las experiencias de agentes y organizaciones centrados en la salud indígena en los municipios de São Paulo (SP) y São Gabriel da Cachoeira (AM). Los resultados indican que las redes creadas entre agentes solidarios con las agendas indígenas fueron el factor central para enfrentar las crisis y funcionan como una “red de protección” de los derechos de las poblaciones indígenas en contextos de regresión democrática. Se evidenciaron la importancia y los desafíos de mantener un diálogo intercultural con las comunidades indígenas y el compromiso ético y político de las organizaciones aliadas para que el modelo sea efectivo.

Palabras Clave:
sociedad civil; Estado; participación; salud indígena; COVID-19

INTRODUÇÃO

As vítimas, queimando de febre, tinham coceiras insuportáveis e sua pele se desfazia em pedaços. Elas não ficavam doentes por muito tempo, morriam logo, uma depois da outra. Não demorou para haver cadáveres por todos os lados na casa de Sina tha, tombados no chão ou encolhidos em suas redes. [...] Os espíritos xawarari da epidemia devoraram com voracidade um grande número de mulheres, velhos e crianças, bem como vários xamãs. [...] Assim nossos maiores foram dizimados pela primeira vez. Antes dessa epidemia, ainda eram muito numerosos. Hoje, restam poucos (Yanomami & Albert, 2019, p. 249-250Yanomami, D. K., & Albert, B. (2019). A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Companhia das Letras.).

Epidemias fazem parte da história dos povos originários desde o início da colonização. Se há relatos de epidemias avassaladoras desde os primeiros anos da invasão portuguesa, Aparecida Villaça (2020, p. 10)Villaça, A. (2020). Morte na floresta. Todavia. afirma que “as pestes continuaram, ao longo dos séculos, a submeter os indígenas aos mesmos tipos de sofrimento e perdas”. Assim, há que se pesar o caráter de novidade da pandemia vivenciada desde março de 2020. Não era desconhecido que consequências relativas à capacidade de resposta do governo afetariam os povos indígenas. Diversas organizações alertaram para a superposição de vulnerabilidades que seriam agravadas com a chegada do novo coronavírus aos territórios indígenas (ISA, 2021Instituto Socioambiental (ISA) (2021). Terra Indígena Jaraguá. Terra indígenas no Brasil. ISA. https://terrasindigenas.org.br/pt-br/terras-indigenas/3707
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) e denunciaram que o governo sob a batuta de Jair Bolsonaro tomou atitudes anti-indígenas (Apib, 2020Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) (2020). Nossa luta é pela vida: Covid-19 e povos indígenas – o enfrentamento das violências durante a pandemia. Apib. https://emergenciaindigena.apiboficial.org/files/2020/12/APIB_nossalutaepelavida_v7PT.pdf
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; ISA, 2023Instituto Socioambiental (ISA) (2023). Covid-19 e os povos indígenas. ISA. https://covid19.socioambiental.org/
https://covid19.socioambiental.org/...
).

Estudos já apontaram que, do ponto de vista da gestão da saúde e das relações interfederativas, o governo federal não apenas foi omisso, mas agiu ativamente contra a construção de respostas tempestivas à situação de emergência (Abrucio et al., 2020Abrucio, F. L., Grin, E. J., Franzese, C., Segatto, C. I., & Couto, C. G. (2020). Combate à Covid-19 sob o federalismo bolsonarista: um caso de descoordenação intergovernamental. Revista de Administração Pública, 54(4), 663-677. https://doi.org/10.1590/0034-761220200354
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; Fróes Couto et al., 2022Fróes Couto, F., Farias Alves Correia, G., & Carrieri, A. P. (2022). O Anti Líder: Da liderança discursiva presidencial à descoordenação federativa para o combate à Covid-19. Cadernos Gestão Pública e Cidadania, 27(87), 1-19. https://doi.org/10.12660/cgpc.v27n87.83879
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; Oliveira et al., 2021Oliveira, J. A. P., Barabashev, A. G., Tapscott, C., Thompson, L. I., & Qian, H. (2021). The role of intergovernmental relations in response to a wicked problem: an analysis of the COVID-19 crisis in the BRICS countries. Revista de Administração Pública, 55(1), 243-260. https://doi.org/10.1590/0034-761220200501
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; Paiva et al., 2022Paiva, C. C., Torrezan, R. G. A., & Paiva, S. C. F. (2022). O federalismo cooperativo em obstrução: fissuras intergovernamentais da pandemia. Cadernos Gestão Pública e Cidadania, 27(87), 1-18. https://doi.org/10.12660/cgpc.v27n87.83857
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; Simoni Junior et al., 2022Simoni Junior, S., Lazzari, E., & Fimiani, H. (2022). Federalismo fiscal na pandemia da Covid-19: do federalismo cooperativo ao bolsonarista. Cadernos Gestão Pública e Cidadania, 27(87), 1-20. https://doi.org/10.12660/cgpc.v27n87.83872
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). Uma série de outras pesquisas publicadas em periódicos nacionais da área de administração pública revelaram, por meio de diferentes matizes, como a pandemia aprofundou desigualdades raciais (Oliveira et al., 2020Oliveira, R. G., Cunha, A. P., Gadelha, A. G. S., Carpio, C. G., Oliveira, R. B., Corrêa, R. M. (2020). Desigualdades raciais e a morte como horizonte: considerações sobre a Covid-19 e o racismo estrutural. Cadernos de Saúde Pública, 36(9), e00150120. https://doi.org/10.1590/0102-311X00150120
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) e incidiu sobre comunidades vulneráveis (Rodrigues et al., 2020Rodrigues, D., Albertoni, L., & Mendonça, S. B. M. (2020). Antes sós do que mal acompanhados: contato e contágio com povos indígenas isolados e de recente contato no Brasil e desafios para sua proteção e assistência à saúde. Saúde e Sociedade, 29(3), e200348. https://doi.org/10.1590/S0104-12902020200348
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; Souza & Castro-Silva, 2022Souza, J. B., Castro-Silva, C. R. (2022). Pandemia da Covid-19 e o aumento da violência doméstica em território vulnerável: uma resposta de base comunitária. Saúde e Sociedade, 31(4), e220227pt. https://doi.org/10.1590/S0104-12902022220227pt
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), refugiados (Martuscelli, 2020Martuscelli, P. N. (2020). How are refugees affected by Brazilian responses to COVID-19? Revista de Administração Pública, 54(5), 1446-1457. https://doi.org/10.1590/0034-761220200516x
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) e burocratas de nível de rua (Lima-Silva et al., 2020Lima-Silva, F., Sandim, T. L., Magri, G. M., & Lotta, G. (2020). Street-level bureaucracy in the pandemic: the perception of frontline social workers on policy implementation. Revista de Administração Pública, 54(5), 1458-1471. https://doi.org/10.1590/0034-761220200529x
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). Nessa direção, nota-se que os estudos que relacionam a pandemia com os impactos nos povos originários são poucos e foram publicados em periódicos das áreas de saúde (Apinaje et al., 2022Apinaje, S. B. P. C., Apinaje, J. K. R., Horta, A., Rocha, W. O., & Morais Neto, O. R. (2022). Metodologias de vida, pesquisa e luta: a experiência panh . Saúde e Sociedade, 31(4), e220490pt. https://doi.org/10.1590/S0104-12902022220490pt
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; Olivar et al., 2022Olivar, J. M. N., Costa, E., Morais, D. M., Fontes, F. B., & Marques, B. (2022). Tecer outro Cesto de Conhecimentos? Pesquisa colaborativa e remota na pandemia de Covid-19. Saúde e Sociedade, 31(4), e220452pt. https://doi.org/10.1590/S0104-12902022220452pt
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; Pimentel et al., 2022Pimentel, S. K., Gomes, A. O., Pavelic, N. L. B., Andrade, L. E. A., Julião, C. G., Lima, P. C., Santos, R. R., & Gomes, T. D. (2022). Do monitoramento autônomo à pesquisa colaborativa virtual: parceria com o movimento indígena do Nordeste durante a pandemia da covid-19 como apoio ao controle social. Saúde e Sociedade, 31(4), e220437pt. https://doi.org/10.1590/S0104-12902022220437pt
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; Rodrigues, D. et al., 2020Rodrigues, D., Albertoni, L., & Mendonça, S. B. M. (2020). Antes sós do que mal acompanhados: contato e contágio com povos indígenas isolados e de recente contato no Brasil e desafios para sua proteção e assistência à saúde. Saúde e Sociedade, 29(3), e200348. https://doi.org/10.1590/S0104-12902020200348
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; Santos et al., 2020Santos, R. V., Pontes, A. L., & Coimbra Jr., C. E. A. (2020). A “total social fact”: COVID-19 and indigenous people in Brazil. Cadernos de Saúde Pública, 36(10), e00268220. https://doi.org/10.1590/0102-311X00268220
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). Há uma lacuna de pesquisas originárias do campo de políticas públicas que tragam contribuições teóricas, metodológicas e empíricas para o problema da pandemia de Covid-19 e os ataques e as omissões governamentais sobre povos originários no Brasil.

É sobre esse gap que o presente artigo procura contribuir ao admitir que, no campo das políticas públicas, temos instrumental teórico e analítico produtivo para avançar no conhecimento dessa problemática. Ao revés de uma abordagem estadocêntrica, as perspectivas multicêntricas (Secchi, 2017Secchi, L. (2017). Políticas públicas: conceitos, esquemas de análise, casos práticos (2. ed.). Cengage Learning.) permitem entender a importância das interfaces entre diferentes atores da sociedade civil – entre eles próprios e entre eles e diferentes esferas do Estado –, a fim de investigar limites e potências dessas relações em contextos emergenciais. Devem-se levar em conta as possibilidades de resposta à crise mobilizadas pelo público em arenas também públicas (Cefaï, 2017Cefaï, D. (2017). Público, problemas públicos, arenas públicas…: o que nos ensina o pragmatismo (parte 1). Novos Estudos Cebrap, 36(1), 187-213. https://doi.org/10.25091/S0101-3300201700010009
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; Spink, 2016Spink, P. K. (2016). Assuntos públicos e a abordagem das linguagens de ação pública. Cadernos Gestão Pública e Cidadania, 21(70), 160-175. https://doi.org/10.12660/cgpc.v21n70.64366
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) com enfoque analítico “multicêntrico e multiatores, que considera que o escopo do governar vai muito além da ação do governo” (Andion, 2020, p. 938Andion, C. (2020). Atuação da sociedade civil no enfrentamento dos efeitos da Covid-19 no Brasil. Revista de Administração Pública, 54(4), 936-951. https://doi.org/10.1590/0034-761220200199
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). Propomos que, para investigar uma crise humanitária composta de uma ameaça sanitária e de ameaças políticas, é preciso avançar em direção à rede de agentes governamentais e não governamentais que se debruçaram sobre o problema público da saúde indígena na pandemia.

Com base no questionamento de como organizações indígenas e indigenistas articularam respostas para os efeitos da pandemia de Covid-19 nas Terras Indígenas (TIs), realizamos um estudo qualitativo no ano de 2021 das estratégias de saúde em duas TIs, uma no município de São Paulo (SP) e outra no município de São Gabriel da Cachoeira (AM). A extrema disparidade entre os casos em termos étnicos, ambientais, institucionais, históricos e de governança é produtiva para traçar um quadro, ainda que reduzido, da complexidade da gestão de saúde indígena no Brasil. A despeito das diferenças, no entanto, os resultados da pesquisa mostram que o fortalecimento da rede de parcerias, institucionalizadas ou informais, foi fundamental para o enfrentamento das crises e funciona como uma malha de proteção aos direitos das populações indígenas em contextos de retrocesso democrático.

As parcerias, contudo, não foram construídas sem conflitos nem de forma homogênea. Por um lado, permitem maior abertura da administração pública às respostas criadas pela sociedade civil em benefício do público. Por outro, as diferenças de tratamento e as dificuldades de controle das atividades das entidades parceiras – que na questão indígena envolvem desde associações religiosas a movimentos dos próprios povos – exigem um questionamento sobre as possibilidades de manutenção e expansão desse modelo. Em vista disso, estudos já apontaram desafios no subsistema de saúde indígena, tais como a insuficiência de recursos, a rotatividade dos profissionais de saúde e a ausência de um diálogo intercultural efetivo, peças-chave para a construção de parcerias construtivas (Ferreira, 2015Ferreira, L. O. (2015). Interculturalidade e saúde indígena no contexto das políticas públicas brasileiras. In E. J. Langdon & M. D. Cardoso (eds.), Saúde Indígena: políticas comparadas na América Latina (pp. 217-247). Editora da UFSC.; Garnelo & Sampaio, 2003Garnelo, L., & Sampaio, S. (2003). Bases sócio-culturais do controle social em saúde indígena: problemas e questões na Região Norte do Brasil. Cadernos de Saúde Pública, 19(1), 311-317. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2003000100035
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). Os casos discutidos neste artigo corroboram essa afirmação.

Em seguida a esta introdução, abordamos estudos da perspectiva multicêntrica no campo de políticas públicas relacionando-os com pesquisas focadas na saúde indígena que, como se verá, apresentam íntima aproximação com o que já foi escrito sobre ação pública. Na terceira seção trazemos a abordagem metodológica do estudo, explicitando os critérios para a seleção dos casos e as técnicas de investigação e análise. Na seção de resultados, discutimos os achados empíricos acerca das respostas criadas para as TIs estudadas em São Paulo e em São Gabriel da Cachoeira. Em uma seção de discussão, pontuamos suas diferenças e pontos de convergência à luz do debate multicêntrico das políticas públicas para que, nas considerações finais, sejam traçadas algumas lições aprendidas com esses estudos de casos.

AÇÃO PÚBLICA E INTERCULTURALIDADE

Como primeiro movimento analítico, devemos aproximar os estudos sobre a saúde indígena daqueles dedicados à compreensão dos processos envolvidos na produção de políticas públicas. Uma chave interessante para pensar essa convergência é a da ação pública. Esta é desenvolvida como forma de contrapor visadas às políticas públicas que concediam primazia e protagonismo para as ações ou inações do Estado, ignorando relações multifacetadas com outros agentes. Spink e Burgos (2019)Spink, P. K., & Burgos, F. (2019). Os limites da abordagem de implementação: vulnerabilidade urbana a partir do outro lado da rua. In G. Lotta (ed.), Teoria e análises sobre implementação de políticas públicas no Brasil (pp. 99-126). Enap. alertam para o perigo de imaginar que é o governo o único agente capaz de agir no âmbito das políticas públicas: “Há, ao contrário, uma variedade de linguagens de ação. [...] Às vezes essas diferentes linguagens cooperam; às vezes entram em conflito e em outras, simplesmente se ignoram” (Spink & Burgos, 2019, p. 100Spink, P. K., & Burgos, F. (2019). Os limites da abordagem de implementação: vulnerabilidade urbana a partir do outro lado da rua. In G. Lotta (ed.), Teoria e análises sobre implementação de políticas públicas no Brasil (pp. 99-126). Enap.). Assim, Estado não é sinônimo de assuntos públicos ou de ações no público e para o público.

Em um paradigma multicêntrico (Secchi, 2017Secchi, L. (2017). Políticas públicas: conceitos, esquemas de análise, casos práticos (2. ed.). Cengage Learning.), Abreu (2014)Abreu, K. D. R. (2014). A implementação do PNAE em municípios de pequeno porte: implicações práticas e teóricas. [Dissertação de Mestrado em Administração Pública e Governo], Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo. coloca que a abordagem da ação pública permite ver três movimentos entre diferentes agentes: “A ação estatal, o público pressionando o Estado e o público agindo diretamente para o público” (Abreu, 2014, p. 31Abreu, K. D. R. (2014). A implementação do PNAE em municípios de pequeno porte: implicações práticas e teóricas. [Dissertação de Mestrado em Administração Pública e Governo], Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo.). A noção de ação pública, então, cumpre o papel de oferecer um mecanismo analítico para dar conta da multiplicidade de relações formais e informais que começam, terminam e se transformam sem seguir uma norma homogênea, mas que são responsáveis pela construção de ações voltadas para o público, sendo elas ligadas a políticas públicas governamentais ou não. É uma concepção que torna a análise mais complexa, afinal o agir publicamente para e pelo público pode emergir de qualquer lugar e em diferentes formatos.

Em direção às contribuições de Cefaï (2017)Cefaï, D. (2017). Público, problemas públicos, arenas públicas…: o que nos ensina o pragmatismo (parte 1). Novos Estudos Cebrap, 36(1), 187-213. https://doi.org/10.25091/S0101-3300201700010009
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, devemos entender que grupos inquietos se mobilizam e se organizam para definir um problema com base em suas próprias experiências, e essa ação orientada à solução de situações entendidas como problemáticas se dá precisamente na arena pública, entendida como “uma arena social cujos atores visam bens públicos, referemse ao interesse público, definem seus problemas como públicos e sentem, agem e falam em consequência disso” (Cefaï, 2017, p. 200Cefaï, D. (2017). Público, problemas públicos, arenas públicas…: o que nos ensina o pragmatismo (parte 1). Novos Estudos Cebrap, 36(1), 187-213. https://doi.org/10.25091/S0101-3300201700010009
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). O ponto de partida, então, é a mobilização que constitui uma arena pública e formula um problema pelo qual se deve lutar. Dessa forma, as múltiplas performatizações do público pelo Estado e por atores da sociedade civil estão intimamente relacionadas, não de maneira homogeneizante, mas por meio de diversos “repertórios de interação” (Abers, Serafim & Tatagiba, 2014Abers, R., Serafim, L., & Tatagiba, L.. (2014). Repertórios de interação estado-sociedade em um estado heterogêneo: a experiência na Era Lula. Dados, 57(2), 325–357. https://doi.org/10.1590/0011-5258201411.
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). Trata-se de perceber, portanto, que as ações do Estado e da sociedade civil se dão de fronteiras mais imprecisas e ambíguas do que comumente imaginamos.

O problema público da saúde indígena no Brasil é um rico exemplo de situações nas quais o Estado e grupos sociais diversos entram em conflito e em convergência, bem como em relações cuja natureza se altera no tempo. A questão indígena é objeto de políticas públicas no Brasil desde a criação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), em 1910. Naquele momento, o “problema público” a ser enfrentado era a ocupação de uma extensa área do território nacional por grupos que eram entendidos como distantes da civilização e que, portanto, careciam da tutela do Estado (Souza Lima, 2015Souza Lima, A. C. (2015). Sobre tutela e participação: povos indígenas e formas de governo no Brasil, séculos XX/XXI. Mana: Estudos de Antropologia Social, 21(2), 425-457. https://doi.org/10.1590/0104-93132015v21n2p425
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). As políticas públicas voltadas aos indígenas visavam garantir a sedentarização e submissão jurídica desses sujeitos.

A criação do SPI foi fortemente influenciada pela ideia da “incapacidade dos índios”, razão pela qual eles deviam estar sob a “tutela” do Estado (Gersem dos Santos, 2006Gersem dos Santos, L. (2006). O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; Nacional, Laced/Museu. Coleção Educação para Todos.). Assim, a função do órgão era prover saúde, educação e subsistência àqueles considerados incapazes de participar plenamente da comunidade política, além de integrá-los à sociedade civilizada. Era recorrente a ideia de que as sociedades indígenas seriam um objeto transitório da atenção das políticas públicas: ou seriam logo extintas fisicamente, ou sobreviveriam de forma indiferenciada em relação à sociedade brasileira como um todo, dispensando, assim, a atuação indigenista (Garnelo, 2012Garnelo, L. (2012). Política de saúde indígena no Brasil: notas sobre as tendências atuais do processo de implantação do subsistema de atenção à saúde. In L. Garnelo & A. L. Pontes (eds.), Saúde Indígena: uma introdução ao tema (pp. 18-58). MEC-Secadi.).

Em 1967, o SPI foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai), no entanto não houve mudanças significativas na política tutelar, e o novo órgão indigenista continuou centralizando toda a ação do governo (Gersem dos Santos, 2006Gersem dos Santos, L. (2006). O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; Nacional, Laced/Museu. Coleção Educação para Todos.). Foi apenas com os resultados do processo de redemocratização, a partir da década de 1980, que os termos do problema público da “questão indígena” se inverteram para levar em consideração os direitos dessas populações (Gersem dos Santos, 2006Gersem dos Santos, L. (2006). O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; Nacional, Laced/Museu. Coleção Educação para Todos.). A Constituição Federal trouxe o princípio da participação social como elemento-chave e marcou o início de uma nova etapa do movimento indígena e da sua relação com o Estado (Baniwa, 2007Baniwa, G. L. (2007). Movimentos e políticas indígenas no Brasil contemporâneo. Tellus, 7(12), 127-146. https://doi.org/10.20435/tellus.v0i12.136
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). O texto constitucional deu fim ao regime tutelar, admitiu o direito à autodeterminação dos povos (Castro, 2018Castro, E. B. V. (2018). A autodeterminação indígena como valor. Anuário Antropológico, 6(1), 233-242. https://periodicos.unb.br/index.php/anuarioantropologico/article/view/6216
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) e reconheceu as organizações dos povos indígenas e os seus direitos territoriais (Gersem dos Santos, 2006Gersem dos Santos, L. (2006). O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; Nacional, Laced/Museu. Coleção Educação para Todos.; Souza Lima, 2015Souza Lima, A. C. (2015). Sobre tutela e participação: povos indígenas e formas de governo no Brasil, séculos XX/XXI. Mana: Estudos de Antropologia Social, 21(2), 425-457. https://doi.org/10.1590/0104-93132015v21n2p425
https://doi.org/10.1590/0104-93132015v21...
).

Nesse contexto, a hegemonia da Funai foi rompida, e as políticas voltadas aos povos indígenas passaram a ser conduzidas também por ministérios e autarquias (Baniwa, 2007Baniwa, G. L. (2007). Movimentos e políticas indígenas no Brasil contemporâneo. Tellus, 7(12), 127-146. https://doi.org/10.20435/tellus.v0i12.136
https://doi.org/10.20435/tellus.v0i12.13...
; Souza Lima, 2015Souza Lima, A. C. (2015). Sobre tutela e participação: povos indígenas e formas de governo no Brasil, séculos XX/XXI. Mana: Estudos de Antropologia Social, 21(2), 425-457. https://doi.org/10.1590/0104-93132015v21n2p425
https://doi.org/10.1590/0104-93132015v21...
). Os povos indígenas foram inseridos no bojo das reformas no Sistema Nacional de Saúde com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), mas apenas nove anos depois da criação do SUS, em 1999, foi estabelecida uma política de saúde específica às populações indígenas (Cardoso, 2015Cardoso, M. D. (2015). Políticas de saúde indígena no Brasil: do modelo assistencial à representação política. In E. J. Langdon & M. D. Cardoso (eds.), Saúde indígena: políticas comparadas na América Latina (pp. 83-107). Editora da UFSC.; Ferreira, 2015Ferreira, L. O. (2015). Interculturalidade e saúde indígena no contexto das políticas públicas brasileiras. In E. J. Langdon & M. D. Cardoso (eds.), Saúde Indígena: políticas comparadas na América Latina (pp. 217-247). Editora da UFSC.. A Lei Arouca consolidou o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena e os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) como forma de organização de serviços em territórios indígenas. Nesse mesmo ano, foi regulamentada a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI), delegando à Fundação Nacional de Saúde (Funasa) a responsabilidade por executá-la (Ferreira, 2015Ferreira, L. O. (2015). Interculturalidade e saúde indígena no contexto das políticas públicas brasileiras. In E. J. Langdon & M. D. Cardoso (eds.), Saúde Indígena: políticas comparadas na América Latina (pp. 217-247). Editora da UFSC.).

O objetivo da PNASPI era “garantir aos povos indígenas o acesso integral à saúde, de acordo com os princípios e diretrizes do SUS, contemplando a diversidade social, cultural, geográfica e política [...] reconhecendo a eficácia de sua medicina e o direito desses povos à sua cultura” (Brasil, 2002, p. 13Brasil. Ministério da Saúde (2002). Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (2ª ed.). Ministério da Saúde. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_saude_indigena.pdf
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). Os DSEIs consistem em uma rede interconectada de serviços de saúde capaz de oferecer cuidados de atenção primária adequados às necessidades sanitárias específicas de cada população (Cardoso, 2015Cardoso, M. D. (2015). Políticas de saúde indígena no Brasil: do modelo assistencial à representação política. In E. J. Langdon & M. D. Cardoso (eds.), Saúde indígena: políticas comparadas na América Latina (pp. 83-107). Editora da UFSC.; Garnelo, 2012Garnelo, L. (2012). Política de saúde indígena no Brasil: notas sobre as tendências atuais do processo de implantação do subsistema de atenção à saúde. In L. Garnelo & A. L. Pontes (eds.), Saúde Indígena: uma introdução ao tema (pp. 18-58). MEC-Secadi.). A distribuição dos distritos sanitários buscou obedecer às características culturais, à localização das terras indígenas e aos critérios demográficos (Garnelo, 2012Garnelo, L. (2012). Política de saúde indígena no Brasil: notas sobre as tendências atuais do processo de implantação do subsistema de atenção à saúde. In L. Garnelo & A. L. Pontes (eds.), Saúde Indígena: uma introdução ao tema (pp. 18-58). MEC-Secadi.) e prevê a existência de unidades básicas de saúde nas aldeias ou em polos-base. Conforme Cardoso et al. (2007)Cardoso, A. M., Santos, R. V., & Coimbra Jr., C. E. (2007). Políticas públicas em saúde para os povos indígenas. In D. C. Barros, D. O. Silva & S. Â. Gugelmin (eds.), Vigilância alimentar e nutricional para a saúde Indígena (pp. 75-95). Fiocruz. https://doi.org/10.7476/9788575415870
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, a insuficiência de recursos humanos apresentouse como um dos maiores obstáculos no início do PNASPI. Uma vez que a Funasa não dispunha de pessoal para atuar nos DSEIs, a alternativa encontrada foi a terceirização dos serviços, transferindo total ou parcialmente as suas responsabilidades para a esfera privada ou para outros entes federados (Garnelo & Sampaio, 2003Garnelo, L., & Sampaio, S. (2003). Bases sócio-culturais do controle social em saúde indígena: problemas e questões na Região Norte do Brasil. Cadernos de Saúde Pública, 19(1), 311-317. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2003000100035
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; Gersem dos Santos, 2006Gersem dos Santos, L. (2006). O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; Nacional, Laced/Museu. Coleção Educação para Todos.).

Somado às complexidades do formato de gestão, Pontes et al. (2015)Pontes, A. L. M., Rego, S., & Garnelo, L. (2015). O modelo de atenção diferenciada nos Distritos sanitários especiais indígenas: reflexões a partir do Alto Rio Negro/AM, Brasil. Ciência e Saúde Coletiva, 20(10), 3199-3210. https://doi.org/10.1590/1413-812320152010.18292014
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identificam o imperativo de “adequar a prestação de serviços à variabilidade das culturas indígenas, prevendo a inclusão de racionalidades médicas diversificadas” (Pontes et al., 2015, p. 3200Pontes, A. L. M., Rego, S., & Garnelo, L. (2015). O modelo de atenção diferenciada nos Distritos sanitários especiais indígenas: reflexões a partir do Alto Rio Negro/AM, Brasil. Ciência e Saúde Coletiva, 20(10), 3199-3210. https://doi.org/10.1590/1413-812320152010.18292014
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) como a diretriz básica do PNASPI. Os autores ainda caracterizam seus princípios como a consideração das especificidades culturais, dos sistemas de representações e da participação de lideranças e organizações indígenas na formulação e execução da política de saúde. Nesses termos, a oferta de uma atenção diferenciada deve significar “colocar em interação diferentes visões de mundo em disputa” (Pontes et al., 2015, p. 3202Pontes, A. L. M., Rego, S., & Garnelo, L. (2015). O modelo de atenção diferenciada nos Distritos sanitários especiais indígenas: reflexões a partir do Alto Rio Negro/AM, Brasil. Ciência e Saúde Coletiva, 20(10), 3199-3210. https://doi.org/10.1590/1413-812320152010.18292014
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).

Assim, no campo da saúde indígena, o conceito de interculturalidade caracteriza as relações e os processos comunicativos estabelecidos no contato entre as diferentes culturas – ocidental e indígena (Ferreira, 2015Ferreira, L. O. (2015). Interculturalidade e saúde indígena no contexto das políticas públicas brasileiras. In E. J. Langdon & M. D. Cardoso (eds.), Saúde Indígena: políticas comparadas na América Latina (pp. 217-247). Editora da UFSC.). A intermedicalidade, forma então assumida pela interculturalidade no campo da saúde, reconhece os povos indígenas como agentes de mudança, na medida em que são articuladores dos sentidos e práticas de saúde provenientes de diferentes culturas. Desse modo, possibilita a esses povos a apropriação de aspectos do sistema oficial de saúde com o qual interagem, atribuindo-lhes novas funções mediante sua incorporação aos seus próprios universos socioculturais.

Na prática, a atenção diferenciada e o diálogo intercultural nas políticas de saúde não foram plenamente promovidos, com graves efeitos sobre os indicadores de saúde da população indígena (Cardoso, 2015Cardoso, M. D. (2015). Políticas de saúde indígena no Brasil: do modelo assistencial à representação política. In E. J. Langdon & M. D. Cardoso (eds.), Saúde indígena: políticas comparadas na América Latina (pp. 83-107). Editora da UFSC.). As configurações interculturais, assumidas na realidade brasileira das políticas públicas de saúde enquanto mediação cultural, são marcadas por singelas formas de violência, desigualdades de forças e assimetrias de poder, instituídas por intermédio das negociações de significados estabelecidos entre os distintos agentes sociais em interação (Ferreira, 2015Ferreira, L. O. (2015). Interculturalidade e saúde indígena no contexto das políticas públicas brasileiras. In E. J. Langdon & M. D. Cardoso (eds.), Saúde Indígena: políticas comparadas na América Latina (pp. 217-247). Editora da UFSC.). O campo da saúde indígena é constantemente referenciado como zonas de contato, onde ocorre o encontro intermédico e no qual as medicinas tradicionais indígenas assumem o caráter de códigos mediadores híbridos, utilizados para facilitar a comunicação entre os povos indígenas e os serviços de saúde (Ferreira, 2015Ferreira, L. O. (2015). Interculturalidade e saúde indígena no contexto das políticas públicas brasileiras. In E. J. Langdon & M. D. Cardoso (eds.), Saúde Indígena: políticas comparadas na América Latina (pp. 217-247). Editora da UFSC.; Foller, 2004Foller, M. A. J. (2004). Intermedicalidade: a zona de contato criada por povos indígenas e profissionais de saúde. In: E. J. Langdon & L. Garnelo (eds.), Saúde dos povos indígenas: reflexões sobre antropologia participativa (pp. 129-148). Contracapa; ABA.).

Desse modo, o campo das políticas públicas voltadas aos povos originários é uma arena pública complexa. Mais do que apenas uma ação ou inação do Estado, essa arena constitui-se de uma complexa rede de relações entre entidades mais ou menos organizadas de diferentes etnias e regiões, associações religiosas, organizações internacionais, grupos de ativistas indigenistas e governos de todas as esferas da federação.

Admitindo o potencial construtivo da ação pública, quando o público se une em volta de um problema público tanto em contextos de crise sanitária (Alves & Costa, 2020Alves, M. A., & Costa, M. (2020). Colaboração entre governos e organizações da sociedade civil em resposta a situações de emergência. Revista de Administração Pública, 54(4), 923-935. https://doi.org/10.1590/0034-761220200168
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) quanto em conjunturas de retrocessos democráticos (Borges, 2020Borges, Z. (2020). Formas emergentes de ação coletiva: limites e oportunidades de ação pública e democracia direta. In J. B. Torruella, S. Martins & C. Nebot (eds.), Uma nova democracia para o século XXI? (pp. 174-186). Martins.), podemos analisar as estratégias criadas ao longo da pandemia de Covid-19 em TIs. Trata-se, portanto, de compreender a complexa rede na qual se baseia a saúde indígena no Brasil: se a parceria foi o modelo encontrado no fim da década de 1990 para a concretização do Subsistema de Saúde Indígena, devemos nos perguntar quais fatores trazem melhores resultados no que se refere à garantia dos direitos dos povos originários.

METODOLOGIA

A pesquisa foi balizada por dois estudos de caso qualitativos: respostas à pandemia nas TIs do Jaraguá, na zona norte do município de São Paulo, e do Alto Rio Negro, município de São Gabriel da Cachoeira. Com base em Stake (2005)Stake, R. E. (2005). Qualitative Case Studies. In N. K. Denzin & Y. S. Lincoln (Eds.), The Sage handbook of qualitative research (pp. 443–466). Sage Publications Ltd., entendemos ambos os casos como instrumentais por permitirem produzir resultados que vão além da realidade examinada, facilitando a compreensão de uma questão teórica mais ampla por meio da investigação de um contexto empírico particular. Foram estabelecidos alguns critérios para selecionar os casos, como se verá adiante.

Relevância

O primeiro passo foi a seleção de contextos relevantes no Brasil. Por meio da sistematização de informações referentes às respostas à pandemia por organizações ligadas aos povos originários num âmbito territorial abrangente, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e o Instituto Socioambiental (ISA), identificamos as dez TIs mais vulneráveis à pandemia (Figura 1).

Figura 1
Terras Indígenas (TIs) mais vulneráveis à pandemia de Covid-19

Também nos interessavam casos que tivessem articulado uma resposta eficiente à pandemia por meio de alianças interinstitucionais. As TIs Jaraguá e Alto Rio Negro foram consenso em entrevistas exploratórias e relatórios das organizações indígenas e indigenistas. O município de São Paulo contabilizou apenas quatro mortes de indígenas por Covid-19 (entre os nove do estado). Em São Gabriel da Cachoeira foram contabilizados dez óbitos, das 284 vítimas no estado do Amazonas (Apib, 2023Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) (2023). Dados Covid 19: Emergência Indígena. Apib. https://emergenciaindigena.apiboficial.org/dados_covid19/
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).

Contextos territoriais diversos

Por mais que a questão indígena seja frequentemente tratada de forma indiscriminada, o avanço dessa agenda depende da percepção das idiossincrasias territoriais. A diversidade é garantida à medida que os casos estão localizados em regiões diferentes, com contextos históricos e atores variados, conforme Tabela 1.

Tabela 1
Caracterização dos casos

Acessibilidade

A imersão profunda em outras realidades possui limitações operacionais, técnicas e financeiras para a ampliação da amostra de casos (Fernandes, 2002Fernandes, A. S. A. (2002). Path dependency e os estudos históricos comparados. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, (53), 79-102. https://bibanpocs.emnuvens.com.br/revista/article/view/246
https://bibanpocs.emnuvens.com.br/revist...
; Mahoney, 2003Mahoney, J. (2003). Long-run development and the legacy of colonialism in Spanish America. American Journal of Sociology, 109(1), 50-106. https://doi.org/10.1086/378454
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). É importante considerar que a pesquisa foi desenvolvida durante a pandemia de Covid-19, restringindo o acesso dos pesquisadores às TIs. Por outro lado, a interlocução direta com atores envolvidos foi pilar fundamental para a análise, colocando-se ênfase nos métodos de entrevista e na busca por interlocutores com disponibilidade de internet e acesso a ela.

Por fim, Desmond (2012, p. 96)Desmond, M. (2012). Eviction and the reproduction of urban poverty. American Journal of Sociology, 118(1), 88-133. https://doi.org/10.1086/666082
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reconhece que “ganhar entrada está entre os aspectos mais difíceis e frustrantes do trabalho de campo”. Essa aceitação não é concedida de imediato no início do trabalho de campo. Trata-se de um processo contínuo, construído numa base regular e de confiança. Assim, foi essencial recorrer à rede de contatos dos pesquisadores que, por conta de trabalhos prévios, já tinham relações com atores e organizações das regiões escolhidas.

Por fim, Desmond (2012, p. 96)Desmond, M. (2012). Eviction and the reproduction of urban poverty. American Journal of Sociology, 118(1), 88-133. https://doi.org/10.1086/666082
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reconhece que “ganhar entrada está entre os aspectos mais difíceis e frustrantes do trabalho de campo”. Essa aceitação não é concedida de imediato no início do trabalho de campo. Trata-se de um processo contínuo, construído numa base regular e de confiança. Assim, foi essencial recorrer à rede de contatos dos pesquisadores que, por conta de trabalhos prévios, já tinham relações com atores e organizações das regiões escolhidas. contribui para entender a singularidade de cada território e para a identificação de características comuns do fenômeno. Assim, analisar os casos das TIs Jaraguá e Alto Rio Negro permite compreender de que forma as semelhanças entre as comunidades (alta vulnerabilidade), bem como suas respectivas singularidades (territoriais, socioculturais, organização e articulação com o poder público e organizações indigenistas), interferem e se manifestam em suas respostas à pandemia.

As informações foram coletadas por meio de entrevistas semiestruturadas com profissionais da saúde, gerentes de equipamentos e membros de organizações indígenas e indigenistas atuantes na política de atenção à saúde indígena nos territórios focalizados. Todas as entrevistas foram realizadas entre fevereiro e setembro de 2021, de modo remoto. Cada entrevista proporcionou uma corrente de novos contatos, de forma que a lista de entrevistados chegou a 12 pessoas, nove diretamente envolvidas na gestão de equipamentos públicos ou de organizações indigenistas e três estudiosas da questão da saúde indígena no Brasil, conforme a Tabela 2. A análise foi conduzida com base na metodologia reflexiva proposta por Alvesson e Skoldberg (2000)Alvesson, M., & Skoldberg, K. (2000). Reflexive methodology: new vistas for qualitative research. Sage., que consiste em analisar de maneira aprofundada os fenômenos e processos sociais, interpretando seus diversos sentidos e significados.

Tabela 2
Caracterização dos entrevistados

PERSPECTIVAS DA AÇÃO COLETIVA EM TERRITÓRIOS INDÍGENAS: A EXPERIÊNCIA DAS TIS JARAGUÁ (SP) E ALTO RIO NEGRO (AM)

Em diálogo com a literatura, observamos que a multiplicidade de entidades governamentais e não governamentais que atuam no Subsistema de Saúde Indígena gera uma dinâmica de gestão complexa (Pontes et al., 2015Pontes, A. L. M., Rego, S., & Garnelo, L. (2015). O modelo de atenção diferenciada nos Distritos sanitários especiais indígenas: reflexões a partir do Alto Rio Negro/AM, Brasil. Ciência e Saúde Coletiva, 20(10), 3199-3210. https://doi.org/10.1590/1413-812320152010.18292014
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).

A gestão da saúde na TI Jaraguá se concretiza pela parceria com a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O vínculo é fruto do Projeto Xingu, extensão universitária pioneira na formação de profissionais da saúde voltados às especificidades da atenção às populações indígenas. O objetivo principal da parceria firmada entre Secretaria Municipal da Saúde e a Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM), braço da Unifesp qualificado como organização social, era a estruturação do modelo assistencial: contratação de pessoal qualificado para trabalhar nos equipamentos de saúde recém-instalados. Aqui reside uma idiossincrasia fundamental da gestão pública da saúde no município de São Paulo: impera o modelo de contratos de gestão com organizações sociais de saúde. Diferentemente de termos de convênio, os contratos de gestão envolvem maior tempo de contratação, a mensuração de metas a serem alcançadas e só podem ser realizados com entidades qualificadas como organizações sociais. Nesse sentido, trata-se de um instrumento mais seguro e completo para a realização de parcerias com entidades sem finalidade lucrativa. Outra idiossincrasia da gestão paulistana se refere ao financiamento: desde 2010, os recursos destinados à saúde indígena provêm do tesouro municipal, tendo dotação própria. Segundo um dos entrevistados, essa mudança foi essencial para assegurar a continuidade das políticas desenvolvidas.

É relevante ressaltar que a parceria se empenhou para que houvesse a inserção de lideranças indígenas no conselho gestor do hospital e a presença de funcionários residentes na própria TI. Por um lado, a presença de membros das comunidades indígenas no corpo técnico das redes de atenção à saúde deve ser vista como positiva tanto por aproximar a política pública do seu público-alvo quanto por incentivar a formação e capacitação de indígenas. Nesse sentido, as entrevistadas foram unânimes em salientar a importância dessa interlocução para a construção de estratégias efetivas. Por outro lado, deve-se apontar que as pessoas colocadas nessa posição intermediária, funcionárias-indígenas, também têm de lidar com situações delicadas: ao mesmo tempo que representam a comunidade indígena, representam os órgãos governamentais responsáveis pela garantia do direito à saúde. Uma das entrevistadas ilustra essa dinâmica:

Eu, como gestora, sou uma liderança, mas não sou uma liderança da aldeia. Então o meu povo que eu tenho que defender são os funcionários da [unidade básica de saúde] UBS. Então, quando chega algum conflito, quem tem que ser o escudo deles sou eu […]. Eu acho que o trabalho de um gestor e de uma liderança é ser a ponte, a ligação e o escudo também. E é o que eu estou tentando fazer. A gente não se desliga, não é igual ao trabalhador comum não indígena. O juruá pode ser profissional das 8 da manhã às 5 da tarde. Na aldeia você tá ali sempre, 24 horas (Entrevista 4, 2 abr. 2021).

As entrevistas apontaram que o modelo de parceria da Secretaria Municipal da Saúde com a SPDM foi exitoso quanto às práticas de enfrentamento à pandemia. Segundo avaliação de um entrevistado atuante no posto de saúde do Jaraguá, a eficácia obtida no combate à Covid-19 se deu, principalmente, em decorrência do trabalho de comunicação e conscientização da gerência e do posto médico com os residentes da comunidade. As entrevistas atribuem o êxito à comunidade fortalecida e a uma rede de parceiros eficiente: “Os lugares [nos quais] caminhou bem o enfrentamento foi porque houve uma rede de parceiros eficiente, que captou recursos, deu apoio, trabalhou junto, falou com os indígenas na mesma língua sobre a doença, desconstruiu fake news e o discurso ambíguo do governo” (Entrevista 9, 7 maio 2021).

A pandemia de Covid-19 alcançou São Gabriel da Cachoeira sob a imagem da contaminação em massa. A prefeitura agiu rapidamente ao criar, uma semana após o marco de início da pandemia, o Comitê Interinstitucional de Combate ao Coronavírus, aproveitando a instância do Fórum Interinstitucional, prática de governo e participação social já presente no município. Os objetivos do comitê eram reunir as principais instituições da região, promover o diálogo e a articulação e garantir transparência nas ações do setor público.

A comunicação foi um dos pilares centrais dessa atuação. Além de boletins diários, enviados por WhatsApp, com os principais encaminhamentos do comitê e as informações de contaminação, as associações indígenas e indigenistas buscaram explicar a doença e sua forma de contaminação, combater as fake news e confeccionar cartilhas relativas às medidas de prevenção ao vírus nas línguas indígenas oficiais dos municípios. Para uma das entrevistadas, o objetivo principal era “massificar a informação, inclusive nas diversas línguas” (Entrevista 4, 25 jun. 2021). A presença constante dessas organizações em diálogo com os órgãos públicos fez com que a informação circulasse na contramão da disseminação de fake news. Nesse sentido, vale destacar a atuação da rede de comunicadores indígenas do Rio Negro, a Rede Wayuri. O coletivo foi criado em 2017 e desde então leva informações sobre questões indígenas e territoriais às comunidades da região.

Na falta de estruturas hospitalares adequadas, a participação dos Expedicionários da Saúde (EDS), associação indigenista voltada para a garantia de atendimento médico adequado, foi fundamental. Por intermédio do diálogo com o comitê, a EDS instalou 11 Unidades de Atenção Primária Indígenas – enfermarias de campanha nas TIs –, apoiando a capacitação das equipes e a provisão de equipamentos, além de uma unidade de terapia intensiva improvisada na enfermaria do Hospital Militar. A organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) também esteve presente na região na primeira fase da pandemia. Ela apoiou tanto a qualificação técnica para operar a máquina quanto a articulação com fornecedores dos materiais necessários para a adaptação.

Com relação às entidades religiosas que operam na região e sua atuação na pandemia, houve grande cooperação da Igreja Católica com o ISA no que se refere às medidas de prevenção. Por parte da instituição religiosa, foram suspensas, no início da pandemia, as atividades que envolviam aglomerações. Essa postura não foi adotada, entretanto, pela Igreja Evangélica, que manteve as reuniões e atividades religiosas que causavam aglomeração, além de demonstrarem resistência à vacinação.

Em ambos os casos, observamos a importância de parcerias entre o poder público, entidades não governamentais ligadas ao tema da saúde indígena e lideranças das TIs para a articulação de respostas tempestivas em momentos de crise. Vale ressaltar o papel das organizações indígenas regionais e nacionais que construíram com organizações aliadas formas de auto-organização articuladas com as ações de solidariedade, arrecadações, doação de alimentos orgânicos, cestas básicas, distribuição de materiais de higiene para os povos indígenas. Não restam dúvidas de que as soluções encontradas só foram possíveis graças à rápida mobilização dos atores engajados, a despeito das condições estruturais precárias e das barreiras institucionais criadas também por agentes públicos.

A perspectiva multicêntrica propicia a compreensão desses casos como interconexões e capacidades de múltiplos atores da sociedade civil atuantes em uma arena política em circunstâncias emergenciais. Borges (2020)Borges, Z. (2020). Formas emergentes de ação coletiva: limites e oportunidades de ação pública e democracia direta. In J. B. Torruella, S. Martins & C. Nebot (eds.), Uma nova democracia para o século XXI? (pp. 174-186). Martins. argumenta que diante de crises, como a pandemia causada pela Covid-19, se tornam ainda maiores os desafios para a manutenção de ações sem o apoio de políticas públicas consistentes, fazendo com que as populações mais vulneráveis sejam as mais afetadas. Por outro lado, os casos evidenciam a fundamentalidade das parcerias enquanto forma de ação pública. Chamam a atenção as alternativas criadas nos próprios territórios com base em vivências e lutas particulares. Dito isso, as possibilidades de coprodução de políticas públicas dependem da capacidade do poder público de reconhecer a existência de experiências coletivas singulares, formadas por organizações diversas e em torno de características das regiões.

Nesse contexto, transparência, abertura, participação social e conexões socioestatais tornamse elementos centrais à gestão da ação pública. Ao mesmo tempo, diante de um vácuo federal no que se refere à implementação de políticas públicas de combate à pandemia, a ação coletiva adquire não só papel de denúncia e controle social (Borges, 2020Borges, Z. (2020). Formas emergentes de ação coletiva: limites e oportunidades de ação pública e democracia direta. In J. B. Torruella, S. Martins & C. Nebot (eds.), Uma nova democracia para o século XXI? (pp. 174-186). Martins.), mas também de malha de proteção aos direitos das populações vulneráveis.

Por outro lado, permanece o desafio de garantir uma governança que de fato permita a contribuição mais significativa de atores diversos, especialmente indígenas. Nesse sentido, convém refletir sobre a dinâmica de relações na arena pública, marcada por encontros que incluem organizações indígenas e indigenistas, associações religiosas e poder público. Se a literatura da ação pública lança luz sobre os conflitos e interesses plurais na definição de problemas públicos (Abers, Serafim & Tatagiba, 2014Abers, R., Serafim, L., & Tatagiba, L.. (2014). Repertórios de interação estado-sociedade em um estado heterogêneo: a experiência na Era Lula. Dados, 57(2), 325–357. https://doi.org/10.1590/0011-5258201411.
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; Borges, 2020Borges, Z. (2020). Formas emergentes de ação coletiva: limites e oportunidades de ação pública e democracia direta. In J. B. Torruella, S. Martins & C. Nebot (eds.), Uma nova democracia para o século XXI? (pp. 174-186). Martins.; CefaÏ, 2017Cefaï, D. (2017). Público, problemas públicos, arenas públicas…: o que nos ensina o pragmatismo (parte 1). Novos Estudos Cebrap, 36(1), 187-213. https://doi.org/10.25091/S0101-3300201700010009
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), nossas análises reforçam as possibilidades e os desafios de uma interação horizontal e intercultural no âmbito da questão indígena (Ferreira, 2015Ferreira, L. O. (2015). Interculturalidade e saúde indígena no contexto das políticas públicas brasileiras. In E. J. Langdon & M. D. Cardoso (eds.), Saúde Indígena: políticas comparadas na América Latina (pp. 217-247). Editora da UFSC.; Foller, 2004Foller, M. A. J. (2004). Intermedicalidade: a zona de contato criada por povos indígenas e profissionais de saúde. In: E. J. Langdon & L. Garnelo (eds.), Saúde dos povos indígenas: reflexões sobre antropologia participativa (pp. 129-148). Contracapa; ABA.).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho baseou-se em uma lacuna identificada na literatura do campo de políticas públicas em relação à discussão sobre ações governamentais voltadas às populações indígenas no Brasil. Focalizando as estratégias de saúde construídas ao longo da pandemia de Covid-19, foi possível traçar conexões entre as contribuições da abordagem da ação pública e o problema empírico da grave emergência humanitária vivenciada por indígenas nesse período.

Ao estudar os casos da TI Jaraguá e da TI Alto Rio Negro, salta aos olhos uma convergência fundamental para compreender como respostas foram criadas tempestivamente. A despeito das ameaças políticas e da desconstrução institucional dos órgãos federais como Funai e Secretaria de Saúde Indígena, a rede de agentes solidários às pautas indígenas foi o fator central para os resultados alcançados em cada contexto. Como uma malha de segurança, as performances da ação pública construíram estratégias pelas quais os impactos negativos das crises puderam ser mitigados.

Esses resultados trazem contribuições analíticas para o campo de políticas públicas. Em primeiro lugar, trata-se de perceber a riqueza da abordagem da ação pública e de perspectivas multicêntricas para a investigação de circunstâncias nas quais convergem um retrocesso democrático e uma emergência humanitária. Em segundo lugar, ressalta-se a relevância de incorporar as problemáticas das populações indígenas no país como objetos e sujeitos de nossas pesquisas.

Deve-se colocar, por fim, que o contexto político, institucional e epidemiológico foi radicalmente alterado em 2023. A cobertura vacinal da população subiu a níveis seguros para o retorno às atividades cotidianas, ainda que com cuidados. O início do terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva marca um retorno aos ideais democráticos com avanços consideráveis na pauta indígena. O recém-criado Ministério dos Povos Indígenas e a consequente saída da Funai da alçada do Ministério da Justiça, bem como a ocupação de cargos por pessoas indígenas (Sônia Guajajara como ministra, Joenia Wapichana como presidenta da Funai e Weibe Tapeba como secretário nacional de Saúde Indígena), são marcos fundamentais em direção à construção de políticas públicas consistentes no mote “nada sobre nós, sem nós”.

Assim, os cenários são positivos e oportunos para que novas pesquisas sejam feitas a fim de acompanhar as formas criativas pelas quais as redes criadas em contextos adversos e violentos se reorganizam para aprofundar avanços conquistados e batalhar por outros.

  • Avaliado pelo sistema double blind review.

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Editado por

Editor Associado: Andrea Leite Rodrigues

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    08 Dez 2021
  • Aceito
    19 Maio 2023
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